quarta-feira, 9 de julho de 2008

OS SETE BRADOS DO SALVADOR SOBRE A CRUZ - ARTHUR W. PINK




OS SETE BRADOS DO SALVADOR
SOBRE A CRUZ
ARTHUR W PINK



Traduzido do original em inglês
The Seven Sayings of the Saviour on the Cross (1919)
Tradução: Vanderson Moura da Silva
Biografia de Arthur W. Pink: Vanderson Moura da Silva
Primeira edição em português: 2006

As citações escriturísticas utilizadas neste livro são da Edição Revista e Corrigida de Almeida, da Imprensa Bíblica do Brasil, exceto quando uma outra versão é indicada.

Crédito: Monergismo.com
"Ao Senhor Pertence a Salvação" (Jonas 2:9)
http://www.monergismo.com/

Reeditado por SusanaCap
Semeadores da Palavra e-books evangélicos GRATIS
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SUMÁRIO



NOTA DE AGRADECIMENTO.. 3
INTRODUÇÃO.. 3
1. A PALAVRA DE PERDÃO.. 7
2. A PALAVRA DE SALVAÇÃO.. 21
3. A PALAVRA DE AFEIÇÃO.. 41
4 A PALAVRA DE ANGÚSTIA.. 54
5. A PALAVRA DE SOFRIMENTO.. 74
6. A PALAVRA DE VITÓRIA.. 88
7. A PALAVRA DE CONTENTAMENTO.. 105
UMA BREVE BIOGRAFIA.. 118


NOTA DE AGRADECIMENTO


A presente obra, disponível agora no portal Monergismo.com, é o terceiro fruto do “Projeto de Tradução”, lançado no ano passado. Diferentemente dos outros, traduzidos voluntariamente, esse livro foi traduzido com a generosa doação de um pastor brasileiro que mora em Portugal. Esperamos que a sua iniciativa em ajudar na divulgação da Palavra de Deus incentive a muitos outros. Caso queira fazer uma doação ou colaborar como um tradutor voluntário, por favor, entre em contato pelo seguinte e-mail: traducao@monergismo.com
Aproveitamos esta oportunidade para reiterar o convite a todos os irmãos que se sentem especialmente capacitados a trabalhar com literatura cristã sadia a fim de que se unam a este projeto para a disponibilização gratuita em nossa língua, tão carente da sã teologia e da mais edificante doutrina, de outras obras de extremo valor.
Soli Deo gloria!
Felipe Sabino de Araújo Neto Cuiabá-MT, 21 de maio de 2006




INTRODUÇÃO

A MORTE DO SENHOR JESUS CRISTO é um assunto de interesse inexaurível para todos os que estudam em oração a escritura da verdade. Tal é assim não somente porque tudo do crente — tanto no tempo como na eternidade — dela dependa, mas também devido à sua singularidade transcendente. Quatro palavras parecem resumir as características salientes desse mistério dos mistérios: a morte de Cristo foi natural, nãonatural, preternatural e sobrenatural. Uns poucos comentários parecem ser necessários à guisa de definição e amplificação.
Primeiro: a morte de Cristo foi natural. Com isso queremos dizer que ela foi uma morte real. É porque estamos tão familiarizados com o fato dela que a declaração acima parece simples, corriqueira; todavia, o que abordamos aqui é um dos principais elementos de admiração para a mente espiritual. Aquele que foi “tomado, e pelas mãos de injustos” [1] crucificado e assassinado não era outro senão o “Companheiro” [2] de Jeová. O sangue que foi derramado sobre o madeiro maldito era divino — “A igreja de Deus, que ele resgatou com seu próprio sangue” (Atos 20:28). Como diz o apóstolo: “Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo” (2Coríntios 5:19).
Mas como o “Companheiro” de Jeová poderia sofrer? Como o eterno poderia morrer? Ah, aquele que no princípio era o Verbo, que estava com Deus, e que era Deus, “se fez carne”. [3] Aquele que era em forma de Deus tomou sobre si a forma de um servo e foi feito semelhante aos homens; “e, achado na forma de homem, humilhou-se a si mesmo, sendo obediente até à morte e morte de cruz” (Fp 2.8). Dessa forma, tendo se encarnado, o Senhor da glória foi capaz de sofrer a morte, e assim foi que ele “provou” a própria morte. Em suas palavras, “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito”, [4] vemos quão natural foi sua morte, e a realidade dela se torna ainda mais aparente quando ele foi posto na sepultura, onde permaneceu por três dias.
Segundo: a morte de Cristo foi não-natural. Por isso queremos dizer que ela foi anormal. Acima dissemos que, ao se encarnar, o Filho de Deus tornou-se capaz de sofrer a morte, todavia, não deve ser inferido daí que a morte tinha, portanto, um direito a reclamar sobre ele; longe disso, o contrário mesmo era a verdade. A morte é o salário do pecado [5], e ele não tinha nenhum. Antes de seu nascimento foi dito a Maria: “[que] o ente santo que há de nascer será chamado Filho de Deus” (Lucas 1:35, ARA). Não somente o Senhor Jesus entrou neste mundo sem contrair a contaminação da natureza humana caída, mas ele “não cometeu pecado” (1Pedro 2:22), “não [tinha] pecado” (1João 3:5) e “não conheceu pecado” (2Coríntios 5:21). Em sua pessoa e em sua conduta ele foi o Santo de Deus “imaculado e incontaminado” (1Pedro 1:19). Como tal, a morte não tinha nenhum direito a reclamar sobre ele. Até mesmo Pilatos teve que reconhecer que não pôde encontrar “nenhuma culpa” [6] nele. Por conseguinte, dizemos que o Santo de Deus morrer foi não-natural.
Terceiro: a morte de Cristo foi preternatural. Por meio disso queremos dizer que ela foi marcada e determinada para ele de antemão. Ele era o Cordeiro morto antes da fundação do mundo (Apocalipse 13.8). Antes que Adão fosse criado, a Queda foi antecipada. Antes de o pecado entrar no mundo, a salvação dele havia sido planejada por Deus. Nos eternos conselhos da Deidade, foi ordenado de antemão que haveria um Salvador para os pecadores, um Salvador que sofreria, o justo pelos injustos[7], um Salvador que morreria para que pudéssemos viver. E “porque não havia nenhum outro suficientemente bom para pagar o preço do pecado”, o Unigênito do Pai se ofereceu como o resgate.
O caráter preternatural da morte de Cristo leva o bom termo de o “sustentáculo da Cruz”. Foi em vista da aproximação dessa morte que Deus “justamente ignorou os pecados anteriormente cometidos” [8] (Rm 3.25). Não tivesse sido Cristo, no conceito de Deus, o Cordeiro morto desde antes da fundação do mundo, toda pessoa pecadora nos tempos do Antigo Testamento teria sido lançada no abismo no momento em que ela pecasse!
Quarto: a morte de Cristo foi sobrenatural. Por isso queremos dizer que ela foi diferente de qualquer outra morte. Em todas as coisas ele tem a preeminência. Seu nascimento foi diferente de todos os outros nascimentos. Sua vida foi diferente de todas as outras vidas. E sua morte foi diferente de todas as outras mortes. Isso foi claramente anunciado em sua própria declaração sobre o assunto: “Por isso, o Pai me ama, porque dou a minha vida para tornar a tomá-la. Ninguém ma tira de mim, mas eu de mim mesmo a dou; tenho poder para a dar e poder para tornar a tomá-la. Esse mandamento recebi de meu Pai” (João 10:17, 18). Um estudo cuidadoso das narrativas evangélicas que descrevem sua morte fornece uma prova sétupla e a verificação de sua asseveração.
(1) Que nosso Senhor “deu a sua vida”, que ele não estava impotente nas mãos de seus inimigos, revela-se claramente em João 18, onde temos o registro de sua prisão. Um bando de oficiais da parte dos principais sacerdotes e dos fariseus, guiados por Judas, o procuraram no Getsêmani. Adiantando-se para encontrá-los, o Senhor Jesus pergunta: “A quem buscais?”. A resposta foi: “Jesus de Nazaré”; e então nosso Senhor expressou o inefável título de deidade, aquele pelo qual Jeová se revelou nos tempos antigos a Moisés na sarça ardente: “Eu Sou”. [9] O efeito foi impressionante. Esses oficiais ficaram apavorados. Eles estavam na presença da deidade encarnada, e foram sobrepujados por uma breve consciência da majestade divina. Quão claro é então que, se assim o tivesse agradado, nosso bendito Salvador poderia ter se afastado calmamente, deixando aqueles que vieram lhe prender prostrados no chão! Ao invés disso, ele se entregou nas mãos deles e foi levado (não compelido) como um cordeiro ao matadouro.
(2) Voltemo-nos agora para Mateus 27:46 — o versículo mais solene em toda a Bíblia — “E, perto da hora nona, exclamou Jesus em alta voz, dizendo: Eli, Eli, lamá sabactâni, isto é, Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?”. As palavras que pedimos ao leitor que observe cuidadosamente estão colocadas aqui em itálico. Por que é que o Espírito Santo nos conta que o Salvador pronunciou esse terrível clamor “em alta voz”? Com muita certeza que há uma razão para tal. Isso se torna ainda mais aparente quando notamos que ele as repetiu quatro versículos abaixo no mesmo capítulo — “E Jesus, clamando outra vez com grande voz, entregou o espírito” (Mateus 27.50) . O que então essas palavras indicam? Não corroboram elas o que foi dito nos parágrafos acima? Não nos dizem elas que o Salvador não estava exausto pelo que ele tinha passado? Não nos dão elas a entender que suas forças não o tinham deixado? Que ele ainda era senhor de si mesmo, que ao invés de ser conquistado pela morte, ele estava apenas se entregando para ela? Elas não nos mostram que Deus tinha posto “ajuda sobre um poderoso” (Salmos 89.19, Tradução do Novo Mundo)?
(3) Podemos chamar a atenção para a sua próxima expressão sobre a Cruz — “Tenho sede”. Essa palavra, à luz do seu contexto, fornece uma evidência maravilhosa do autocontrole completo do nosso Senhor. O versículo inteiro diz o seguinte: “Depois, sabendo Jesus que já todas as coisas estavam terminadas, para que a Escritura se cumprisse, disse: Tenho sede” (João 19.28). Desde os tempos antigos tinha sido predito que eles deveriam dar vinagre misturado com fel para o Salvador beber. E para que essa profecia pudesse ser cumprida, ele exclamou: “Tenho sede”. Como isso evidencia o fato de que ele estava em plena posse de suas faculdades mentais, que sua mente estava desanuviada, que seus terríveis sofrimentos não a tinham transtornado nem perturbado!
Enquanto permanecia pendurado na cruz, no final da hora sexta, sua mente reviveu o escopo inteiro da palavra profética, e verificou cada uma daquelas predições que faziam alusão à sua paixão. Excetuando as profecias que seriam cumpridas após sua morte, só restava uma ainda não cumprida, a saber: “Deram-me fel por mantimento, e na minha sede me deram a beber vinagre” (Salmo 69:21), e isso não foi negligenciado pelo bendito sofredor. “Sabendo Jesus que já todas as coisas estavam terminadas, para que a Escritura (não ‘Escrituras’, sendo a referência ao Salmo 69.21) se cumprisse, disse: Tenho sede”. Novamente, dizemos, que prova é fornecida aqui de que ele entregou sua vida de si mesmo!
(4) A próxima verificação que o Espírito Santo fornece das palavras do nosso Senhor em João 10.18 é encontrada em João 19.30: “E, quando Jesus tomou o vinagre, disse: Está consumado. E, inclinando a cabeça, entregou o espírito”. O que se pretende que aprendamos dessas palavras? O que é que se quer dizer aqui através desse ato do Salvador? Seguramente, a resposta não está longe. A implicação é clara. Antes disso a cabeça do nosso Senhor tinha estado erigida. Não era um sofredor impotente que pendia ali desmaiado. Tivesse esse sido o caso, sua cabeça teria se recostado sobre o peito, e seria impossível para ele “arqueá-la”. E observe atentamente o verbo usado aqui: não foi sua cabeça que “caiu”, mas ele, conscientemente, calmamente, reverentemente, inclinou sua cabeça. Quão sublime foi sua atitude mesmo sobre o madeiro! Que compostura esplêndida ele evidenciou. Não foi sua majestosa atitude sobre a cruz que, entre outras coisas, fez com que o centurião clamasse: “Verdadeiramente, este era o Filho de Deus” (Mateus 27.54)?

1. A PALAVRA DE PERDÃO

" E dizia Jesus: Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem" Lucas 23:34

O HOMEM HAVIA FEITO O SEU PIOR. Aquele por quem o mundo foi feito veio ao mundo, mas o mundo não o conheceu. O Senhor da glória tinha tabernaculado entre os homens, mas não foi desejado. Os olhos que o pecado tinha cegado não viram nele nenhuma beleza alguma pela qual ele pudesse ser desejado [10]. Em seu nascimento não havia nenhum quarto na hospedaria, o que prenunciava o tratamento que receberia das mãos dos homens. Pouco tempo após seu nascimento, Herodes procurou matá-lo, e isso sugeria a hostilidade que sua pessoa evocava e predizia a cruz como o clímax da inimizade do homem. Repetidas vezes seus inimigos tentaram sua destruição. E agora os vis desejos deles fora-lhes concedidos. O Filho de Deus tinha se rendido nas mãos deles. Um arremedo de julgamento havia acontecido e, embora seus juízes não tenham encontrado nenhuma falta nele, todavia, eles se rederam ao clamor insistente daqueles que o odiavam à medida que eles repetidamente clamavam: “Crucifica-o”.
Uma ação bárbara tinha sido feita. Nenhuma morte ordinária satisfaria seus inimigos implacáveis. Foi decidida uma morte de sofrimento e vergonha intensas. Uma cruz tinha sido assegurada: o Salvador seria pregado nela. E ali ele foi pendurado — em silêncio. Mas nesse instante seus lábios pálidos são vistos se mexendo — ele está clamando por piedade? Não. O que então? Ele está pronunciado maldição sobre aqueles que estão lhe crucificando? Não. Ele está orando, orando pelos seus inimigos — “E dizia Jesus: Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem” (Lucas 23.34).
Essa primeira das sete palavras na cruz do nosso Senhor o apresenta em atitude de oração. Quão significante! Quão instrutivo! Seu ministério público tinha sido aberto com oração (Lucas 3.21), e aqui vemos ele sendo fechado com oração. Certamente ele nos deixou um exemplo! Não mais aquelas mãos ministrariam ao doente, pois estavam pregadas no madeiro cruel; não mais aqueles pés poderiam levá-lo nas tarefas de misericórdia, pois estavam presas no madeiro cruel; não mais ele poderia se ocupar na instrução dos apóstolos, pois eles tinham-no esquecido e fugido. Como então ele se ocupou? No ministério da oração! Que lição para nós.
Talvez essas linhas possam ser lidas por alguém que, por razão da idade e doença, não é mais capaz de trabalhar ativamente na vinha do Senhor. Possivelmente nos dias de outrora você era um professor, um pregador, um professor de escola dominical, um distribuidor de panfletos: mas agora você está de cama. Sim, mas você ainda está aqui na terra! Quem sabe Deus não está deixando você aqui mais uns poucos dias para te engajar no ministério da oração — e talvez realizar mais através disso que por todo seu ministério passado ativo. Se você for tentado a depreciar tal ministério, lembre-se do seu Salvador. Ele orou, orou por outros, orou por pecadores, até mesmo em suas últimas horas.
Ao orar por seus inimigos, Cristo não somente colocou diante de nós um exemplo perfeito de como devemos tratar aqueles que nos prejudicam e nos odeiam, mas ele também nos ensinou a nunca considerar algo como além do alcance da oração. Se Cristo orou por seus assassinos, então certamente temos encorajamento para orar agora pelo maior de todos os pecadores! Leitor cristão, nunca perca a esperança. Parece para você um desperdício de tempo continuar orando por aquele homem, por aquela mulher, por aquele seu filho obstinado? O caso deles parece se tornar mais sem esperança a cada dia? Parece como se eles estivem além do alcance da misericórdia divina? Talvez alguém por quem você tem orado por tanto tempo foi enlaçado por uma das seitas satânicas de hoje, ou ele pode ser agora um infiel declarado e desbragado; em resumo, um inimigo aberto de Cristo. Lembre-se então da cruz. Cristo orou por seus inimigos. Aprenda então a não olhar para nada como estando além do alcance da oração.
Um outro pensamento concernente a essa oração de Cristo. Devemos mostrar aqui a eficácia da ração. Essa intercessão de Cristo na cruz por seus inimigos recebeu uma resposta marcada e definida.
A resposta é vista na conversão das três mil amas no dia de Pentecoste. Eu baseio essa conclusão em Atos 3.17, onde o apostolo Pedro diz: “E agora, irmãos, eu sei que o fizestes por ignorância, como também os vossos príncipes”.
Deve ser notado que Pedro usa a palavra “ignorância”, que corresponde ao “não sabem o que fazem” do nosso Senhor. Eis aí a explicação divina dos 3.000 conversos com um simples sermão. Não foi a eloqüência de Pedro a causa, mas a oração do Senhor. E, leitor cristão, o mesmo é verdadeiro para nós.
Cristo orou por você e por mim antes de crermos nele. Volte-se para João 17.20 para conferir. “Eu não rogo somente por estes (os apóstolos), mas também por aqueles que, pela sua palavra, hão de crer em mim” (João 17.20). Uma vez mais beneficiemo-nos do exemplo perfeito. Façamos intercessão também pelos inimigos de Deus e, se orarmos com fé, também será eficaz para a salvação dos pecadores perdidos.
Para ir diretamente ao nosso texto agora:

“E dizia Jesus: Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem”.

1. Aqui vemos o cumprimento da palavra profética.
Quanto Deus fez conhecido de antemão do que deveria suceder naquele dia dos dias! Que retrato completo o Espírito Santo fornece da Paixão do nosso Senhor com todas as circunstâncias que a acompanharam! Entre outras coisas, foi predito que o Salvador deveria “interceder pelos transgressores” (Isaías 53:12, Tradução do Novo Mundo). Isso não tem referência com o ministério presente de Cristo à direita de Deus.[11] É verdade que ele “pode também salvar perfeitamente os que por ele se chegam a Deus, vivendo sempre para interceder por eles” (Hebreus 7.25), mas isso fala do que ele está fazendo agora por aqueles que crêem nele, enquanto Isaías 53.12 faz referência ao seu ato gracioso no momento da sua crucificação. Observe que sua intercessão pelos transgressores está conectada com “e foi contado com os transgressores; mas ele levou sobre si o pecado de muitos e fez intercessão pelos transgressores”.
Que Cristo deveria fazer intercessão pelos seus inimigos era um dos itens da maravilhosa profecia encontrada em Isaías 53. Esse capítulo nos diz pelo menos dez coisas sobre a humilhação e o sofrimento do Redentor. Lá, é declarado que ele deveria ser desprezado e rejeitado pelos homens; que deveria ser um homem de dores e que sabia o que era sofrer; que ele deveria ser ferido, moído e castigado; que deveria ser levado, sem resistência, ao matadouro; que deveria permanecer mudo perante os seus tosquiadores; que deveria não somente sofrer nas mãos de homens, mas também ser moído pelo Senhor; que deveria derramar sua alma na morte; que deveria ser enterrado na sepultura de um homem rico; e então foi adicionado que deveria ser contado com os transgressores; e finalmente, que deveria fazer intercessão por esses. Aqui então estava a profecia - “e fez intercessão pelos transgressores”; houve o cumprimento dela - “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem”. Ele pensou nos seus assassinos. Ele implorou por aqueles que lhe crucificaram; ele fez intercessão pelo perdão deles.

“E dizia Jesus: Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem”.

2. Aqui vemos Cristo identificado com o seu povo.
“Pai, perdoa-lhes”. Em nenhuma ocasião anterior Cristo fez tal pedido ao Pai. Nunca antes ele tinha invocado o perdão dos outros ao Pai. Até aqui ele mesmo perdoou. Ao homem paralítico, ele disse: “Filho, tem bom ânimo; perdoados te são os teus pecados” (Mt 9.2). À mulher que lavou seus pés com suas lágrimas, na casa de Simão, ele disse: “Os teus pecados te são perdoados” (Lc 7.48). Por que, então, ele agora pediu ao Pai para perdoar, ao invés dele mesmo pronunciar diretamente o perdão?
Perdão de pecado é uma prerrogativa divina. Os escribas judeus estavam certos quando arrazoaram: “Quem pode perdoar pecados, senão Deus?” (Mc 2.7). Mas dirá você: Cristo era Deus. Com toda certeza; mas homem também - o Deus-homem. Ele era o Filho de Deus que tinha se tornado o Filho do Homem com o expresso propósito de oferecer a si mesmo como sacrifício pelo pecado. E quando o Senhor Jesus clamou “Pai, perdoa-lhes”, ele estava sobre a cruz, e ali ele não poderia exercer suas prerrogativas divinas. Repare cuidadosamente suas palavras, e então contemple a exatidão maravilhosa da Escritura. Ele tinha dito: “O Filho do Homem tem na terra autoridade para perdoar pecados” (Mt 9.6). Mas ele não estava mais sobre a terra! Ele tinha sido “levantado da terra” (Jo 12.32)! Além do mais, na cruz ele estava agindo como nosso substituto; o justo estava para morrer pelos injustos. Por conseguinte, ao ser suspenso como nosso representante, ele não estava mais no lugar de autoridade onde poderia exercer suas prerrogativas divinas, e, portanto, toma a posição de um suplicante perante o Pai. Assim, dizemos que quando o bendito Senhor Jesus clamou, “Pai, perdoa-lhes”, o vemos absolutamente identificado com o seu povo. Não estava mais na posição de autoridade sobre a “terra”, onde ele tinha o “poder” ou “direito” de perdoar pecados; ao invés disso, ele intercede pelos pecadores - como nós devemos fazer.

“E dizia Jesus: Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem”.
3. Aqui vemos a avaliação divina do pecado e sua culpa conseqüente.
Sob a economia levítica, Deus exigiu que a expiação devesse ser feita pelos pecados praticados por ignorância.
“Quando alguma pessoa cometer uma transgressão e pecar por ignorância nas coisas sagradas do SENHOR, então, trará ao SENHOR, por expiação, um carneiro sem mancha do rebanho, conforme a tua estimação em siclos de prata, segundo o siclo do santuário, para expiação da culpa. Assim, restituirá o que ele tirou das coisas sagradas, e ainda de mais acrescentará o seu quinto, e o dará ao sacerdote; assim, o sacerdote, com o carneiro da expiação, fará expiação por ela, e ser-lhe-á perdoado o pecado”. (Lv 5.15, 16).
E lemos novamente:
”Quando errardes e não cumprirdes todos estes mandamentos que o SENHOR falou a Moisés, sim, tudo quanto o SENHOR vos tem mandado por Moisés, desde o dia em que o SENHOR ordenou e daí em diante, nas vossas gerações, será que, quando se fizer alguma coisa por ignorância e for encoberta aos olhos da congregação, toda a congregação oferecerá um novilho, para holocausto de aroma agradável ao SENHOR, com a sua oferta de manjares e libação, segundo o rito, e um bode, para oferta pelo pecado. O sacerdote fará expiação por toda a congregação dos filhos de Israel, e lhes será perdoado, porquanto foi erro, e trouxeram a sua oferta, oferta queimada ao SENHOR, e a sua oferta pelo pecado perante o SENHOR, por causa do seu erro”. (Nm 15. 22-25, ARA). [12]
É em vista de passagens tais como essas que encontramos Davi orando: “Expurga-me tu dos [erros] que me são ocultos” (Sl 19.12).
O pecado é sempre pecado aos olhos divinos, quer estejamos consciente dele ou não. Pecados cometidos por ignorância precisam de expiação tanto quanto os conscientes. Deus é santo, e ele não rebaixará seu padrão de justiça ao nível da nossa ignorância. Ignorância não é inocência. Na verdade, ignorância é mais culpada agora do que na época de Moisés. Nós não temos desculpas pela nossa ignorância. Deus tem revelado clara e plenamente sua vontade. A Bíblia está em nossas mãos, e não podemos alegar ignorância de seu conteúdo, exceto para condenar-nos por nossa preguiça. Ele tem falado, e por sua palavra seremos julgados.
E, todavia, permanece o fato de que somos ignorantes de muitas coisas, e o erro e a culpa são nossos. E isso não minimiza a enormidade do nosso delito. Pecados cometidos por ignorância precisam do perdão divino, assim como a oração do Senhor nos mostra claramente aqui. Aprenda, então, quão alto é o padrão de Deus, quão grande é a nossa necessidade, e louve-o por uma expiação de suficiência infinita, que limpa de todo pecado.[13]

“E dizia Jesus: Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem”.
4. Aqui vemos a cegueira do coração humano.
“Porque não sabem o que fazem”. Isso não significa que os inimigos de Cristo eram ignorantes do fato de sua crucificação. Eles sabiam perfeitamente que tinham clamado: “Crucifica-o”. Eles sabiam perfeitamente que o seu vil pedido lhes tinha sido concedido por Pilatos. Eles sabiam perfeitamente que ele tinha sido pregado na cruz, pois eram testemunhas oculares do crime. O que, então, o Senhor quis dizer quando disse: “Porque não sabem o que fazem”? Ele quis dizer que eles eram ignorantes da grandeza do seu crime. Eles não sabiam que era o Senhor da glória que eles estavam crucificando. A ênfase não é sobre “porque não sabem”, mas sobre “porque não sabem o que fazem”.
E, todavia, eles deveriam ter sabido. A cegueira deles era inescusável. As profecias do Antigo Testamento que tinham recebido seu cumprimento nele eram suficientemente claras para identificá-lo como o Santo de Deus. Seu ensino era singular, pois seus próprios críticos foram forçados a admitir: “Nunca homem algum falou assim como este homem” (Jo 7.46). E o que dizer da sua vida perfeita?
Ele viveu diante dos homens uma vida que nunca tinha sido vivida sobre a terra antes. Ele não agradava a si mesmo. Ele se ocupava de fazer o bem. Ele estava sempre à disposição dos outros. Não havia egoísmo nele. Sua vida foi de auto-sacrifício do princípio ao fim. Sua vida foi sempre vivida para a glória de Deus. Sobre sua vida estava estampada a aprovação do céu, pois a voz do Pai testificou audivelmente: “Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo”. [14] Não, não havia escusa alguma para a ignorância deles. Isso apenas demonstrava a cegueira dos seus corações. A rejeição do Filho de Deus por parte deles trouxe pleno testemunho, de uma vez por todas, de que a mente carnal é “inimizade contra Deus” (Rm 8.7).
Quão triste é pensar que essa terrível tragédia ainda está sendo repetida! Pecador, você faz pouca idéia do que está fazendo ao negligenciar a grande salvação de Deus. Você faz pouca idéia de quão terrível é o pecado de menosprezar o Cristo de Deus e repelir os convites de sua misericórdia. Você faz pouca idéia da profunda culpa que está unida ao seu ato de recusar receber o único que pode te salvar dos seus pecados. Você faz pouca idéia de quão medonho é o crime de dizer: “Não queremos que este reine sobre nós”.[15] Você faz pouca idéia do que faz. Você considera essa questão vital com indiferença total. A questão se apresenta hoje da mesma forma como dantes: “Que farei, então, de Jesus, chamado Cristo?”.[16] Pois você tem que fazer algo com ele: ou o despreza e rejeita, ou o recebe como o Salvador de sua alma e o Senhor da sua vida. Mas, digo novamente, isso lhe parece um assunto de diminuta urgência, de pequena importância. Por anos você tem resistido aos esforços do seu Espírito. Por anos você tem posto de lado essa importantíssima consideração. Por anos você tem endurecido seu coração contra ele, tampado seus ouvidos aos seus apelos, e fechado seus olhos à sua excelsa beleza. Ah! você não sabe O QUE faz. Você está cego em sua loucura. Cego para o seu terrível pecado. Todavia, você não está sem escusa. Você pode ser salvo agora se quiser.
“Crê no Senhor Jesus Cristo e [tu] serás salvo”.[17] Ó, venha ao Salvador agora e diga com alguém de outrora, “Mestre, que eu tenha vista”.[18]

“E dizia Jesus: Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem”.

5. Aqui vemos uma exemplificação amorosa do seu próprio ensino.
No Sermão do Monte nosso Senhor ensinou aos seus discípulos: “Amai a vossos inimigos, bendizei os que vos maldizem, fazei bem aos que vos odeiam e orai pelos que vos maltratam e vos perseguem” (Mt 5.44). Acima de todos os outros, Cristo praticou o que ele pregou. A graça e a verdade vieram através de Jesus Cristo.[19] Ele não somente ensinou a verdade, mas ele mesmo era a verdade encarnada. Ele disse: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (Jo 14.6). Assim, aqui sobre a cruz ele exemplificou perfeitamente seu ensino do monte. Em todas as coisas ele nos deixou um exemplo.
Observe que Cristo não perdoou pessoalmente seus inimigos. Assim, em Mt 5.44 ele não exortou seus discípulos a perdoarem seus inimigos, mas os exortou a “orar” por eles. Mas nós não devemos perdoar aqueles que nos maltratam? Isso nos leva a um ponto com respeito ao qual é necessária muita instrução hoje em dia.
A escritura ensina que sob todas as circunstâncias devemos perdoar sempre? Eu respondo enfaticamente: não, ela não ensina. A palavra de Deus diz: “Se teu irmão pecar contra ti, repreende-o; e, se ele se arrepender, perdoa-lhe; e, se pecar contra ti sete vezes no dia e sete vezes no dia vier ter contigo, dizendo: Arrependo-me, perdoa-lhe” (Lc 17.3,4). Aqui somos claramente ensinados que uma condição deve ser satisfeita pelo ofensor antes que possamos pronunciar o perdão. Aquele que nos ofendeu deve primeiramente “se arrepender”, isto é, julgar a si mesmo por seu erro e dar evidência de sua tristeza por causa dele. Mas, suponha que o ofensor não se arrependa? Então eu não preciso perdoá-lo.
Mas que não haja má compreensão do que queremos dizer aqui. Mesmo que alguém que nos ofendeu não se arrependa, todavia, eu não devo abrigar sentimentos ruins contra ele.
Não deve haver nenhum ódio ou malícia cultivada no coração. Todavia, por outro lado, eu não devo tratar o ofensor como se ele não tivesse cometido nenhum erro. Isso seria fechar os olhos à ofensa, e, portanto, eu estaria falhando em manter as exigências da justiça, e isso é o que o crente deve fazer sempre. Deus alguma vez perdoa onde não há arrependimento? Não, pois a escritura declara: “Se confessarmos os nossos pecados, ele é fiel e justo para nos perdoar os pecados e nos purificar de toda injustiça” (1 Jo 1.9). Mais uma coisa. Se alguém me prejudicar e não se arrepender, embora eu não possa lhe perdoar e tratá-lo como se ele não tivesse me ofendido, todavia, eu não apenas não devo abrigar nenhuma malícia em meu coração contra ele, mas devo também orar por ele. Aqui está o valor do exemplo perfeito de Cristo. Se não podemos perdoar, podemos orar a Deus para perdoá-lo.

“E dizia Jesus: Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem”.

6. Aqui vemos a grande e primária necessidade do homem.

A primeira lição importante que todos precisam aprender é que somos pecadores, e como tais, inaptos para a presença de um Deus Santo. É em vão que escolhemos nobres ideais, adotamos boas resoluções, e aceitamos excelentes regras pelas quais viver, até que a questão do pecado tenha sido resolvida. Não é de proveito algum tentar desenvolver um belo caráter e ter por objetivo obter a aprovação de Deus, enquanto há pecado entre ele e as nossas almas. Qual a utilidade dos sapatos, se os nossos pés estão paralisados? De que utilidade são os óculos, se somos cegos? A questão do perdão dos meus pecados é básica, fundamental e vital. Não importa se sou altamente respeitado por um círculo amplo de amigos, se ainda estou em meus pecados. Não importa se eu sou honesto em meu negócio, se ainda sou um transgressor não perdoado aos olhos de Deus. O que importará na hora da morte será: Os meus pecados foram expurgados pelo sangue de Cristo?
A segunda lição importantíssima que precisamos aprender é como o perdão dos pecados pode ser obtido. Qual é fundamento sobre o qual um Deus santo perdoará pecados? E aqui é importante observar que há uma diferença vital entre o perdão divino e muito do perdão humano. Como regra geral, o perdão humano é uma questão de complacência, frequentemente de frouxidão. Queremos dizer que o perdão é mostrado à custa da justiça e da retidão. Na corte humana da lei, o juiz tem que escolher entre duas alternativas: quando se prova que alguém no banco dos réus é culpado, o juiz deve aplicar a penalidade da lei, ou deve negligenciar os requerimentos da lei - uma é justiça, a outra é misericórdia. A única forma possível na qual o juiz pode tanto aplicar os requerimentos da lei e ainda mostrar misericórdia ao ofensor, é uma terceira parte oferecer sofrer em sua própria pessoa a penalidade que o condenado merece. Assim aconteceu no conselho divino. Deus não exerceria misericórdia à custa da justiça. Ele, como o juiz de toda a terra, não colocaria de lado as demandas da sua santa lei. Todavia, Deus mostraria misericórdia. Como? Através de um que satisfaria plenamente sua lei violada. Por intermédio de seu próprio Filho, tomando o lugar de todos aqueles que crêem nele e carregando seus pecados em seu próprio corpo no madeiro. Deus poderia ser justo e ainda misericordioso, misericordioso e ainda justo. Foi assim para que a “graça reinasse pela justiça”.[20]
Um fundamento justo tinha sido fornecido sobre o qual Deus poderia ser justo e ainda o justificador de todo aquele que crê.[21] Por conseguinte, somos informados:

“E disse-lhes: Assim está escrito, e assim convinha que o Cristo padecesse e, ao terceiro dia, ressuscitasse dos mortos; e, em seu nome, se pregasse o arrependimento e a remissão (perdão) dos pecados, em todas as nações, começando por Jerusalém” (Lc 24.46,47).

E novamente:


“Seja-vos, pois, notório, varões irmãos, que por este se vos anuncia a remissão dos pecados. E de tudo o que, pela lei de Moisés, não pudestes ser justificados, por ele é justificado todo aquele que crê” (At 13.38, 39).

Foi em virtude do sangue que ele estava derramando que o Salvador clamou: “Pai, perdoa-lhes”. Foi m virtude do sacrifício expiatório que ele estava oferecendo que pôde ser dito que “sem derramamento de sangue não há remissão”.[22]
Ao orar pelo perdão dos seus inimigos, Cristo foi diretamente na raiz da necessidade deles. E a necessidade deles é a necessidade de todo filho de Adão. Leitor, você tem os seus pecados perdoados, isto é, remidos ou levados embora? Você é, pela graça, um daqueles de quem é dito: “Em quem temos a redenção pelo seu sangue, a saber, a remissão dos pecados” (Cl 1.14)?
“Então disse Jesus: Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem”.
7. Aqui vemos o triunfo do amor redentor.
Note atentamente a palavra com a qual nosso texto começa. “Então”.[23] O versículo que imediatamente o precede é lido assim: “E, quando chegaram ao lugar chamado a Caveira, ali o crucificaram e aos malfeitores, um, à direita, e outro, à esquerda”. Então, disse Jesus, Pai, perdoa-lhes. “Então” – quando o homem tinha feito o seu pior. “Então” - quando a vileza do coração humano foi demonstrada em maldade diabólica e climatérica. “Então” - quando com mãos ímpias a criatura ousou crucificar o Senhor da glória. Ele poderia ter expressado maldições terríveis sobre eles. Ele poderia ter lançado os raios da justa ira e os matado. Ele poderia ter feito a terra abrir a sua boca, de forma que eles caíssem vivos no abismo. Mas não. Embora sujeito à vergonha indizível, embora sofrendo dor excruciante, embora desprezado, rejeitado, odiado; todavia, ele clamou: “Pai, perdoa-lhes”. Esse era o triunfo do amor redentor. “O amor é paciente, é benigno... tudo sofre... tudo suporta” (1Co 13, ARA). Assim foi demonstrado na cruz.
Quando Sansão chegou na hora da sua morte, ele usou a grande força do seu corpo para abarcar a destruição de seus antagonistas; mas aquele que era perfeito exibiu a força de seu amor orando pelo perdão dos seus inimigos. Graça inigualável! “Inigualável”, dizemos, pois nem mesmo Estevão conseguiu seguir plenamente o exemplo bendito dado pelo Salvador. Se o leitor se voltar para Atos 7, descobrirá que o primeiro pensamento de Estevão foi sobre si mesmo, e depois foi que orou pelos seus inimigos - “E apedrejaram a Estêvão, que em invocação dizia: Senhor Jesus, recebe o meu espírito. E, pondo-se de joelhos, clamou com grande voz: Senhor, não lhes imputes este pecado. E, tendo dito isto, adormeceu” (At 7.59,60). Mas com Cristo a ordem foi inversa: ele orou primeiro pelos seus adversários, e no final por si mesmo. Em todas as coisas ele tem a preeminência.[24]
E agora, concluindo com uma palavra de aplicação e exortação. Se esse capítulo estiver sendo lido por uma pessoa não-salva, pedir-lhe-emos seriamente ponderar bem a próxima sentença - Quão terrível deve ser se opor a Cristo e à sua verdade conscientemente! Aqueles que crucificaram o Salvador não sabiam o que estavam fazendo. Mas, meu leitor, há um sentido muito real e solene no qual isso é verdade com respeito a você também. Você sabe que deve receber a Cristo como seu Salvador, que deve coroá-lo como Senhor de sua vida, que deve tornar a sua primeira e última preocupação agradá-lo e glorificá-lo. Fique então avisado; seu perigo é grande. Se você deliberadamente dá as costas a ele, dá as costas ao único que pode salvá-lo dos seus pecados, e está escrito: “Porque, se pecarmos voluntariamente, depois de termos recebido o conhecimento da verdade, já não resta mais sacrifício pelos pecados, mas uma certa expectação horrível de juízo e ardor de fogo, que há de devorar os adversários” (Hb 10.26,27).
Resta-nos apenas adicionar uma palavra sobre a bendita inteireza do perdão divino.
Muitos dentre o povo de Deus ficam intranqüilos e perturbados sobre esse ponto. Eles entendem como é que todos os pecados que cometeram antes de receberem a Cristo como seu Salvador foram perdoados, mas amiúde não estão livres de dúvidas com respeito aos pecados que cometem após terem nascido de novo. Muitos supõem que é possível para eles pecar de uma forma que lhes coloque além do perdão que Deus lhes concedeu. Supõem que o sangue de Cristo trata somente com o passado deles, e que até onde diz respeito ao presente e ao futuro, eles tem que se cuidar por si mesmos. Mas de que valor seria um perdão que pode ser tirado de mim a qualquer momento? Certamente não pode haver nenhuma paz estabelecida quando minha aceitação para com Deus e a minha ida ao céu é feita dependente do meu agarrar-se a Cristo, ou da minha obediência e fidelidade.
Bendito seja Deus, o perdão que ele concede cobre todos os pecados - passados, presentes e futuros. Amigo crente, Cristo não carregou os “seus” pecados em seu próprio corpo no madeiro? E os seus pecados não eram todos futuros, quando ele morreu? Certamente, pois naquele tempo você não tinha nascido, e não tinha cometido nenhum pecado sequer. Muito bem então: Cristo verdadeiramente levou os seus pecados “futuros” tanto quanto os seus pecados passados. O que a palavra de Deus ensina é que a alma incrédula é tirada do lugar sem perdão para onde esse está ligado.
Os cristãos são um povo perdoado. Diz o Espírito Santo: “Bem-aventurado o homem a quem o Senhor não imputa o pecado” (Rm 4.8). O crente está em Cristo, e ali o pecado nunca nos será imputado novamente. Esse é o nosso lugar ou posição diante de Deus.
Em Cristo é onde ele nos contempla. E porque estou em Cristo, estou completa e eternamente perdoado; tão perdoado que o pecado nunca será mais será posto sobre mim como acusação no que toca à minha salvação, mesmo que eu permanecesse na terra por mais cem anos. Eu estou fora do alcance para sempre. Ouça o testemunho da escritura: “E, quando vós estáveis mortos nos pecados e na incircuncisão da vossa carne, (Deus) vos vivificou juntamente com ele (Cristo), perdoando-vos todas as ofensas” (Cl 2.13). Observe as duas coisas que são aqui unidas (e o que Deus ajuntou, não o separe o homem!) - minha união com um Cristo ressurreto é conectada com o meu perdão! Se então minha vida está “oculta com Cristo em Deus” (Cl 3.3), então eu estou fora para sempre do lugar onde a imputação do pecado é aplicada. Por conseguinte, está escrito: “Portanto, agora, nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus” (Rm 8.1) - como poderia existir, se “todas as ofensas” foram perdoadas? Ninguém pode lançar nenhuma acusação contra os eleitos de Deus (Rm 8.33). Leitor cristão, junte-se ao escritor em louvor a Deus, pois nós somos eternamente perdoados de tudo. *

2. A PALAVRA DE SALVAÇÃO

“E disse a Jesus: Senhor, lembra-te de mim quando entrares no teu reino. E disse-lhe Jesus: Em verdade te digo que hoje estarás comigo no Paraíso.”
Lucas 23. 42,43

A SEGUNDA DECLARAÇÃO DE CRISTO na cruz foi feita em resposta ao pedido do ladrão à beira da morte. Antes de considerarmos as palavras do Salvador ponderaremos primeiro sobre o que as ocasionou.
Não foi acidente algum o fato de o Senhor da glória ter sido crucificado entre dois ladrões. Nada ocorre por acidente em um mundo que é governado por Deus. Muito menos poderia ter havido qualquer acidente naquele dia dos dias, ou em conexão com aquele evento dos eventos — um dia e um evento que estão situados no próprio centro da história do mundo. Não, Deus estava presidindo sobre aquela cena. Desde a eternidade toda ele havia decretado quando e onde e como e com quem seu Filho deveria morrer. Nada foi deixado ao acaso ou ao capricho do homem. Tudo que Deus tinha decretado veio a suceder exatamente como ele havia ordenado, e nada aconteceu que não tivesse ele eternamente intentado. Tudo quanto o homem fez foi simplesmente o que a mão e o conselho divinos “tinham anteriormente determinado” (At 4.28).
Quando Pilatos deu ordens para que o Senhor Jesus fosse crucificado entre os dois malfeitores, estava pondo em execução o decreto eterno de Deus e cumprindo sua palavra profética, coisas que lhe eram totalmente desconhecidas. Setecentos anos antes que esse dignitário romano desse sua ordem, Deus tinha declarado mediante Isaías que seu Filho deveria ser “contado com os transgressores” (Is 53.12). Quão totalmente improvável parecia isso, que o Santo de Deus devesse ser contado com os ímpios; que aquele mesmo cujo dedo havia inscrito nas tábuas de pedra da Lei do Sinai devesse ter um lugar designado entre os sem lei; que o Filho de Deus devesse ser executado com os criminosos — tal parecia completamente inconcebível. Todavia, na realidade, foi o que veio a ocorrer. Nem uma só palavra divina pode-se deixar escapar. “Para sempre, ó Senhor, a tua palavra permanece no céu” (Sl 119.89). Assim como Deus havia ordenado, e assim como havia anunciado, assim aconteceu.
Porque ele ordenou que seu Filho devesse ser crucificado entre dois criminosos?
Certamente que Deus tinha uma razão para tal; uma boa, uma múltipla razão, quer possamos discerni-la ou não. Ele nunca procede arbitrariamente. Ele tem um bom propósito para tudo o que faz, pois todas as suas obras estão ordenadas pela sabedoria infinita. Nesse exemplo particular, várias respostas se insinuam à nossa inquirição. Não foi nosso bendito Senhor crucificado com os dois ladrões para demonstrar plenamente as insondáveis profundezas da vergonha em que havia descido? Em seu nascimento ele estava rodeado pelas bestas do campo e, agora, em sua morte, é contado com a escória da humanidade.
Outra vez, não foi o Salvador contado com os transgressores para nos mostrar a posição que ele ocupou como nosso substituto? Ele havia ocupado o lugar que era nosso, e o que era senão o lugar de vergonha, o lugar dos transgressores, o lugar dos criminosos condenados à morte!
Outra vez, não foi ele deliberadamente humilhado daquele modo por Pilatos para mostrar a avaliação pelo homem daquele inigualável — “desprezado” tanto quanto rejeitado!
Outra vez, não foi ele crucificado com os dois ladrões, de modo que naquelas três cruzes e nos que nelas estavam dependurados, pudéssemos ter a representação vívida e concreta do drama da salvação e da resposta do homem a isso — a redenção do Salvador; o pecador que se arrepende e crê; e o que insulta e rejeita? [25]
Uma outra importante lição que podemos aprender da crucificação de Cristo entre os dois ladrões, e o fato de que um o recebeu e o outro o rejeitou, é a da soberania divina.
Os dois malfeitores foram crucificados juntos. Estavam à mesma proximidade de Cristo. Ambos viram e ouviram tudo o que se tornou conhecido durante aquelas seis fatídicas horas. Ambos eram notoriamente perversos; ambos estavam sofrendo agudamente; ambos estavam morrendo, e ambos necessitavam urgentemente de perdão. Todavia, um morreu em seus pecados, morreu como tinha vivido — endurecido e impenitente; ao passo que o outro se arrependeu de sua maldade, creu em Cristo, recorreu a ele para obter misericórdia e entrou no Paraíso. Como explicar isso, senão pela soberania de Deus!
Vemos precisamente que a mesma coisa continua hoje. Sob exatamente as mesmas circunstâncias e condições, um é enternecido e outro permanece inalterado. Sob o mesmo sermão, um homem ouvirá com indiferença, enquanto outro terá seus olhos abertos para ver sua necessidade e sua vontade movida para perto da oferta da misericórdia divina. Para um, o evangelho é revelado, para outro, “oculto”. Por quê? Tudo o que podemos dizer é: “Sim, ó Pai, porque assim te aprouve”. E, contudo, a soberania divina nunca quer dizer destruir a responsabilidade humana. Ambas são claramente ensinadas na Bíblia, e é nosso dever crer e pregar as duas, quer possamos harmonizá-las ou compreendê-las quer não. Ao pregarmos ambas pode parecer a nossos ouvintes que nos contradizemos, mas que importa?
Disse o falecido C. H. Spurgeon, quando pregava em 1Timóteo 2.3,4: “Ali no texto se acha, e creio que é do desejo de meu Pai, que ‘todos os homens se salvem, e venham ao conhecimento da verdade’.
Mas eu sei, também, que ele não o quer, de modo que salvará a qualquer um daqueles, apenas se crerem em seu Filho; pois ele no-lo disse repetidas vezes. Ele não salvará homem algum, a menos que esse abandone seus pecados, e se volte para ele com pleno propósito de coração: isso eu também sei. E sei, ainda, que ele tem um povo a quem salvará, a quem, por seu eterno amor, elegeu e a quem, por seu eterno poder, ele libertará. Eu não sei como aquilo se ajusta com isso, que é mais uma das coisas que não sei.” E disse esse príncipe dos pregadores: “Eu permanecerei exatamente no que sempre hei de pregar e sempre tenho pregado, e tomo a palavra de Deus como está, possa eu reconciliá-la com uma outra parte da palavra divina ou não.”
Dizemos novamente, a soberania de Deus nunca significa destruir a responsabilidade do homem.
Devemos fazer uso diligente de todos os meios que ele designou para a salvação das almas. Somos ordenados a pregar o evangelho a “toda criatura” [26]. A graça é livre: o convite é amplo o bastante para “quem crer” o aceitar. Cristo não despede ninguém que venha a ele.[27] Todavia, após havermos feito tudo, após havermos plantado e aguado, é Deus quem dá o crescimento,[28] e o faz de modo a melhor satisfazer sua soberana vontade.
Na salvação do ladrão agonizante temos uma visão clara da graça vitoriosa, como não encontrada em nenhum outro lugar na Bíblia. Deus é o Deus de toda graça, e a salvação é inteiramente por meio dessa. “Pela graça sois salvos” (Ef 2.8), e é “pela graça” do começo ao fim. A graça planejou a salvação, a graça proveu a salvação, e a graça assim opera sobre e em seus eleitos para sobrepujar a dureza de seus corações, a obstinação de suas vontades, e a inimizade de suas mentes, e assim os torna propensos a receber a salvação. A graça inicia, a graça continua, e a graça consuma a nossa salvação.
A salvação pela graça — soberana, irresistível, livre graça — é ilustrada no Novo Testamento tanto por exemplo quanto por preceito. Talvez os dois casos mais contundentes de todos sejam os de Saulo de Tarso e do Ladrão Agonizante. E esse último é até mais digno de nota que o primeiro. No caso de Saulo, que posteriormente tornou-se Paulo, apóstolo dos gentios, havia um caráter moral exemplar, para começo de conversa. Escrevendo anos depois sobre sua condição antes da conversão, o apóstolo declarou que, no tocante à justiça da lei, ele era “irrepreensível” (Fp 3.6). Ele era um “fariseu dos fariseus”: meticuloso em seus hábitos, correto em seu procedimento. Moralmente, seu caráter era imaculado. Após a conversão, sua vida foi de justiça no padrão evangélico. Constrangido pelo amor de Cristo, consumiu-se na pregação do Evangelho aos pecadores e no labor da edificação dos santos. Sem dúvida, nossos leitores concordarão conosco quando dizemos que provavelmente Paulo estivesse mais perto de atingir os ideais da vida cristã, e que ele seguiu após seu Mestre mais perto do que qualquer outro santo desde então.
Mas com o ladrão salvo foi, de longe, de outra forma. Ele não tinha vida moral alguma antes de sua conversão e nenhuma de serviço ativo depois. Antes dela ele não respeitava nem a lei de Deus nem a dos homens. Após sua conversão, ele morreu sem ter oportunidade de se ocupar no serviço de Cristo. Enfatizarei isso, porque essas são as duas coisas que são consideradas por tantos como fatores que contribuem para nossa salvação. Supõe-se que devemos primeiro nos adequar, desenvolvendo um caráter nobre diante de Deus, que nos receberá como seus filhos, e que depois dele haver nos recebido, para sermos experimentados, somos meramente postos à prova, e que, a menos que produzamos uma certa qualidade e quantidade de boas obras, “cairemos da graça e ficaremos perdidos”. Mas o ladrão agonizante não teve boa obra alguma, seja antes ou depois da conversão. Em conseqüência, somos levados à conclusão que, se ele foi salvo em absoluto, certamente o foi pela soberana graça.
A salvação do ladrão agonizante também arranja um outro apoio para que o legalismo da mente carnal se interponha para roubar de Deus a glória devida à sua graça. Em vez de atribuir a salvação dos pecadores perdidos à inigualável graça divina, muitos cristãos professos procuram explicá-las pelas influências humanas, instrumentalidades e circunstâncias. Seja o pregador, sejam circunstâncias providenciais ou propícias, sejam as orações dos crentes, tudo isso é visto como a causa principal. Que não sejamos mal entendidos aqui. É verdade que Deus com freqüência se agrada de usar meios para a conversão dos pecadores; que amiúde condescende em abençoar nossas orações e esforços para levar pecadores a Cristo; que, muitas vezes, ele faz com que suas providências despertem e sacudam os ímpios para a percepção de seus estados. Mas Deus não está preso a essas coisas. Ele não está limitado às instrumentalidades humanas. Sua graça é toda poderosa e, quando lhe agrada, ela é capaz de salvar apesar da falta daquelas, e a despeito das circunstâncias desfavoráveis. Assim foi no caso do ladrão salvo.
Considere:
Sua conversão ocorreu numa época quando, exteriormente, parecia que Cristo havia perdido todo o poder para salvar, seja a si mesmo ou a outros. Esse ladrão havia marchado ao lado do Salvador através das ruas de Jerusalém e o tinha visto sucumbir sob o peso da cruz! É altamente provável que, como sua ocupação fosse a de ladrão e assaltante, esse fosse o primeiro dia que em que ele punha seus olhos no Senhor Jesus e, agora que o via, era sob toda a circunstância de fraqueza e desgraça. Seus inimigos estavam triunfando sobre ele. A maior parte de seus amigos o havia abandonado. A opinião pública estava unanimemente contra ele. Sua própria crucificação foi considerada como totalmente inconsistente com sua messianidade. Sua condição humilde foi uma pedra de tropeço aos judeus desde mesmo o início, e as circunstâncias de sua morte devem ter intensificado isso, especialmente a alguém que nunca o havia visto senão em tal condição. Mesmo aqueles que tinham crido nele foram levados à dúvida por causa de sua crucificação. Não havia ninguém na multidão que estivesse ali com o dedo apontando para ele e gritando: “Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo!”.[29] E, todavia, não obstante tais obstáculos e dificuldades no caminho de sua fé, o ladrão apreendeu a condição de Salvador e o Senhorio de Cristo. Como podemos explicar tal fé e tal compreensão espiritual em alguém em circunstâncias tais como a que se encontrava? Como podemos explicar o fato de que esse ladrão agonizante tomou um homem em sofrimento, sangrando e crucificado por seu Deus! Não pode ser explicado senão por intervenção divina e operação sobrenatural. Sua fé em Cristo foi um milagre da graça!
É para ser notado ainda que a conversão do ladrão ocorreu antes dos fenômenos sobrenaturais daquele dia. Ele exclamou: “Senhor, lembra-te de mim” antes das horas de trevas, antes do brado triunfante, “Está consumado”, antes do véu do templo se rasgar, antes do tremor de terra e do despedaçar das rochas, antes da confissão do centurião: “Na verdade, este era Filho de Deus”. Deus intencionalmente colocou sua conversão antes de tais coisas de modo que sua soberana graça pudesse ser engrandecida e seu soberano poder reconhecido. Ele calculadamente escolheu salvar esse ladrão sob as circunstâncias mais desfavoráveis para que nenhuma carne se glorie em sua presença. Ele deliberadamente dispôs essa combinação de condições e ambiente não propícios para nos ensinar que “a salvação é do Senhor”;[30] para nos ensinar a não engrandecer a instrumentalidade humana acima da ação divina; para nos ensinar que toda conversão genuína é o produto direto da operação sobrenatural do Espírito Santo.
Consideraremos agora o ladrão em si mesmo, suas várias declarações, seu pedido ao Salvador, e a resposta de nosso Senhor.

“E disse a Jesus: Senhor, lembra-te de mim, quando entrares no teu reino.
E disse-lhe Jesus: Em verdade te digo que hoje estarás comigo no Paraíso”
(Lucas 23.42,43).

1. Vemos aqui um pecador representativo.
Nunca chegaremos ao centro desse incidente até considerarmos a conversão desse homem como um caso representativo, e o próprio ladrão como um caráter representativo. Há aqueles que procuram mostrar que o caráter original do ladrão penitente era mais nobre e digno do que o do outro que não se arrependeu. Mas isso não somente não corresponde à verdade dos fatos nesse caso, como serve para apagar a glória peculiar dessa conversão e remover dele a maravilha da graça divina. É de grande importância reparar que, antes do tempo em que um se arrependeu e creu não havia diferença essencial alguma entre os dois. Na natureza, na história, nas circunstâncias eram um. O Espírito Santo foi cuidadoso em nos contar que ambos insultaram o padecente Salvador:
“E da mesma maneira também os príncipes dos sacerdotes, com os escribas, e anciãos, e fariseus, escarnecendo, diziam: Salvou os outros, e a si mesmo não pode salvar-se. Se é o Rei de Israel, desça agora da cruz, e crê-lo-emos. Confiou em Deus; livre-o agora, se o ama; porque disse: Sou Filho de Deus. E o mesmo lhe lançaram também em rosto os salteadores que com ele estavam crucificados” (Mateus 27.41-44).
Realmente terríveis eram a condição e a ação desse assaltante. À beira de adentrar a eternidade ele se une aos inimigos de Cristo no terrível pecado de escarnecer dele. Era de uma torpeza sem paralelo. Pense nisso — um homem na hora em que se aproximava sua morte ridicularizando o Salvador padecente! Ó que demonstração de depravação humana e de inimizade natural da mente carnal contra Deus. E, leitor, por natureza há a mesma depravação herdada dentro de você, e a menos que um milagre da divina graça seja operado dentro de você, existe a mesma inimizade contra Deus e seu Cristo presente em seu coração. Você pode não pensar assim, pode não sentir assim, pode não crer assim. Mas isso não altera o fato. A palavra dele que não pode mentir declara: “Enganoso é o coração, acima de todas as coisas, e desesperadamente perverso” [31] (Jr 17.9). Essa é uma declaração de aplicação universal. Ela descreve o que todo coração humano é por nascimento natural. E outra vez a mesma escritura da verdade declara: “porque a mentalidade da carne significa inimizade com Deus, visto que não está em sujeição à lei de Deus; de fato, nem pode estar” (Romanos 8.7, Tradução do Novo Mundo). Isso, também, diagnostica o estado de todo descendente de Adão. “Porque não há diferença. Porque todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus” (Rm 3.22,23). Inefavelmente solene é isso: todavia, necessita que nele se insista. Não é senão quando percebemos nossa desesperadora condição que descobrimos a necessidade de um Salvador divino. Não é senão quando somos levados a perceber nossa total corrupção e fraqueza que nos apressamos ao grande médico. Não é senão quando encontramos nesse ladrão agonizante um retrato de nós mesmos que o acompanharemos dizendo: “Senhor, lembra-te de mim”.
Temos que ser humilhados antes de sermos exaltados. Temos de ser despidos dos trapos imundos de nossa justiça própria antes que estejamos prontos para os trajes de salvação.
Temos de vir a Deus como mendigos, de mãos vazias, antes que possamos receber o dom da vida eterna. Temos de tomar o lugar de pecadores perdidos perante ele se quisermos ser salvos. Sim, temos que reconhecer a nós mesmos como ladrões antes que possamos ter um lugar na família de Deus. “Mas”, dirá você, “eu não sou nenhum ladrão! Reconheço que não sou tudo que devo ser. Não sou perfeito. Na verdade, vou ao ponto de admitir a mim mesmo como pecador. Mas não posso consentir que esse ladrão represente meu estado e condição.” Ah, amigo, seu caso é, de longe, pior do que você supõe. Você é um ladrão, e ladrão da pior espécie. Você rouba a Deus! Suponha que uma firma no Leste designasse um agente para representá-la no Oeste, e que mensalmente lhe enviasse seu salário.
Mas suponha também que, no fim do ano, os empregadores descobrissem que, ainda que o agente estivesse descontando os cheques a ele remetidos, ele tivesse servido uma outra firma durante o tempo todo. Não seria aquele agente um ladrão? Todavia, tal é precisamente a situação e o estado de cada pecador. Ele foi enviado a esse mundo por Deus, que o dotou de talentos e da capacidade de usá-los e valorizá-los. Deus o abençoa com saúde e vigor; supre cada necessidade sua, e fornece inúmeras oportunidades para servi-lo e glorificá-lo. Mas com que resultado? As próprias coisas que Deus lhe dá são mal empregadas. O pecador serve a um outro senhor, precisamente Satanás. Ele dissipa seu vigor e desperdiça seu tempo nos prazeres pecaminosos. Ele rouba a Deus. Leitor não salvo, na perspectiva do Céu, sua condição é desesperadora e seu coração, mau como o daquele ladrão. Veja nele uma figura de si mesmo.
2. Aqui nós vemos que o homem tem que ir ao fim de si próprio antes que possa ser salvo.
Contemplamos acima esse ladrão agonizante como um pecador representativo, um espécime que é amostra do que todos os homens são por natureza e prática — por natureza, em inimizade contra Deus e seu Cristo; por prática, ladrões de Deus, utilizando mal o que ele nos deu e não conseguindo retribuir-lhe o que é devido.
Devemos ver agora que esse ladrão crucificado foi também um caso representativo em sua conversão.
E nesse ponto deter-nos-emos unicamente em sua situação de desamparo.
Ver a nós mesmos como pecadores perdidos não basta. Aprender que somos corruptos e depravados por natureza e transgressores pecaminosos pelas nossas práticas é a primeira lição importante. A próxima é aprender que estamos totalmente arruinados, e que não podemos fazer nada que seja para ajudar a nós mesmos. Descobrir que nossa condição é tão desesperadora que está inteiramente além da possibilidade de conserto humano, é o segundo passo rumo a salvação — olhando-a pelo lado humano. Porém, se o homem é lento para aprender que é um pecador perdido e inapto para estar na presença de um Deus santo, ele o é ainda mais para reconhecer que nada pode fazer para sua salvação, e que é incapaz de operar qualquer melhoria em si próprio para se adequar para Deus. Todavia, não é senão até que nos demos conta de que estamos “fracos” (Rm 5.6), que somos “impotentes” [32] (Jo 5.3), que não é pelas obras de justiça que façamos, mas pela misericórdia divina que somos salvos (Tt 3.5), que não é senão até que nos desesperemos de nós mesmos, e olhemos para fora de nós mesmos para um que pode nos salvar.
O grande tipo escriturístico do pecado é a lepra, e para a lepra o homem não pode inventar cura alguma. Somente Deus pode lidar com essa pavorosa doença. Assim o é com o pecado. Mas, como dissemos, o homem é lento para aprender essa lição. É como o filho pródigo, o qual, quando dissipara sua fazenda na terra longínqua, vivendo dissolutamente, e começou “a padecer necessidades”, em vez de imediatamente retornar ao seu pai, “foi, e chegou-se a um dos cidadãos daquela terra”, e foi para os campos a apascentar porcos; em outras palavras, ele foi ao trabalho [33]. Igualmente, o pecador que é despertado para a sua necessidade, em vez de ir imediatamente a Cristo, tenta trabalhar por si mesmo para obter o favor divino. Mas ele não conseguirá coisa melhor que o pródigo — as bolotas dos porcos serão sua única porção. Ou então, como a mulher prostrada pela enfermidade por muitos anos. Ela tentou muitos médicos antes de procurar o grande médico: assim o pecador despertado procura alívio e paz primeiro numa coisa e depois em outra, até completar o fatigante ciclo das ações religiosas, e terminar “sem nenhum resultado, mas cada vez piorando mais” (Mc 5.26, Bíblia de Jerusalém). Não, não é senão quando já tinha “gasto tudo o que possuía” que ela procurou Cristo; e não é senão quando o pecador chega ao fim de seus próprios recursos que recorrerá ao Salvador.
Antes que qualquer pecador possa ser salvo, deve ele ir ao lugar da fraqueza reconhecida. Isso é o que a conversão do ladrão agonizante nos mostra. O que ele podia fazer? Não podia caminhar pelas sendas da justiça, pois havia um prego atravessando cada um dos seus pés. Não podia executar nenhuma boa obra, pois havia um prego atravessando cada uma das mãos. Não podia começar vida nova e viver melhor, pois que estava morrendo. E, meu leitor, aquelas suas mãos que tão prontamente agem para justiça própria, e aqueles seus pés que tão rapidamente correm no caminho da obediência legal, devem ser pregados na cruz. O pecador teve de ser interrompido em suas próprias obras e feito desejoso de ser salvo por Cristo. Uma percepção de sua própria condição pecaminosa, de sua condição perdida, de sua condição de desamparo, não é nada mais, nada menos, do que o velho ensino da convicção de pecado, e tal é o único pré-requisito para vir a Cristo para salvação, pois Cristo Jesus veio ao mundo para salvar pecadores.

3. Aqui vemos o sentido do arrependimento e da fé
O arrependimento pode ser considerado sob vários aspectos. Ele inclui em seu significado e escopo uma mudança da mente acerca de, um desgosto por e um abandono do pecado. Todavia, há mais do que isso. Realmente, o arrependimento é a percepção de nossa condição perdida, é a descoberta de nossa ruína, é o julgamento de nós mesmos, é a confissão de nossa situação perdida. Não é tanto um processo intelectual, mas a consciência ativa na presença de Deus. E isso é exatamente o que achamos aqui no caso do ladrão. Primeiro ele diz ao seu companheiro: “Tu nem ainda temes a Deus, estando na mesma condenação?” (Lucas 23.40). Pouco tempo antes sua voz estivera confundida com a daqueles que estavam vilipendiando o Salvador. Mas o Espírito Santo estivera em ação sobre ele e, agora, sua consciência fica ativa na presença de Deus. Não disse ele: “Tu nem ainda temes o castigo”, mas: “Tu nem ainda temes a Deus?” Ele compreende Deus como sendo juiz.
E então, em segundo lugar, ele acrescenta: “E nós, na verdade, com justiça, porque recebemos o que os nossos feitos mereciam” (Lucas 23.41). Aqui vemo-lo reconhecendo sua culpa e a justiça de sua condenação. Ele pronuncia sentença contra si mesmo. Ele não se desculpa e não tenta atenuar nada. Ele reconheceu que era um transgressor, e que, enquanto tal, ele merecia plenamente a punição por seus pecados, sim, que a morte lhe era devida. Você teve essa posição diante de Deus, meu leitor? Confessou abertamente a ele seus pecados? Já sentenciou a si mesmo e a seus caminhos? Está pronto para reconhecer que a morte é o que você merece? Suavize você o seu pecado ou prevarique acerca dele, estará impedindo a sua própria entrada a Cristo. Ele veio ao mundo para salvar pecadores — pecadores confessos, pecadores que realmente tomaram o lugar de pecadores diante de Deus, pecadores que estão cônscios de que estão perdidos e arruinados.
O “arrependimento para com Deus” do ladrão foi acompanhado da “fé em nosso Senhor Jesus”.[34] Ao contemplar sua fé notamos primeiro que ela foi uma fé de cabeça inteligente. Nos parágrafos iniciais do presente capítulo chamamos a atenção para a soberania de Deus e sua graça irresistível e vitoriosa que foram exibidas na conversão desse ladrão. Agora nos voltaremos a um outro lado da verdade, igualmente necessário de nele se insistir, um lado que não é contraditório com o que dissemos anteriormente, mas antes complementar e suplementar. A Escritura não ensina que, se Deus elegeu uma certa alma para ser salva, tal pessoa será salva independente dela vir a crer ou não. Essa é uma conclusão falsa tirada por aqueles que rejeitam a verdade. Não, a escritura ensina que o mesmo Deus que predestinou o fim também predestinou os meios. O Deus que decretou a salvação do ladrão agonizante cumpriu seu decreto dando a ele fé com a qual crer. Isso é o claro ensinamento de 2Tessalonicenses 2.13 (e de outras escrituras): “Deus vos escolheu desde o princípio para a santificação do espírito e a fé na verdade”.
É justamente isso que vemos aqui em conexão com esse ladrão. Ele teve “fé na verdade”. Sua fé se apossou da palavra de Deus. Sobre a cruz estava a inscrição: “Este é Jesus, o Rei dos Judeus”.[35] Pilatos a havia colocado ali por mofa. Porém, ainda assim era a verdade, e após ele tê-la escrito, Deus não permitiria a ele que a alterasse. A tabuleta que portava essa inscrição havia sido carregada na frente de Cristo pelas ruas de Jerusalém e no lugar da crucificação, e o ladrão a lera, e a graça e o poder divinos tinham abertos os olhos de seu entendimento para ver que ela era verdadeira. Sua fé apanhou o sentido do reinado de Cristo, daí mencionar “quando entrares no teu reino”. A fé repousa sempre na palavra escrita de Deus.
Antes que um homem creia que Jesus é o Cristo, deve ter o testemunho diante dele de que ele é o Cristo. A distinção é freqüentemente feita entre a fé da cabeça e a fé do coração, e isso com propriedade, pois a distinção é real, e vital. Algumas vezes a fé da cabeça é desvalorizada, mas isso é tolice. Deve haver essa antes que possa haver aquela. Temos de crer intelectualmente antes que possamos crer salvificamente no Senhor Jesus. Prova disso é vista em conexão com os pagãos: eles não têm fé alguma de cabeça e, por conseguinte, não têm fé nenhuma de coração. Prontamente admitimos que a fé de cabeça não salvará a menos que seja acompanhada pela fé do coração, mas insistimos que não há nada da segunda a menos que antes tenha havido a primeira. Como podem crer naquele a respeito de quem não ouviram? [36] Verdade, pode-se crer acerca dele sem crer nele, mas não se pode crer nele sem primeiro crer acerca dele. Assim o foi com o ladrão agonizante. Com toda probabilidade ele nunca vira Cristo antes do dia da sua morte, mas vira a inscrição testificando o seu reinado e o Espírito Santo usou isso como a base de sua fé. Dizemos então que essa foi uma fé inteligente: primeiro, uma de tipo intelectual, o crer no testemunho escrito apresentado a ele; segundo, uma fé de coração, o descansar confiadamente em Cristo mesmo como o Salvador dos pecadores.
Sim, esse ladrão que agonizava exerceu uma fé de coração que descansou salvificamente em Cristo. Tentaremos ser muito simples aqui. Um homem pode ter fé de cabeça no Senhor Jesus e estar perdido. Um homem pode crer acerca do Cristo histórico e não estar nada melhor por causa disso, tal como não o está por crer acerca do Napoleão histórico. Leitor, você pode crer tudo acerca do Salvador — sua vida perfeita, sua morte sacrifical, sua ressurreição vitoriosa, sua ascensão gloriosa, seu retorno prometido — mas deve fazer mais do que isso. A fé evangélica é uma fé confiante. A fé salvífica é mais que uma opinião correta ou uma linha de raciocínio. A fé salvífica transcende a toda razão. Veja o ladrão agonizante! Era razoável que Cristo o notasse? Um assaltante crucificado, um criminoso confesso, alguém que há poucos minutos atrás o estivera insultando! Era razoável que o Salvador devesse reparar de qualquer forma nele? Era razoável esperar que ele fosse ser transportado da beira do inferno mesmo para o Paraíso? Ah, meu leitor, a cabeça raciocina, mas o coração não. E a petição desse homem veio do coração. Ele não tinha como usar suas mãos e pés (e não eram eles necessários à salvação: antes, a impediam), mas tinha o uso de seu coração e língua. Esses estavam livres para crer e confessar: “Visto que com o coração se crê para a justiça, e com a boca se faz confissão para a salvação” (Rm 10.10).
Podemos reparar também que a sua fé era uma fé humilde. Ele orou com conveniente modéstia. Não foi “Senhor, honra-me”, nem “Senhor, exalta-me”, mas Senhor, se tu quiseres, pense em mim! Se tu somente contemplasses a mim — “Senhor, lembra-te de mim”. E, todavia, aquela palavra “lembra-te” era maravilhosamente perfeita e apropriada. Ele poderia ter dito: Perdoa-me, Salva-me, Abençoa-me; mas “lembra-te” incluía todas essas. Um interesse no coração de Cristo incluirá um interesse em todos os seus benefícios! Além disso, tal palavra era bem adequada à condição de quem a expressou. Ele foi um proscrito da sociedade — quem se lembraria dele! O público não pensaria mais nada a respeito dele. Seus amigos ficariam contentes por esquecer dele por haver desgraçado sua família. Mas há um a quem ele ousa confiar essa petição — “Senhor, lembra-te de mim”.
Finalmente, podemos notar que a sua fé era uma fé corajosa. Talvez não pareça à primeira vista, mas uma pequena consideração tornará isso claro. Aquele que estava pendurado na cruz do centro era um de quem todos viravam a cara para não olhar e para quem toda a vil zombaria de uma turba vulgar era direcionada. Toda facção daquele povo se juntou para escarnecer do Salvador. Mateus nos diz que “os que passavam blasfemavam dele” e que “da mesma maneira também os príncipes dos sacerdotes, com os escribas, e anciãos”. Enquanto Lucas nos informa que “também os soldados o escarneciam” (23.36). Portanto, é fácil entender por que os ladrões também se juntaram ao alarido de sarcasmos. Não há dúvidas de que os sacerdotes e escribas sorrissem benignamente sobre eles enquanto assim agiam.
Mas, subitamente, houve uma mudança. O ladrão penitente, em vez de continuar a troçar e ridicularizar Cristo, volta-se para o seu companheiro e abertamente o censura, nos ouvidos dos espectadores ajuntados em redor das cruzes, clamando: “este nenhum mal fez”. Desse modo, ele condenou toda a nação judaica! Mais ainda; não somente testemunhou da inocência de Cristo, mas também confessou o reinado dele. E assim, de um só golpe, ele se retira do favor de seu companheiro e da multidão também! Falamos hoje da coragem necessária para abertamente testemunhar de Cristo, mas tal coragem nesses dias se desbota em expressa insignificância perante àquela mostrada naquele dia pelo ladrão agonizante.

4.Vemos aqui um maravilhoso caso de iluminação espiritual.
É perfeitamente maravilhoso o progresso feito por esse homem naquelas poucas horas de agonia. Seu crescimento na graça e no conhecimento de seu Senhor foi espetacular. Do breve registro das palavras que saíram de seus lábios podemos descobrir sete coisas as quais ele havia aprendido sob a instrução do Espírito Santo.
Primeiro, ele expressa sua crença em uma vida futura onde a retribuição seria dada por um Deus justo e que vinga o pecado. Prova-o a frase “Tu nem ainda temes a Deus”. Ele passa uma severa reprimenda em seu companheiro, como quem diz, Como ousa você ter a temeridade de insultar a esse homem inocente? Lembre-se de que brevemente você terá de aparecer diante de Deus e encarar um tribunal infinitamente mais solene do que aquele que o sentenciou para ser crucificado. Deus é para ser temido, portanto, fique quieto.
Segundo, como tenho visto, ele viu sua própria pecaminosidade — “Tu... [não estás] na mesma condenação? E nós, na verdade, com justiça, porque recebemos o que os nossos feitos mereciam” (Lc 23.40,41). Ele reconheceu que era um transgressor. Ele viu que o pecado merecia punição, que a “condenação” era justa. Ele admitiu que a morte era o que ele merecia. Isso foi algo que seu companheiro não confessou nem reconheceu.
Terceiro, ele testemunhou da impecabilidade de Cristo — “este nenhum mal fez” (Lc 23.41). E aqui podemos observar que Deus se deu ao trabalho de preservar o caráter imaculado de seu Filho. Isso é especialmente visto perto do fim. Judas foi levado a dizer, “[Traí] o sangue inocente”. Pilatos testificou, “nenhum crime acho nele”.[37] A esposa desse disse: “Não entres na questão desse justo”.[38] E agora que ele pendia na cruz, Deus abre os olhos desse assaltante para ver a perfeição de seu Filho amado, e abre seus lábios para que ele testemunhe de sua excelência.
Quarto, ele não apenas testemunhou da humanidade impecável de Cristo, mas também confessou sua Divindade — “Senhor, lembra-te de mim”, disse. Maravilhosa palavra, essa. O Salvador pregado ao madeiro, o objeto da aversão dos judeus e alvo de zombaria do populacho ordinário. Esse ladrão ouvira o insolente desafio dos sacerdotes: “Se és Filho de Deus, desce da cruz”, e resposta alguma fora dada. Mas, movido por fé e não por vista,[39] reconhece e confessa a deidade do sofredor que estava ao centro.
Quinto, ele creu na condição de salvador do Senhor Jesus. Tinha ouvido a oração de Cristo por seus inimigos, “Pai, perdoa-lhes...” e àquele cujo coração o Senhor tinha aberto, essa curta frase tornou-se um sermão de salvação. Seu próprio clamor, “Senhor, lembra-te de mim”, trazia dentro de si seu escopo, “Senhor, salva-me”, o que, por conseguinte, faz supor sua fé no Senhor Jesus como Salvador. Na verdade, ele deve ter crido que Jesus era um Salvador para o principal dos pecadores [40] ou então, como poderia ter crido que Cristo lembrar-se-ia de alguém tal como ele!
Sexto, ele demonstrou sua fé no reinado de Cristo — “quando entrares no teu reino”. Isso também foi uma palavra maravilhosa. As circunstâncias externas todas pareciam desmentir seu reinado. Em vez de estar sentado num trono, ele estava pendurado numa cruz. Em vez de estar usando um diadema real, sua fronte estava rodeada de espinhos. Em vez de estar acompanhado por um séqüito de servos, ele estava contado com os transgressores. Entretanto, ele era rei — Rei dos Judeus (Mt 2.2).
Finalmente, ele ansiou pela segunda vinda de Cristo — “quando entrares”. Ele olhou para longe do presente e para o futuro. Ele viu além dos “sofrimentos”, a “glória” [41]. Sobre a cruz o olho da fé detectou a coroa. E nisso ele se antecipou aos apóstolos, pois a incredulidade fechara os olhos deles. Sim, ele olhou para além do primeiro advento em vergonha para o segundo, em poder e majestade.
E como podemos explicar a inteligência espiritual desse ladrão agonizante? Onde ele recebeu tal insight das coisas de Cristo? Como foi que esse bebê em Cristo fez tão estupendo progresso na escola de Deus? Somente pode ser explicado pela influência divina. O Espírito Santo foi seu professor! A carne e o sangue não lhe haviam revelado tais coisas mas o Pai no céu.[42] Que ilustração de que as coisas divinas estão escondidas “dos sábios e entendidos” e reveladas aos “pequeninos”! [43]

5.Aqui vemos a condição de Cristo como Salvador.
As cruzes estavam separadas por apenas uns poucos decímetros e não demorou a que o Salvador ouvisse o clamor do ladrão penitente. Qual foi sua resposta a isso? Ele poderia ter dito, Você merece esse destino: é um assaltante malvado e é digno de morte. Ou, poderia ter replicado, Você deixou isso tarde mais; você deveria ter me procurado antes. Ah! mas não prometera ele que “o que vem a mim de maneira nenhuma o lançarei fora”? [44] Isso ele provou aqui.
Aos vitupérios que foram lançados sobre ele pela multidão, o Senhor Jesus não prestou atenção. Ao desafio insolente dos sacerdotes para que descesse da cruz, ele não deu resposta alguma. Mas à oração desse ladrão contrito e confiante atentou. Nessa hora ele estava em luta contra os poderes das trevas e suportando a terrível carga da culpa de seu povo, e deveríamos ter pensado que ele poderia se escusar a atender a petições individuais. Ah! mas um pecador nunca virá a Cristo em tempo não aceitável.[45] Ele sem demora lhe dá uma resposta de paz.
A salvação do ladrão penitente e crente ilustra não somente a prontidão de Cristo, mas também seu poder para salvar pecadores. O Senhor Jesus não é um Salvador débil. Bendito seja Deus que é capaz de “salvar perfeitamente” [46] aqueles que vem a ele através daquele. E nunca isso foi tão destacadamente mostrado como na cruz. Essa foi a hora da “fraqueza” do Redentor (2Co 13.4). Quando o ladrão clamou, “Senhor, lembra-te de mim”, o Salvador estava em agonia no madeiro maldito. Todavia, mesmo então, mesmo ali, ele teve poder para redimir essa alma da morte e lhe abrir os portais do Paraíso! Nunca duvide, portanto, ou questione a suficiência infinita do Salvador. Se um Salvador agonizante pôde salvar, muito mais depois que ressurgiu em triunfo da sepultura, para nunca mais morrer! Ao salvar esse ladrão, Cristo deu uma mostra de seu poder na hora mesma em que esse estava quase obscurecido.
A salvação do ladrão agonizante demonstra que o Senhor tem o desejo e é apto para salvar todos os que vêm até ele. Se Cristo recebeu esse ladrão penitente e crente, então ninguém precisa se desesperar de não ser bem recebido se tão-somente vier a ele. Se esse assaltante em agonia não estava além do alcance da misericórdia divina, então ninguém que solicite a graça divina ficará sem resposta. O Filho do Homem veio “buscar e salvar o que se havia perdido” (Lc 19.10), e ninguém pode estar numa condição pior do que essa. O evangelho de Cristo é o poder de Deus “para todo aquele que crê” (Rm 1.16). Ó, não limite a graça divina! Um Salvador é fornecido até para o “principal” dos pecadores (1Tm 1.15), se tão-somente ele crer. Mesmo aqueles que chegam à hora da morte ainda em seus pecados não ficam sem esperança.
Pessoalmente creio que muito, muito poucos sejam salvos num leito de morte, e são as raias da loucura qualquer homem postergar sua salvação até lá, pois não há garantia nenhuma de que terá ele um leito de morte. Muitos são cortados subitamente, sem qualquer oportunidade de deitar e morrer. Todavia, mesmo alguém naquele lugar não está além do alcance da misericórdia divina. Como disse um puritano, “há um caso tal registrado para que ninguém precise se desesperar, mas apenas um, na escritura, para que ninguém possa abusar”.
Sim, aqui vemos a condição de Cristo como Salvador. Ele veio a este mundo para salvar pecadores, e o deixou e foi ao Paraíso acompanhado por um criminoso salvo — o primeiro troféu de seu sangue redentor!

6. Aqui vemos o destino dos salvos na morte.
Em seu esplêndido livro, The Seven Sayings of Christ on the Cross, Dr. Anderson-Berry assinala que a palavra “Hoje” não está corretamente colocada na tradução de nossas versões tradicionais, e que a designada correspondência entre o pedido do ladrão e a resposta de Cristo requer uma construção diferente no último. A forma da réplica de Cristo tem o evidente desígnio de fazer a correspondência em sua ordem de pensamento à petição do assaltante. Tal será visto se dispormos as duas em quadros paralelos, como segue:

E disse a Jesus
E disse-lhe Jesus
Senhor
Em verdade te digo
Lembra-te de mim
Estarás comigo
Quando entrares
Hoje
No teu reino
No Paraíso

Ao ordenarmos assim as palavras, descobrimos a ênfase correta. “Hoje” é a palavra enfática. Na graciosa resposta de nosso Senhor ao pedido do ladrão temos uma ilustração contundente de como a graça divina excede as expectativas humanas. O ladrão rogou para que o Senhor se lembrasse dele em seu reino vindouro, mas Cristo lhe assegura que antes que aquele dia mesmo tivesse passado ele estaria com o Salvador. O ladrão pede para ser lembrado em um reino terreno, mas Cristo assegura a ele um lugar no Paraíso. O ladrão simplesmente pede para ser lembrado, mas o Salvador declarou que deveria estar com ele. Assim Deus faz abundantemente além daquilo que pedimos ou pensamos.[47]
Não somente a resposta de Cristo significa a sobrevivência da alma após a morte do corpo, mas nos diz que o crente está com ele durante o intervalo que faz a divisão entre a morte e a ressurreição. Para tornar isso mais enfático, Cristo precedeu sua promessa com as solenes mas seguras palavras “Em verdade te digo”. Foi essa perspectiva de ir para Cristo depois da morte que animou o mártir Estevão em sua última hora e, em conseqüência, ele de fato bradou, “Senhor Jesus, recebe o meu espírito” (At 7.59). Foi essa bendita expectativa que levou o apóstolo Paulo a dizer, tenho o “desejo de partir, e estar com Cristo, porque isto é ainda muito melhor” (Fp 1.23). Não em um estado de ausência de consciência no túmulo, mas com Cristo no Paraíso é o que aguarda todo crente após a morte. Digo, todo “crente”, pois as almas dos incrédulos, ao invés de irem para lá, vão para o lugar de tormentos, como está claro no ensino de nosso Senhor em Lucas 16. Leitor, para onde irá a sua alma, se estiver morrendo nesse momento?
Quão arduamente Satanás luta para ocultar essa abençoada esperança dos santos de Deus! Por um lado ele propaga o infeliz dogma do sono da alma, o ensino de que os crentes ficam em um estado de inconsciência entre a morte e a ressurreição; e, por outro, ele inventa um horrível purgatório, para aterrorizá-los com o pensamento de que, ao morrerem, passam pelo fogo, necessário para purificá-los e adequá-los para o céu. Quão inteiramente a palavra de Cristo ao ladrão liquida essas ilusões que desonram a Deus! O ladrão foi da cruz direto para o Paraíso! O momento em que um pecador crê, é o momento em que ele é tornado idôneo “para participar da herança dos santos na luz” (Cl 1.12). “Porque com uma só oblação aperfeiçoou para sempre os que são santificados” (Hb 10.14). Nossa aptidão para a presença de Cristo, tanto quanto nosso título, repousa unicamente em seu sangue derramado.

7. Aqui vemos o anelo do Salvador por comunhão.
Na comunhão alcançamos o clímax da graça e a essência do privilégio cristão. Mais alto que essa comunhão não podemos chegar. Deus nos chamou “para a comunhão de seu Filho” (1Co 1.9). Freqüentemente se nos diz que somos “salvos para servir”, e isso é verdade, mas é somente parte dessa, e de modo nenhum a mais maravilhosa e abençoada. Somos salvos para a comunhão. Deus tinha inumeráveis “servos” antes que Cristo viesse aqui para morrer — os anjos sempre cumpriram suas ordens. Ele veio primeiramente, não para se assegurar de servos, mas daqueles que deveriam entrar em comunhão com ele.
O que torna o céu superlativamente atraente ao coração do santo não é o fato de ser um lugar onde seremos libertos de toda tristeza e sofrimento, de ser onde encontraremos outra vez aqueles que amamos no Senhor, nem por suas ruas de ouro, portas de pérolas e muros de jaspe — não, benditas coisas são essas, mas o céu sem Cristo não seria céu. É Cristo que o coração do crente anseia e almeja — “Quem tenho eu no céu senão a ti? e na terra não há quem eu deseje além de ti” (Sl 73.25). E a mais surpreendente coisa é que o céu não será céu para Cristo no sentido mais elevado até que seus remidos estejam reunidos em torno dele. É por seus santos que seu coração deseja ardentemente. Vir outra vez e “receber-nos para si mesmo” é a jubilosa expectativa posta perante ele. Não até que veja o trabalho de sua alma e fique totalmente satisfeito.[48]
Esses são os pensamentos sugeridos e confirmados pelas palavras do Senhor Jesus ao ladrão agonizante. “Senhor, lembra-te de mim” fora seu clamor. E qual foi a resposta? Repare cuidadosamente nela. Houvesse Cristo simplesmente dito, “Em verdade te digo que hoje estarás no Paraíso”, isso teria cessado os temores do ladrão. Sim, mas isso não satisfez ao Salvador. Aquilo sobre o qual seu coração estava firmado era o fato de que naquele mesmo dia uma alma salva por seu precioso sangue deveria estar com ele no Paraíso! Dizemos outra vez, esse é o clímax da graça e a essência da bênção cristã. Disse o apóstolo que tinha o “desejo de partir, e estar com Cristo” (Fp 1.23). E novamente ele escreveu: “Ausentes deste corpo” — livres de toda dor e cuidado? Não. “Ausentes do corpo” — trasladados à glória? Não. “Ausentes deste corpo... presentes com o Senhor” (2Co 5.8, ARA). Assim também com Cristo. Disse ele: “Na casa de meu Pai há muitas moradas; se não fosse assim, eu vo-lo teria dito; vou preparar-vos lugar”; todavia, ao acrescentar “virei outra vez”, não diz “E conduzir-vos-ei à casa do Pai”, ou “levar-vos-ei ao lugar que tenho preparado a vós”, mas “virei outra vez, e vos tomarei para mim mesmo” (Jo 14.2,3). Estar “para sempre com o Senhor” (1Ts 4.17) é a meta de todas as nossas esperanças; ter-nos para sempre consigo é o que ele anseia com ardente e alegre expectativa. Estarás comigo no Paraíso!

3. A PALAVRA DE AFEIÇÃO

E junto à cruz de Jesus estava sua mãe, e a irmã de sua mãe, Maria de Cleofas, e Maria Madalena. Ora Jesus, vendo ali sua mãe, e que o discípulo a quem ele amava estava presente, disse a sua mãe: Mulher, eis aí o teu filho.
João 19. 25,26


“E JUNTO à cruz de Jesus estava sua mãe” (Jo 19.25). Como seu Filho, Maria estava familiarizada com o sofrimento. Desde o princípio somos informados: “E, entrando o anjo onde ela estava, disse: Salve, agraciada; o Senhor é contigo; bendita és tu entre as mulheres. E, vendo-o ela, turbou-se muito com aquelas palavras e considerava que saudação seria esta” (Lc 1.28,29). Isso foi apenas o prenúncio de muitas perturbações: Gabriel tinha vindo lhe anunciar o fato da concepção milagrosa, e um momento de reflexão nos mostrará que não foi coisa fácil para Maria o se tornar a mãe do nosso Senhor dessa forma misteriosa e sem precedentes. Sem dúvida, isso trouxe, mais tarde, grande honra, mas também não pouco perigo no presente para a reputação de Maria, e não pouca prova para a sua fé. É belo observar sua quieta submissão à vontade divina: “Disse, então, Maria: Eis aqui a serva do Senhor; cumpra-se em mim segundo a tua palavra” (Lc 1.38), foi a sua resposta. Isso foi resignação amorosa. Todavia, ela ficou “perturbada” com a Anunciação e, como dissemos, foi apenas o precursor das muitas provas e aflições.
Que aflição deve ter lhe causado quando, por não haver nenhum quarto na pousada, ela teve que deitar o seu bebê recém-nascido numa manjedoura! Que angústia deve ter sido a sua quando soube do intento de Herodes de matar a vida do seu infante! Que transtorno lhe deu ser forçada, por conta dele, a fugir para um país estrangeiro e residir por vários anos na terra do Egito! Que golpes penetrantes na sua alma devem ter sido ao ver seu Filho desprezado e rejeitado pelos homens! Que aperto no coração causava a tristeza de contemplá-lo como odiado e perseguido pela sua própria nação! E quem pode estimar o que ela experimentou enquanto permanecia ali ao pé da cruz? Se Cristo foi o homem de dores, não foi ela a mulher de dores?

“E junto à cruz de Jesus estava sua mãe” Jo 19.25

1. Aqui vemos o cumprimento da profecia de Simeão.
De acordo com as exigências da lei de Moisés, os pais do menino Jesus trouxeram-no ao templo para apresentá-lo ao Senhor. Então, aconteceu que o velho Simeão, que esperava pela Consolação de Israel, o tomou em seus braços e bendisse a Deus. Depois de dizer:
Agora, Senhor, podes despedir em paz o teu servo, segundo a tua palavra, pois já os meus olhos viram a tua salvação, a qual tu preparaste perante a face de todos os povos, luz para alumiar as nações e para glória de teu povo Israel” (Lucas 2.29-32), ele se voltou para Maria e disse:
“Eis que este é posto para queda e elevação de muitos em Israel e para sinal que é contraditado (e uma espada traspassará também a tua própria alma), para que se manifestem os pensamentos de muitos corações” (Lucas 2.34, 35).

Que estranha palavra, essa! Poderia ser que dela, o maior de todos os privilégios fosse trazer a maior de todas as tristezas? Parecia a coisa mais improvável quando Simeão falou. Todavia, quão verdadeira e tragicamente veio a acontecer! Aqui na cruz essa profecia de Simeão foi cumprida.
“E junto à cruz de Jesus estava sua mãe” (Jo 19.25). Após os dias de sua infância e adolescência, e durante todo o ministério público de Cristo, vemos e ouvimos muito pouco de Maria. Sua vida foi vivida na obscuridade, entre as sombras. Mas agora, quando a hora suprema lhe golpeava com a agonia do seu Filho, quando o mundo rejeitava o filho do seu ventre, ela permaneceu ali, junto à cruz! Quem pode retratar adequadamente tal figura? Maria estava mais perto do madeiro cruel! Despojada de fé e esperança, frustrada e paralisada pela estranha cena, todavia, ligada com a corrente dourada de amor àquele que estava agonizando, ali ela permanece! Experimente e leia os pensamentos e as emoções do coração daquela mãe. Ó, que espada foi aquela que perfurou a sua alma então! Felicidade tal como nunca em um nascimento humano, tristeza tal como nunca em uma morte desumana.
Aqui vemos demonstrado o coração de mãe. Ela é a mãe daquele homem moribundo.
Aquele que agonizava ali sobre a cruz era o seu filho. Ela foi a primeira a beijar aquela testa agora coroada de espinhos. Ela foi a primeira a guiar aquelas mãos e pés nos seus movimentos quando bebê.
Nenhuma mãe jamais sofreu como ela. Seus discípulos podem desertá-lo, seus amigos podem esquecê-lo, sua nação pode desprezá-lo, mas sua mãe permanece ali ao pé da sua cruz. Oh, quem pode sondar ou analisar o coração da Mãe?
Quem pode mensurar aquelas horas de tristeza e sofrimento à medida que a espada atravessava lentamente a alma de Maria? Não houve nenhum pranto histérico ou efusivo. Não houve nenhuma demonstração de fraqueza feminina; nenhum clamor violento vindo de uma angústia incontrolável; nenhum desmaio. Palavra alguma de seus lábios ficou registrada por nenhum dos quatro evangelistas: ela aparentemente sofreu em vigoroso silêncio. Todavia, sua tristeza não foi menos real e aguda. Águas silenciosas penetram fundo. Ela viu aquela testa perfurada com espinhos cruéis, mas não pôde alisá-la com seu terno toque. Ela viu suas mãos perfuradas e seus pés ficarem dormentes e pálidos, mas ela não podia esfregá-los. Ela notou sua necessidade de água, mas não lhe foi permitido saciar sua sede. Ela sofreu em profunda desolação de espírito.
“E junto à cruz de Jesus estava sua mãe” (Jo 19.25). A multidão estava zombando; os ladrões, insultando; os sacerdotes, escarnecendo; os soldados, endurecidos e indiferentes; o Salvador, sangrando e morrendo - e ali está sua mãe contemplando a horrível zombaria. Quem ficaria maravilhado se ela desmaiasse diante de uma tal visão! Quem ficaria maravilhado se ela se afastasse de um tal espetáculo! Quem ficaria maravilhado se ela fugisse de uma tal cena!
Mas não! Ali estava ela: não se encolhe, não desmaia, e nem mesmo desaba ao chão em sua dor - ela permaneceu de pé. Sua ação e atitude são singulares. Em todos os anais da história da nossa raça não há nenhum paralelo. Que coragem transcendente! Ela permaneceu junto à cruz de Jesus - que vigor maravilhoso! Ela reprimiu sua dor, e permaneceu ali quieta. Não foi a reverência pelo Senhor que a guardou de perturbá-lo em seus últimos momentos?
“Ora, Jesus, vendo ali sua mãe e que o discípulo a quem ele amava estava presente, disse à sua mãe: Mulher, eis aí o teu filho. Depois, disse ao discípulo: Eis aí tua mãe. E desde aquela hora o discípulo a recebeu em sua casa” Jo 19.26, 27

2. Aqui vemos o homem perfeito colocando um exemplo para os filhos honrarem os seus pais.
O Senhor Jesus evidenciou sua perfeição na maneira com que cumpriu plenamente as obrigações de toda relação que ele manteve, quer para com Deus, quer para com os homens. Na cruz nós contemplamos seu terno cuidado e solicitude para com sua mãe, e nisto temos o padrão de Jesus Cristo apresentado a todos os filhos para que eles o imitem, ensinando-lhes como se portarem para com os seus pais de acordo com as leis da natureza e da graça.
As palavras que o dedo divino gravou nas duas tábuas de pedra, e que foram dadas a Moisés no Monte Sinai, nunca foram anuladas. Elas ainda estão em vigor enquanto a terra perdurar. Cada uma delas está incorporada no ensino didático do Novo Testamento. As palavras de Êxodo 20.2 são reiteradas em Efésios 6.1-3: “Vós, filhos, sede obedientes a vossos pais no Senhor, porque isto é justo. Honra a teu pai e a tua mãe, que é o primeiro mandamento com promessa, para que te vá bem, e vivas muito tempo sobre a terra”.
O mandamento para os filhos honrarem os seus pais vai muito além de uma mera obediência a essa vontade expressa, embora, certamente, inclua essa. Ele envolve amor e afeição, gratidão e respeito. Com freqüência se pensa que esse quinto mandamento é dirigido aos jovens somente. Nada pode estar mais longe da verdade. Inquestionavelmente ele se dirige a eles em primeiro lugar, pois na ordem da natureza os filhos são sempre primeiramente jovens. Mas concluir que tal mandamento perca força quando a infância é deixada para trás é não entender pelo menos metade do seu significado profundo. Como sugerido, a palavra “honra” vai além de obediência, embora essa seja seu sentido principal. No curso do tempo os filhos crescem até alcançar a virilidade, que é a idade de plena responsabilidade pessoal, a idade quando eles não mais estão debaixo do controle dos seus pais, todavia, as suas obrigações não cessaram. Eles devem aos seus pais um débito que eles nunca podem se desobrigar plenamente. O mínimo dos mínimos que podem fazer é manter os seus pais em alta estima, colocá-los no lugar de superioridade e reverenciá-los. No Exemplo perfeito encontramos tanto obediência como estima manifestadas.
O fato de que o último Adão não veio a este mundo como o primeiro Adão - em plena posse das glórias distintivas da humanidade: totalmente desenvolvido em corpo e mente - mas como um bebê, tendo que passar por todo o período da infância, é um fato de tremenda importância e valor pela luz que ele lança sobre o quinto mandamento. Durante seus primeiros anos, o menino Jesus estava sob o controle de Maria, sua mãe, e de José, seu pai legal. Isso é belamente demonstrado no segundo capítulo de Lucas.
Quando chegou aos doze anos, Jesus foi levado por eles até Jerusalém para a festa da Páscoa. O retrato apresentado é profundamente sugestivo se a devida atenção lhe for dada. No final da festa, José e Maria partem para Nazaré, acompanhados pelos seus amigos e supondo que Jesus estivesse com eles. Mas, pelo contrário, ele tinha permanecido na cidade real. Após um dia de jornada sua ausência foi descoberta. Imediatamente eles voltaram para Jerusalém, e ali o encontraram no templo. Sua mãe o interroga assim: “Quando os pais viram o menino, também ficaram admirados. E a sua mãe lhe disse: —Meu filho, por que foi que você fez isso conosco? O seu pai e eu estávamos muito aflitos procurando você” (Lc 2.48, ARA). O fato de que ela o buscara “aflita” implica fortemente que ele quase nunca havia estado fora da esfera imediata da influência dela. Não encontrá-lo por perto foi para ela uma nova e estranha experiência, e o fato de que ela, assistida por José, o buscou “aflita” revela a bela relação existente entre eles no lar em Nazaré! A resposta que Jesus deu à sua pergunta, quando corretamente entendida, também revela a honra que tinha por sua mãe. Estamos bem de acordo com o Dr. Campbell Morgan de que Cristo não a repreendeu aqui. Em grande medida, trata-se de uma questão de achar a ênfase correta: “Não sabeis?”. Como o expositor anteriormente mencionado bem o diz: “É como se ele tivesse dito: ‘Mãe, certamente você me conhece bem o suficiente para saber que nada pode me deter, senão os negócios do Pai”. A seqüência é igualmente bela, pois lemos “E desceu com eles, e foi para Nazaré, e era-lhes sujeito” (Lc 2.51). E assim, por todo o tempo o Cristo de Deus deu o exemplo para os filhos obedecerem aos seus pais.
Mas há mais. Aconteceu com Cristo o mesmo que nos sucede: os anos de obediência à Maria e José terminaram, mas não os anos de “honra”. Nas últimas e terríveis horas de sua vida humana, no meio dos sofrimentos infinitos da cruz, o Senhor Jesus pensou naquela que o amava e a quem ele amava; ele pensou na sua necessidade presente e proveu para a sua necessidade futura encomendando-a aos cuidados daquele discípulo que mais profundamente entendeu o seu amor. Seu pensamento em Maria naquela hora e a honra que ele lhe deu foi uma das manifestações de sua vitória sobre a dor.
Talvez se requeira uma palavra com relação à forma com que nosso Senhor se dirige à sua mãe - “Mulher”. Até onde os registros dos quatro evangelhos vão, nunca ele a chamou de sua “Mãe”. Para nós que vivemos hoje, a razão para isso não é difícil de ser discernida. Olhando para os séculos vindouros com previsão onisciente, e vendo o horrível sistema de Mariolatria tão logo sendo erigido, ele se refreou de usar uma palavra que de alguma forma sustentasse essa idolatria - a idolatria de prestar à Maria a veneração que só a seu Filho é devida; a idolatria de adorá-la como sendo “A Mãe de Deus”.
Por duas vezes nos registros dos evangelhos, encontramos sim nosso Senhor se dirigindo a Maria como “Mulher”, e é mais digno de nota que ambas se encontram no de João, o qual, como bem sabido, apresenta a deidade de nosso Salvador. Os sinóticos o expõe em suas relações humanas; tal não se dá com o quarto evangelho. O de João apresenta Cristo como o Filho de Deus, e como tal, acima de todas as relações humanas, e daí a perfeita consonância de mostrar o Senhor Jesus aqui se dirigindo a Maria como “Mulher”.
O ato de nosso Senhor na cruz, encomendando-a aos cuidados de seu amado apóstolo, é mais bem entendido à luz da viuvez de sua mãe. Ainda que os evangelhos não registrem especificamente a sua morte, há poucas dúvidas de que José morrera antes do tempo em que o Senhor Jesus começou seu ministério público. Nada é informado sobre o marido dela após o incidente relatado em Lucas 2, quando Jesus era um menino de doze anos. Em João 2 Maria é vista nas bodas de Caná, mas não se fala nada sobre se José estava presente. Foi em vista da viuvez de Maria, portanto, e também do fato de que o tempo agora chegara, quando não mais seria um conforto para ela com sua presença corporal, que seu amoroso cuidado é manifestado.
Permita-me apenas uma breve palavra de exortação. Provavelmente tais linhas poderão ser lidas por várias pessoas adultas que ainda têm pais e mães vivos. Como você está tratando deles? Está verdadeiramente “honrando-os”? Esse exemplo de Cristo na cruz não o deixa envergonhado? Pode ser que você seja jovem e vigoroso, e seus pais, de cabelos grisalhos e doentes; mas diz o Espírito Santo: “não desprezes a tua mãe, quando vier a envelhecer” (Pv 23.22). Pode ser que você seja rico, e eles, pobres; então não deixe de prover por eles. Pode ser que eles vivam em um estado ou uma terra distante, então não seja negligente, deixando de escrever-lhes palavras de apreço e alegria que darão brilho ao término de seus dias. São obrigações sagradas: “Honra a teu pai e a tua mãe”.

3. Aqui vemos que João retornara ao lado do Salvador.
Com exceção, naturalmente, do sofrimento de Cristo na mão de Deus, talvez a escória mais amarga de todas no copo em que ele bebeu fosse o seu abandono por parte dos apóstolos. Foi ruim o bastante e triste o bastante o fato de seu próprio povo, os judeus, desprezarem e rejeitarem-no; porém, de longe pior foi os Onze, que o haviam acompanhado por tanto tempo, desertarem de seu Senhor na hora da crise. Alguém pensaria que sua fé e seu amor fossem iguais mesmo nos sobressaltos. Mas não foram. “Todos... deixando-o, fugiram” (Mt 26.56), é o que traz a narrativa sacra. Indizivelmente trágico isso. Seu fracasso em “vigiar” com ele por uma hora no Jardim bem que quase paralisa nossas mentes, mas o afastar-se dele na hora de sua prisão quase desconcerta a nossa compreensão. Quase, dizemo-lo, pois se não tivermos aprendido por amarga experiência o engano que há em nossos corações, quão débil é a nossa fé, quão lamentavelmente fracos nós somos na hora da provação e do teste! Mas, pela graça divina, a menor das ninharias é suficiente para nos vencer. Tirado o poder retentor e sustentador de Deus, por quanto tempo nós agüentaríamos?
O Senhor Jesus havia solenemente avisado esses discípulos de sua covardia próxima: “Então Jesus lhes disse: Todos vós esta noite vos escandalizareis em mim; porque está escrito: Ferirei o pastor, e as ovelhas do rebanho se dispersarão” (Mt 26.31). E não apenas Pedro, mas todos os apóstolos afirmaram sua determinação de ficar ao lado dele:
“Disse-lhe Pedro: Ainda que me seja mister morrer contigo, não te negarei. E todos os discípulos disseram o mesmo” (Mt 26.35). Entretanto, sua palavra se provou verdadeira, e eles todos desertaram dele de modo desprezível. E como isso refletia sobre sua glória! Pela fuga pecaminosa, eles expuseram o Senhor Jesus ao desprezo e troças dos seus inimigos. É por causa disso que lemos: “O sumo-sacerdote interrogou Jesus acerca dos seus discípulos” (Jo 18.19). Nem é preciso complementar a frase. Sem dúvida, Caifás o inquiriu sobre quantos discípulos ele tivera, e o que era feito deles agora? E qual foi a razão por que abandonaram seu Mestre, e o deixaram se arranjar sozinho quando surgiu o perigo? Mas observe que, para essa questão, o Salvador não deu resposta alguma. Ele não os acusaria ao inimigo comum ainda que eles tivessem desertado dele.
Eles o abandonaram porque ficaram “ofendidos” por causa dele: “Todos vós ficareis ofendidos por causa de mim esta noite” (Mt 26.31, KJV): a palavra grega aqui traduzida por “ofendido” pode bem ser vertida “escandalizado” [49]. Ficaram com vergonha de serem achados em sua companhia. Eles julgaram não ser mais seguro permanecer com ele. Como ele se entregou, consideraram aconselhável se prevenir o quanto pudessem, e em algum lugar ou outro se refugiarem da presente tempestade que se abatera sobre ele. Isso forma o lado humano.
Da parte divina, o abandono de Cristo por eles era devido à suspensão da graça preservadora e sustentadora de Deus. Eles não estavam acostumados a abandoná-lo. Nunca o fariam mais tarde. Jamais teriam agido assim nesse momento se tivesse havido influências de poder, zelo e amor vindas do céu sobre eles. Mas então como poderia Cristo ter carregado o fardo e a cólera daquele dia? Como deveria ele ter pisado o lagar sozinho? Como deveriam suas dores ter ficado sem lenitivo se eles houvessem aderido fielmente a ele? Não, não, não o deve ser. Cristo não deve ter o menor alívio ou conforto de qualquer criatura e, por essa razão, para que ele pudesse ser deixado sozinho com a ira de Deus e do homem, o Senhor por um tempo retém suas influências revigorantes deles; e então, como Sansão, quando teve cortado os cachos de sua cabeleira, ficaram tão fracos como os outros homens. “Fortalecei-vos no Senhor e na força do seu poder”, diz o apóstolo [50] — se tal é retido, nossos desígnios e resoluções se derretem diante da tentação como a neve diante do sol.
Todavia, observe que a covardia e a infidelidade dos apóstolos foi apenas temporária. Mais tarde, eles o buscaram no lugar assinalado na Galiléia (Mt 28.16). Mas não é motivo de regozijo saber que um dos onze procurou sim a ele antes de sua ressurreição triunfante do túmulo? Sim, foi procurado enquanto ainda pendia na cruz de vergonha! E quem se poderia supor que fosse? Qual do pequeno grupo dos apóstolos deve demonstrar a superioridade de seu amor? Mesmo se a narrativa sagrada houvesse ocultado sua identidade, não teria sido algo difícil fornecer seu nome. O fato ora considerado na escritura mostra-nos João ao pé da cruz, e é uma testemunha silenciosa porém suficiente da divina inspiração da Bíblia. É uma daquelas harmonias não intencionadas da palavra que atesta a origem sobre-humana das escrituras. Não há indicação alguma que qualquer outro dos onze estivesse ao redor da cruz, mas o leitor atento esperaria achar ali “o discípulo a quem Jesus amava” [51]. E lá estava ele. João retornara ao lado do Salvador, e ali recebe dele uma bendita comissão. Quão natural e quão perfeita é a silenciosa harmonia da escritura!
E agora, mais uma vez, uma breve palavra de exortação. Há alguém que lê estas linhas que esteja se apartando do lado do Salvador, que não mais esteja desfrutando da doce comunhão com ele; que, em uma palavra, esteja desviado? Talvez na hora da prova você o tenha negado. Talvez na hora do teste você falhou. Você pensa mais nos seus próprios interesses que nos dele. A honra do nome dele, que você porta, foi perdida de vista. Ó, que a flecha da convicção agora entre em sua consciência. Possa a divina graça enternecer o seu coração. Possa o poder de Deus trazê-lo de volta a Cristo, onde somente sua alma pode encontrar satisfação e paz. Aqui há encorajamento para você. Cristo não repreendeu João por retornar; antes, sua maravilhosa graça concedeu-lhe um inefável privilégio. Cesse então de suas perambulações e volte imediatamente a Cristo, e ele o saudará com uma palavra de boas-vindas e de alegria; e quem sabe se ele não tem uma honrosa comissão aguardando por você!

4. Aqui descobrimos uma ilustração da prudência de Cristo.
Já vimos como o ato de Cristo em encomendar Maria às mãos de seu discípulo foi uma expressão de seu terno amor e de sua presciência. Pois João se encarregar da mãe viúva do Salvador foi uma abençoada comissão e, contudo, um legado precioso. Quando Cristo lhe disse, “Eis aí tua mãe” [52], foi como se tivesse dito, Seja ela para ti como tua própria mãe: Seja teu amor por mim agora manifestado em teu terno cuidado por ela. Porém, havia muito mais do que isso por trás desse ato de Cristo.
Outrora já fora predito que o Senhor Jesus deveria agir sábia e discretamente. Por meio de Isaías, Deus dissera: “Eis que o meu servo operará com prudência” (52.13). Ao encomendar sua mãe aos cuidados de seu amado apóstolo, o Salvador mostrou sábia discriminação em sua escolha daquele que a partir de então seria o guardião dela.
Talvez não houvesse ninguém que compreendesse o Senhor Jesus tão bem quanto sua mãe, e é quase certo que ninguém apreendera seu amor tão profundamente quanto João.
Vemos portanto como seriam eles companhias apropriadas um para o outro, visto que havia um laço íntimo de simpatia comum que os unia juntamente e os ligava a Cristo!
Desse modo, não havia ninguém tão adequado para cuidar de Maria, ninguém cuja companhia ele acharia tão afim e, por outro lado, não existia ninguém cuja companhia João pudesse desfrutar mais.
Além disso, deve-se ter na mente que uma obra maravilhosa e honrosa estava esperando por João. Anos mais tarde, o Senhor Jesus foi revelar a si próprio ao apóstolo no glorioso apocalipse. Como, então, ele melhor poderia se habilitar para tal senão estando constantemente com ela, que vivera em estreita intimidade e comunicação com o Salvador durante os trinta anos que ele tinha esperado para dar início ao seu trabalho! Podemos, portanto, ver como era de significativa propriedade que esses dois — Maria e João — fossem trazidos para junto um do outro. Admire então a prudência da eleição por Cristo de um lar para Maria, e ao mesmo tempo provendo uma companhia para o discípulo a quem ele amava, que poderia ter uma bendita companhia espiritual.
Antes de passarmos para o nosso próximo ponto, podemos fazer uma observação de que esse recolhimento de Maria à casa de João traz luz a um incidente registrado no próximo capítulo do evangelho escrito por ele. Em João 20 se nos informa da visita de Pedro e João ao sepulcro vazio. João ultrapassou seu companheiro e chegou primeiro ao túmulo, mas não entrou. Pedro, como era de sua característica, adentra o sepulcro, e nota a ordenada disposição das roupas. Então entra João e vê e “crê”, pois até esse tempo a fé deles não tinha apanhado o sentido das promessas da ressurreição de Cristo. Conseqüente com a crença de João, lemos: “E os discípulos voltaram assim para os seus lares” (Jo 20.10, Tradução do Novo Mundo). Não nos é dito o porquê deles assim agirem, mas, à vista de João 19.27, a explicação fica óbvia. Ali se nos conta que “desde aquela hora o discípulo a recebeu em sua casa”, e agora que fica sabendo que o Salvador ressurgira dentre os mortos, e se apressa para “casa” para dizer a ela as boas novas! Quem mais do que ela regozijar-se-ia ante essas notícias alvissareiras! Esse é um outro exemplo da harmonia silenciosa e escondida da escritura.

5. Aqui vemos que as relações espirituais não devem ignorar as responsabilidades naturais.
O Senhor Jesus estava morrendo como o Salvador para os pecadores. Ele estava comprometido com a mais importante e estupenda incumbência que esta terra jamais testemunhou ou testemunhará. Ele estava a ponto de oferecer satisfação à justiça divina ultrajada. Ele estava para fazer aquela obra pela qual o mundo fora feito, pela qual a raça humana fora criada, pela qual todas as eras aguardaram, e pela qual ele, o Verbo eterno, se encarnara. Entretanto, ele não passou por cima das responsabilidades dos laços naturais; ele não deixou de fazer provisão àquela que, de acordo com a carne, era sua mãe.
Há aqui uma lição a qual muitos precisam levar a sério nos dias correntes. Nenhuma obrigação, nenhuma obra, por importante que seja, pode nos servir de escusa para deixarmos as obrigações de natureza, de cuidar daqueles por quem temos deveres de sangue. Aqueles que partem como missionários para labutar em terras pagãs, e que deixam para trás seus filhos, ou que os enviam de volta à terra natal para serem cuidados por estranhos, não estão seguindo os passos do Salvador. Aquelas mulheres que passam a maior parte de seu tempo em reuniões públicas, ainda que sejam de cunho religioso, ou que descem às favelas para ministrar aos pobres e necessitados, negligenciando sua própria família em casa, só estão trazendo vitupério ao nome e à causa de Cristo. Tais homens, mesmo que estejam à frente da obra de Cristo, que estão tão ocupados pregando e ensinando que não têm tempo algum para cumprir as obrigações por ele devidas às suas próprias esposas e filhos, precisam estudar e praticar o princípio exemplificado aqui por Cristo na cruz.
Aqui vemos uma necessidade universal exemplificada.
Quão diferente é a Maria da escritura da Maria da superstição! Ela não era nenhuma Madona altiva, mas um membro da raça caída como cada um de nós, uma pecadora tanto por natureza quanto por prática. Antes do nascimento de Cristo ela declarou: “A minha alma engrandece ao Senhor, e o meu espírito se alegra em Deus meu Salvador” (Lc 1.46,47). E agora, na morte do Senhor Jesus ela é encontrada perante a cruz. A palavra de Deus não apresenta a mãe de Jesus como a rainha dos anjos adornada com diadema, mas como alguém que se deleitava em um Salvador. É verdade que ela é “bendita entre (não ‘acima de’) as mulheres”, e isso em virtude da elevada honra de ser a mãe do Redentor; todavia, ela era humana, um membro real de nossa raça caída, uma pecadora que precisava de um Salvador.
Ela permaneceu junto à cruz. E quando ali estava, o Salvador exclamou, “Mulher, eis aí o teu filho!” [53] (Jo 19.26). Ali, resumida numa simples palavra, é expressa a necessidade de todo descendente de Adão — voltar os olhos do mundo, para fora do eu, e olhar por fé para o Salvador que morreu pelos pecadores. Ali está o divino epítome do Caminho da Salvação. Libertação da ira vindoura, perdão dos pecados, aceitação por parte de Deus, tudo isso é obtido, não por feito meritório, não por boas obras, não por ordenanças religiosas; não, a salvação vem por contemplar — “Eis o cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo” [54]. Assim como os israelitas mordidos pelas serpentes no deserto foram curados por um olhar, por um olhar para o que Jeová designou que fosse o objeto da fé deles, também hoje a redenção da culpa e do poder do pecado, a libertação da maldição da lei quebrada e do cativeiro de Satanás, deve ser encontrada somente pela fé em Cristo. “E, como Moisés levantou a serpente no deserto, assim importa que o Filho do homem seja levantado; para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna” (João 3.14,15). Há vida em um olhar. Leitor, você já contemplou desse modo aquele divino Sofredor? Você o viu morrendo na cruz, o justo pelo injusto, para que pudesse nos trazer para Deus? Maria, mãe de Cristo, precisava “contemplá-lo”, e assim é com você. Olhe então, olhe para Cristo e serás salvo.
7. Aqui vemos a maravilhosa combinação das perfeições de Cristo.
Essa é uma das maiores maravilhas de sua pessoa — a combinação da mais perfeita afeição humana com sua glória divina. O próprio evangelho que o mostra sobretudo como Deus é aqui cuidadoso par provar que ele era homem — o Verbo que se fez carne. Comprometido que estava na divina transação, fazendo expiação por todos os pecados de seu povo, lutando contra os poderes das trevas, todavia, em meio a isso tudo, ele ainda tinha a mesma ternura humana, que mostra a perfeição do homem Jesus Cristo.
Esse cuidado por sua mãe na hora da morte era característico de toda a sua conduta. Tudo era natural e perfeito. A simplicidade não estudada dele é mais notada. Não havia nada pomposo ou faustoso. Muitas das suas mais poderosas obras foram feitas no caminho, na cabana ou entre um pequeno grupo de sofredores. Muitas de suas palavras, que ainda hoje são insondáveis e inexauríveis em sua riqueza de significação, foram proferidas quase que casualmente enquanto caminhava com alguns amigos.
Assim o foi na cruz. Ele estava executando aquela mais poderosa obra de toda a história. Ele estava comprometido em realizar aquela que faz com que, em comparação, a criação do mundo se esmaeça em total insignificância, porém, não esquece de fazer provisão para sua mãe — provisão essa que ele pôde fazer bastante quando estiveram juntos na casa em Nazaré. Corretamente foi dito outrora: “Seu nome será Maravilhoso” (Is 9.6).
Maravilhoso o foi em tudo que fez. Maravilhoso o foi em todo relacionamento que ele manteve.
Maravilhoso o foi em sua pessoa, e maravilhoso o foi em sua obra.
Maravilhoso o foi em vida, e maravilhoso o era na morte. Que nos maravilhemos e adoremos.

4 A PALAVRA DE ANGÚSTIA

“E perto da hora nona exclamou Jesus em alta voz, dizendo: Eli, Eli, lama sabactani; isto é, Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?”
Mateus 27.46

“Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?”

ESSAS SÃO PALAVRAS DE CHOCANTE IMPORTÂNCIA. A crucificação do Senhor da glória foi o mais extraordinário evento que já aconteceu na terra, e esse brado do padecente foi a mais extraordinária expressão daquela aterradora cena. Que um inocente fosse condenado, que o sem culpa fosse perseguido, que um benfeitor fosse cruelmente sentenciado à morte, não era nenhum acontecimento novo na história. Do assassínio do justo Abel àquele de Zacarias houve uma longa lista de martírios. Mas aquele que pendurado estava na cruz do centro não era nenhum homem comum, era o Filho do Homem, aquele no qual todas as excelências se encontravam — o Perfeito. Seu caráter era como sua túnica, “tecida toda de alto a baixo, [e] não tinha costura”.[55]
No caso dos outros maltratados havia deméritos e manchas que poderiam proporcionar aos seus assassinos algo com que culpá-los. Mas desse o juiz falou: “Não acho nele crime algum”.[56]
E mais. Esse Sofredor não era apenas um homem perfeito, mas o Filho de Deus. Todavia, não era estranho que o homem quisesse destruir Deus. “Disse o néscio no seu coração: Não há Deus” (Sl 14.1), tal é o seu desejo. Mas é estranho que aquele que era Deus manifestado na carne devesse permitir a si mesmo ser assim tratado por seus inimigos. É extremamente estranho que o Pai que se deleitava nele, cuja própria voz declarara dos céus abertos, “Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo”, devesse entregá-lo a uma morte tão vexaminosa.

“Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?”
Essas são palavras de estarrecedora miséria. A própria palavra “desamparaste” é uma das mais trágicas em todas as línguas humanas. O escritor jamais se esquecerá da sensação que teve ao passar uma vez por uma cidade deserta, sem habitante algum — uma cidade desamparada. Que calamidades são conjuradas por tal palavra — um homem desamparado de seus amigos, uma esposa desamparada de seu marido, uma criança desamparada por seus pais! Mas uma criatura desamparada por seu Criador, um homem desamparado de Deus — Ó, isso é o mais horrendo de tudo. Esse é o mal dos males. Isso é a calamidade climatérica. Verdade, os homens caídos, em sua condição não renovada, não o acham. Mas aquele que, pelo menos em certa medida, aprendeu que Deus é a essência de toda perfeição, a fonte e a meta de toda excelência, cujo clamor é “Como o cervo brama pelas correntes das águas, assim suspira a minha alma por ti, ó Deus!” (Sl 42.1), prontamente endossará o que acaba de ser dito.
O clamor dos santos em todas as eras tem sido, “Não nos desampare, ó Deus”.[57] Pois o Senhor esconder sua face de nós por um momento que seja é insuportável. Se isso é verdade quanto aos pecadores regenerados, quão infinitamente mais o é quanto ao Filho amado do Pai!
Aquele que estava pendurado no madeiro maldito tinha sido desde toda eternidade o objeto do amor do Pai. Empregando a linguagem de Provérbios 8, o Salvador padecente era aquele que “estava com ele e era seu aluno”, que estava “cada dia as suas delícias”.
Seu próprio gozo fora contemplar a face do Pai. A presença do Pai fora seu lar, o seio do Pai o lugar de sua habitação, a glória do Pai ele compartilhara antes que houvesse o mundo. Durante os trinta e três anos que o Filho estivera na terra ele desfrutara de comunhão ininterrupta com o Pai. Nunca um pensamento que estivesse fora da harmonia com a mente do Pai, nunca uma volição que não fosse originária da vontade do Pai, nunca um momento que fosse passado fora de sua presença consciente. O que então deve ter significado estar por ora “desamparado” por Deus! Ah, o ocultamento da face divina dele foi o mais amargo ingrediente daquele copo que o Pai tinha dado ao Redentor para beber:

“Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?”
Essas são palavras de inigualável sentimento. Elas marcam o clímax de seus sofrimentos. Os soldados haviam cruelmente zombado dele: enfeitaram-no com a coroa de espinhos, tinham-no açoitado e esbofeteado, tinham até chegado a ponto de cuspir nele e arrancar seus cabelos. Despojaram-no de seus vestidos e o expuseram a uma vergonha explícita. Todavia, sofreu tudo isso em silêncio. Perfuraram suas mãos e seus pés, porém suportou a cruz, a despeito da ignomínia. A multidão vulgar escarnecia dele, e os ladrões com ele crucificados lhe lançavam em rosto os mesmos insultos; todavia, não abriu sua boca. Em resposta a tudo que sofria das mãos dos homens, nenhum clamor escapou de seus lábios. Mas agora, quando a ira concentrada do céu desce sobre si, ele exclama: “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?” Seguramente, esse era um clamor que deveria enternecer o mais duro coração!

“Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?”
Essas são palavras do mais profundo mistério. Outrora o Senhor Jeová não abandonava seu povo.
Repetidamente ele foi seu refúgio na tribulação. Quando Israel esteve em cruel servidão clamou a Deus, e ele o ouviu. Quando ficou impotente diante do Mar Vermelho, ele veio em seu auxílio e o livrou de seus inimigos. Quando os três hebreus foram lançados dentro da fornalha de fogo, o Senhor esteve com eles. Mas daqui, da cruz, sobe um clamor mais dorido e agonizante do que jamais subira da terra do Egito, entretanto, não ouve resposta alguma! Eis aí uma situação de longe mais alarmante do que a crise do Mar Vermelho: inimigos mais implacáveis cercaram esse, e no entanto não houve livramento algum! Eis aí um fogo que ardia infinitamente mais do que o da fornalha de Nabucodonosor, mas sem ninguém ao seu lado para confortar! Ele é abandonado por Deus!
Não obstante, esse clamor do Salvador padecente é profundamente misterioso. De início clamou, “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem”, e isso podemos compreender, pois está em boa conformidade com seu coração compassivo. Outra vez abrira ele sua boca, para dizer ao ladrão penitente, “Em verdade te digo que hoje estarás comigo no Paraíso”, e isso também podemos entender bem, pois está totalmente de acordo com sua graça para com os pecadores. Uma vez mais seus lábios se moveram — para sua mãe, “Mulher, eis aí o teu filho”; para o amado João, “Eis aí tua mãe” — e isso também podemos apreciar. Porém, na próxima vez em que ele abre sua boca, um brado nos faz ficar sobressaltados e desconcertados. Outrora disse Davi, “Nunca vi desamparado o justo”,[58] mas aqui vemos o Justo desamparado.

“Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?”
Essas são palavras da mais profunda solenidade. Esse foi um clamor que fez a própria terra estremecer, e que reverberou por todo o universo. Ah, que mente é suficiente para contemplar essa maravilha das maravilhas! Que mente é capaz de analisar o sentido desse estupendo clamor que rasgou as trevas medonhas! “Por que me desamparaste?” são palavras que nos conduzem para dentro do Santo dos Santos. Aqui, se é que não o é assim também em todo lugar, é supremamente conveniente que removamos os sapatos da curiosidade carnal. As especulações são profanas; podemos apenas nos maravilhar e adorar.
Mas, embora tais palavras sejam de importância chocante, de assustadora miséria, do mais profundo mistério, de singular sentimento, e de profunda solenidade, entretanto, não somos deixados em ignorância quanto ao significado. Verdade, tal clamor foi profundamente misterioso, todavia, é capaz da mais abençoada solução. As Escrituras Sagradas não deixam margem para dúvidas de que tais palavras de inigualável tristeza foram tanto a mais completa manifestação do amor divino e da mostra mais inspiradora de terror da inflexível justiça divina. Possa todo pensamento ser agora trazido cativo a Cristo e nossos corações ficarem devidamente graves enquanto analisamos mais de perto esse quarto pronunciamento do Salvador agonizante.

“Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?”
1. Aqui vemos a enormidade do pecado e o caráter de seu salário.
O Senhor Jesus foi crucificado ao meio-dia, e na luz do Calvário tudo foi revelado em seu verdadeiro caráter. Ali, a própria natureza das coisas foi plena e finalmente exibida. A depravação do coração humano — seu ódio por Deus, sua ingratidão abjeta, seu amor às trevas no lugar da luz, sua preferência por um assassino no lugar do Príncipe da vida — foi horrivelmente mostrada. O terrível caráter do diabo — sua hostilidade contra Deus, sua insaciável inimizade contra Cristo, seu poder de pôr no coração do homem a traição ao Salvador — foi plenamente exposta. Assim, também, as perfeições da natureza divina — a inefável santidade de Deus, sua justiça inflexível, sua ira terrível, sua graça sem par — foi de todo conhecida. E ali também foi que o pecado — sua vileza, sua torpeza, sua não sujeição a leis — foi claramente exibido. Aqui nós vemos a horrenda extensão a que o pecado chegará. Em sua primeira manifestação ele tomou a forma de suicídio, pois Adão destruiu sua própria vida espiritual; em seguida o vemos em forma de fratricídio — Caim matando seu próprio irmão; mas na cruz o clímax é atingido, com o deicídio — o homem crucificando o Filho de Deus.
Porém, não apenas vemos a hediondez do pecado na cruz, mas ali também descobrimos o caráter de seu horrível pecado. “O salário do pecado é a morte” (Rm 6.23). A morte é a herança do pecado. “Por um homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado a morte, assim também a morte passou a todos os homens por isso que todos pecaram” (Rm 5.12). Não houvesse pecado nenhum, não haveria morte alguma. Mas o que é “morte”? É aquele pavoroso silêncio que reina supremo após se dar o último fôlego e o corpo ficar sem movimentos? É aquela cadavérica palidez que vem sobre a face quando o sangue cessa de circular e os olhos ficam sem expressão? Sim, é isso, mas muito mais. Algo de longe mais patético e trágico do que a dissolução física está contido no termo.
O salário do pecado é a morte espiritual. O pecado separa de Deus, que é a fonte de toda vida. Isso foi manifestado no Éden. Antes da Queda, Adão desfrutava de bendita companhia com seu Criador, mas na própria véspera daquele dia que marcou a entrada do pecado em nosso mundo, enquanto o Senhor Deus entrava no Jardim e sua voz era ouvida por nossos primeiros pais, o par culpado escondeu-se entre as árvores do lugar.
Não mais poderiam eles gozar de comunhão com ele que é sempre Luz, antes, ficaram alienados dele. Assim, também, se deu com Caim: quando interrogado pelo Senhor ele disse: “Da tua face me esconderei” (Gn 4.14). O pecado exclui da presença de Deus.
Essa foi a grande lição ensinada a Israel. O trono de Jeová estava no meio deles, todavia não era mais acessível. Ele habitava entre os querubins no santo dos santos e a esse ninguém poderia chegar, com exceção do sumo sacerdote, e ele, apenas um dia por ano, levando sangue consigo. O véu pendurado tanto no tabernáculo quanto no templo, vedando o acesso ao trono divino, testemunhava o solene fato de que o pecado separa dele.
O salário do pecado é a morte, não somente física, mas espiritual; não meramente natural mas, essencialmente, morte penal. O que é morte física? É a separação da alma e do espírito do corpo. Assim, a morte penal é a separação da alma e do espírito de Deus. A palavra da verdade fala daquela que vive em prazer como “embora viva, está morta” (1Tm 5.6, ARA). Repare, ainda, como a maravilhosa parábola do filho pródigo ilustra a força do termo “morte”. Após o retorno do pródigo o pai disse: “Este meu filho estava morto, e reviveu, tinha-se perdido, e foi achado” (Lc 15.24). Enquanto ele estava na “terra longínqua”, não havia cessado de existir; não, ele não estava morto fisicamente, mas espiritualmente — estava alienado e separado de seu pai!
Agora, na cruz, o Senhor Jesus estava recebendo o salário que era devido por seu povo. Ele não tinha pecado algum que fosse seu, pois era o Santo de Deus. Mas estava levando nossos pecados em seu próprio corpo no madeiro (1Pd 2.24). Ele tinha tomado o nosso lugar e estava padecendo o Justo pelo injusto. Ele estava carregando o castigo que nos traz a paz [59]; e o salário de nossos pecados, o sofrimento e castigo que era devido a nós, era “morte”. Não meramente física, mas penal; e, como dissemos, isso significava separação de Deus, e daí o Salvador ter clamado: “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?”
Assim, também, será com aquele que for impenitente até o fim. O pavoroso destino que aguarda o perdido é, dessa forma, exposto: “os quais sofrerão, como castigo, a perdição eterna, banidos da face do senhor e da glória do seu poder” (2Ts 1.9, ARA). Separação eterna daquele que é a fonte de todo bem e a origem de toda bênção. Ao ímpio, Cristo dirá: “Apartai-vos de mim, malditos” [60] — banimento de sua presença, um eterno exílio de Deus, é o que espera o condenado eternamente. Essa é a razão por que o Lago de Fogo — a eterna morada daqueles cujos nomes não estão escritos no livro da vida — é designada “A Segunda Morte” (Ap 20.14). Não que haverá extinção do ser, mas separação eterna do Senhor da Vida, uma separação a qual Cristo sofreu por três horas enquanto estava pendurado no lugar do pecador. Na cruz, então, Cristo recebeu o salário do pecado.

“Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?”

2. Aqui vemos a absoluta santidade e a inflexível justiça de Deus.
A tragédia do Calvário deve ser vista de pelo menos quatro pontos de vista. Na cruz o homem fez uma obra: ele mostrou sua depravação ao pegar o Perfeito e com “mãos iníquas” [61] pregando-o no madeiro. Na cruz Satanás fez uma obra: ele manifestou sua insaciável inimizade contra a semente da mulher ferindo o calcanhar dele.[62] Na cruz o Senhor Jesus fez uma obra: morreu o Justo pelos injustos [63] para pudesse nos trazer a Deus. Na cruz Deus fez uma obra: ele exibiu sua santidade e satisfez sua justiça derramando sua ira sobre aquele que foi feito pecado por nós.
Que pena humana é capaz ou apropriada para escrever acerca da imaculada santidade divina! Tão santo é Deus que o mortal não pode vê-lo em seu ser essencial, e viver. Tão santo é Deus que os próprios céus não são puros aos seus olhos.[64] Tão santo é Deus que até os serafins cobriam suas faces com véus diante dele.[65] Tão santo é Deus que, quando Abraão ficou de pé perante ele, clamou, “Sou pó e cinza” (Gn 18.27). Tão santo é Deus que, quando Jó entrou em sua presença, disse: “Por isso me abomino” (Jó 42.6). Tão santo é Deus que, quando Isaías teve uma visão de sua glória, exclamou: “Ai de mim, que vou perecendo porque... os meus olhos viram o rei, o Senhor dos Exércitos” (Is 6.5). Tão santo é Deus que, quando Daniel o contemplou numa manifestação teofânica, declarou: “Não ficou força em mim; desfigurou-se a feição do meu rosto” (Dn 10.8). Tão santo é Deus que nos é dito: “Tu és tão puro de olhos que não podes ver o mal, e que não podes contemplar a perversidade” (Hc 1.13). E foi porque o Salvador estava levando nossos pecados que o trinamente santo Deus não o contemplou, virou sua face dele, abandonou-o. O Senhor fez que se encontrasse em Jesus as iniqüidades de nós todos: e nossos pecados estando sobre ele como nosso substituto, a ira divina contra as nossas ofensas devesse passar sobre nossa oferta de pecado.

“Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?” Essa era uma questão que nenhum daqueles ao redor da cruz podia ter respondido; era uma questão que, ao mesmo tempo, nenhum dos apóstolos podia ter respondido; sim, era uma questão que havia confundido os anjos no céu, deixando-os sem resposta. Mas o Senhor Jesus havia respondido sua própria questão, e sua resposta é achada no Salmo 22. Esse salmo fornecia a mais maravilhosa predição profética de seus sofrimentos. Ele abre com as próprias palavras da quarta elocução de nosso Salvador sobre a cruz, e é seguido por mais soluços de agonia no mesmo tom até que, no versículo 3, achamo-lo dizendo — “Tu és Santo”. Ele se queixa, não da injustiça, antes reconhece a retidão de Deus — tu és santo e justo em cobrar de minhas mãos toda a dívida para a qual me fiz fiador; tenho de responder pela totalidade dos pecados de todo meu povo e, por conseguinte, ó Deus, és parte legítima em me golpear com tua espada desperta. Tu és santo; tu és puro quando julgas.
Na cruz, então, como em nenhum outro lugar, vemos a infinita malignidade do pecado e da justiça divina na punição desse. Não foi o mundo antigo coberto pelas águas? Não foram Sodoma e Gomorra destruídas por uma tempestade de fogo e enxofre? Não foram as pragas enviadas sobre o Egito e Faraó e seus exércitos afogados no Mar Vermelho? Nesses casos, o demérito do pecado e o ódio de Deus por ele puderam ser vistos; mas muito mais o é aqui, em que Cristo é desamparado por ele. Vá ao Gólgota e veja o Homem que é Companheiro de Jeová bebendo do copo da indignação do Pai, castigado pela espada da justiça divina, ferido pelo próprio Senhor, sofrendo até a morte, pois Deus “não poupou seu próprio Filho” [66] quando o pendurou no lugar do pecador.
Eis como a própria natureza antecipara a terrível tragédia — o próprio contorno do chão se assemelha a um crânio. Eis a terra tremendo sob a poderosa carga da ira despejada. Eis os céus e o sol fugirem de uma tal cena, e a terra ser coberta de trevas. Aqui podemos ver a pavorosa cólera de um Deus que vinga o pecado. Nem todos os relâmpagos do julgamento divino que foram liberados nos tempos do Antigo Testamento, nem todas as taças da ira que serão despejadas sobre uma Cristandade apóstata durante os tempos sem paralelos da Grande Tribulação,[67] nem todo choro e lamento e ranger de dentes dos condenados para sempre no Lago de Fogo jamais deram ou mesmo darão uma tal demonstração da inflexível justiça de Deus e de sua inefável santidade, de seu infinito ódio ao pecado, como o fez a ira divina que ardeu contra seu próprio Filho na cruz. Porque estava sofrendo o horripilante julgamento do pecado, foi desamparado por Deus. Aquele que era o Santo, cuja própria repulsa ao pecado era infinita, que era a pureza encarnada (1Jo 3.3), [Deus] “o fez pecado por nós” (2Co 5.21); portanto, ele se curvou mesmo perante a tempestade de ira, na qual foi mostrado o desprazer divino contra os incontáveis pecados de uma grande multidão que homem algum pode numerar. Essa, então, é a verdadeira explicação do Calvário. O santo caráter de Deus não podia fazer nada senão julgar o pecado, mesmo que fosse achado no próprio Cristo. Na cruz, pois, a justiça divina foi satisfeita e sua santidade reivindicada.

“Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?”

3. Vemos aqui a explicação do Getsêmane.
À medida que nosso bendito Senhor se aproximava da cruz o horizonte para ele se escurecia mais e mais. Desde a mais tenra infância ele havia sofrido por causa do homem; desde o princípio de seu ministério público ele havia sofrido por causa de Satanás; porém, na cruz ele devia sofrer na mão de Deus. O próprio Jeová devia ferir o Salvador, e era isso que obscurecia tudo o mais. No Getsêmane ele adentrou na escuridão das três horas de trevas na cruz. Eis o porquê de ele deixar os três discípulos nas imediações do jardim, pois ele devia pisar o lagar sozinho. “A minha alma está profundamente triste” [68], ele clamou. Isso não era recuar, horrorizado, antecipando uma morte cruel. Não era o pensamento da traição por seu próprio amigo com quem estava familiarizado, nem da deserção por seus estimados discípulos na hora da crise, nem da expectativa das zombarias e ultrajes, dos açoites e dos pregos, que oprimia sua alma. Não, toda essa angústia da mais severa ao seu espírito sensível, nada era se comparada com a que ele teve de suportar como Portador do Pecado.
“Então chegou Jesus com eles a um lugar chamado Getsêmane, e disse aos seus discípulos: Assentai-vos aqui, enquanto vou além orar. E levando consigo Pedro e os dois filhos de Zebedeu, começou a entristecer-se e a angustiar-se muito. Então lhes disse: A minha alma está cheia de tristeza até à morte; ficai aqui, e velai comigo. E, indo um pouco mais para diante, prostrou-se sobre o seu rosto, orando e dizendo: Meu Pai, se é possível, passe de mim este cálice; todavia, não seja como eu quero, mas como tu queres.” (Mt 26.36-39).
Aqui ele observa as negras nuvens surgindo, vê a terrível tempestade chegando, ele premeditava o inexprimível horror daquelas três horas de trevas e tudo o que elas continham. “A minha alma está profundamente triste”, ele clama. O grego é mais enfático. Ele estava cercado de tristeza. Ele estava completamente imerso na ira divina. Todas as faculdades e poderes de sua alma estavam esmagados pela angústia.
S. Marcos emprega uma outra forma de expressão — “Ele começou a ficar extremamente atônito” (14.33, KJV). O original traz o significado de a maior extremidade do pavor, como a que faz com que alguém ficar de cabelo em pé e o corpo arrepiado. E, acrescenta Marcos, “e a ficar muito triste”, o que denota que havia um total abatimento de espírito; seu coração estava derretido como cera à vista do terrível cálice.
Mas o evangelista Lucas, dentre todos, é o que usa os termos mais fortes: “E, posto em agonia, orava mais intensamente. E o seu suor tornou-se em grandes gotas de sangue, que corriam até o chão” (Lc 22.44). A palavra grega para “agonia” aqui, quer dizer estar envolvido em um combate. Antes, ele combatera as oposições dos homens e as do diabo, mas agora ele encara o cálice que Deus lhe dá a beber. Era o que continha a ira não diluída do ódio divino para com o pecado. Isso explica o porquê dele dizer: “Se queres, passa de mim este cálice”. O “cálice” é o símbolo de comunhão, e não poderia haver comunhão alguma em sua ira, mas somente em seu amor [69]. Entretanto, ainda que isso significasse ser cortado daquela, ele adiciona: “Todavia, não se faça a minha vontade, mas a tua”. Todavia, tão grande foi sua agonia que “seu suor tornou-se em grandes gotas de sangue, que corriam até o chão”.
Pensamos que não pode haver a menor dúvida de que o Salvador verteu gotas de sangue de verdade. Seria diminuir aí o significado dizer que seu suor parecia sangue, mas não o era realmente. Parece-nos que a ênfase está posta na palavra “sangue”. Ele verteu sangue — exatamente como grandes gotas de água comumente. E vemos aqui a adequação do lugar escolhido para ser a cena desse terrível mas preliminar sofrimento. Getsêmane — ah, teu nome te denuncia! Tem o sentido de prensa de azeite. Era o lugar onde o sangue vital das olivas era extraído por pressão gota a gota! O lugar escolhido foi bem nomeado, pois. Era de fato um apropriado escabelo para a cruz, um escabelo de agonia inexprimível e sem paralelos. Na cruz, então, Cristo tomou todo o cálice que lhe foi apresentado no Getsêmane.

“Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?”

4. Aqui vemos a inabalável fidelidade a Deus do Salvador.
O abandono do Redentor por Deus era um fato solene, e uma experiência que nada lhe deixava senão apoiar-se em sua fé. A posição de nosso Salvador na cruz foi absolutamente singular. Isso pode ser prontamente visto ao se contrastar suas próprias palavras faladas durante seu ministério público com aquelas proferidas na própria cruz.
Antes dizia ele: “Eu bem sei que sempre me ouves” (Jo 11.42); agora ele clama, “Deus meu, eu clamo de dia, e tu não me ouves” (Sl 22.2)! Antes dizia ele: “E aquele que me enviou está comigo; o Pai não me tem deixado só” (Jo 8.29); agora ele clama, “Deus meu, Deus meu, por que me DESAMPARASTE?” Ele não tinha absolutamente nada agora em que descansar senão o pacto e a promessa de seu Pai; e em seu clamor de angústia, sua fé se torna manifesta. Foi um brado de aflição, mas não de desconfiança.
Deus havia se retirado dele, mas note como sua alma ainda se apega a ele. Sua fé triunfou segurando-se em Deus mesmo em meio às trevas. “Deus meu”, diz, “Deus meu”, tu com quem está a infinita e perpétua força; tu que apoiaste até aqui minha humanidade e, conforme tua promessa, sustentaste teu servo — Ó, não fiques longe de mim agora. Deus meu, eu me apóio em ti. Quando todos os confortos visíveis e sensíveis haviam desaparecido, da invisível proteção e refúgio de sua fé o Salvador se vale.
No salmo de número vinte e dois a inabalável fidelidade do Salvador a Deus fica mais aparente. Nesse precioso texto fala-se das profundezas de seu coração. Ouça-o:
Em ti confiaram nossos pais; confiaram, e tu os livraste. A ti clamaram e escaparam; em ti confiaram, e não foram confundidos. Mas eu sou verme, e não homem, opróbrio dos homens e desprezado do povo. Todos os que me vêem zombam de mim, estendem os beiços e meneiam a cabeça, dizendo: Confiou no Senhor, que o livre; livre-o, pois nele tem prazer. Mas tu és o que me tiraste do ventre, o que me preservaste estando ainda aos seios de minha mãe. Sobre ti fui lançado desde a madre; tu és o meu Deus desde o ventre de minha mãe. (Sl 22.4-10).
O próprio ponto em que seus inimigos procuraram levantar contra ele foi a sua fé em Deus. Escarneceram dele por sua confiança em Jeová — se ele realmente confiava no Senhor, o Senhor livrá-lo-ia. Porém, o Salvador continuava confiando ainda que não houvesse livramento algum, confiava ainda que desamparado por um período! Foi lançado sobre Deus desde o ventre e ainda é lançado sobre ele na hora de sua morte. Ele prossegue:
Não te alongues de mim, pois a angústia está perto, e não há quem ajude. Muitos touros me cercaram; fortes touros de Basã me rodearam. Abriram contra mim suas bocas, como um leão que despedaça e que ruge. Como água me derramei, e todos os meus ossos se desconjuntaram; o meu coração é como cera, derreteu-se no meio das minhas entranhas. A minha força se secou como um caco, e a língua se me pega ao paladar, e me puseste no pó da morte. Pois me rodearam cães; o ajuntamento dos malfeitores me cercou, transpassaram-se as minhas mãos e os pés. Poderia contar todos os meus ossos; eles vêem e me contemplam. Repartem entre si os meus vestidos, e lançam sortes sobre a minha túnica. Mas tu, Senhor, não te alongues de mim; força minha, apressa-te em socorrer-me. Livra a minha alma da espada, e a minha predileta da força do cão (Sl 22.11-20).
Jó tinha dito de Deus “Ainda que ele me mate, nele esperarei” e, embora a ira divina contra o pecado repousasse sobre Cristo, ele ainda confiava. Sim, sua fé fez mais do que confiar, ela triunfou — “Salva-me da boca do leão, sim, ouve-me, desde as pontas dos unicórnios” (Sl 22.21).
Ó, que exemplo o Salvador deixou para o seu povo! É relativamente fácil confiar em Deus quando brilha o sol, o teste chega quando tudo está em escuridão. Mas uma fé que não confia em Deus na adversidade tanto quanto na prosperidade não é a fé dos seus eleitos. Devemos ter fé por que vivermos — fé de verdade — se a tivermos para por ela morrer. O Salvador fora lançado sobre Deus desde a madre, fora lançado sobre Deus momento a momento durante todos aqueles trinta e três anos, o que não é de se maravilhar, então, que na hora da morte seja encontrado ainda lançado sobre Deus. Seus companheiros cristãos podem estar tristes contigo, podes não mais contemplar a luz da face divina. A Providência parece olhar com desdém para ti, entretanto, ainda dizes, Eli, Eli, Deus meu, Deus meu.

“Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?”

5. Aqui podemos ver a base da nossa salvação.
Deus é santo e, por conseguinte, não aceita ver pecado. Ele é justo e, portanto, julga o pecado em qualquer lugar onde seja encontrado. Mas Deus também é amor: Ele se deleita na misericórdia e, em conseqüência, a infinita sabedoria ideou um meio pelo qual a justiça pudesse ser satisfeita e a misericórdia liberada para fluir aos culpados pecadores. Esse meio foi o da substituição, o justo padecendo pelo injusto. O próprio Filho de Deus foi o selecionado para ser o substituto, pois nenhum outro satisfaria. Através de Naum, a questão fora feita: “Quem pode manter-se diante do seu furor? e quem pode subsistir diante do ardor da sua ira?” (1.6, ARA). Essa questão recebeu sua resposta na adorável pessoa de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. Só ele podia “manter-se”. Somente um podia levar a maldição e ainda ressurgir como um vitorioso sobre ela. Somente um podia suportar toda a ira vingativa e, todavia, glorificar a lei e torná-la digna de honra. Somente um podia suportar que seu calcanhar fosse ferido por Satanás e contudo naquela ferida destruir a ele, que tinha o poder da morte. Deus sustentou um que era “poderoso” (Sl 89.19, ARA). Um que era ninguém menos que o Companheiro de Jeová, o resplendor da sua glória, a expressa imagem de sua pessoa[70].
Desse modo, vemos que o amor ilimitado, a justiça inflexível e o poder onipotente combinaram-se todos para tornar possível a salvação daqueles que crêem.
Na cruz, todas as nossas iniqüidades foram postas sobre Cristo e, portanto, o julgamento divino recaiu sobre ele. Não havia nenhum meio de transferência de pecado sem também transferir sua pena. Tanto o pecado quanto sua punição foram transferidos para o Senhor Jesus. Na cruz ele estava fazendo propiciação, e propiciação é apenas para com Deus. Era uma questão de ir de encontro aos reclames divinos de santidade; era uma questão de satisfazer as exigências de sua justiça. Não só foi o sangue de Cristo vertido por nós, mas também vertido para Deus: ele “se entregou a si mesmo por nós, em oferta e sacrifício a Deus, em cheiro suave” (Ef 5.2). Dessa forma, isso foi prefigurado na memorável noite da Páscoa no Egito: o sangue do cordeiro deve estar onde o olho de Deus o possa ver — “Vendo eu sangue, passarei por cima de vós”.[71]
A morte de Cristo na cruz foi uma morte maldita: “Cristo nos resgatou da maldição da lei, fazendo-se maldição por nós; porque está escrito: Maldito todo aquele que for pendurado no madeiro” (Gl 3.13). A “maldição” é alienação de Deus. Isso fica evidente pelas palavras que Cristo ainda dirá àqueles que estarão à sua esquerda no dia de seu poder — “Apartai-vos de mim, malditos”, ele dirá (Mt 25.41). A maldição é desterro da presença e glória divinas.
Isso explica o sentido de vários tipos do Antigo Testamento. O boi que era morto anualmente no Dia da Expiação, após seu sangue ter sido espargido sobre e diante do propiciatório, era removido para um lugar “fora (exterior) do arraial” (Lv 16.27) e ali seu cadáver era queimado por inteiro. Era no centro do acampamento que Deus tinha sua residência, e a exclusão do acampamento significava banimento de sua presença. Assim também com o leproso. “Todos os dias em que a praga estiver nele, será imundo; imundo está, habitará só; a sua habitação será fora do arraial” (Lv 13.46) — isso porque aquele era o tipo encarnado do pecador. Aqui, ainda, está o antítipo da “serpente de bronze”. Por que Deus instruiu Moisés a colocar uma “serpente” sobre uma haste, e ordenou aos israelitas mordidos para olhar para ela? [72] Imagine uma serpente como tipo de Cristo, o Santo de Deus! Sim, mas ela representava-o como “[feito] maldição por nós”, pois a serpente era a lembrança da maldição. Na cruz, então, Cristo estava cumprindo esses símbolos do Antigo Testamento. Ele estava “fora do arraial” (compare Hebreus 13.12) — separado da presença de Deus. Ele era o “leproso” — feito pecado por nós. Ele era como a “serpente de bronze” — feito maldição por nós. Daí, também, o profundo significado da coroa de espinhos — o símbolo da maldição! Levantado, coroado de espinhos, para mostrar que estava levando a maldição em nosso lugar.
Aqui, também, está a significação das três horas de trevas que cobriram a terra como uma mortalha de morte. Era uma escuridão sobrenatural. Não era noite, pois o sol estava em seu zênite. Como bem o disse o Sr. Spurgeon, “Fez-se meia-noite ao meio-dia”. Não foi eclipse algum. Os astrônomos competentes nos dizem que ao tempo da crucificação a lua estava à sua maior distância do sol. Mas esse brado de Cristo dá o sentido das trevas, enquanto que essas nos dão o significado daquele amargo brado. Somente uma coisa pode explicar tal escuridão, visto que uma coisa apenas pode interpretar tal clamor — que Cristo havia tomado o lugar dos culpados e perdidos, que ele se pôs no lugar para levar os pecados, que ele estava sofrendo o julgamento devido por seu povo, que ele que não conheceu pecado “[Deus] o fez pecado” por nós. Aquele brado foi proferido para que a nós fosse concedido saber do que se passava ali. Era a manifestação da expiação, por assim dizer, pois três (três horas) é sempre o número de manifestação. Deus é luz e as “trevas” é o sinal natural de sua repulsa. O Redentor foi deixado sozinho com o pecado do pecador: tal era a explicação das três horas de escuridão. Assim como repousará sobre o condenado eternamente uma dupla miséria no lago de fogo, a saber, a dor do sentido e a dor da perda; do mesmo modo, Cristo, em correspondência, sofreu a ira de Deus derramada sobre si e também o afastamento de sua presença e comunhão.
Para o crente a cruz é interpretada em Gálatas 2.20: “Estou crucificado com Cristo”. Ele foi o meu substituto; Deus considera-me um com o Salvador. Sua morte foi a minha. Ele foi ferido por minhas transgressões e ferido por minhas iniqüidades. O pecado não foi afastado, mas descartado. Como disse alguém: “Porque Deus julgou o pecado sobre o Filho, ele agora aceita o pecador crente no Filho”.
Nossa vida está escondida com Cristo em Deus (Cl 3.3). Eu estou encerrado em Cristo porque Cristo foi excluído de Deus.
Ele sofreu em nosso lugar, ele salvou seu povo assim; A maldição que caiu sobre sua cabeça, era por direito devida por nós. A tempestade que curvou sua bendita cabeça, é apaziguada para sempre agora E o descanso divino é meu no lugar, enquanto ele está coroado de glória. [73]
Aqui então está a base da nossa salvação. Nossos pecados foram levados. As reivindicações divinas contra nós foram plenamente satisfeitas. Cristo foi desamparado por Deus por um tempo para que pudéssemos desfrutar da sua presença para sempre. “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?” Que toda alma crente dê a resposta: ele adentrou as terríveis trevas para que eu pudesse andar na luz; ele bebeu o cálice de angústia para que eu pudesse beber o cálice de gozo; ele foi abandonado para que eu pudesse ser perdoado!

“Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?”

6. Aqui vemos a suprema evidência do amor de Cristo por nós.
“Ninguém tem maior amor do que este: de dar alguém a sua vida pelos seus amigos” (Jo 15.13). Mas a grandeza do amor de Cristo pode ser estimada somente quando estamos aptos a mensurar o que estava envolvido nesse “dar” a sua vida. Como vimos, significava muito mais do que a morte física, mesmo que essa fosse de indizível vergonha, e indescritível sofrimento. Significava que ele tinha de tomar o nosso lugar e ser feito “pecado” por nós, e o que isso envolvia só pode ser julgado à luz de sua pessoa.
Imagine uma mulher perfeitamente honrada e virtuosa forçada a suportar, por algum tempo, a associação com o que há de mais vil e impuro. Imagine-a encerrada num antro de iniqüidade, rodeada pelos mais grosseiros dentre os homens e as mulheres, e sem nenhum meio de escape. Você pode avaliar sua repulsa às blasfêmias de suas bocas sujas, à farra de embriaguez, à obscenidade dos arredores? Você pode formar uma opinião do que uma mulher pura sofreria em sua alma em meio a tal impureza? Mas a ilustração é, de longe, falha, pois não há nenhuma mulher absolutamente pura. Honrada, virtuosa, moralmente pura, sim, porém, pura no sentido de ser sem pecado, espiritualmente pura, não. Mas Cristo era puro; absolutamente puro. Ele era o Santo. Ele tinha uma infinita aversão ao pecado. Ele o aborrecia. Sua alma santa se esquivava dele. Mas, na cruz, nossas iniqüidades foram todas postas sobre ele, e o pecado — essa coisa vil — envolvia-se em torno dele como uma horrível serpente enrolada. E, contudo, ele de bom grado sofreu por nós! Por quê? Porque nos amou: “Como havia amado os seus, que estavam no mundo, amou-os até ao fim” (Jo 13.1).
Mas mais ainda: a grandeza do amor de Cristo por nós pode ser avaliada apenas quando somos capazes de medir a ira divina que foi derramada sobre ele. Era disso que sua alma se esquivava. O que isso significou para ele, o que custou a ele, pode se saber em parte por um minucioso exame dos salmos nos quais se nos permite ouvir algo de seus patéticos solilóquios e petições a Deus. Falando com antecipação, o próprio Senhor Jesus pelo Espírito clamou através de Davi:

“Livra-me, ó Deus, pois as águas entraram até à minha alma. Atolei-me em profundo lamaçal, onde se não pode estar em pé; entrei na profundeza das águas, onde a corrente me leva. Estou cansado de clamar; secou-se-me a garganta; os meus olhos desfalecem esperando o meu Deus.
Tira-me do lamaçal, e não me deixes atolar; seja eu livre dos que me aborrecem, e das profundezas das águas. Não me leve a corrente das águas e não me sorva o abismo, nem o poço cerre a sua boca sobre mim.
E não escondas o teu rosto do teu servo, porque estou angustiado; ouve-me depressa. Aproxima-te da minha alma, e resgata-a; livra-me por causa dos meus inimigos. Bem conheces a minha afronta, e a minha vergonha, e a minha confusão; diante de ti estão todos os meus adversários. Afrontas me quebrantaram o coração, e estou fraquíssimo. Esperei por alguém que tivesse compaixão, mas não houve nenhum; e por consoladores, mas não os achei.” (Sl 69.1-3, 14, 15, 17-20)
E outra vez: “Um abismo chama outro abismo, ao ruído das tuas catadupas; todas as tuas ondas e vagas têm passado sobre mim” (Sl 42.7). A aversão divina ao pecado sobreveio impetuosa e rebentou sobre o Portador do Pecado. Aguardando de modo expectante a terrível angústia da cruz, ele clamou através de Jeremias: “Não vos comove isto a todos vós que passais pelo caminho? Atendei, e vede, se há dor como a minha dor, que veio sobre mim, com que me entristeceu o Senhor, no dia do furor da sua ira” (Lm 1.12). Essas são algumas das passagens que nos sugerem e pelas quais podemos julgar o indizível horror com que o Santo contemplava aquelas três horas na cruz, horas nas quais estava condensado o equivalente a uma eternidade no inferno. O amado do Pai deve ter a luz da face de Deus ocultada dele; ele deve ser deixado sozinho nas trevas exteriores.
Aqui tinha amor incomparável e imensurável. “Se queres, passa de mim este cálice”, ele clamou. Mas não era possível que seu povo fosse salvo a menos que ele bebesse até a última gota daquele copo de desgraça e ira; e, porque não havia nenhum outro que podia bebê-lo, ele o fez. Bendito seja seu nome! Onde o pecado havia trazido o homem, o amor trouxe o Salvador.

“Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?”

7. Aqui vemos a destruição da “esperança maior”.
Esse clamor do Salvador prenuncia a condição final de toda alma perdida — abandonada por Deus! A fidelidade nos obriga a alertar o leitor acerca dos falsos ensinos de hoje. É-nos dito que Deus ama a todos, e que ele é misericordioso demais para em algum tempo levar a cabo as ameaças de sua palavra.
Exatamente como a antiga serpente argumentou com Eva. Deus tinha dito: “No dia em que dela comeres, certamente morrerás”. A serpente disse: “Certamente não morrereis”. Mas qual palavra evidenciou ser verdadeira? Não a do diabo, pois ele é mentiroso desde o princípio [74]. A ameaça divina foi cumprida, e nossos primeiros pais morreram espiritualmente no dia em que desobedeceram à sua ordem. Isso se provará também num dia vindouro.
Deus é misericordioso; o fato dele ter provido um Salvador, leitor, demonstra-o. O fato de que ele convida você para receber a Cristo como seu Salvador evidencia sua misericórdia. O fato de que ele é tão longânime com você, que suporta a sua obstinada rebelião até agora, que prolongou o seu dia de graça até o presente momento, prova-o. Mas há um limite para a sua misericórdia. O dia da misericórdia em breve findará. A porta de esperança em breve será trancada. A morte pode rapidamente ceifar a ti, e após essa vem “o juízo”.[75] E no Dia do Juízo Deus vai tratar com justiça e não com misericórdia. Ele vingará a misericórdia da qual você desdenhou. Ele executará a sentença de condenação já passada sobre você: “Quem não crer será condenado” (Mc 16.16).
Não repetiremos novamente o que já dissemos em detalhes; basta por ora lembrar o leitor mais uma vez como esse brado de Cristo testemunha do ódio divino ao pecado. Porque é justo e santo, Deus deve julgar o pecado onde quer que ele seja encontrado. Se então ele não poupou o Senhor Jesus quando o pecado foi achado sobre ele, que esperança pode haver, leitor não salvo, de que ele poupará a ti quando estiveres diante dele no grande trono branco com pecado sobre ti? Se Deus derramou sua ira em Cristo enquanto pendurado como fiador de seu povo, fique certo de que ele, com a mais absoluta certeza, derrama-la-á sobre você, se morrer em seus pecados. A palavra da verdade é explícita: “Aquele que não crê no Filho não verá a vida, mas a ira de Deus sobre ele permanece” (Jo 3.36). Deus “não poupou” seu próprio Filho quando tomou o lugar do pecador, e não poupará a quem rejeita o Salvador. Cristo ficou separado de Deus por três horas, e se você finalmente rejeitá-lo como seu Salvador, também o será, para sempre — “os quais sofrerão, como castigo, a perdição eterna, banidos da face do senhor” (2Ts 1.9, ARA).

“Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?”
Eis aqui um Brado de Desolação — Leitor, possa você nunca ecoá-lo.
Eis aqui um Brado de Separação — Leitor, possa você jamais experimentá-lo.
Eis aqui um Brado de Expiação — Leitor, possa você apropriar-se de suas virtudes salvíficas.

5. A PALAVRA DE SOFRIMENTO

“Sabendo Jesus que já todas as coisas estavam terminadas, para que a Escritura se cumprisse, disse: Tenho sede”
João 19.28
“TENHO SEDE”. Tais palavras foram faladas pelo Salvador padecente um pouco antes de ele curvar sua cabeça e render o espírito. Somente são registradas pelo evangelista João e, como podemos ver, é conveniente que elas devam ter lugar em seu evangelho, pois não apenas demonstram sua humanidade, mas também salientam sua glória divina.
“Tenho sede”. Que texto para um sermão! Um sermão curto e verdadeiro, e contudo quão abrangente, quão expressivo, e quão trágico! O Criador dos céus e da terra com os lábios ressecados! O Senhor da glória precisando de um gole de água! O Amado do Pai clamando, “Tenho sede!” Que cena! Que palavra, essa! Claramente, nenhuma pena não inspirada traçou um quadro desses.
Outrora o Espírito de Deus moveu Davi a dizer a respeito do Messias vindouro: “Deram-me fel por mantimento, e na minha sede me deram a beber vinagre” (Sl 69.21). Quão maravilhosamente completa foi a previsão da profecia! Nenhum item essencial lhe estava faltando. Todo detalhe importante da grande tragédia fora escrito de antemão. A traição por um amigo íntimo (Sl 41.9), a deserção dos discípulos por ficarem escandalizados com ele (Sl 31.11), a acusação falsa (Sl 35.11), o silêncio perante seus juízes (Is 53.7), sua ausência de culpa provada (Is 53.9), o ser contado entre os transgressores (Is 53.12), o ser crucificado (Sl 22.16), a zombaria dos espectadores (Sl 109.25), o escárnio pelo não-livramento (Sl 22.7, 8), o sorteio de suas vestes (Sl 22.18), a oração por seus inimigos (Is 53.12), o ser desamparado por Deus (Sl 22.1), a sede (Sl 69.21), o render de seu espírito nas mãos do Pai (Sl 31.5), os ossos não quebrados (Sl 34.20), o sepultamento na tumba de um rico (Is 53.9); tudo claramente predito séculos antes de se suceder. Que evidência convincente da inspiração divina das escrituras!
Quão firme fundamento vós, santos do Senhor, está posto para sua fé, na sua palavra excelente!
“Tenho sede”. O fato que está aqui registrado como uma das sete elocuções de nosso Senhor na cruz sugere que seja uma palavra de precioso significado, uma palavra para ser entesourada em nossos corações, uma palavra merecedora de prolongada meditação.
Temos visto que cada um dos ditos anteriores do Salvador padecente tem muito a nos ensinar e, certamente, esse não pode ser uma exceção. O que então podemos deduzir dele? Quais são as lições que essa quinta palavra da série nos ensina? Possa o Espírito da verdade iluminar nosso entendimento à medida que nos esforçamos para fixar nela nossa atenção.

“Tenho sede”

1. Temos aqui uma prova da humanidade de Cristo.
O Senhor Jesus era Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, mas também foi homem verdadeiro vindo de homem verdadeiro. Isso é algo para ser crido e não para que a orgulhosa razão sobre ele especule. A pessoa de nosso adorável Salvador não é um objeto adequado para a diagnose intelectual; antes, devemos nos curvar diante dele em adoração. Ele mesmo nos avisou: “Ninguém conhece o Filho, senão o Pai” (Mt 11.27). E outra vez o Espírito de Deus, através do apóstolo Paulo, declara: “E evidentemente é grande o mistério da piedade com que Deus se manifestou em carne” (1Tm 3.16, Vulgata [76]). Enquanto pois há muita coisa acerca da pessoa de Cristo que nos é insondável ao próprio entendimento, todavia, tudo que há sobre ele é para se admirar e prestar adoração: em primeiro lugar, sua deidade e humanidade, e a perfeita união dessas duas em uma única pessoa. O Senhor Jesus não foi um homem divino, nem um Deus humanizado; foi o Deus-homem. Para sempre Deus, e agora para sempre homem.
Quando o Amado do Pai encarnou-se, não cessou de ser Deus, nem pôs de lado nenhum de seus atributos divinos, ainda que tenha se despojado da glória que tinha com o Pai antes de haver o mundo. Mas na encarnação, o Verbo se fez carne e tabernaculou [77] entre os homens. Ele não deixou de ser tudo o que era anteriormente, mas tomou para si o que não tinha antes — humanidade perfeita.
A deidade e a humanidade do Salvador foram, cada uma delas, contempladas na predição messiânica. A profecia representava aquele que havia de vir, ora como divino, ora como humano. Ele era o “Renovo do Senhor” (Is 4.2). Ele era o Maravilhoso, o Conselheiro, o Deus forte, o Pai dos séculos (Hebreus [78]), o “Príncipe da paz” (Is 9.6). Aquele que haveria de sair de Belém e ser rei em Israel, era aquele cujas saídas são desde os dias da eternidade (Mq 5.2). Ele era ninguém menos do que o próprio Jeová que apareceria de repente no templo (Ml 3.1). Todavia, por outro lado, ele era a “semente” da mulher (Gn 3.15); um profeta como Moisés (Dt 18.18); um descendente da linhagem de Davi (2Sm 7.12,13). Ele era o “servo” de Jeová (Is 42.1). Ele era o “homem de dores” (Is 53.3). E é no Novo Testamento que nós vemos esses dois diferentes grupos de profecias harmonizados.
Aquele nascido em Belém era o Verbo divino. A Encarnação não significa que Deus se manifestou como um homem. O Verbo se fez carne; tornou-se o que não era antes, ainda que nunca cessasse de ser tudo o que fora anteriormente. Aquele que era em forma de Deus e que não teve por usurpação ser igual a Deus “aniquilou-se a si mesmo, tomando a forma de servo, fazendo-se semelhante aos homens” (Fp 2.6,7). O bebê de Belém era Emanuel — Deus conosco —, era mais do que uma manifestação de Deus, ele era Deus manifestado em carne. Era tanto Filho de Deus como Filho do Homem.
Não duas personalidades separadas, mas uma pessoa possuindo as duas naturezas — a divina e a humana.
Enquanto aqui na terra, o Senhor Jesus deu provas completas de sua divindade. Ele falava com sabedoria divina, ele agia em santidade divina, ele exibia poder divino, e ele mostrava amor divino. Ele lia as mentes dos homens, movia seus corações e compelia-os em suas vontades. Quando a ele agradava exercer seu poder, toda a natureza ficava sujeita ao seu mando. Uma palavra dele e a enfermidade saía, uma tempestade era acalmada, o demônio partia, o morto retornava à vida. Tão verdadeiramente era ele Deus manifesto em carne, que podia dizer: “Quem vê a mim vê o Pai”.[79]
Assim, também, quando tabernaculava entre os homens, o Senhor Jesus dava total prova de sua humanidade — humanidade sem pecado. Ele adentrou a esse mundo como bebê e estava envolto em panos (Lc 2.7). Quando criança, é-nos dito, ele “crescia... em sabedoria, e em estatura” (Lc 2.52). Quando menino, encontramo-lo “interrogando” os doutores (Lc 2.46). Quando homem, seu corpo esteve “cansado” (Jo 4.6). Ele “teve fome” (Mt 4.2). Ele dormiu (Mc 4.38). Ele ficou “admirado” (Mc 6.6). Ele “chorou” (Jo 11.35). Ele “orava” (Mc 1.35). Ele “se alegrou” (Lc 10.21). Ele “gemeu internamente” (Jo 11.33, Vulgata [80]). E aqui em nosso texto ele clamou: “Tenho sede”. Isso demonstrava sua humanidade. Deus não tem sede. Os anjos também não. Não a teremos na glória:
“Nunca mais terão fome, nunca mais terão sede” (Ap 7.16). Mas temos sede agora, porque somos humanos e estamos vivendo num mundo de dor. E Cristo ficou sedento porque era homem: “Pelo que convinha que em tudo fosse semelhante aos irmãos” (Hb 2.17).

“Tenho sede”

2. Vemos aqui a intensidade dos sofrimentos de Cristo.
Vamos primeiro considerar esse brado do Salvador como uma expressão de seu sofrimento corporal. Para perceber algo do que há por trás de tais palavras devemos relembrar e rever o que as precede. Após instituir a Ceia no cenáculo, seguida pelo longo discurso pascal a seus apóstolos, o Redentor transferiu-se para o Getsêmane e ali, por uma hora, passou pela mais excruciante agonia. Sua alma estava extremamente triste. Enquanto ele contemplava o terrível cálice dele escorria, não suor, mas grandes gotas de sangue.
Sua luta no Jardim foi finda com o aparecimento do traidor acompanhado pelo bando que viera prendê-lo. Ele foi trazido perante Caifás e, ainda que fosse metade da noite, foi examinado e condenado. O Salvador foi retido até de manhã cedo, e após as fatigantes horas de espera haverem terminado, foi levado para diante de Pilatos. Seguindo um longo julgamento, ordens foram dadas para que se o açoitassem. Em seguida, foi conduzido, talvez atravessando direto pela cidade, à corte de julgamento de Herodes e, depois de uma breve aparição perante esse prelado romano, foi entregue às mãos dos brutais soldados. Novamente foi ele escarnecido e chicoteado, e outra vez foi levado através da cidade, de volta a Pilatos. Mais uma vez houve a enfadonha demora, as formalidades de um julgamento, se é que uma tal farsa seja merecedora desse nome, seguida pela sentença de morte dada.
Então, com as costas sangrando, carregando sua cruz sob o calor do sol do já quase meio-dia, ele caminhou até às escarpadas alturas do Gólgota. Atingindo o lugar designado da execução, suas mãos e pés foram pregados ao madeiro. Por três horas ele ficou ali pendurado com os inclementes raios solares incidindo sobre sua cabeça coroada de espinhos. Isso foi seguido pelas três horas de trevas que agora o cobria.
Aquela noite e aquele dia foram horas nas quais uma eternidade foi condensada. Todavia, durante toda ela, nem uma só palavra de murmuração passou em seus lábios. Não havia queixa alguma, nenhum rogo por misericórdia. Todos os seus sofrimentos foram suportados em augusto silêncio. Como uma ovelha muda perante seus tosquiadores, ele não abriu a sua boca.[81] Mas agora, no fim, seu corpo arruinado, dorido, sua boca ressecada, ele clama, “Tenho sede”. Não foi um apelo por compaixão, nem um pedido pela mitigação de seus sofrimentos; ele expressou a intensidade das agonias por que estava passando.
“Tenho sede”. Isso era mais do que a sede comum. Era algo mais profundo do que os sofrimentos físicos por detrás dela. Uma comparação cuidadosa de nosso texto com o de Mateus 27.48 mostra tais palavras “Tenho sede” seguidas imediatamente após a quarta elocução de nosso Salvador na cruz — “Eli, Eli, lama sabactâni” — pois enquanto o soldado estava pressionando a esponja embebida em vinagre nos lábios do padecente, alguns dos espectadores gritaram: “Deixa, vejamos se Elias vem livrá-lo”. Todos sabemos que as provações internas da alma reagem no corpo, destruindo os nervos e afetando o vigor — “O espírito abatido virá a secar os ossos” (Pv 17.22); “Enquanto eu me calei, envelheceram os meus ossos pelo meu bramido em todo o dia. Porque de dia e de noite a tua mão pesava sobre mim; o meu humor se tornou em sequidão de estio” (Sl 32.3,4). O corpo e a alma são solidários um com o outro. Lembremo-nos de que o Salvador havia acabado de emergir das três horas de trevas, durante as quais a face de Deus havia se retirado dele enquanto sofria a fúria de sua ira derramada. Esse grito de sofrimento do corpo diz-nos, então, da severidade do conflito espiritual que ele tinha acabado de passar! Falando com antecedência pela boca de Jeremias dessa hora mesma, ele disse: “Não vos comove isto a todos vós que passais pelo caminho? atendei, e vede, se há dor como a minha dor, que veio sobre mim, com que me entristeceu o Senhor, no dia do furor da sua ira. Desde o alto enviou fogo a meus ossos, o qual se assenhoreou deles; estendeu uma rede aos meus pés, fez-me voltar para trás, fez-me assolada e enferma todo o dia” (Lm 1.12,13). Sua “sede” foi o efeito da agonia de sua alma no feroz calor da ira divina. Falava da seca da terra onde o Deus vivo não está. Mais ainda: claramente expressava seu anelo por comunhão novamente com ele, de quem ficara separado por três horas. Não foi o próprio Cristo quem disse, pelo espírito de profecia, e o faz agora, assim que emergiu das trevas: “Como o cervo brama pelas correntes de águas, assim suspira a minha alma por ti, ó Deus! A minha alma tem sede de Deus, do Deus vivo: quando entrarei e me apresentarei ante a face de Deus?” Não identificam as palavras seguintes quem fala e não revelam elas o tempo em que aquele anelo e “suspiro” foram expressos? “As minhas lágrimas servem-me de mantimento de dia e de noite, porquanto me dizem constantemente: Onde está o teu Deus?” (Sl 42.1-3).

“Tenho sede”

3. Aqui vemos a profunda reverência de nosso Senhor pelas escrituras.
Quão constantemente a mente do Salvador se voltava aos oráculos sagrados! Ele de fato vivia de toda a palavra que sai da boca de Deus.[82] Era o “Bem-aventurado Homem” que meditava na lei de Deus “de dia e de noite” (Sl 1). A palavra escrita era o que formava seus pensamentos, preenchia o seu coração, e regulava os seus caminhos. As escrituras são a vontade do Pai transcrita, e essa foi sempre o seu deleite. Na tentação, aqueles escritos foram sua defesa. Em seu ensino os estatutos do Senhor foram sua autoridade. Em suas controvérsias com os escribas e fariseus, sempre apelou à lei e ao testemunho.[83] E agora, na hora da morte, sua mente permanecia na palavra da verdade.
A fim de alcançar a força principal dessa quinta elocução do Salvador na cruz, devemos reparar em seu contexto: “Sabendo Jesus que já todas as coisas estavam terminadas, para que a Escritura se cumprisse, disse: Tenho sede” (Jo 19.28). A referência é ao Salmo 69 — mais um dos salmos messiânicos que descrevem tão vividamente sua paixão. No espírito de profecia, havia declarado: “Deram-me fel por mantimento, e na minha sede me deram a beber vinagre” (v. 21). Isso ainda estava sem ser concluído. As predições dos versículos precedentes já tinham recebido seu cumprimento. Ele já havia atolado no “profundo lamaçal” (v. 2); ele havia sido aborrecido “sem causa” (v. 4); ele havia “suportado afrontas” e confusão (v. 7); ele havia se “tornado como um estranho” para os seus irmãos (v. 8); ele havia se tornado “um provérbio” para os seus injuriadores, e “a canção dos bebedores de bebida forte” (vv. 11,12); ele havia “clamado a Deus” em sua angústia (vv. 17-20) — e agora nada mais faltava senão oferecer a ele a bebida de vinagre e fel, e a fim de cumprir isso foi que ele bradou: “Tenho sede”.
“Sabendo Jesus que já TODAS as coisas estavam terminadas, para que a Escritura se cumprisse, disse: Tenho sede”. Quão completamente calmo estava o Salvador! Ele estava pendurado naquela cruz por seis horas e havia passado por sofrimento sem paralelo, e contudo sua mente está clara e sua memória intacta. Tinha diante de si, com perfeita distinção, toda a palavra divina. Ele revisava o escopo todo da predição messiânica. Ele lembra-se de que há uma profecia escriturística que não foi levada a cabo. Ele não passou por cima de nada. Que prova essa de que ele era divinamente superior a todas as circunstâncias!
Antes de prosseguirmos devemos brevemente indicar uma aplicação para nós mesmos. Temos observado como o Salvador se curvou à autoridade da escritura tanto na vida quanto na morte; leitor cristão, como isso se dá contigo? O livro divino é a corte final de apelação a você? Você descobre nela uma revelação da mente e da vontade de Deus concernente a você? Ela é uma lâmpada para os seus pés? [84] Ou seja, você está andando em sua luz? [85] Os seus mandamentos são obrigatórios para você?
Você está realmente obedecendo-a? Você pode dizer com Davi, “Escolhi o caminho da verdade; propus-me seguir os teus juízos. Apego-me aos teus testemunhos... Considerei os meus caminhos, e voltei os meus pés para os teus testemunhos. Apressei-me, e não me detive, a observar os teus mandamentos” (Sl 119.30,31,59,60)? Você, como o Salvador, está ansioso por cumprir as escrituras? Ó, possam o escritor e o leitor buscar graça para orar de coração: “Faze-me andar na vereda dos teus mandamentos, porque nela tenho prazer. Inclina o meu coração a teus testemunhos... Ordena os meus passos na tua palavra, e não se apodere de mim iniqüidade alguma” (Sl 119.35,36,133).

“Tenho sede”


4. Vemos aqui a submissão do Salvador à vontade do Pai.
O Salvador estava com sede, e aquele que tinha tal sede, lembremos, possuía todo o poder no céu e na terra.[86] Houvesse ele escolhido exercitar sua onipotência, poderia prontamente ter satisfeita a sua necessidade. Aquele que outrora fizera a água fluir da rocha ferida para saciar Israel no deserto,[87] tinha os mesmos recursos infinitos à sua disposição agora. Aquele que tornara a água em vinho com uma palavra,[88] poderia ter dito a palavra de poder aqui, e satisfazer a sua necessidade. Mas ele, em nenhuma vez, operou um milagre para seu próprio benefício ou conforto. Quando tentado por Satanás para assim agir, recusou. Por que agora ele declina de atender a sua premente necessidade? Por que pendia na cruz com os lábios ressecados? Porque no princípio do livro que expressava a vontade divina, estava escrito que ele devia ter sede, e que, sedento, devia lhe ser “dado” vinagre para beber. E ele aqui veio para fazer aquela vontade e, por isso, se submete.
Na morte, como na vida, a escritura foi para o Senhor Jesus a palavra autorizada do Deus vivo. Na tentação, recusara-se a ministrar à sua necessidade à parte daquela palavra pela qual ele vivia 90 e assim, agora, ele faz conhecida sua necessidade, não para que se pudesse ministrar a ela, mas para que a escritura pudesse ser cumprida. Note que ele mesmo não a cumpriu, a Deus pode ser confiado que cuide disso; mas ele dá expressão à sua angústia de modo a fornecer ocasião para o seu cumprimento. Como alguém disse: “A terrível sede da crucificação está sobre ele, mas que não é suficiente para forçar seus lábios ressecados para falar; mas está escrito: Na minha sede me deram a beber vinagre — isso abre os seus lábios” (F. W. Grant). Aqui, então, como sempre, ele mostra a si mesmo em ativa obediência à vontade de Deus, a qual ele veio para executar. Ele simplesmente diz, “Tenho sede”; o vinagre é oferecido, e a profecia é cumprida. Que perfeita absorção na vontade do Pai!
Novamente damos uma pausa para a aplicação a nós mesmos — uma aplicação dupla. Primeiro, o Senhor Jesus se deleitava na vontade do Pai mesmo quando envolvia o sofrimento da sede. Nós fazemos esse tipo de renúncia para ele? Temos nós buscado graça para dizer: “Não se faça a minha vontade, mas a tua”? [89] Podemos nós exclamar, “Sim, ó Pai, porque assim te aprouve”? [90] Temos nós aprendido em qualquer estado que seja a “viver contente” (Fp 4.11)?
Mas agora, observe um contraste. Ao Filho de Deus foi negado um copo de água fria para aliviar seu sofrimento — quão diferente conosco! Deus nos tem dado uma variedade de alívios para nós, todavia, quão freqüentemente somos mal-agradecidos! Temos coisas melhores para nos deliciar do que um copo d’água quando estamos sedentos, entretanto, amiúde não somos gratos. Ó, se esse brado de Cristo fosse com mais credulamente considerado, levar-nos-ia a bendizer a Deus pelo que nós agora quase desprezamos, e geraria contentamento em nós pela mais comum das misericórdias. O Senhor da glória clamou, “Tenho sede” e nada teve à sua volta para confortá-lo, e tu, que tens mil vezes perdido todo direito às misericórdias tanto temporais quanto espirituais, menosprezas as bondades comuns da providência! Quê! murmuras de um copo de água, tu que mereces senão um copo de ira. Ó, ponha isso no coração e aprenda a se contentar com o que tens, ainda que seja mesmo as necessidades mais simples da vida. Não se queixe se você mora apenas em uma humilde cabana, pois seu Salvador não tinha onde reclinar a cabeça [91]! Não se queixe se você não tem nada senão pão para comer, pois a seu Salvador faltou isso por quarenta dias [92]! Não se queixe se você tem apenas água para beber, pois a seu Salvador ela foi negada até na hora da morte!

“Tenho sede”

5. Vemos aqui como Cristo pode se solidarizar com seu povo sofredor.
O problema do sofrimento sempre foi um que causou perplexidade. Por que o sofrimento deve ser necessário em um mundo que é governado por um Deus perfeito? Um Deus que não apenas tem poder para impedir o mal, mas que é amor.[93] Por que deve haver dor e desgraça, doença e morte? À medida que olhamos o mundo e tomamos conhecimento de suas incontáveis pessoas que sofrem, ficamos desconcertados. Esse mundo não é senão um vale de lágrimas. Uma fina aparência de alegria raramente tem êxito em esconder os tristes fatos da vida. Filosofar sobre o problema do sofrimento traz [94] parco alívio. Após todos os nossos raciocínios, perguntamos, Deus vê? Há conhecimento no Altíssimo? [95] Ele realmente se importa? Como todas as questões, essas devem ser levadas à cruz. Enquanto não acham elas uma resposta completa, entretanto elas encontram sim aquela que satisfaz o coração ansioso. Enquanto o problema do sofrimento não é plenamente resolvido aqui, todavia a cruz lança sim luz suficiente sobre ele para aliviar a tensão. A cruz mostra-nos que Deus não ignora nossas dores, pois na pessoa de seu Filho ele mesmo “tomou sobre si as nossas enfermidades, e as nossas dores” (Is 53.4, ARA)! A cruz nos mostra que Deus não está desatento às nossa tristeza e angústia, pois, ao se encarnar, ele próprio sofreu! A cruz diz-nos que Deus não é indiferente à dor, pois no Salvador ele a experimentou!
Qual então o valor de tais fatos? Este: “Porque não temos um sumo sacerdote que não pode compadecer-se das nossas fraquezas; porém um que, como nós, em tudo foi tentado, mas sem pecado” (Hb 4.15). Nosso Redentor não é alguém tão afastado de nós que seja incapaz de entrar, solidariamente, em nossas tristezas, pois ele mesmo foi o “Homem de Dores”.[96] Aqui então está o conforto para o coração dorido. Não importa quão desalentado possa estar você, não importa quão escarpada a sua senda e triste o seu quinhão, você é convidado a pô-lo todo diante do Senhor Jesus e lançar todo seu cuidado sobre ele, sabendo que “tem cuidado de vós” (1Pd 5.7). O seu corpo está arruinado pela dor? Assim estava o dele! Você é mal interpretado, julgado injustamente, deturpado? Assim era ele! Aqueles que lhe são mais próximos e mais queridos deram às costas a você? Fizeram isso com ele! Você está em trevas? Ele esteve assim por três horas! “Pelo que convinha que em tudo fosse semelhante aos irmãos, para ser misericordioso e fiel sumo sacerdote” (Hb 2.17).

“Tenho sede”

6. Vemos aqui a expressão de uma necessidade universal.
Quer o homem natural, o mundano, articule-o ou não, seu clamor é, “Tenho sede”. Porque esse desejo consumidor para adquirir bens? Por que esse desejo ardente pelas honras e aplausos do mundo? Por que essa corrida louca por prazer, indo de uma forma a outra dele com diligência persistente e incansável? Por que essa busca ávida por sabedoria — essa investigação científica, esse empenho da filosofia, esse saque aos manuscritos dos antigos, e essa experimentação incessante dos homens modernos? Por que essa loucura por aquilo que é novo? Por quê? Porque há uma voz de dor na alma.
Porque há algo remanescente no homem natural que não está satisfeito. Isso é verdadeiro tanto para o milionário quanto para o camponês do interior que nunca esteve fora dos limites de sua terra: viajando de um extremo a outro da terra e fazendo-o outra vez, não consegue descobrir o segredo da paz. Sobre tudo o que as cisternas deste mundo fornecem está escrito nas letras da verdade inefável: “Qualquer que beber desta água tornará a ter sede” (Jo 4.13). Assim se dá com o homem ou a mulher religiosos: queremos dizer, os religiosos sem Cristo. Quantos há que vão pelo fatigante ciclo das ações religiosas, e nada encontram que satisfaça suas profundas necessidades! Eles são membros de uma denominação evangélica, freqüentam a igreja com regularidade, contribuem com seus recursos para o sustento do pastor, lêem suas Bíblias ocasionalmente, e algumas vezes oram, ou, se usam um “livro de orações”, dizem-nas toda noite. E contudo, afinal de contas, se eles são honestos, seu clamor ainda é, “Tenho sede”.
A sede é uma sede espiritual; eis o porquê das coisas naturais não poder matá-la. Desconhecido deles mesmos, sua alma “tem sede de Deus” (Sl 42.2). Deus nos fez, e só ele pode nos satisfazer. Disse o Senhor Jesus: “Aquele que beber da água que eu lhe der nunca terá sede” (Jo 4.14). Apenas Cristo pode saciar a nossa sede. Apenas ele pode satisfazer a profunda necessidade dos nossos corações. Apenas ele pode comunicar aquela paz de que o mundo nada sabe e nem a pode conceder ou tirar. Ó leitor, uma vez mais eu me dirijo a tua consciência. Como está ela contigo? Descobriste que tudo debaixo do sol é somente vaidade e aflição de espírito? [97] Descobriste que as coisas terrenas são incapazes de satisfazer a seu coração? É o brado de sua alma, “Tenho sede”? Então, não são boas notícias ouvir que há alguém que pode satisfazer a ti? Dissemos alguém, não um credo, não uma forma de religião, mas uma pessoa — uma pessoa viva, divina. Ele é o que diz: “Vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei” (Mt 11.28). Atente então a esse doce convite. Venha a ele agora, assim como estás. Venha em fé, crendo que ele te receberá, e então cantarás:

Vim a Jesus como estava,
Farto, cansado, e triste;
Nele encontrei um lugar de descanso,
E ele me tornou alegre.[98]

Ó, venha a Cristo. Não se detenha. Você tem “sede”? Então você é aquele que está buscando: “Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque eles serão fartos” (Mt 5.6).
Leitor não salvo, não rejeite o Salvador, pois se você morrer em seus pecados seu clamor para todo o sempre será, “Tenho sede”. Esse é o lamento do condenado eternamente. No lago de fogo o perdido sofrerá entre as chamas da ira divina por toda a eternidade. Se Cristo clamou “Tenho sede” quando padecia da ira de Deus só por três horas, qual o estado daqueles que terão de suportá-la eternamente! Quando milhões de anos tiverem se passado, mais dez milhões haverá à frente. Há uma sede perene no inferno, que não admite alívio algum. Lembre-se das pavorosas palavras do homem rico: “E, clamando, disse: Pai Abraão, tem misericórdia de mim, e manda a Lázaro, que molhe na água a ponta do seu dedo e me refresque a língua, porque estou atormentado nesta chama” (Lc 16.24). Ó, meu leitor, pense. Se a sede física extrema é insuportável mesmo quando suportada por algumas poucas horas, como será aquela sede que está infinitamente além de qualquer sede do presente, e que nunca será saciada! Não diga que é cruel da parte de Deus lidar desse modo com suas criaturas que erram. Lembre ao que ele expôs seu querido Filho, quando o pecado lhe foi imputado — seguramente, aquele que despreza a Cristo é merecedor do mais quente lugar no inferno! Dizemo-lo outra vez, Receba-o agora como seu. Receba-o como seu Salvador, e submeta-se a ele como seu Senhor.

“Tenho sede”

7. Aqui vemos a declaração de um princípio permanente.
Há um sentido, um sentido real, em que Cristo ainda tem sede. Ele está sedento pelo amor e pela devoção dos seus. Ele anseia pela companhia do povo que comprou com seu sangue [99]. Eis aqui uma das grandes maravilhas da graça — um pecador redimido pode oferecer aquilo que satisfaz o coração de Cristo! Posso compreender como devo apreciar seu amor, mas quão maravilhoso que ele — o todo-suficiente — deva apreciar o meu! Eu aprendi quão abençoada é para minha alma a comunhão com ele, mas quem suporia que minha comunhão fosse bendita para Cristo! Todavia o é. Por isso ele ainda “tem sede”. A graça nos capacita a oferecer aquilo que o refrigera. Maravilhoso pensamento!
Você já reparou em João 4 que, embora Cristo dissesse à mulher que veio ao poço, “Dáme de beber” — pois ele assentou-se ali “cansado” da viagem e do calor — que ele nunca tomou um gole de água? Na salvação e na fé daquela mulher samaritana ele achou aquilo que refrescou seu coração! O amor nunca fica satisfeito até que haja uma resposta e amor em troca! Assim o é com Cristo. Aqui está a chave para Apocalipse 3.20: “Eis que estou à porta, e bato: se alguém ouvir a minha voz, e abrir a porta, entrarei em sua casa, e com ele cearei, e ele comigo”.
Isso é amiúde aplicado ao não salvo, mas sua referência principal é à Igreja. Descreve se Cristo buscando a companhia dos seus. Ele fala de “cear”, e na escritura isso sempre simboliza comunhão, da mesma forma que a Ceia do Senhor é uma oportunidade especial de comunhão entre o Salvador e o salvo. E observe nessa passagem que Cristo fala de uma dupla ceia — “entrarei em sua casa, e com ele cearei, e ele comigo”. Não somente é nosso inefável privilégio cear e comungar com ele, deleitarmo-nos nele, mas ele “ceia” conosco. Ele encontra em nossa comunhão algo com que alimentar seu coração, algo que o alivia, e esse algo é a nossa devoção e o nosso amor. Sim, o Cristo de Deus ainda “tem sede”, sede pela afeição dos seus. Ó, não oferecerá você algo que a ele satisfaça? Responda então ao apelo dele: “Põe-me como selo sobre o teu coração” (Ct 8.6).


6. A PALAVRA DE VITÓRIA

“E, quando Jesus tomou o vinagre, disse: Está consumado”
João 19.30

NOSSOS DOIS ÚLTIMOS ESTUDOS se ocuparam com a tragédia da cruz; porém, voltamo-nos agora para o seu triunfo. Nestas palavras, “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?” ouvimos o brado de desolação do Salvador; em “Tenho sede”, escutamos seu clamor de lamentação; agora, chega aos nossos ouvidos seu brado de júbilo — “Está consumado”. Das palavras da vítima voltamo-nos agora às palavras do conquistador. Um provérbio diz que toda nuvem tem seu interior prateado: deu-se assim com a mais escura de todas as nuvens. A cruz de Cristo tem dois grandes lados: ela mostrou a grande profundidade de sua humilhação, mas também assinalou o objetivo da Encarnação, e mais, falou da consumação de sua missão, e forma ela a base de nossa salvação.
“Está consumado”. Os antigos gregos orgulhavam-se de serem capazes de dizer muita coisa falando pouco — “dar um mar de assunto em uma gota de linguagem” era tido como a perfeição em oratória. O que eles buscavam é encontrado aqui. “Está consumado”, no original, é apenas uma palavra,[100] todavia, nessa palavra está contido o evangelho de Deus; nessa palavra está contido o fundamento da segurança do crente; nessa palavra é descoberta a essência de todo gozo, bem como o próprio espírito de toda consolação divina.
“Está consumado”. Isso não foi o grito de desespero de um mártir desamparado; não foi uma expressão de satisfação pelo término de seus sofrimentos haver então chegado; não foi o último suspiro de uma vida que se findava. Não, antes foi a declaração da parte do divino Redentor de que tudo pelo qual ele viera do céu à terra para fazer, estava agora feito; que tudo que era necessário para revelar o completo caráter de Deus agora se tinha concluído; que tudo que era requerido pela lei antes que os pecadores pudessem ser salvos tinha agora sido realizado: que o preço da nossa escravidão foi pago para a nossa redenção.
“Está consumado”. O grande propósito divino na história do homem era agora efetuado — efetuado de jure tanto quanto ainda o será de facto. Desde o princípio, a intenção de Deus foi sempre uma e indivisível. Foi declarada aos homens de várias maneiras: em símbolo e tipo, por misteriosos sinais e por claras sugestões, mediante predição messiânica e mediante declaração didática. Esse seu propósito pode ser assim resumido: mostrar sua graça e engrandecer seu Filho criando filhos a sua própria imagem e glória. E na cruz o fundamento que foi posto era para que isso se tornasse possível e real.
“Está consumado”. O que está consumado? A resposta a tal questão é uma resposta mui abundante de significado, ainda que vários excelentes expositores procurem limitar o escopo de tais palavras e confiná-las estritamente a uma única aplicação. É-nos dito que foram consumadas as profecias que diziam respeito aos sofrimentos do Salvador, e que ele se referia apenas a isso. Admite-se de pronto que a referência imediata era às predições messiânicas, todavia, pensamos que há razões boas e suficientes para não confinar as palavras de nosso Senhor a elas. Sim, para nós parece certo que Cristo se referia especialmente à sua obra sacrificial, pois toda escritura acerca de seu sofrimento e vergonha não estava cumprida. Ainda restava entregar seu espírito nas mãos do Pai (Sl 31.5); ainda restava o “traspassar” com a lança (Zc 12.10: e repare que a palavra utilizada para o traspassar de suas mãos e pés — o ato de crucificação — no Sl 22.16 é diferente [101]); ainda restava serem seus ossos preservados sem quebra (Sl 34.20), e o enterro no sepulcro do homem rico (Is 53.9).
“Está consumado”. O que estava consumado? Respondemos, sua obra sacrificial. É verdade que havia ainda o ato da própria morte, que era necessária para fazer a expiação. Porém, como se dá freqüentemente no Evangelho de João — onde se encontra nosso texto — (cf. Jo 12.23,31; 13.31; 16.5; 17.4), o Senhor fala aqui antecipadamente da conclusão de sua obra. Além disso, deve ser lembrado que as três horas de trevas já haviam passado, o terrível cálice já havia sido sorvido até à última gota, seu precioso sangue já tinha sido vertido, a ira divina derramada já havia sido suportada; e esses são os principais elementos para se fazer a propiciação. A obra sacrificial do Salvador, então, estava completada, com exceção apenas do ato de morte que se seguiu imediatamente. Mas, como veremos, a consumação daquela obra pôs fim a várias coisas, e a elas voltaremos a nossa atenção.

“Está consumado”


1. Aqui vemos efetuado o cumprimento de todas as profecias que foram escritas sobre ele antes que viesse a morrer.
Esse é o pensamento imediato do contexto: “Quando Jesus tomou o vinagre, disse: Está consumado” (Jo 19.30). Séculos antes, os profetas de Deus tinham descrito passo a passo a humilhação e o sofrimento por que o Salvador vindouro deveria passar. Uma por uma das profecias haviam sido cumpridas, maravilhosamente cumpridas, cumpridas ao pé da letra. Havia profecia que declarava que ele deveria vir da “semente da mulher” (Gn 3.15): então, ele veio “nascido de mulher” (Gl 4.4). Havia profecia que anunciava que sua mãe seria uma “virgem” (Is 7.14): então foi ela literalmente cumprida (Mt 1.18). Havia profecia que revelava que ele deveria ser da semente de Abraão (Gn 22.18): então, observe seu cumprimento (Mt 1.1). Havia profecia que fazia saber que ele deveria ser da linhagem de Davi (2Sm 7.12,13): então tal se deu em realidade (Rm 1.3). Havia profecia que dizia que ele receberia seu nome antes de nascer (Is 49.1): então assim se sucedeu (Lc 1.30,31). Havia profecia que previa que ele deveria nascer em Belém de Judá (Mq 5.2): observe então como essa aldeia mesma foi de fato sua terra natal. Havia profecia que alertava de antemão que seu nascimento acarretaria desgosto para outros (Jr 31.15): então, contemple seu trágico cumprimento (Mt 2.16-18). Havia profecia que mostrava com antecedência que o Messias deveria aparecer antes que o cetro da ascendência de Judá sobre as demais tribos tivesse dela partido (Gn 49.10); então assim foi, pois ainda que as dez tribos estivessem cativas, Judá ainda estava na terra na época de seu advento. Havia profecia que aludia à fuga para o Egito e ao subseqüente retorno para a Palestina (Os 11.1 e cf. Is 49.3,6): então, assim aconteceu (Mt 2.14,15).
Havia profecia que fazia menção de um que viria antes de Cristo para aprontar seu caminho (Ml 3.1): então, veja seu cumprimento na pessoa de João Batista. Havia profecia que dava a conhecer que no aparecimento do Messias “os olhos dos cegos serão abertos, e os ouvidos dos surdos se abrirão. Então os coxos saltarão como cervos, e a língua dos mudos cantará” (Is 35.5,6): então, leia de uma ponta a outra os quatro evangelhos e veja de quão bendita maneira isso se provou verdadeiro. Havia profecia que falava dele como “pobre e necessitado” (Sl 40.17 — vide início do salmo): então, contemple-o não tendo onde reclinar a cabeça. Havia profecia que sugeria que ele falaria em “parábolas” (Sl 78.2): então tal foi amiúde seu método de ensino. Havia profecia que o representava acalmando a tempestade (Sl 107.29): então, isso foi exatamente o que ele fez.[102] Havia profecia que proclamava sua “entrada triunfal” em Jerusalém (Zc 9.9): então assim se sucedeu.
Havia profecia que anunciava que sua pessoa deveria ser desprezada (Is 53.3); que ele deveria ser rejeitado pelos judeus (Is 8.14); que ele deveria ser aborrecido “sem causa” (Sl 69.4): então, é triste dizê-lo, tal foi precisamente o caso. Havia profecia que pintava o quadro inteiro de sua degradação e crucificação — então, foi ele vividamente reproduzido. Houvera a traição por um amigo íntimo, a deserção por seus queridos discípulos, o ser levado ao matadouro, o ser levado a julgamento, o aparecimento de falsas testemunhas contra si, a recusa de sua parte de se defender, a demonstração de sua inocência, a condenação injusta, a pena de morte sentenciada sobre si, o traspassamento literal de suas mãos e pés, o ser contado entre os transgressores, a zombaria da multidão, o lançar sortes sobre suas vestes — tudo predito séculos antes, e tudo cumprido ao pé da letra. A última profecia de todas que ainda restava antes de encomendar seu espírito às mãos do Pai tinha agora sido cumprida. Ele clamou, “Tenho sede”, e após o oferecimento de vinagre e fel tudo estava agora “concluído”; e, quando o Senhor Jesus reviu o inteiro escopo da palavra profética e viu sua completa realização, ele bradou, “Está consumado”!
Somente nos resta assinalar que, enquanto houve um grupo todo de profecias que tinha de se dar no primeiro advento do Salvador, assim também há um outro que tem de acontecer em seu segundo advento — o último, tão definido, pessoal e completo em seu escopo quanto o primeiro. Assim como vemos o real cumprimento daquelas que tinham de ocorrer em sua primeira vinda à terra, também podemos aguardar com absoluta confiança e segurança o cumprimento daquelas que terão lugar em sua segunda vinda. E, como vimos que o primeiro grupo de profecias foi cumprido literal, real e pessoalmente [103], também devemos esperar que o último o seja. Admitir o cumprimento literal do primeiro, e então procurar espiritualizar e simbolizar o último, é não apenas grosseiramente inconsistente e ilógico, mas altamente pernicioso para nós e profundamente desonroso a Deus e à sua palavra.

“Está consumado”

2. Vemos aqui o término de seus sofrimentos.
E qual língua ou pena pode descrever os sofrimentos do Salvador? Ó, que angústia inexprimível, física, mental e espiritual que ele suportou! Apropriadamente foi ele designado “o Homem de Dores”. Sofrimentos nas mãos dos homens, nas mãos de Satanás e nas mãos de Deus. Dor infligida tanto pelos inimigos quanto pelos amigos. Desde o início ele caminhou entre as sombras que a cruz lançava de través sobre seus passos. Ouça seu lamento: “Estou aflito e prestes a morrer desde a minha mocidade” (Sl 88.15). Que luz isso lança sobre seus primeiros anos! Quem pode dizer quanto está contido nessas palavras? Para nós, um véu impenetrável está lançado sobre o futuro; nenhum de nós sabe o que um dia pode causar. Mas o Salvador conhecia o fim desde o começo!
Alguém apenas precisa ler os evangelhos para saber como a terrível cruz esteve sempre perante ele.
Nas bodas de Cana, onde tudo era alegria e divertimento, ele faz solene referência à sua “hora” que ainda não viera.[104] Quando Nicodemos o entrevistou à noite, o Salvador aludiu ao levantamento do Filho do homem.[105] Quando Tiago e João vieram lhe pedir dois lugares de honra em seu reino vindouro, ele fez menção ao “cálice” que ele tinha de tomar e ao “batismo” com que deveria ele ser batizado.[106]
Quando Pedro confessou que ele era o Cristo, o Filho do Deus vivo, ele voltou-se para os seus discípulos e começou a lhes mostrar “que convinha ir a Jerusalém, e padecer muito dos anciãos, e dos principais dos sacerdotes, e dos escribas, e ser morto, e ressuscitar ao terceiro dia” (Mt 16.21). Quando Moisés e Elias ficaram diante dele no monte da transfiguração, foi para falar “da sua morte, a qual havia de cumprir-se em Jerusalém”.
Se é verdade que somos bem incapazes de avaliar os sofrimentos de Cristo devido à antecipação da cruz, menos ainda podemos sondar a pavorosa realidade da própria. Os sofrimentos físicos foram excruciantes, mas mesmo isso foi como nada se comparado com sua angústia de alma. Para uma consideração de tais sofrimentos já dedicamos vários parágrafos nos capítulos anteriores, todavia não nos desculpamos em nada em retornar a eles novamente. Não é demasiado de nossa parte poder contemplar com freqüência o que o Salvador suportou a fim de assegurar a salvação para nós. Quanto mais estivermos familiarizados com seus sofrimentos, e quanto mais amiúde meditarmos neles, mais caloroso será nosso amor e mais profunda a nossa gratidão.
Finalmente as últimas horas chegaram. Tinha havido a terrível experiência no Getsêmane seguida pelos comparecimentos perante Caifás, perante Pilatos, perante Herodes e novamente perante Pilatos. Tinha havido o açoitamento e o escárnio por parte dos soldados brutais; a jornada ao Calvário; a fixação de suas mãos e pés por pregos ao cruel madeiro. Tinha havido a injúria dos sacerdotes, do povo e dos dois ladrões com ele crucificados. Tinha havido a total indiferença de uma turba vulgar, dentre a qual ninguém houve que “tivesse compaixão” e que dissesse uma palavra de consolo (Sl 69.20). Tinha havido a apavorante escuridão que lhe ocultou a face do Pai, que arrancou dele o amargo clamor, “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?” Tinha havido os lábios ressecados que tiraram dele a exclamação, “Tenho sede”. Tinha havido o horrendo conflito com o poder das trevas enquanto a serpente “feria” seu calcanhar. Bem podia o padecente perguntar, “Não vos comove isto a todos vós que passais pelo caminho? atendei, e vede, se há dor como a minha dor, que veio sobre mim, com que me entristeceu o Senhor, no dia do furor da sua ira” (Lm 1.12).
Mas agora o sofrimento está findo. Aquilo a que sua santa alma recuava está acabado. O Senhor o tinha ferido; o homem e o diabo tinham feito o pior que podiam fazer. O cálice foi completamente bebido. A terrível tempestade da ira de Deus tinha acabado de passar. As trevas estão terminadas. A espada da justiça divina está embainhada. O salário do pecado tinha sido pago. As profecias acerca de seu sofrimento estavam todas cumpridas. A cruz tinha sido “suportada”. A santidade divina tinha sido plenamente satisfeita. Com um brado de triunfo — um forte brado, um brado que reverberou de uma extremidade a outra do universo — o Salvador exclama, “Está consumado”. A ignomínia e a vergonha, o sofrimento e a agonia são passado. Nunca mais ele experimentará dor. Nunca mais ele suportará a contradição de pecadores contra si mesmo. Nunca mais estará ele nas mãos de Satanás. Nunca mais a luz do semblante de Deus ficará ocultada dele. Bendito seja Deus, tudo está terminado!

A cabeça que antes estava coroada de espinhos, está agora coroada de glória;
Um diadema real adorna a testa do poderoso Conquistador.
O mais alto lugar do Céu é Seu, é Seu por direito,
O Rei dos reis e Senhor dos senhores, e a eterna Luz do Céu.
O gozo de todos os que habitam encima, o Gozo de todos embaixo,
Àqueles a que ele manifesta seu amor, e concede que conheçam seu nome.[107]

“Está consumado”

3. Vemos aqui que o objetivo da Encarnação é alcançado.
A Escritura indica que há uma obra especial peculiar a cada uma das pessoas divinas, ainda que, como as pessoas mesmas, não é sempre fácil distinguir entre suas respectivas obras. Deus Pai está especialmente envolvido no governo do mundo. Ele governa sobre todas as obras de suas mãos. Deus Filho está especialmente envolvido na obra redentora: ele foi quem veio aqui para morrer pelos pecadores. Deus Espírito está especialmente envolvido com as escrituras: ele foi quem moveu os santos homens de outrora para falarem as mensagens de Deus,[108] assim como é quem agora dá iluminação espiritual e entendimento,[109] e guia na verdade.[110] Mas é com a obra de Deus Filho que estamos aqui particularmente interessados.
Antes que o Senhor Jesus viesse a essa terra uma obra definida foi confiada a ele. No princípio do livro isso foi escrito por ele, e ele veio a fazer a vontade registrada de Deus.[111]
Mesmo quando garoto de doze anos, os “negócios” do Pai estavam diante de seu coração e ocupavam a sua atenção. Outra vez, em João 5.36, encontramo-lo dizendo: “Mas eu tenho maior testemunho do que o de João; porque as obras que o Pai me deu para realizar, as mesmas obras que eu faço”. E, na última noite antes de sua morte, naquela maravilhosa oração sacerdotal, descobrimo-lo falando: “Eu glorifiquei-te na terra, tendo consumado a obra que me deste a fazer” (Jo 17.4).
Em seu livro sobre os sete ditos de Cristo na cruz, o Dr. Anderson-Berry lança mão de uma ilustração da história a qual, por sua contundente antítese, revela o sentido e a glória da obra completa de Cristo. Isabel, Rainha da Inglaterra, o ídolo da sociedade e a líder da alta sociedade européia, quando em seu leito de morte, voltou-se para a sua dama de companhia e disse: “Ó, meu Deus! Está acabado. Chego ao fim disso — o fim, o fim. Ter somente uma vida e acabado com ela! Ter vivido, e amado, e triunfado; e agora saber que está terminado. Pode-se desafiar tudo o mais, menos isso”. E, enquanto a ouvinte assistia a isso sentada, poucos momentos depois, a face cujo sorriso mais leve trouxera seus cortesãos aos seus pés, tornava-se numa máscara de argila sem vida, e retribuía a ansiosa contemplação de sua serva com nada mais do que um fixo olhar vazio. Tal foi o fim de alguém cuja meteórica carreira fora invejada por metade do mundo. Não podia ser dito que ela “consumara” alguma coisa, pois consigo tudo foi “vaidade e aflição de espírito”. Quão diferente foi o fim do Salvador — “Eu glorifiquei-te na terra, tendo consumado a obra que me deste a fazer”.
A missão na qual Deus enviou seu Filho ao mundo estava agora acabada. Na realidade, não foi terminada até que desse seu último suspiro, mas a morte viria em instantes e, antecipando-se a isso, ele brada, “Está consumado”. A difícil obra está feita. A tarefa divinamente dada a ele está executada. Uma obra mais digna de honra e mais importante do que qualquer outra jamais confiada ao homem ou aos anjos estava completada. Aquilo por que deixara a glória celeste, aquilo pelo qual ele tomara sobre si a forma de servo, aquilo pelo qual ele havia permanecido na terra por trinta e três anos para fazer, estava agora consumado. Nada mais tinha para ser adicionado. A meta da Encarnação é atingida. Com que jubiloso triunfo ele aqui deve ter visto a árdua e custosa obra que lhe foi entregue agora aperfeiçoada!
“Está consumado”. A missão na qual Deus enviara seu Filho ao mundo estava acabada. Aquilo que fora tencionado na eternidade viera a suceder. O plano de Deus fora plenamente levado a cabo. É verdade que o Salvador fora morto e crucificado “por mãos de iníquos”, todavia, foi “entregue pelo determinado desígnio e presciência de Deus” (At 2.23, ARA). É verdade que os reis da terra se levantaram, e os príncipes se ajuntaram contra o Senhor, e contra o seu Cristo [112]; entretanto, não foi senão para fazer o que a mão e o conselho de Deus “tinham anteriormente determinado que se havia de fazer” (At 4.28). Por que ele é o Altíssimo, não se pode frustrar a secreta vontade de Deus. Por que ele é supremo, o conselho de Deus deve ficar de pé. Por que ele é o TodoPoderoso, o propósito de Deus não pode ser malogrado. Repetidas vezes as escrituras insistem na irresistibilidade do desejo do Senhor Deus. Por que sua verdade é agora tão geralmente posta em discussão,[113] acrescentamos sete passagens que a afirmam:
Mas, se ele resolveu alguma cousa, quem o pode dissuadir? O que ele deseja, isso fará (Jó 23.13, ARA).
Bem sei eu que tudo podes, e nenhum dos teus pensamentos pode ser impedido (Jó 42.2).
Mas o nosso Deus está nos céus; faz tudo o que lhe apraz (Sl 115.3). Não há sabedoria, nem inteligência, nem conselho contra o Senhor (Pv 21.30).
Porque o Senhor dos Exércitos o determinou; quem pois o invalidará? E a sua mão estendida está; quem pois a fará voltar atrás? (Is 14.27).

Lembrai-vos das coisas passadas desde a antigüidade; que eu sou Deus, e não há outro Deus, não há outro semelhante a mim; que anuncio o fim desde o princípio, e, desde a antigüidade as coisas que ainda não sucederam; que digo: O meu conselho será firme, e farei toda a minha vontade (Is 46. 9,10).
E todos os moradores da terra são reputados em nada; e segundo a sua vontade ele opera com o exército do céu e os moradores da terra; não há quem possa estorvar a sua mão, e lhe diga: Que fazes? (Dn 4.35).
E, no brado triunfante do Salvador — “Está consumado” — temos uma profecia e um penhor da execução definitiva do plano de Deus de modo completo e irresistível. No fim dos tempos, quando tudo estiver terminado, e o propósito divino for plenamente consumado, quando tudo que ele predeterminou que devesse ser feito estiver cumprido, então será dito novamente: “Está consumado”.

“Está consumado”

4. Vemos aqui a realização da expiação.
Falamos acima de Cristo alcançando a meta da Encarnação, e da consumação de sua missão na terra; o que foram tal meta e tal missão, a escritura claramente revela. O Filho do Homem veio aqui “para buscar e salvar o que se havia perdido” (Lc 19.10). Cristo Jesus entrou no mundo “para salvar os pecadores” (1Tm 1.15). Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, “para remir os que estavam debaixo da lei” (Gl 4.4). Ele foi manifestado “para tirar os nossos pecados” (1Jo 3.5). E tudo isso envolvia a cruz. O “perdido” que ele veio buscar só podia ser encontrado lá — no lugar de morte e sob a condenação divina. Os pecadores podiam ser “salvos” somente por alguém tomando seu lugar e levando suas iniqüidades. Aqueles que estavam sob a lei apenas podiam ser “remidos” por um outro que cumprisse suas exigências e sofresse sua maldição. Nossos pecados somente podiam ser “tirados” sendo apagados pelo precioso sangue de Cristo. As demandas da justiça têm que ser satisfeitas: as exigências da santidade divina têm que ser atendidas: o terrível débito em que incorremos tem que ser pago. E na cruz isso foi feito; feito por ninguém menos que o Filho de Deus; feito com perfeição; feito de uma vez por todas.
“Está consumado”. Aquilo para o qual tantos tipos apontavam, aquilo para o qual tanta coisa do tabernáculo e de seu ritual prefigurava, aquilo do qual tantos dos profetas de Deus tinham falado, estava agora realizado. Uma cobertura para o pecado e sua vergonha — tipificada pelas túnicas de peles com as quais o Senhor Deus vestiu nossos primeiros pais [114] — foi agora fornecida. O mais excelente sacrifício — tipificado pelo cordeiro de Abel [115] — fora agora oferecido. Um abrigo para a tempestade do julgamento divino — tipificado pela arca de Noé [116] — era agora providenciado. O Filho unigênito e mui amado — tipificado pelo oferecimento de Isaque por Abraão [117] — já havia sido posto sobre o altar. Uma proteção contra o anjo vingador — tipificada pelo sangue derramado do cordeiro pascal [118] — era agora suprida. Uma cura para a mordida da serpente — tipificada pela serpente de bronze sobre a haste [119] — era agora aprontada para os pecadores. A provisão de uma fonte que dá vida — tipificada pelo golpear de Moisés na rocha [120] — era agora efetuada.

“Está consumado”.

A palavra grega aqui, teleo, é vertida de várias formas no Novo Testamento. Uma olhada em algumas das diferentes traduções em outras passagens nos habilitará a discernir a plenitude e a finalidade do termo usado pelo Salvador. Em Mateus 11.1, teleo é traduzida como segue: “E aconteceu que, acabando Jesus de dar instruções aos seus doze discípulos, partiu dali”. Em Mateus 17.24, é assim traduzida: “Aproximaram-se de Pedro os que cobravam as didracmas, e disseram: O vosso mestre não paga as didracmas?” Em Lucas 2.39 é traduzida: “”E, quando acabaram de cumprir tudo segundo a lei do Senhor, voltaram à Galiléia”. Em Lucas 18.31, temos: “E se cumprirá no Filho do homem tudo o que pelos profetas foi escrito”. Ajuntando tudo, aprendemos o escopo da sexta elocução do Salvador na cruz, “Está consumado”. Ele clamou: está “posto um fim a”; está “pago”; está “realizado”; está “acabado”. A que se pôs um fim? Aos nossos pecados e sua culpa. O que foi pago? O preço de nossa redenção. O que foi realizado? Os mais extremos requerimentos da lei. O que foi acabado? A obra que o Pai lhe dera a fazer. O que foi findado? O fazer expiações.
Deus fornece ao menos quatro provas de que Cristo terminou sim sua obra a qual lhe foi dada para fazer. Primeiro, no rasgar do véu,[121] que mostrava que o caminho para Deus estava agora aberto.
Segundo, no ressurgir de Cristo dentre os mortos, que provou que Deus aceitara seu sacrifício.
Terceiro, na exaltação de Cristo a sua própria destra, [122] o que demonstrou o valor da sua obra e o deleite do Pai em sua pessoa. Quarto, no envio à terra do Espírito Santo para aplicar as virtudes e benefícios da morte expiatória de Cristo.[123]

“Está consumado”.

O que estava consumado? A obra da expiação. Qual o seu valor para nós? Este: ao pecador, é uma mensagem de boas novas. Tudo que um santo Deus requer foi feito. Nada é deixado para o pecador acrescentar. Obra nenhuma de nós é exigida como preço de nossa salvação. Tudo que é necessário ao pecador é descansar agora pela fé sobre o que Cristo fez: “O dom gratuito de Deus é a vida eterna, por Cristo Jesus nosso Senhor” (Rm 6.23). Para o crente, o conhecimento de que a obra expiatória de Cristo está acabada traz um doce alívio contra todos os defeitos e imperfeições de seus serviços. Há muito de pecado e vaidade no melhor mesmo de nossos esforços, mas o grande consolo é que estamos “perfeitos” em Cristo (Cl 2.10)! Cristo e sua obra acabada é o fundamento de todas as nossas esperanças.

Sobre uma Vida que não vivi,
Sobre uma Morte que não morri,
Sobre a morte de um outro, sobre a vida de um outro
Eu lanço minh’alma eternamente
Com ousadia ficarei de pé naquele grande dia,
Pois quem pode lançar sobre mim alguma acusação?
Completamente absolvido por Cristo estou,
Da tremenda maldição do pecado e da culpa.[124]

“Está consumado”

5. Vemos aqui o fim de nossos pecados.
Os pecados do crente — todos os seus — foram transferidos ao Salvador. Como diz a escritura: “O Senhor fez cair sobre ele a iniqüidade de nós todos” (Is 53.6). Se Deus pois lançou minhas iniqüidades sobre Cristo, não mais estão elas sobre mim. Há pecado em mim, pois a velha natureza adâmica permanece no crente até a morte ou até o retorno de Cristo, caso ele venha antes que eu morra, porém, não há mais pecado algum sobre mim. Tal distinção entre pecado EM e pecado SOBRE é uma distinção vital, e deve haver pouca dificuldade em sua apreensão. Se eu dissesse que o juiz deu a sentença sobre um criminoso, e que esse está agora sob sentença de morte, todos entenderiam o que eu quis dizer. Da mesma forma, todos fora de Cristo tem a sentença da condenação divina que repousa sobre si. Porém, quando um pecador crê no Senhor, recebe-o como seu Senhor e Mestre, ele não mais está “sob condenação” — o pecado não mais está sobre si, ou seja, a culpa, a condenação, a pena do pecado, não mais está sobre ele. E por quê? Porque Cristo levou nossos pecados em seu próprio corpo sobre o madeiro (1Pd 2.24). A culpa, a condenação e a pena de nossos pecados foram transferidas ao nosso substituto. Em conseqüência, porque meus pecados foram transferidos a Cristo, eles não mais estão sobre mim.
Essa preciosa verdade foi contundentemente ilustrada nos tempos do Antigo Testamento em conexão com o Dia Anual da Expiação em Israel. Naquele dia, Arão, o sumo-sacerdote (um tipo de Cristo), dava satisfação a Deus pelos pecados que Israel cometera durante o ano anterior. A maneira como isso era feito está descrita em Levítico 16. Dois bodes eram tomados e apresentados diante de Deus à porta do tabernáculo: isso era antes que qualquer coisa fosse feita com eles: isso representava Cristo apresentando-se a Deus, oferecendo para entrar neste mundo, e ser o Salvador dos pecadores. Um dos bodes era então escolhido e morto, e seu sangue era levado para dentro do tabernáculo, no interior do véu, no Santo dos Santos e, ali, era espargido perante e sobre o propiciatório — prefigurando a Cristo oferecendo-se como um sacrifício a Deus, para satisfazer às exigências de sua justiça e aos requerimentos de sua santidade.
Lemos então que Arão saía do tabernáculo e punha ambas as mãos sobre a cabeça do segundo bode (vivo) — significando um ato de identificação pelo qual ele, o representante de toda a nação, identificava o povo com o animal, reconhecendo que seu destino era o que seus pecados mereciam, e que, hoje, corresponde às mãos da fé, segurando Cristo e identificando a nós mesmos consigo em sua morte. Tendo posto suas mãos na cabeça do bode vivo, Arão agora confessava sobre ele “todas as iniqüidades dos filhos de Israel, e todas as suas transgressões, segundo todos os seus pecados, e os porá sobre a cabeça do bode” (Lv 16.21). Desse modo, os pecados de Israel eram transferidos ao seu substituto. Finalmente se nos diz: “Assim aquele bode levará sobre si todas as iniqüidades deles à terra solitária; e enviará o bode ao deserto” (Lv 16.22). O bode que carregava os pecados de Israel era introduzido num ermo inabitado, e o povo de Deus não mais via, nem ele nem seus pecados! Tipificando, isso era Cristo introduzindo nossos pecados em uma terra desolada onde Deus não estava, e ali dando um fim a eles. A cruz de Cristo, pois, é o túmulo de nossos pecados!

“Está consumado”

6. Aqui vemos o cumprimento das exigências da lei.
“A lei é santa, e o mandamento santo, justo e bom” (Rm 7.12). Como poderia ela ser menos que isso, já que o próprio Jeová a tinha ideado e dado! A culpa não estava na lei, mas no homem que, sendo depravado e pecador, não a podia guardar. Todavia, aquela lei tem que ser guardada, e guardada por um homem, de modo que a lei pudesse ser honrada e exaltada, e justificado aquele que a deu. Por conseguinte, lemos: “Porquanto o que era impossível à lei, visto como estava enferma pela carne, Deus, enviando o seu Filho em semelhança da carne do pecado, pelo pecado condenou o pecado na carne; para que a justiça da lei se cumprisse em (não “por”) nós, que não andamos segundo a carne, mas segundo o espírito” (Rm 8.3,4). A “enfermidade” aqui é aquela do homem caído. O envio do Filho de Deus na semelhança da carne do pecado (grego, corretamente traduzido pela versão Almeida Revista e Corrigida) refere-se à Encarnação: como lemos em uma outra escritura, “Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a lei, para resgatar os que estavam sob a lei” (Gl 4.4,5 ARA). Sim, o Salvador nasceu “sob a lei”, nasceu sob ela para que pudesse guardá-la perfeitamente em pensamento, palavra e obras. “Não cuideis que vim destruir a lei, ou os profetas: não vim abrogar, mas cumprir” (Mt 5.17); essa foi sua pretensão.
Mas não apenas o Salvador guardou os preceitos da lei, ele também sofreu sua pena e suportou sua maldição. Nós a tínhamos quebrado e, tomando nosso lugar, ele deve receber sua justa sentença. Tendo recebido sua pena e sofrido sua maldição, as exigências da lei são completamente atendidas e a justiça é satisfeita. Por conseguinte, está escrito a respeito dos crentes: “Cristo nos resgatou da maldição da lei, fazendo-se maldição por nós” (Gl 3.13). E outra vez: “Porque o fim da lei é Cristo para justiça de todo aquele que crê” (Rm 10.4). E outra vez ainda: “Pois não estais debaixo da lei, mas debaixo da graça” (Rm 6.14).

“Livres da lei, Ó feliz condição!
Jesus abençoa e há remissão.
Amaldiçoados pela lei e mortos pela queda,
A graça nos redimiu de uma vez por todas.[125]

“Está consumado”

7. Aqui vemos a destruição do poder de Satanás.
Veja-o pela fé. A cruz foi o presságio de morte do poder do diabo. Às aparências humanas parecia o momento de seu maior triunfo, todavia, na realidade foi a hora de sua derrota definitiva. Em virtude da cruz (vide contexto) o Salvador declarou, “Agora é o juízo deste mundo; agora será expulso o príncipe deste mundo” (Jo 12.31). É verdade que Satanás não foi ainda acorrentado e lançado no abismo,[126] entretanto, a sentença foi dada (ainda que não executada); seu fim é certo; e seu poder já está quebrado no que diz respeito aos crentes.
Para o cristão, o diabo é um inimigo vencido. Ele foi derrotado por Cristo na cruz — “para que pela morte aniquilasse o que tinha o império da morte, isto é, o diabo” (Hb 2.14). Os crentes já foram tirados “da potestade das trevas” e transportados para o reino do Filho do amor de Deus (Cl 1.13). Satanás, então, deve ser tratado como um inimigo derrotado. Ele não mais tem qualquer reivindicação legítima sobre nós. Outrora éramos seus “cativos” por lei, mas Cristo nos livrou. Outrora andávamos “segundo o príncipe das potestades do ar”;[127] mas agora temos de seguir o exemplo que Cristo nos deixou. Outrora Satanás “operava em nós”; mas agora Deus é quem opera em nós tanto o querer quanto o efetuar, segundo sua boa vontade.[128] Tudo o que temos de fazer é “resistir ao diabo”, e a promessa é que “ele fugirá de vós” (Tg 4.7).
“Está consumado”. Aqui estava a resposta triunfante à cólera do homem e à inimizade de Satanás. Ela conta a perfeita obra que vai de encontro ao pecado no lugar do julgamento. Tudo estava completado exatamente como Deus queria tê-lo, como os profetas haviam predito, como o cerimonial do Antigo Testamento prefigurava, como a santidade divina requeria, e como os pecadores necessitavam. Quão contundentemente apropriado é que esse sexto brado do Salvador na cruz seja encontrado no evangelho de João — o evangelho que mostra a glória da deidade de Cristo! Ele aqui não encomenda sua obra à aprovação divina, mas sela-a com o seu próprio imprimatur, atestando-a como completa, e dando-lhe a todo-suficiente sanção de sua própria aprovação. Nenhum outro além do Filho de Deus diz “ESTÁ consumado” — quem pois ousa duvidar ou questionar?

“Está consumado”.

Leitor, você crê nisso? ou está tentando adicionar algo de si mesmo à obra completa de Cristo para assegurar o favor de Deus? Tudo o que você tem que fazer é aceitar o perdão que ele adquiriu. Deus está satisfeito com a obra de Cristo, por que você não está? Pecador, no momento em que você crer no testemunho de Deus sobre seu Filho amado, nesse momento todo pecado que você cometeu é apagado, e você fica em posição aceitável em Cristo! Ó, não gostaria você de possuir a certeza de que não há nada entre sua alma e Deus? Não gostaria você de saber que todo pecado foi expiado e posto de lado? Então, creia no que a palavra de Deus acerca da morte de Cristo. Não descanse em seus sentimentos e experiências, mas na palavra escrita. Há apenas um caminho para se encontrar paz, e isso é mediante a fé no sangue derramado do Cordeiro de Deus.
“Está consumado”. Você realmente crê nisso? Ou está se esforçando para acrescentar algo seu mesmo a ele e assim merecer o favor divino? Há alguns anos atrás, um fazendeiro cristão estava profundamente preocupado com um carpinteiro não salvo. Ele procurou pôr diante de seu vizinho o evangelho da graça de Deus, e explicar como que a obra completa de Cristo foi suficiente para sua alma nela descansar. Porém, o carpinteiro persistia na crença de que ele mesmo tem que fazer algo. Um dia, o fazendeiro pediu a esse para lhe fazer um portão, e quando o portão estava pronto ele o transportou para a sua carroça. Ele ordenou ao carpinteiro que o visitasse no dia seguinte de manhã e visse o portão quando levantado no campo. Na hora marcada o carpinteiro chegou e ficou surpreso ao descobrir o fazendeiro lá perto com um afiado machado em sua mão. “O que você vai fazer?”, ele perguntou. “Vou fazer alguns cortes e dar uns golpes em sua obra”, foi a resposta. “Mas não há necessidade alguma disso”, respondeu o carpinteiro, “o portão está todo certo assim. Fiz tudo que era necessário”. O fazendeiro não prestou atenção a isso mas, erguendo seu machado, deu talhos e cortes no portão até ficar completamente inutilizado. “Veja o que você fez!”, gritou o carpinteiro. “Você arruinou meu trabalho!” “Sim”, disse o fazendeiro, “e isso é exatamente o que você está tentando fazer.
Você está procurando anular a obra completa de Cristo com seus miseráveis acréscimos a ela!” Deus utilizou essa lição com o vigoroso objeto para mostrar ao carpinteiro seu engano, e esse foi levado a se lançar em fé sobre o que Cristo tem feito pelos pecadores. Leitor, você quer fazer o mesmo?

7. A PALAVRA DE CONTENTAMENTO

"E, clamando Jesus com grande voz,
disse: Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito.
E, havendo dito isto, expirou"
Lucas 23.46


“E, CLAMANDO JESUS com grande voz, disse: Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito. E, havendo dito isto, expirou" (Lc 23.46). Essas palavras postas diante de nós foram o último ato do Salvador antes de expirar. Foi um ato de contentamento, de fé, de confiança e amor. A pessoa a quem ele confiou o precioso tesouro de seu espírito foi seu próprio Pai. Pai é um título que traz encorajamento e segurança: um filho, desde que seja querido, bem pode confiar qualquer preocupação nas mãos de um pai, em especial um tal Filho nas mãos de um tal Pai. Aquilo que foi entregue nas mãos do Pai foi o seu “espírito”, que estava preste a se separar do corpo.
A Escritura mostra o homem como sendo um ser tricotômico: “espírito, e alma, e corpo” (1Ts 5.23). Há uma diferença entre a alma e o espírito, ainda que não seja fácil afirmar onde não são eles similares entre si. O espírito parece ser o mais elevado panorama de nosso ser complexo. É isso que particularmente distingue o homem das bestas, e que o liga a Deus. O espírito é aquilo que Deus forma dentro de nós (Zc 12.1); portanto, é ele chamado o “Deus dos espíritos de toda a carne” (Nm 16.22). Na morte, o espírito volta a Deus, que o deu (Ec 12.7).
O ato pelo qual o Salvador pôs seu espírito nas mãos do Pai foi um ato de fé —“[eu] entrego”. Foi um bendito ato com a intenção de ser um precedente para todo seu povo. O último ponto observável é a maneira na qual Cristo executou seu ato: ele expressou tais palavras “com grande voz”. Ele falou para que todos pudessem ouvir, e para que seus inimigos, que o julgavam destituído e desamparado por Deus pudessem saber que ele não mais o estava, antes, que ainda era amado por seu Pai, e podia pôr seu espírito confiantemente em suas mãos.
“Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito”. Foi a última coisa que o Salvador disse antes de expirar. Enquanto pendurado na cruz, por sete vezes seus lábios moveram-se para falar. Sete é o número da inteireza ou perfeição. No Calvário, então, como em todo lugar, as perfeições do Bem-Aventurado foram mostradas. Sete é também o número de descanso em uma obra encerrada: em seis dias Deus fez céu e terra e, no sétimo, descansou, contemplando com satisfação aquilo sobre o que pronunciara ser “muito bom”. Assim também aqui com Cristo: uma obra fora-lhe dada para fazer, e tal obra estava agora feita. Exatamente como o sexto dia levou à conclusão a obra de criação e reconstrução, assim a sexta declaração do Salvador foi “Está consumado”. E, exatamente como o sétimo dia foi o dia de repouso e satisfação, assim a sétima elocução do Salvador trá-lo ao lugar de descanso — as mãos do Pai.
Por sete vezes o Salvador agonizante falou. Três dessas elocuções diziam respeito aos homens: a um deu a promessa de que deveria estar com ele naquele dia no Paraíso; a um outro confiou sua mãe; à massa de expectadores fez menção de estar com sede. Três dessas elocuções foram dirigidas a Deus: ao Pai ele orou por seus assassinos; a Deus ele expressou seu triste lamento; e agora, nas mãos do Pai, ele entrega seu espírito. Ao ouvido de Deus e dos homens, dos anjos e do diabo, ele bradara em triunfo: “Está consumado”.

“Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito”.

É digno de nota que esse brado final do Salvador tenha sido pronunciado pelo espírito de profecia muitos séculos antes da Encarnação. No salmo de número trinta e um ouvimos o Filho de Davi e o Senhor dizendo, antecipadamente:

“Em ti, Senhor, confio; nunca me deixes confundido; livra-me pela tua justiça. Inclina para mim os teus ouvidos, livra-me depressa; sê a minha firme rocha, uma casa fortíssima que me salve. Porque tu és a minha rocha e a minha fortaleza; pelo que, por amor do teu nome, guia-me e encaminha-me. Tira-me da rede que para mim esconderam, pois tu és a minha força. Nas tuas mãos encomendo o meu espírito; tu me remiste, Senhor Deus da verdade” (vv. 1-5)!

Em conexão com cada uma das elocuções de nosso Salvador na cruz uma profecia foi cumprida. Na primeira vez, ele clamou, “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem”, e isso cumpriu Isaías 53.12 — “pelos transgressores intercedeu” [ARA]. Na segunda, ele prometeu ao ladrão: “Hoje estarás comigo no Paraíso”, e isso foi um cumprimento da profecia do anjo a José — “chamarás o seu nome Jesus; porque ele salvará o seu povo dos seus pecados” (Mt 1.21). Na terceira, disse à sua mãe: “Mulher, eis aí o teu filho”, e isso cumpriu a profecia de Simeão — “uma espada traspassará também a tua própria alma” (Lc 2.35). Na quarta, ele havia perguntado: “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?” e tais palavras foram idênticas àquelas do Salmo 22.1. Na quinta, ele exclamou: “Tenho sede”, e isso foi um cumprimento do Salmo 69.21 — “na minha sede me deram a beber vinagre”. Na sexta, ele bradou triunfantemente: “Está consumado”, e essas são quase as mesmas palavras que servem de conclusão àquele maravilhoso salmo vinte e dois: “ele o fez”, ou, como se poderia muito bem verter do hebraico: “ele consumou”, com o contexto mostrando que ele tinha feito, a saber, a obra de expiação. Por fim, ele orou: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito”, e, como mostramos de antemão, ele tão-somente estava citando o que dele fora escrito de antemão no Salmo 31. Ó, as maravilhas da cruz! Nunca chegaremos ao fim delas.

“Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito”

1. Vemos aqui o Salvador outra vez de volta à comunhão com o Pai.
Isso é sobremaneira precioso. Por um instante aquela comunhão foi quebrada — quebrada exteriormente — quando a luz da santa face de Deus foi ocultada dAquele que levava nossos pecados, mas agora as trevas haviam passado e eram findas para sempre. Até à cruz tinha havido comunhão perfeita e ininterrupta entre o Pai e o Filho. É extraordinariamente belo observar como o terrível “Cálice” mesmo fora aceito das mãos do Pai:
“Não beberei eu o cálice que o Pai me deu?” (Jo 18.11). Na cruz, no início, o Senhor Jesus ainda é encontrado em comunhão com o Pai, pois senão não teria clamado, “Pai, perdoa-lhes”! A sua primeira declaração na cruz, então, foi “Pai, perdoa-lhes”, e agora sua última palavra é: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito”. Porém, entre aquelas elocuções ele tinha ficado ali pendurado por seis horas: três delas passadas em sofrimento nas mãos do homem e de Satanás; as três outras, na mão de Deus, quando a espada da justiça divina foi “despertada” para ferir o Companheiro de Jeová [129]. Durante aquelas três últimas horas, Deus se tinha retirado do Salvador, o que evoca aquele terrível clamor: “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?” Mas agora está tudo feito. O cálice é bebido até à última gota: a tempestade da ira se tinha passado: as trevas são idas, e o Salvador é visto mais uma vez em comunhão com o Pai — comunhão nunca mais quebrada.
“Pai”. Quão amiúde essa palavra estava nos lábios do Salvador! A primeira vez em que foi registrada: “Não sabeis que me convém tratar dos negócios de meu Pai?” No que foi provavelmente seu primeiro discurso formal — o “sermão da montanha” — ele fala do “Pai” dezessete vezes. Quando em seu discurso final aos discípulos, o “discurso pascal” encontrado em João 14-16, a palavra “Pai” é achada não menos do que quarenta e cinco vezes! No capítulo seguinte, João 17, que contém o que é conhecido como a grande oração sacerdotal de Cristo, ele fala ao e do Pai por mais seis vezes. E agora, pela última vez antes de renunciar à própria vida, diz novamente: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito”.
E quão abençoado é que seu Pai seja nosso Pai! Nosso porque seu. Quão maravilhoso isso é! Quão inefavelmente precioso que eu possa erguer meus olhos ao grande Deus vivente e falar, “Pai”, meu Pai! Que conforto está contido nesse título! Que segurança é comunicada! Deus é meu Pai, então ele me ama, ama-me como ao próprio Cristo (Jo 17.23)! Deus é meu Pai e me ama, então ele se importa comigo. Deus é meu Pai e cuida de mim, então suprirá todas as minhas necessidades (Fp 4.19). Deus é meu Pai, então ele fará com que nenhum mal aconteça a mim, sim, que todas as coisas serão feitas para trabalharem juntos para o meu bem [130]. Ó, que seus filhos adentrem mais profunda e praticamente na bênção de tal relacionamento, e então, alegremente exclamem com o apóstolo: “Vede quão grande caridade nos tem concedido o Pai: que fôssemos chamados filhos de Deus” (1Jo 3.1)!

“Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito”


2. Vemos aqui um calculado contraste.
Por mais de doze horas Cristo estivera nas mãos dos homens. Disso falara aos seus discípulos quando os avisou de antemão que “o Filho do homem será entregue nas mãos dos homens:e matá-lo-ão (Mt 17.22,23). Disso fizera menção no meio da terrível gravidade do Getsêmane: “Então chegou junto dos seus discípulos, e disse-lhes: Dormi agora, e repousai; eis que é chegada a hora, e o Filho do homem será entregue nas mãos dos pecadores” (Mt 26.45). A isso os anjos fizeram referência na manhã da ressurreição, dizendo às mulheres: “Não está aqui, mas ressuscitou. Lembrai-vos como vos falou, estando ainda na Galiléia, dizendo: Convém que o Filho do homem seja entregue nas mãos de homens pecadores, e seja crucificado, e ao terceiro dia ressuscite” (Lc 24.6,7). Isso recebeu seu cumprimento quando o Senhor Jesus se entregou àqueles que vieram prendê-lo no Jardim. Como vimos em um capítulo anterior, Cristo podia facilmente ter evitado a prisão. Tudo que tinha que fazer era deixar os oficiais dos sacerdotes prostrados no chão, e ir embora tranqüilamente. Mas ele não agiu assim. A hora marcada havia chegado. O tempo em que ele submeter-se-ia para ser levado como um cordeiro ao matadouro chegara. E ele entregou-se nas “mãos dos pecadores”. Como eles o trataram é bem sabido; eles se aproveitaram completamente da oportunidade. Eles deram plena vazão ao ódio do coração carnal por Deus. Com “mãos ímpias” (At 2.23, KJV) o crucificaram. Mas agora tudo está acabado. O homem fizera o seu pior. A cruz fora suportada; a obra designada é terminada.
Voluntariamente tinha o Salvador se entregado às mãos dos pecadores, e agora, voluntariamente, ele entrega seu espírito nas mãos do Pai. Que bendito contraste! Nunca mais ele estará de novo nas “mãos dos homens”. Nunca mais estará ele à mercê do ímpio. Nunca mais sofrerá vergonha. Nas mãos do Pai ele se entrega, e o Pai agora tomará conta de seus interesses. Não precisamos nos deter em detalhes na bendita conseqüência. Três dias depois o Pai o ressuscitava dos mortos. Quarenta dias depois disso, o Pai o exaltava acima de todo o principado, e poder, e de todo o nome que se nomeia, e o pôs à sua própria direita nos céus [131]. E lá agora ele se assenta no trono do Pai (Ap 3.21), esperando até que seus inimigos sejam feitos escabelo de seus pés [132]. Por um dia, ainda que demorado, as posições serão invertidas. O Pai enviará aquele a quem o mundo rejeitou: ele o fará outra vez, mas em poder e glória: para governar e reinar sobre toda a terra com vara de ferro [133]. Então a situação será inversa. Quando aqui esteve anteriormente os homens se atreveram a acusá-lo publicamente, mas então ele assentar-se-á para julgá-los. Outrora esteve nas mãos deles, então eles estarão nas suas. Outrora gritaram: “Tira[-o] [134]”, então ele dirá: “Apartai-vos de mim [135]”. E, no meio tempo, ele está nas mãos do Pai, sentado em seu trono, esperando seu deleite!

“Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito.
E, havendo dito isto, expirou.”


3. Vemos aqui a perfeita entrega de Cristo a Deus.
Quão abençoadamente ele provou isso em toda a sua caminhada! Quando sua mãe o procurou em Jerusalém quando era um menino de doze anos, ele disse: “Não sabeis que me convém tratar dos negócios de meu Pai?” Quando esteve faminto no deserto após um jejum de quarenta dias e o diabo o instou a fazer pão das pedras, ele respondeu dizendo que vivia de toda palavra de Deus [136]. Quando as poderosas obras que ele tinha feito e a mensagem que tinha entregado não conseguiram comover seus ouvintes, ele se submeteu àquele que o enviara, dizendo: “Graças te dou, ó Pai, Senhor do céu e da terra, que ocultaste estas coisas aos sábios e entendidos, e as revelaste aos pequeninos” (Mt 11.25). Quando as irmãs de Lázaro mandaram informar ao Salvador da enfermidade de seu irmão, em vez de apressadamente ir a Betânia, ele ficou ainda dois dias no lugar onde estava, dizendo: “Esta enfermidade não é para morte, mas para glória de Deus”.[137]
Não era a afeição natural que o movia a agir, mas a glória de Deus! Sua comida era fazer a vontade daquele que o enviou.[138] Em tudo ele se submetia ao Pai. Veja-o de manhã, “levantando-se de manhã muito cedo” (Mc 1.35), a fim de poder estar na presença do Pai. Veja-o antecipando-se a toda grande crise e se preparando para ela derramando seu coração em súplicas. Veja-o passando mesmo a última hora antes de sua prisão com sua face perante Deus. Quão adequadamente podia ele dizer: “Tomai sobre vós o meu jugo, e aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração”.[139] E da mesma forma que viveu, morreu — entregando-se nas mãos do Pai. Esse foi o último ato do Salvador agonizante. E quão extraordinariamente belo. Quão totalmente de conformidade com toda a sua vida! Ela manifestava sua perfeita confiança no Pai. Ela revelava a bendita intimidade que havia entre eles. Ela mostrava sua absoluta dependência de Deus.
Verdadeiramente, em tudo ele nos deixou um exemplo. O Salvador entregou seu espírito nas mãos de seu Pai na morte, porque ele tinha estado nas mãos dele por toda a sua vida! Isso é verdade quanto a você, leitor meu? Como pecador, você entregou seu espírito nas mãos divinas? Nesse caso, está salvaguardado. Você pode dizer com o apóstolo: “Eu sei em quem tenho crido, e estou certo de que é poderoso para guardar o meu depósito até aquele dia” (2Tm 1.12)? E você, como cristão, rendeu-se plenamente a Deus? Você presta atenção àquela palavra: “Rogo-vos pois, irmãos, pela compaixão de Deus, que apresenteis os vossos corpos em sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso culto racional” (Rm 12.1)? [140] Está vivendo para a glória dele que amou e se deu por você? Está caminhando em dependência diária dele, sabendo que sem ele não pode fazer nada (Jo 15.5), mas aprendendo que pode fazer todas as coisas por Cristo, que fortalece você (Fp 4.13)? Se sua vida inteira está entregue a Deus, e a morte o apanhar antes que o Salvador retorne para receber seu povo para si mesmo, então será fácil e natural para você dizer: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito”. Balaão disse: “A minha alma morra a morte dos justos” (Nm 23.10). Ah, mas para morrer a morte dos justos, você tem de viver a vida dos justos, e essa consiste em absoluta submissão e dependência de Deus.

“Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito”


4. Vemos aqui a absoluta singularidade do Salvador.
O Senhor Jesus morreu como nenhum outro jamais morreu. Essa foi a sua afirmação: “Por isto o Pai me ama, porque dou a minha vida para tornar a tomá-la. Ninguém ma tira de mim, mas eu de mim mesmo a dou; tenho poder para a dar, e poder para tornar a tomá-la” (Jo 10.17,18). As várias provas de que a vida de Cristo não foi tirada dele foram expostas diante do leitor na Introdução deste livro. A mais convincente demonstração de todas foi vista na entrega de seu espírito nas mãos do Pai. O Senhor Jesus mesmo disse: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito”, mas o Espírito Santo, ao descrever a verdadeira renúncia da sua vida, emprega três diferentes expressões que dão a conhecer mui convincentemente o fato que nós estamos ora considerando, e as várias palavras empregadas pelo Espírito são mais apropriadas aos respectivos evangelhos em que são encontradas.
Lemos em Mateus 27.50: “E Jesus, clamando outra vez com grande voz, rendeu o espírito”. Mas tal tradução não consegue salientar a força própria do original: o sentido no grego é o de que ele “despachou seu espírito”. Essa expressão é a mais apropriada em Mateus, que é o evangelho do rei, apresentando nosso Senhor como “O Filho de Davi; o Rei dos judeus”. Um tal termo é lindamente adequado ao evangelho real, pois o ato do Senhor tem conotação de autoridade, como de um rei mandando embora um servo. A palavra usada em Marcos — que apresenta nosso Senhor como o servo perfeito — é a mesma de nosso texto — tomada de Lucas, o evangelho da perfeita humanidade de Cristo — e significa, ele “soprou para fora seu espírito”. Foi sua passiva tolerância da morte. Em João, que é o evangelho da glória divina de Cristo, uma outra palavra é empregada pelo Espírito Santo: “Inclinando a cabeça, entregou o espírito” (Jo 19.30), ou liberou, talvez fosse mais exato. Aqui, o Salvador não “encomenda” seu espírito ao Pai como no evangelho de sua humanidade, mas, de acordo com sua glória divina, como alguém que tem completo poder sobre ele, “libera” seu espírito!
Duas coisas eram necessárias para se fazer propiciação: primeiro, uma satisfação completa deve ser oferecida à santidade de Deus ultrajada e à sua justiça ofendida, e isso, no caso de nosso substituto, somente podia ser por ele sofrendo a ira divina derramada. E isso tinha sido suportado. Agora ali restava apenas a segunda coisa, e essa era para o Salvador provar o gosto da morte. “Aos homens está ordenado morrerem uma vez vindo depois disso o juízo” (Hb 9.27). Com o pecador é, primeiro, a morte, depois o julgamento; com o Salvador a ordem, naturalmente, foi invertida. Ele suportou o juízo de Deus contra os nossos pecados e depois morreu.
O fim agora era chegado. Perfeito senhor de si mesmo, não subjugado pela morte, ele brada com uma grande voz de vigor não exaurido, e entrega seu espírito nas mãos do Pai, e nisso sua singularidade foi manifestada. Ninguém mais jamais agiu ou morreu assim. Seu nascimento foi singular. Sua vida foi singular. Sua morte foi singular. Ao “dar” a sua vida, sua morte foi diferenciada de todas as outras mortes. Ele morreu por um ato de sua própria volição! Quem, a não ser uma pessoa divina, poderia ter feito isso? A um mero homem teria sido suicídio; mas, para ele, era uma prova de sua perfeição e singularidade. Ele morreu como o Príncipe da Vida! [141]

“Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito”


5. Vemos aqui o lugar de segurança eterna.
Repetidas vezes o Salvador falou de um povo que lhe fora “dado” (Jo 6.37 etc.), e na hora de sua prisão ele disse: “Dos que me deste nenhum deles perdi” (Jo 18.9). Então, não é deleitoso ver que na hora da morte o bendito Salvador entrega-os agora à salvaguarda do Pai? Na cruz, Cristo pendurado como o representante de seu povo e, por conseguinte, vemos seu último ato como um ato representativo. Quando o Senhor Jesus entregou seu espírito nas mãos de seu Pai, ele também apresentou nossos espíritos junto com o seu, para a aceitação do Pai. Jesus Cristo nunca viveu nem morreu por si próprio, mas pelos crentes: o que ele fez em seu último ato reportava-se a eles tanto quanto a si mesmo. Devemos, pois, olhar Cristo aqui unindo juntamente todas as almas dos eleitos, e fazendo uma oferta solene delas, com seu próprio espírito, a Deus.
A mão do Pai é o lugar da segurança eterna. Naquela mão o Salvador encomendou seu povo, e ali eles estão para sempre seguros. Disse Cristo, referindo-se aos eleitos: “Meu Pai, que mas deu, é maior do que todos; e ninguém pode arrebatá-las da mão de meu Pai” (Jo 10.29). Aqui então está o fundamento da confiança do crente. Aqui está a base de nossa segurança. Assim como nada podia prejudicar Noé quando a mão de Jeová havia trancado a porta da arca, também nada pode tocar o espírito do santo pego pela mão de onipotência. Ninguém pode arrancá-los de lá. Fracos somos em nós mesmos, porém “guardados pelo poder de Deus”, é a declaração segura da escritura sagrada: “guardados pelo poder de Deus, mediante a fé, para salvação preparada para revelar-se no último tempo” (1Pd 1.5, ARA). Os adeptos formais que parecem correr bem por um tempo podem ficar fatigados e abandonar a corrida. Aqueles que são movidos pela excitação carnal de um “encontro de reavivamento” agüentam somente por um tempo, pois “não têm raiz em si mesmos”.[142] Aqueles que confiam no poder de suas próprias vontades e resoluções, que abandonam maus hábitos e prometem agir melhor, amiúde fracassam, e seu último estado é pior que o primeiro.[143] Muitos que são persuadidos pelos bem intencionados, mas ignorantes, aconselhadores para “juntar-se à igreja” e “viverem a vida cristã” com freqüência apostatam da verdade. Mas todo espírito que nasceu de novo está eternamente a salvo na mão do Pai.

“Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito”


6. Vemos aqui a bênção da comunhão com Deus.
O que estamos aludindo particularmente aqui é ao fato de que a comunhão com Deus pode ser desfrutada independentemente do lugar ou das circunstâncias. O Salvador estava na cruz, rodeado por uma multidão escarnecedora, seu corpo sofrendo intensa agonia, entretanto, ele estava em comunhão com o Pai! Essa é uma das mais doces verdades destacadas pelo nosso texto. É privilégio nosso gozar da comunhão com Deus em todo tempo, independente de circunstâncias ou condições externas. Tal comunhão é por fé, e a fé não é afetada pelas coisas da vista.[144] Não importa quão desagradável seu quinhão possa ser, leitor meu, é seu inefável privilégio desfrutar de comunhão com Deus. Tal como os três hebreus a desfrutaram com o Senhor no meio do forno de fogo ardente, como Daniel na cova dos leões, como Paulo e Silas no cárcere de Filipos, como o Salvador na cruz, assim também você, seja em que lugar for! A cabeça de Cristo estava circundada com uma coroa de espinhos em cima, mas embaixo estavam as mãos do Pai!
Não ensina nosso texto mui explicitamente a bendita verdade e o bendito fato da comunhão com o Pai na hora da morte? Então por que se apavorar, companheiro cristão? Se Davi, sob a dispensação do Antigo Testamento, podia dizer: “Ainda que eu andasse pelo vale da sombra da morte, não temeria mal algum, porque tu estás comigo” (Sl 23.4), por que devem os crentes agora temer, depois de Cristo haver arrancado o aguilhão da morte! [145] A morte pode ser a “Rainha dos terrores” para o não salvo, mas para o cristão, ela é simplesmente a porta que dá acesso à presença do Bem-Amado. As moções de nossas almas na morte, tanto quanto na vida, voltam-se instintivamente para Deus. “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito” será nosso brado, caso estejamos conscientes. Enquanto tabernaculamos aqui não temos descanso algum senão no seio do Pai;[146] e quando saímos daqui, nossa expectativa e nossos desejos ardentes são o de estar com ele. Lançamos muitos olhares desejosos em direção ao céu, mas quando a alma do salvo se aproxima da bifurcação dos caminhos, então ela se atira nos braços de amor, da mesma forma que um rio após muitos volteios e curvas se derrama no oceano. Nada além de Deus pode satisfazer aos nossos espíritos neste mundo, e nada senão ele pode nos satisfazer quando formos embora daqui.
Contudo, leitor, apenas os crentes estão garantidos e são encorajados a assim encomendar seus espíritos nas mãos de Deus à hora da morte; quão triste é o estado de todos os incrédulos que estão à morte. Seus espíritos, ainda, cairão nas mãos dele, mas será isso a miséria deles, não o privilégio. Os tais acharão que é uma “horrenda coisa cair nas mãos do Deus vivo” (Hb 10.31). Sim, porque, em vez de caírem nos braços de amor, cairão nas mãos de justiça.

“Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito”


7. Vemos aqui o verdadeiro refúgio do coração.
Se a elocução final do Salvador expressa a oração dos cristãos às portas da morte, ela mostra que grande valor eles colocam em seus espíritos. O espírito interior é o tesouro precioso, e nossa principal solicitude e nosso maior cuidado é vê-lo guardado em mãos seguras. “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito”. Tais palavras então podem ser tomadas para expressar a atenção dada pelo crente à sua alma, para que ela possa estar segura, o que sempre acontece com o corpo. O santo de Deus que se aproxima da morte exercita poucos pensamentos acerca de seu corpo, onde ele será posto, ou como o disporão dele; ele confia-o às mãos de seus amigos. Porém, como seu cuidado desde o começo é com sua alma, assim ele pensa então nela, e com seu último suspiro a entrega à custódia divina. Não é: “Senhor Jesus, receba meu corpo, cuide do meu pó”; mas: “Senhor Jesus, receba meu espírito” — Senhor, proteja a jóia quando o cofre estiver quebrado.
E agora uma breve palavra de apelo para concluir. Meu amigo, você está em um mundo que é cheio de problemas. Você não é capaz de cuidar de si mesmo em vida, muito menos o será na morte. A vida tem muitas provações e tentações. Sua alma é ameaçada dos dois lados. Em toda direção há perigos e armadilhas. O mundo, a carne e o diabo entraram em combinação contra você. Aqui está então o farol de luz em meio às trevas. Aqui está o porto de abrigo em todas as tempestades. Aqui está o bendito pálio que protege de todos os dardos inflamados do maligno.[147] Graças a Deus que há um refúgio para os vendavais da vida e para os terrores da morte — a mão do Pai — o verdadeiro céu do coração.


UMA BREVE BIOGRAFIA

Arthur Walkington Pink (1886-1952)
Evangelista e erudito bíblico nascido em Nottingham, Inglaterra, A. W. Pink foi dedicado a Cristo por sua mãe antes de nascer. Porém, quando jovem, afastou-se da fé de seus piedosos pais e aderiu à Teosofia (o movimento Nova Era de sua época).
Entretanto, em 1908, passa por uma contundente experiência de conversão ao Evangelho e, simultaneamente, sente-se chamado para o ministério. Assim, em 1910, aos vinte e quatro anos de idade, cruza o Atlântico para entrar no Instituto Bíblico Moody, em Chicago, mas sai de lá após dois meses, para assumir uma igreja, a primeira de uma série de esforços fracassados no ministério pastoral. Em 1916, casou-se com Vera E. Russell.
Nos anos seguintes ao abandono do curso, veio a adotar uma posição teológica ardente e estritamente calvinista, após aplicar-se ao estudo do pensamento puritano. Logo estaria manejando uma prolífica pena, tornando-se professor itinerante da Bíblia em 1919, devotando, a partir de então, sua vida ao estudo e exposição do Livro Santo, que viria a ler mais de cinqüenta vezes e num ritmo de até dez capítulos por dia (!). Em 1922, deu início a uma revista mensal com o título de Studies in Scriptures, voltada à exposição das Escrituras e cujos artigos viriam a ser a fonte da maioria de seus trabalhos, que circulou entre cristãos de língua inglesa espalhados pelo mundo e que nunca chegou a atingir uma tiragem de mil exemplares, e que circulou até à época de sua morte; foi, sem dúvida, seu maior monumento. De 1925 a 1928, atuou na Austrália, pregando, escrevendo e pastoreando duas congregações entre 1926 e 1928, quando retornou à Inglaterra. No ano seguinte, retornava aos Estados Unidos para mais oito anos de pastoreios mal-sucedidos no Colorado, em Kentucky e na Carolina do Sul. Para alguns, a razão da fraca acolhida de seu ministério nesse campo deveu-se à personalidade excêntrica (de fato, Pink não se encaixava em qualquer lugar).
Em 1934, retornou em definitivo à sua pátria natal, fazendo residência na Ilha de Lewis (Escócia) em 1940, onde permanece em isolamento praticamente até sua morte, sem nenhuma ligação formal com qualquer denominação — posição que não deve ser defendida nem justificada. A partir de então, seu serviço no Reino de Deus passou a ser escrever dúzias de livros e mais de dois mil artigos, todavia, sem sucesso editorial.
Em sua época, Arthur Pink era praticamente desconhecido e, certamente, não era apreciado. O estudo por conta própria da Bíblia firmou-lhe a convicção de que muito do moderno evangelismo era defeituoso. Fez frente à crescente aceitação do arminianismo mesmo em tradicionais redutos calvinistas, como as igrejas batistas, levando adiante, com zelo incansável, os princípios da então abandonada literatura reformada. Para ele, o declínio espiritual da Grã-Bretanha era resultante de um “evangelho” que nem feria (com convicção de pecado) nem curava (pela regeneração).
Após o seu falecimento em 1952, porém, ele veio a ter significativa influência. Tendo suas obras republicadas por The Banner of Truth Trust, veio a alcançar um público muito maior como conseqüência (quase 178 mil exemplares vendidos apenas de The Sovereignty of God, por exemplo). Seu biógrafo Iain Murray observou: “A difundida circulação de seus escritos após sua morte tornou-o um dos mais influentes autores evangélicos da segunda metade do século XX”. Familiarizado com toda a gama da verdade, Pink raramente se desviou dos grandes temas: graça, justificação e santificação. A nossa geração tem com ele uma grande dívida, pela permanência da luz que ele lançou, pela divina graça, sobre a verdade da Bíblia Sagrada. Seus escritos lançaram a faísca que deu início ao reavivamento da pregação bíblica e levaram muitos leitores a focalizarem o coração na vida de acordo com a Palavra de Deus.

Algumas frases de A. W. Pink:

• “A tendência da moderna teologia — se se pode chamá-la de teologia — é sempre rumo à deificação da criatura ao invés da glorificação do Criador”.

• “Não perguntamos: ‘Cristo é seu Salvador’, mas: ‘É Ele, real e verdadeiramente, seu Senhor?’ Se Ele não for seu Senhor, então, com a mais absoluta certeza, Ele não é seu Salvador”.

• “O fundamento de todo verdadeiro conhecimento de Deus deve ser uma clara apreensão mental de Suas perfeições como reveladas nas Escrituras. Não se pode confiar, adorar ou servir a um Deus desconhecido”.

• “O Deus deste século vinte não se assemelha mais ao Soberano Supremo das Escrituras Sagradas do que a bruxuleante e fosca chama de uma vela se assemelha à glória do sol do meio-dia. O Deus de que se fala atualmente no púlpito comum, comentado na escola dominical em geral, mencionado na maior parte da literatura religiosa da atualidade e pregado em muitas das conferências bíblicas, assim chamadas, é uma ficção engendrada pelo homem, uma invenção do sentimentalismo piegas. Os idólatras do lado de fora da cristandade fazem “deuses” de madeira e de pedra, enquanto que os milhões de idólatras que existem dentro da cristandade fabricam um Deus extraído de suas mentes carnais. Na realidade, não passam de ateus, pois não existe alternativa possível senão a de um Deus absolutamente supremo, ou nenhum deus. Um Deus cuja vontade é impedida, cujos desígnios são frustrados, cujo propósito é derrotado, nada tem que se lhe permita chamar Deidade, e, longe de ser digno objeto de culto, só merece desprezo”.


Livros traduzidos no Brasil:
• Attributes of God (Os Atributos de Deus, Editora PES)
• Profiting from the Word of God (Enriquecendo-se com a Bíblia, Editora Fiel)
• Studies on Saving Faith (Estudo sobre a Fé Salvífica, Site Monergismo.com)
• The Doctrine of Justification (A Doutrina da Justificação, Site Monergismo.com)
• The Seven Sayings of the Saviour on the Cross (Os Sete Brados do Salvador sobre a Cruz, Site Monergismo.com)
• The Sovereignty of God (Deus é Soberano, Editora Fiel)
[1] Nota do tradutor: Atos 2.23 na versão do autor, ou seja, a KJV (King James Version)
[2] Nota do tradutor: Zacarias 13.7.
[3] Nota do tradutor: João 1.14.
[4] Nota do tradutor: Lucas 23.46.
[5] Nota do tradutor: Romanos 6.23.
[6] Nota do tradutor: João 18.38, Bíblia de Jerusalém.
[7] Nota do tradutor: 1Pedro 3.18.
[8] Nota do tradutor: tradução direta da Revised Version inglesa.
[9] Nota do tradutor: João 18.5, traduzido diretamente da KJV
[10] Nota do tradutor: Isaías 53.2.
[11] Nota do tradutor: Nas versões brasileiras ARC, ARA e NVI, fica mais nítido o fato de que o versículo faz referência a um ato passado, e não contínuo. Nelas lemos: “... pelos transgressores intercedeu”.
[12] Nota do tradutor: A ARC trás “por erro”, tanto no versículo 24, como no 25. A ARA traduz o versículo 24 como “por ignorância” e o 25 como “por erro”. A KJV, versão utilizada por Pink, traduz os dois versículos como “por ignorância”, deixando o entendimento da passagem mais claro e sendo mais coerente, visto que em ambos os versículos o termo hebraico é o mesmo, a saber, hggv.
[13] Nota do tradutor: 1João 1.7.
[14] Nota do tradutor: Mateus 3.17.
[15] Nota do tradutor: Lucas 19.14.
[16] Nota do tradutor: Mateus 27.22.
[17] Nota do tradutor: Atos 16.31.
[18] Nota do tradutor: Marcos 10.51.
[19] Nota do tradutor: João 1.17.
[20] Nota do tradutor: Romanos 5.21.
[21] Nota do tradutor: Romanos 3.26.
[22] Nota do tradutor: Hebreus 9.22.
[23] Nota do tradutor: Na versão do autor, ou seja, a KJV. A ARC trás “e”, enquanto a ARA trás “contudo”.
[24] Nota do tradutor: Colossenses 1.18.
* Deveria ser adicionado, à guisa de explicação, que é o aspecto judicial que temos tratado aqui. O perdão restaurador - que é o trazer de volta, novamente à comunhão, um crente que pecou - tratado em 1João 1.9 - é outra questão totalmente distinta.
[25] Nota do tradutor: Observe o leitor também que, naquelas três cruzes, podemos ver toda a humanidade ali representada, nas pessoas do pecador obstinado, do pecador penitente e de Cristo, único homem sem pecado.
[26] Nota do tradutor: Marcos 16.15.
[27] Nota do tradutor: João 6.37.
[28] Nota do tradutor: 1Coríntios 3.6.
[29] Nota do tradutor: João 1.29.
[30] Nota do tradutor: Salmo 37.39.
[31] Nota do tradutor: Versículo traduzido diretamente da “Authorised Version” (KJV) inglesa usada pelo autor.
[32] Nota do tradutor: trecho vertido diretamente da King James Version do original. O autor aqui usa o termo com certa liberdade, já que, na época em que foi entregue a KJV, impotent era palavra usada para se referir também a pessoas inválidas, sem forças (que é o contexto da passagem citada), como corretamente o trazem as nossas tradicionais edições em português.
[33] Nota do tradutor: em inglês, work significa tanto ‘trabalho’ quanto ‘obra’. Jogo de palavras do autor.
[34] Nota do tradutor: Atos 20.21, ARA.
[35] Nota do tradutor: Mateus 27.37.
[36] Nota do tradutor: Romanos 10.14.
[37] Nota do tradutor: João 19.6.
[38] Nota do tradutor: Mateus 27.19.
[39] Nota do tradutor: 2Coríntios 5.7.
[40] Nota do tradutor: 1Timóteo 1.15.
[41] Nota do tradutor: 1Pedro 1.11
[42] Nota do tradutor: Mateus 16.17.
[43] Nota do tradutor: Mateus 11.25.
[44] Nota do tradutor: João 6.37.
[45] Nota do tradutor: Hebreus 4.16.
[46] Nota do tradutor: Hebreus 7.25.
[47] Nota do tradutor: Efésios 3.20.
[48] Nota do tradutor: Isaías 53.11.
[49] Nota do tradutor: o autor se fixa sempre na tradicionalíssima Bíblia inglesa King James Version e, por não termos uma edição portuguesa que a ela corresponda integralmente aqui, preferimos fazer a tradução direta. Porém, as nossas versões vernáculas trazem os termos “escândalo”, “tropeço”, ou “escandalizar”, “tropeçar”, bem mais adequados. Acontece que, na época em que a KJV foi entregue, o verbo to offend tinha o sentido de levar a tropeçar ou a pecar.
[50] Nota do tradutor: Efésios 6.10.
[51] Nota do tradutor: João 21.20.
[52] Nota do tradutor: João 19.27.
[53] Nota do tradutor: o autor inicia “filho” com maiúscula, no original, e o faz com certa liberdade, já que essa palavra não é encontrada assim nem versão inglesa por ele empregada. Preferimos nos ater ao original, porém.
[54] Nota do tradutor: João 1.29.
[55] Nota do tradutor: João 19.23.
[56] Nota do tradutor: João 18.38.
[57] Nota do tradutor: Citação livre de 1Reis 8.57.
[58] Nota do tradutor: Salmo 37.25.
[59] Nota do tradutor: Isaías 53.5.
[60] Nota do tradutor: Mateus 26.41.
[61] Nota do tradutor: Atos 2.23, na tradução direta da King James Version inglesa do autor.
[62] Nota do tradutor: Gênesis 3.15.
[63] Nota do tradutor: 1Pedro 3.18.
[64] Nota do tradutor: Jó 15.15.
[65] Nota do tradutor: Isaías 6.2.
[66] Nota do tradutor: Romanos 8.32 (Novo Testamento Edições Paulinas).
[67] Nota do tradutor: O autor já foi partidário da controvertida teologia dispensacional, elaborada por J. N. Darby e difundida por C. I. Scofield. Depois se arrependeu, tanto que escreveu uma obra atacando virulentamente tal ensino, A Study of Dispensationalism, que pode ser acessada em http://www.pbministries.org/books/pink/Dispensationalism/dispensationalism.htm . Está nos planos do site Monergismo.com a tradução para o português desse livro, se nosso Senhor o permitir.
[68] Nota do tradutor: Mc 14.34.
[69] Nota do tradutor: Comparar com Salmo 116.12,13.
[70] Nota do tradutor: Hebreus 1.3.
[71] Nota do tradutor: Êxodo 12.13.
[72] Nota do tradutor: Números 21.8.
[73] Nota do tradutor: Trecho de um hino. No original: He suffered in our stead, he saved his people thus;/The curse that fell upon his head, was due by right to us./The storm that bowed his blessed head, is hushed for ever now/And rest Divine is mine instead, while glory crowns his brow.
[74] Nota do tradutor: João 8.44.
[75] Nota do tradutor: Hebreus 9.27.
[76] Nota do tradutor: Na versão portuguesa de D. Vicente M. Zioni (Novo Testamento Edições Paulinas).
[77] Nota do tradutor: Tradução alternativa de João 1.14, escolhida pelo autor, pouco comum mas perfeitamente válida.
[78] Nota do tradutor: Cf. capítulo primeiro da Epístola.
[79] Nota do tradutor: João 14.9.
[80] Nota do tradutor: Na versão portuguesa de D. Vicente M. Zioni (Novo Testamento Edições Paulinas).
[81] Nota do tradutor: Isaías 53.7.
[82] Nota do tradutor: Mateus 4.4.
[83] Nota do tradutor: Isaías 8.20.
[84] Nota do tradutor: Salmo 119.105.
[85] Nota do tradutor: 1João 1.7.
[86] Nota do tradutor: Cf. Mateus 28.18; Lucas 10.22; João 13.3; 17.2 etc.
[87] Nota do tradutor: Êxodo 17.1-7.
[88] Nota do tradutor: João 2.
[89] Nota do tradutor: Mateus 4 e Lucas 4.
[90] Nota do tradutor: Lucas 22.42.
[91] Nota do tradutor: Lucas 9.58.
[92] Nota do tradutor: Mateus 4.2.
[93] Nota do tradutor: 1João 4.8b.
[94] Nota do tradutor: Salmo 94.7, ARA.
[95] Nota do tradutor: Salmo 73.11.
[96] Nota do tradutor: Isaías 53.3. As iniciais maiúsculas são por conta do autor.
[97] Nota do tradutor: Eclesiastes 1.14; 2.11, 17.
[98] Nota do tradutor: No original: I came to Jesus as I was, /Weary, and worn, and sad; /I found in him a resting place, /And he has made me glad. Trecho de um hino de Horatius Bonar, composto no século XIX. Uma versão portuguesa pode ser encontrada no Cantor Cristão (hinário dos batistas brasileiros), sob o número 394.

[99] Nota do tradutor: Cf. Atos 20.28 e 1Pedro 1.18,19.
[100] Nota do tradutor: Gr. Τετελεσται.
[101] Nota do tradutor: Realmente, tanto a Authorised Version usada pelo autor quanto a nossa tradicional Bíblia de Almeida (em qualquer de suas variantes), não fazem essa importante distinção. Isso se deve à influência que a Vulgata exerceu sobre ambas as traduções, já que essa traz “perfuraram minhas mãos e pés” em Sl 22.16, sem dúvida induzida por Is 53.5, mas o fato é que nenhum dos evangelistas aludiu ao primeiro no relato da Paixão.
[102] Nota do tradutor: Marcos 4.39.
[103] Nota do tradutor: Entretanto, notar que a profecia de Ml 4.5,6 não foi cumprida literalmente na época do primeiro advento de Jesus, e é nosso Senhor mesmo quem o declara de maneira ineludível em Mt 11.14 e 17.10-13. Por seu turno, o apóstolo Pedro (At 4) já dá como realizada a profecia de Sl 2.1,2, só que na pessoa dos discípulos (pois persegui-los e rejeitá-los é perseguir e rejeitar o seu Mestre, cf. At 9.4,5 e Lc 10.16).
[104] Nota do tradutor: João 2.4.
[105] Nota do tradutor: João 3.14.
[106] Nota do tradutor: Marcos 10.35-38.
[107] Nota do tradutor: No original: The Head that once was crowned with thorns/ Is crowned with glory now;/ A royal diadem adorns/ The mighty Victor's brow./ The highest place that heaven affords/ Is His, is His by right,/ The King of kings and Lord of lords,/ And heaven's eternal Light;/ The Joy of all who dwell above,/ The Joy of all below/ To whom He manifests His love/ And grants His name to know. Trecho de um hino de Thomas Kelly (1769-1854), composto em 1820 e parte integrante de The Handbook to the Lutheran Hymnal (hinário dos luteranos de língua inglesa), # 219 ("The Head That Once was Crowned with Thorns").
[108] Nota do tradutor: Cf. 2Pd 1.21.
[109] Nota do tradutor: Cf. Jo 14.26; 2Tm 3.16 (“divinamente inspirada”: literalmente, “sopradas por Deus”. Em grego, o verbo “soprar” é da mesma raiz do substantivo “espírito”)
[110] Nota do tradutor: Cf. Jo 16.13.
[111] Nota do tradutor: Hebreus 10.7.
[112] Nota do tradutor: Salmo 2.2 (lembrando que “Cristo”, em grego, quer dizer “ungido”)
[113] Nota do tradutor: Em sua época, o autor foi uma das poucas vozes a se erguer vigorosa e categoricamente contra o arminianismo, que então começava a grassar até mesmo em grupos outrora francamente calvinistas, como os batistas.
[114] Nota do tradutor: V. Gênesis 3.21.
[115] Nota do tradutor: V. Gênesis 4.4.
[116] Nota do tradutor: V. Gênesis 6.13-7.24.
[117] Nota do tradutor: V. Gênesis 22
[118] Nota do tradutor: V. Êxodo 12.1-28.
[119] Nota do tradutor: V. Números 21.4-9.
[120] Nota do tradutor: V. Êxodo 17.1-7.
[121] Nota do tradutor: V. Mateus 27.51
[122] Nota do tradutor: V. Hebreus 1.3.
[123] Nota do tradutor: V. Atos 2.
[124] Nota do tradutor: No original: Upon a Life I did not live,/ Upon a Death I did not die,/ Another’s death Another’s life/ I cast my soul eternally/ Bold shall I stand in that great day,/ For who, aught to my charge can lay?/ Fully absolved by Christ I am,/ From sin’s tremendous curse and blame. Trecho de um hino de Horatius Bonar (1808-1889).
[125] Nota do tradutor: No original: Free from the law, O happy condition!/ Jesus hath blest and there is remission./ Cursed by the law and dead by the fall,/ Grace hath redeemed us once for all. Trecho de um hino de P. P. Bliss (1838-1876). Uma versão portuguesa dessa composição pode ser achada no Cantor Cristão batista, # 376 (“Salvação Perfeita”).
[126] Nota do tradutor: Apocalipse 20.1-3.
[127] Nota do tradutor: Efésios 2.2.
[128] Nota do tradutor: Filipenses 2.13.
[129] Nota do tradutor: Zacarias 13.7 (ARA).
[130] Nota do tradutor: Romanos 8.28.
[131] Nota do tradutor: Efésios 1.19b,20. V. também At 7.55,56 e Hb 1.3,4.
[132] Nota do tradutor: Salmo 110.1
[133] Nota do tradutor: Salmo 2.9; Apocalipse 2.27; 12.5; 19.15.
[134] Nota do tradutor: João 19.15.
[135] Nota do tradutor: Mateus 7.23; 25.41.
[136] Nota do tradutor: Lucas 4.1-4.
[137] Nota do tradutor: João 11.4.
[138] Nota do tradutor: João 4.34.
[139] Nota do tradutor: Mateus 11.29.
[140] Nota do tradutor: Ou, “espiritual”, também possível.
[141] Nota do tradutor: Atos 3.15.
[142] Nota do tradutor: Mateus 13.21.
[143] Nota do tradutor: Lucas 11.26.
[144] Nota do tradutor: 2Coríntios 5.7.
[145] Nota do tradutor: 1Coríntios 15.55-57.
[146] Nota do tradutor: João 1.18
[147] Nota do tradutor: Efésios 6.16.

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