ENRIQUECENDO-SE COM A BÍBLIA
A. W. Pink
Original em inglês:
PROFITING FROM THE WORD
Copyright © I. C. Herendeen
Primeira edição em português – 1979
EDITORA FIEL LTDA.
Caixa Postal, 210 12940 – Atibaia – SP.
1979
ENRIQUECENDO-SE COM A BÍBLIA
De que maneira podemos ser beneficiados da Bíblia?
A passagem de 2 Timóteo 3:16-17, nos fornece clara resposta a essa pergunta: "Toda a escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção, para a educação na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra". Nos dez capítulos deste livro o autor examina o que a Bíblia nos ensina acerca de: PECADO, DEUS, CRISTO, ORAÇÃO, BOAS OBRAS, OBEDIÊNCIA, MUNDO, PROMESSAS, ALEGRIA, AMOR.
ÍNDICE
1 – As Escrituras e o Pecado . . . . . . . . . . . . . . 3
2 – As Escrituras e Deus . . . . . . . . . . . . . . . . 14
3 – As Escrituras e Cristo . . . . . . . . . . . . . . . 27
4 – As Escrituras e a Oração . . . . . . . . . . . . . 39
5 – As Escrituras e as Boas Obras . . . . . . . . . 52
6 – As Escrituras e a Obediência . . . . . . . . . . 64
7 – As Escrituras e o Mundo . . . . . . . . . . . . . . 76
8 – As Escrituras e as Promessas . . . . . . . . . 86
9 – As Escrituras e a Alegria . . . . . . . . . . . . . 98
10 – As Escrituras e o Amor . . . . .. . . . . . . . . 110
AS ESCRITURAS E O PECADO
Há seriíssimas razões para crermos que grande parte da leitura e do estudo bíblicos, nestes últimos poucos anos, não tem sido de grande proveito para aqueles que disso se tem ocupado. E vamos mais longe; pois tememos grandemente que, em muitos casos, isso tem sido antes uma maldição do que uma bênção. Estamos perfeitamente cônscios de que esta é uma linguagem dura, mas não mais forte do que o caso exige. Os dons divinos podem ser sujeitados a uso errôneo, e as misericórdias divinas podem ser alvo de abusos. Que assim tem sido, naquilo que aqui salientamos, é evidente através dos frutos produzidos.
Até mesmo o homem natural pode (e com freqüência o faz) atirar-se ao estudo das Escrituras com o mesmo entusiasmo e prazer que faria se estudasse as ciências. Quando assim faz, aumenta o seu cabedal de conhecimentos, mas também aumenta o seu orgulho. Tal como o químico atarefado em fazer experiências interessantes, o pesquisador intelectual da Palavra é invadido de satisfação ao fazer ali alguma descoberta; mas a alegria deste último não é mais espiritual do que a alegria daquele primeiro.
Outrossim, tal como os sucessos de um químico geralmente acentuam o seu senso de importância própria, levando-o a olhar com desdém para outros, que sejam mais ignorantes que ele mesmo, assim também, desafortunadamente, dá-se no caso daqueles que investigam a numerologia, a tipologia, a profecia bíblica e outros temas dessa natureza.
O estudo da Palavra de Deus pode ser levado a efeito com base em vários motivos. Alguns lêem-na a fim de satisfazerem seu orgulho literário. Em certos círculos tornou-se algo respeitável e popular a obtenção de um conhecimento geral do conteúdo da Bíblia, simplesmente por ser considerado como defeito de educação a ignorância dela. Outros lêem a Bíblia para satisfazer seu senso de curiosidade, como o fariam com qualquer outro livro famoso. Ainda outros lêem-na para satisfazer seu orgulho sectarista. Esses consideram um dever estar bem familiarizados com as crenças particulares de sua própria denominação, pelo que também buscam ansiosamente textos de prova que dão apoio ao que eles chamam de ''nossas doutrinas''. Ainda há aqueles que lêem a Bíblia com a finalidade de argumentar com êxito com aqueles que discordam de suas opiniões. Em toda essa atividade, entretanto, não há qualquer pensamento acerca de Deus, não há qualquer anelo pela edificação espiritual, e, portanto, não há qualquer beneficio real para a alma.
Assim sendo, de que maneira nos podemos beneficiar da Bíblia? A passagem de II Timóteo 3:16,17 não nos fornece clara resposta para essa pergunta? Lemos ali: "Toda Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção, para a educação na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra." Observemos o que aqui é omitido: as Sagradas Escrituras não nos foram dadas a fim de satisfazer nossa curiosidade intelectual e nem nossas especulações carnais, e sim para habilitar-nos para toda boa obra, e isso mediante o ensino, a reprovação e a correção. Envidaremos esforços por ampliar isso com a ajuda de outros trechos bíblicos.
1. O indivíduo se beneficia espiritualmente quando a Palavra o convence de pecado.
Este é o seu primeiro préstimo: revelar a nossa depravação, desmascarar a nossa vileza, tornar conhecida a nossa iniquidade. A vida moral de um homem pode ser irrepreensível, seu trato com os seus semelhantes pode ser sem faltas; mas quando o Espírito Santo aplica a Palavra ao seu coração e à sua consciência, abrindo os seus olhos fechados pelo pecado para que perceba a sua relação e a sua atitude para com Deus, então ele exclama: "Ai de mim! Estou perdido!" (Isaías 6:5). É desse modo que toda a alma verdadeiramente salva é levada a perceber a necessidade que tem de Cristo. "Os sãos não precisam de médicos, e, sim, os doentes" (Lucas 5:31). Contudo, somente quando o Espírito aplica a Palavra, com poder divino, é que qualquer indivíduo é levado a sentir-se enfermo, enfermo até à morte.
Essa convicção, que impressiona o coração com o fato de que o pecado produziu tremenda devastação na constituição humana, não se restringe à experiência inicial, que precede de imediato à conversão. De cada vez que Deus bendiz a sua Palavra em meu coração, sou levado a sentir quão longe ando do padrão que Ele me apresenta, a saber: "...tornai-vos santos também vós mesmos em todo vosso procedimento" (I Pedro 1:15). Aqui, por conseguinte, temos o primeiro teste a ser aplicado: quando leio acerca dos tristes fracassos de diferentes personagens das Escrituras, isso me faz perceber quão infelizmente parecido com eles eu sou? E quando leio sabre a vida bem-aventurada e perfeita como a de Cristo, isso me faz reconhecer quão terrivelmente diferente sou eu dEle?
2. O indivíduo se beneficia espiritualmente quando a Palavra o faz entristecer-se por causa do pecado.
Com respeito ao ouvinte do solo rochoso foi dito que "...esse é o que ouve a palavra e a recebe logo, com alegria; mas não tem raiz em si mesmo, sendo antes de pouca duração..." (Mateus 13:20, 21). Porém, acerca daqueles que foram convencidos de pecado, sob a pregação de Pedro, está registrado que eles se sentiram compungidos em seus corações (ver Atos 2:37). O mesmo contraste se verifica hoje. Muitos ouvem um sermão floreado ou um discurso sobre a ''verdade dispensacional'', que exibe a capacidade de oratória ou mostra a habilidade intelectual do orador, mas que, usualmente, não contém qualquer aplicação à consciência. Aquela exposição é recebida com aprovação, mas ninguém é humilhado diante de Deus e nem é levado a andar mais perto dEle, por ela.
Porém, deixe-se que um servo fiel do Senhor (o qual pela graça divina não busca adquirir reputação por ''brilhantismo'') faça os ensinamentos bíblicos exercerem pressão sabre o caráter e a conduta, desvendando os tristes fracassos até mesmo dos melhores entre o povo de Deus, e embora a multidão despreze o mensageiro, as pessoas realmente regeneradas sentir-se-ão gratas pela mensagem que as leva a se lamentarem diante de Deus e a clamarem: "Desventurado homem que sou!" (Romanos 7:24). Assim acontece quando lemos pessoalmente a Palavra. E assim sucede quando o Espírito Santo a aplica de tal maneira que sou levado a ver e a sentir minha corrupção íntima, para que eu seja verdadeiramente abençoado.
Que palavra encontramos no trecho de Jeremias 31:19: "Na verdade, depois que me converti, arrependi-me; depois que fui instruído, bati no peito; fiquei envergonhado, confuso, porque levei o opróbrio da minha mocidade!"
Meu prezado amigo, você conhece algo parecido com essa experiência? Os seus estudos da Palavra de Deus produzem um coração quebrantado e o levam a humilhar-se perante Deus? Fica você convicto de seus pecados, de tal modo que é levado a arrepender-se diariamente perante ele? O cordeiro pascal tinha de ser comido com ''ervas amargas'' (Êxodo 12:8). Por semelhante modo, quando realmente nos alimentamos da Palavra, o Espírito Santo a torna "amarga" para nós, antes de tornar-se doce ao nosso paladar. Notemos a ordem das coisas, no trecho de Apocalipse 10.9: "Fui pois, ao anjo, dizendo-lhe que me desse o livrinho. Ele então me fala: Toma-o, e devora-o; certamente ele será amargo ao teu estômago, mas na tua boca, doce coma mel". Essa será sempre a ordem da experiência: primeiramente deve vir a lamentação, e somente depois vem o consolo (Mateus 5:4); primeiro a humilhação, e depois a exaltação (I Pedro 5 :6).
3. O indivíduo se beneficia espiritualmente quando a Palavra o conduz à confissão de pecado.
As Escrituras são proveitosas para a "repreensão" (II Timóteo 3:16); e a alma honesta está pronta a reconhecer as suas próprias faltas. Mas acerca do indivíduo carnal é declarado: "Pois todo aquele que pratica o mal, aborrece a luz e não se chega para a luz, a fim de não serem argüidas as suas obras" (João 3:20). "Deus tenha misericórdia de mim, um pecador", é o clamor dos corações renovados; e cada vez que somos revivificados pela Palavra (Salmo 119), recebemos nova revelação e renovada convicção de nossas transgressões aos olhos de Deus. "O que encobre as suas transgressões, jamais prosperará; mas o que as confessa e deixa, alcançará misericórdia" (Provérbios 28:13). Não pode haver prosperidade nem frutificação espirituais (Salmos 1:3), enquanto ocultarmos em nosso seio as nossas culpas secretas; somente quando são livremente reconhecidas perante Deus, e isso com detalhes, é que desfrutaremos de Sua misericórdia.
Não há paz real para a consciência e nem descanso para o coração, enquanto sepultarmos a carga do pecado não confessado. O alívio só nos é outorgado se confessarmos o pecado a Deus. Notemos bem a experiência de Davi: "Enquanto calei os meus pecados, envelheceram os meus ossos, pelos meus constantes gemidos todo o dia. Porque a tua mão pesava dia e noite sobre mim; e o meu vigor se tornou em sequidão de estio." (Salmos 32:3,4).
Essa linguagem figurada mas vigorosa lhe parece ininteligível? ou a sua própria história espiritual a explica? Há muitos versículos nas Escrituras que nenhum comentário pode interpretar satisfatoriamente, mas que a experiência pessoal pode fazê-lo. Verdadeiramente bem-aventuradas são as palavras seguintes: "Confessei-te o meu pecado e a minha iniqüidade não mais ocultei. Disse: Confessarei ao SENHOR as minhas transgressões; e tu perdoaste a iniqüidade do meu pecado." (Salmos 32:5)
4. O indivíduo se beneficia da Palavra, espiritualmente falando, quando ele odeia o pecado com maior profundidade.
"Vós, que amais o SENHOR, detestai o mal: ele guarda as almas dos seus santos, livra-os da mão dos ímpios" (Salmos 97:10). "Não podemos amar a Deus sem odiar aquilo que Ele odeia. Não somente devemos evitar o mal, recusando-nos a continuar nele, mas também devemos declarar guerra contra ele, voltando-nos contra ele com indignação no íntimo" (C.H. Spurgeon).
Um dos testes mais seguros que se pode aplicar à professada conversão é a atitude do coração para com o pecado. Sempre que o princípio de santidade houver sido implantado, necessariamente haverá repulsa por tudo quanto é profano. E se nosso repúdio ao mal for genuíno, então seremos gratos quando a Palavra reprovar até mesmo o mal de que nem suspeitávamos.
Essa foi também a experiência de Davi: "Por meio dos teus preceitos consigo entendimento; par isso detesto todo caminho de falsidade" (Salmos 119:104). Observemos atentamente que não devemos meramente "abster-nos do pecado", pois "detesto"; e não somente a "alguns" ou "muitos" pecados, mas antes, a "todo caminho de falsidade", e não apenas a "todo mal" mas a "todo caminho de falsidade". E continua o salmista: "Por isso tenho por em tudo retos os teus preceitos todos, e aborreço todo caminho de falsidade" (Salmos 119:128).
No entanto, dá-se exatamente o contrário no caso do ímpio: "De que te serve repetires os meus preceitos e teres nos lábios a minha aliança, uma vez que aborreces a disciplina e rejeitas as minhas palavras? " (Salmos 50:16,17).
E em Provérbios 8:13, lemos: "O temor do SENHOR consiste em aborrecer o mal; a soberba, a arrogância, o mau caminho, e a boca perversa, eu os aborreço". Ora, esse temor piedoso nos vem através da leitura da Palavra (ver a passagem de Deuteronômio 17:18,19). Com razão, pois, é que alguém declarou: "Enquanto não odiarmos ao pecado, não poderemos mortificá-lo, ninguém clamará contra o pecado, como os judeus clamaram contra o Cristo: ''Crucifica-O! Crucifica-O!'', enquanto realmente não abominar o pecado como Ele foi abominado" (Edward Reyner, 1635).
5. O indivíduo se beneficia espiritualmente quando a Palavra o leva a abandonar o pecado.
"Aparte-se da injustiça todo aquele que professa o nome do Senhor" (II Timóteo 2:19). Quanto mais lemos a Palavra com o objetivo definido de descobrir o que é agradável e o que é desagradável ao Senhor, mais a Sua vontade tornar-se-á conhecida por nós; e se os nossos corações forem corretos diante dEle, mais ainda os nossos caminhos se harmonizarão com a Sua vontade. Então é que andaremos "na verdade" (II João 4).
No fim do sexto capítulo da segunda epístola aos Coríntios algumas promessas preciosas são dadas àqueles que se separarem dos incrédulos. Observemos, naquela passagem, a aplicação feita pelo Espírito Santo. Não diz o Senhor "Tendo, pois, ó amados, tais promessas, consolemo-nos e nos entreguemos à complacência...", e, sim: "Tendo, pois, ó amados, tais promessas, purifiquemo-nos de toda impureza, tanto da carne, como do espírito..." (II Coríntios 7:1).
"Vós já estais limpos, pela palavra que vos tenho falado" (João I5:3). Eis aqui uma outra importante regra, par meio da qual nos deveríamos testar com freqüência: a leitura e o estudo da Palavra de Deus está produzindo a purgação de minha conduta? Desde os dias antigos vinha sendo feita a indagação: "De que maneira poderá o jovem guardar puro o seu caminho?" E a resposta do salmista inspirado declara: ''Observando-o segundo a Tua Palavra" (Salmo119:9).
Sim, não basta ler a Palavra, crer nela ou memorizá-la; mas é preciso haver a aplicação pessoal da Palavra ao nosso "caminho". É quando "damos ouvidos" a exortações como aquelas que estipulam: "Fugi da impureza!" (I Coríntios 6:18), "Fugi da idolatria" (I Coríntios 10:14), "... foge destas cousas..." – da cobiça apaixonada pelo dinheiro (1 Tim. 6:11) e "Foge, outrossim, das paixões da mocidade" (II Tim. 2:22), é que o crente é levado a separar-se do mal, na prática; pois então o pecado não somente tem sido confessado, mas também tem sido "deixado" (ver Provérbios 28:13).
6. O indivíduo se beneficia espiritualmente quando a Palavra o fortalece contra o pecado.
As Sagradas Escrituras nos foram dadas não somente com o propósito de revelar-nos a nossa pecaminosidade inata, ou a fim de mostrar as muitas e muitas maneiras mediante as quais carecemos "da glória de Deus" (Romanos 3:23), mas igualmente para ensinar-nos como podemos obter livramento do pecado, como podemos ser livres de desagradar a Deus. "Guardo no coração as tuas palavras, para não pecar contra ti" (Salmos 119:11). E de cada um de nós é requerido o seguinte: "Aceita, pego-te, a instrução que profere, e põe as suas palavras no teu coração" (Jó 22:22).
O de que precisamos é, particularmente, dos mandamentos, das advertências, das exortações da Bíblia, para que sejam como que nosso tesouro particular; devemos memorizá-los, meditar sobre os mesmos, orar a seu respeito e pô-los em prática. Eis a única maneira eficaz de se evitar que um terreno qualquer seja invadido por ervas daninhas: é semear ali a boa semente: "...vence o mal com o bem" (Romanos 12:21). Por conseguinte, quanto mais "ricamente" estiver habitando em nós a Palavra de Cristo (ver Colossenses 3:16), menos espaço haverá para o exercício do pecado, em nossos corações e em nossas vidas.
Não é suficiente apenas assentirmos à veracidade das Escrituras, mas é necessário que elas sejam recebidas em nossos afetos. É uma verdade soleníssima aquela em que o Espírito Santo especifica a base da apostasia, "...porque ao amor da verdade eles não receberam" (II Tessalonicenses 2:10, grego).
"Se essa semente ficar apenas na língua ou na mente, para que seja apenas uma questão de palavras ou de especulação, não demorará muito para que desapareça. A semente que jaz à superfície será apanhada pelas aves do céu. Portanto, que cada qual a esconda no profundo do ser; que vá dos ouvidos para a mente, da mente para o coração; e que ela penetre cada vez mais profundamente. Somente ao exercer ela um domínio soberano sobre o coração, é que a receberemos na força de seu amor – quando ela é mais cara para nós que nossas concupiscências mais queridas, então nos apegamos a ela". (Thomas Manton).
Não há qualquer outra coisa que nos preserve das infecções deste mundo, que nos livre das tentações de Satanás, que se mostre preservativo tão eficaz contra o pecado, como a Palavra de Deus recebida em nossos afetos: "No coração tem ele a lei do seu Deus; os seus passos não vacilarão" (Salmos 37:31). Enquanto a verdade mostrar-se ativa em nosso íntimo, despertando-nos a consciência e sendo realmente amada par nós, seremos preservados da queda. Quando José foi tentado pela esposa de Potifar, respondeu ele: "... como, pois, cometeria eu tamanha maldade, e pecaria contra Deus?" (Gênesis 39:9). A Palavra de Deus se achava em seu coração, pelo que também prevaleceu sobre os seus desejos. Essa é a inefável santidade, o grandioso poder de Deus, o qual é poderoso tanto para salvar como para destruir.
Nenhum de nós sabemos em que ocasião será sujeito às tentações; portanto, é mister estarmos preparados contra elas. "Quem há entre vós que ouça isto? que atenda e ouça o que há de ser depois?" (Isaías 42:23). Sim, compete-nos antecipar o futuro e nos fortalecermos intimamente para ele, entesourando a Palavra em nossos corações, para as emergências futuras.
7. O indivíduo se beneficia espiritualmente quando a Palavra o leva a praticar o contrário do pecado.
"... o pecado é a transgressão da lei" (I João 3 :4). Deus diz: "Farás...'', mas o pecado retruca: "Não quero". Deus diz: "Não farás...", e o pecado diz: "Farei". Assim, pois, o pecado é a rebeldia contra Deus, é a determinação do indivíduo seguir o seu próprio caminho (ver Isa. 53:6).
Isso capacita-nos a entender que o pecado é uma espécie de anarquia no campo espiritual, o que pode ser comparado com o ato de sacudir uma bandeira vermelha no rosto de Deus. Ora, a atitude oposta ao pecado contra Deus é a submissão a Ele, da mesma maneira que o contrário da iniqüidade é a sujeição à lei. Portanto, praticar o contrário do pecado é andar na vereda da obediência.
Esta é uma das outras grandes razões pelas quais as Escrituras nos foram dadas: tornar conhecida a senda pela qual devemos andar, o que agrada a Deus. As Escrituras são proveitosas não somente para repreensão e correção, mas também para a "instrução na justiça".
Neste ponto, pois, encontramos outra importante regra mediante a qual devemos testar freqüentemente a nós mesmos: Os meus pensamentos estão sendo formados, o meu coração está sendo controlado e a minha conduta e as minhas obras estão sendo regulamentadas pela Palavra de Deus? Eis o que o Senhor exige: "Tornai-vos, pois, praticantes da palavra, e não somente ouvintes, enganando-vos a vós mesmos" (Tiago 1:22). E aqui temos a declaração de como devem ser expressos a nossa gratidão e os nossos afetos por Cristo: "Se Me amais, guardareis os Meus mandamentos" (João 14:15). Para tanto, é necessário a ajuda divina. Davi orava: "Guia-me pela vereda dos teus mandamentos, pois nela me comprazo" (Salmos I19:35).
"Precisamos não somente de luz para reconhecermos o nosso caminho, mas também de um coração bem disposto para andar por esse caminho. A orientação é necessária por causa da cegueira das nossas mentes; e os impulsos eficazes da graça são necessários par causa da fraqueza dos nossos corações. Não cumpriremos o nosso dever mediante a mera noção das verdades, a menos que as abracemos e as sigamos". (Manton). Notemos que o salmista falava sabre a "... vereda dos Teus mandamentos..." Não aludia ele a algum caminho pessoal, auto-escolhido, e, sim, a um caminho bem demarcado; não se trata de uma estrada "pública", mas de uma vereda ''particular''.
Que tanto o escritor como o leitor se aquilatem, honesta e diligentemente, como na presença de Deus, pelas sete coisas acima enumeradas. O estudo da Bíblia, prezado amigo, o tem tornado uma pessoa mais humilde, ou mais orgulhosa – orgulhosa com o conhecimento que assim adquiriu? Esse estudo o elevou na estima de seus semelhantes, ou o rebaixou a um lugar inferior, na presença de Deus? Tem isso produzido, em sua experiência, uma atitude de mais profunda repulsa e asco par si mesmo, ou tornou-o mais complacente? Isso tem feito com que aqueles que entram em contato consigo, aos quais talvez você ensine, digam: "Gostaria de ter o seu conhecimento sobre a Bíblia!"; ou isso os tem levado a orar: "Senhor, dá-me a fé, a graça e a santidade que tens conferido a meu amigo ou professor?'' "Medita estas cousas, e nelas sê diligente, para que o teu progresso a todos seja manifesto" (1 Timóteo 4:15).
AS ESCRITURAS E DEUS
As Santas Escrituras são totalmente sobrenaturais. São uma revelação divina. "Toda Escritura é inspirada por Deus. . ." (II Timóteo 3:16). Não ocorreu apenas que Deus elevou as mentes de certos homens, mas antes, que dirigiu os seus pensamentos. Não é simplesmente que Ele transmitiu a eles determinados conceitos, mas também ditou as próprias palavras que eles empregaram. "...porque nunca jamais qualquer profecia foi dada por vontade humana, entretanto homens (santos) falaram da parte de Deus, movidos pelo Espírito Santo" (II Pedro 1:21). Qualquer "teoria" humana que pretenda negar a inspiração verbal das Escrituras é um artifício de Satanás, um ataque contra a verdade divina. A imagem divina se acha estampada em cada uma de suas páginas. Escritos tão santos, tão celestiais, tão profundamente criadores de temor não poderiam ser produzidos pelos homens.
As Escrituras dão a conhecer um Deus sobrenatural. Talvez essa seja uma observação perfeitamente óbvia; mas, hoje em dia, precisa ser feita. O "deus" no qual crêem muitos cristãos professes, está sendo por eles paganizado cada vez mais. O lugar proeminente que o "esporte" tem ocupado na vida da nação, o amor excessivo pelos prazeres, a abolição da vida doméstica, a descarada imodéstia das mulheres, são outros tantos sintomas da mesma enfermidade que causou a queda e o desaparecimento de impérios como os da Babilônia, da Pérsia, da Grécia e de Roma. E o conceito de Deus que se propaga neste nosso século XX pela maioria das pessoas de países nominalmente "cristãos" rapidamente se aproxima do caráter atribuído aos deuses da antigüidade. Em violento contraste com isso, o Deus das Santas Escrituras está revestido de tais perfeições e está revestido de tais atributos que nenhum mero intelecto humano poderia tê-los inventado.
Deus só pode vir a ser conhecido por meio da revelação sobrenatural sobre a Sua própria pessoa. À parte das Escrituras, é totalmente impossível até mesmo a familiarização teórica com Deus. Continua sendo uma verdade que "... o mundo não O conheceu por sua própria sabedoria..." (I Coríntios 1:21). Em todos os lugares onde as Sagradas Escrituras são ignoradas, Deus é o "....DEUS DESCONHECIDO" (Atos 17 :23).
Porém, algo mais do que apenas as Escrituras se requer, antes que a alma possa conhecer a Deus, antes que possa conhecê-Lo de forma real, pessoal e vital. Mas isso parece ser reconhecido por bem poucos, hoje em dia. A prática prevalecente dá a entender que se pode obter o conhecimento de Deus através do mero estudo da Bíblia, da mesma maneira que o conhecimento acerca da química pode ser obtido através do estudo de compêndios de química. O conhecimento intelectual de Deus talvez possa ser obtido desta maneira; mas nunca o conhecimento espiritual.
Pois o Deus sobrenatural só pode ser conhecido sobrenaturalmente (isto é, de um modo superior àquilo que a mera natureza humana pode adquirir), ou seja, mediante a revelação sobrenatural do próprio Deus ao coração humano. "Porque Deus que disse: De trevas resplandecerá luz –, ele mesmo resplandeceu em nossos corações, para iluminação do conhecimento da glória de Deus na face de Cristo" (II Coríntios 4:6). Aquele que já foi favorecido com essa experiência sobrenatural já aprendeu que "... na Tua luz vemos a luz" (Salmos 36:9).
Deus só pode ser conhecido através da faculdade sobrenatural. Isso Cristo deixou bem claro, ao dizer: "Em verdade, em verdade te digo que se alguém não nascer de novo, não pode ver o reino de Deus" (João 3:3). Os indivíduos sem regeneração não têm qualquer conhecimento espiritual de Deus. "Ora, o homem natural não aceita as cousas do Espírito de Deus, porque lhe são loucura; e não pode entendê-las porque elas se discernem espiritualmente" (I Coríntios 2:14). A água, por si mesma, jamais se eleva acima de seu próprio nível. Assim também o homem natural é incapaz de perceber aquilo que transcende à mera natureza. No entanto, "... a vida eterna é esta: que te conhecem a Ti, o único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste" (João 17:3). A vida eterna precisa ser outorgada, antes que se possa conhecer o "verdadeiro Deus". Isso é afirmado claramente na passagem de I João 5:20: "Também sabemos que o Filho de Deus é vindo, e nos tem dada entendimento para reconhecermos o verdadeiro; e estamos no verdadeiro, em seu Filho Jesus Cristo.... " Sim, o "entendimento", um entendimento de natureza espiritual, par meio de uma nova criação, precisa ser-nos dada, antes que possamos conhecer a Deus de maneira espiritual.
O conhecimento sobrenatural de Deus produz uma experiência sobrenatural, mas isso é algo para o que multidões de membros de igrejas são totalmente estranhos. A maior parte da "religiosidade" de nossa época é apenas um "velho Adão" retocado. É meramente o adornar de sepulcros cheios de corrupção. É apenas uma formalidade "externa". E até nos casos onde há um credo saudável, com exagerada freqüência tal ortodoxia é morta.
E também não nos deveríamos admirar com tal estado de coisas. Sempre foi assim. Assim sucedia quando Cristo estava neste mundo. Os judeus eram muito ortodoxos. Naquela ocasião eles estavam isentos de idolatria. O templo permanecia de pé em Jerusalém, a lei mosaica era exposta e o Senhor era adorado. No entanto, Cristo disse a respeito deles: "... Aquele que me enviou é verdadeiro, aquele a quem vós não conheceis" (João 7:28). "Não Me conheceis a Mim nem a Meu Pai; se conhecêsseis a Mim, também conheceríeis a Meu Pai" (João 8:19). "...Quem Me glorifica é Meu Pai, o Qual vós dizeis que é vosso Deus, entretanto vós não O tendes conhecido; eu, porém, O conheço. Se disser que não O conheço, serei como vós, mentiroso; mas eu O conheço e guardo a Sua palavra" (Joio 8:54,55). E não nos olvidemos de que tudo isso foi dito a um povo que tinha as Escrituras e que as rebuscavam diligentemente, venerando-as como a Palavra de Deus! (João 5:39) Teoricamente, pelo menos, estavam bem familiarizados com a idéia de Deus, mas não possuíam o conhecimento espiritual a Seu respeito.
Assim como ocorria no mundo do judaísmo, assim também sucede na cristandade. Multidões que "acreditam" no Espírito Santo são completamente despidas de conhecimento sobrenatural ou espiritual de Deus. E como podemos ter tanta certeza a esse respeito? Da seguinte maneira: o caráter do fruto revela o caráter da árvore que o produz; a natureza da água dá a conhecer a natureza do manancial de onde ela flui. O conhecimento sobrenatural de Deus produz uma experiência sobrenatural, e a experiência sobrenatural resulta em fruto espiritual.
Isso eqüivale a dizer que quando Deus vem realmente residir em um coração, aquela vida é sujeita a uma revolução, é transformada. E então é produzido aquilo que a simples natureza não pode produzir, sim, aquilo que é diretamente contrário a essa natureza. Mas isso se faz notavelmente ausente nas vidas de talvez noventa e cinco entre cada cem pessoas que atualmente professam ser filhos de Deus. Na vida dos cristãos professos comuns nada existe que não possa ser explicado com base em questões naturais. No caso de um genuíno filho de Deus a questão é totalmente diferente. Tal filho de Deus é, na verdade, um milagre da graça divina – ele é "... nova criatura..." (II Coríntios 5:17). Tanto a sua experiência como a sua vida são sobrenaturais.
A experiência sobrenatural do crente se vê em sua atitude para com Deus. Possuindo intimamente a própria vida de Deus, ele se torna participante da "natureza divina" (ver II Pedro 1:4), e necessariamente ama a Deus, ama aquilo que pertence a Deus, ama aquilo que Deus ama; e, por outro lado, abomina aquilo que Deus abomina.
Essa experiência sobrenatural é efetuada no crente pelo Espírito de Deus, e isso por intermédio da Palavra de Deus. De fato, o Espírito nunca opera à parte da Palavra. É por meio dessa Palavra que Ele revivifica. É por meio dessa Palavra que Ele produz convicção de pecado. É por meio dessa Palavra que Ele santifica. É por meio dessa Palavra que Ele confere segurança. E é por meio dessa Palavra que Ele faz o santo se desenvolver espiritualmente.
Desse modo, qualquer um de nós pode averiguar até que ponto está tirando proveito de sua leitura e de seu estudo das Escrituras, mediante os efeitos que elas estão produzindo em nós, através da aplicação que delas faz o Espírito. Entremos em seguida nos pormenores. Aquele que se beneficia das Escrituras verdadeira e espiritualmente:
1. Recebe um mais claro reconhecimento das reivindicações de Deus.
A grande controvérsia entre o Criador e a criatura tem girado em torno de se Ele ou ela deve ser Deus, se a sabedoria dEle ou a sabedoria dela deve ser o princípio orientador de suas ações, se a vontade divina ou a vontade da criatura deve ser suprema. O que produziu a queda de Lúcifer foi o seu ressentimento por estar em sujeição ao Senhor: "Tu dizias no teu coração: Eu subirei ao céu; acima das estrelas de Deus exaltarei o meu trono. . . subirei acima das mais altas nuvens, e serei semelhante ao Altíssimo" (Isaías 14:13,14). A mentira da serpente que encantou nossos primeiros pais e os levou à destruição, foi a seguinte: "...como Deus, sereis conhecedores do bem e do mal" (Gênesis 3:5). E desde essa ocasião, o sentimento do coração do homem natural tem sido: "Retira-te de nós! Não desejamos conhecer as teus caminhos. Que é o Todo-poderoso, para que nós o sirvamos? E que nos aproveitará que lhe façamos orações?" (Jó 21:14,15). "... pois dizem: Com a língua prevaleceremos, os lábios são nossos: quem é senhor sabre nós? " (Salmos 12:4). "Por que, pois, diz o Meu povo: Somos livres! Jamais tornaremos a ti?" (Jeremias 2:31).
O pecado alienou o homem para longe de Deus (Efésios 4:18). O coração humano se tornou avesso a Deus, sua vontade oposta à Sua vontade, a sua mente em inimizade contra Deus. Em contraste com isso, a salvação significa ser alguém restaurado a Deus: "Pois também Cristo morreu, uma única vez, pelos pecados, o justo pelos injustos, para conduzir-vos a Deus. . . " (1 Pedro 3:18). Legalmente falando, isso já foi feito; experimentalmente, porém, acha-se no processo de realização.
Ser salvo significa ter sido reconciliado com Deus; e isso envolve e inclui o fato de que o domínio do pecado sobre nós foi interrompido, que a inimizade foi descontinuada, e que o coração foi conquistado para Deus. Disso é que consiste a verdadeira conversão – da derrubada de todo ídolo, da renúncia das vaidades ocas de um mundo enganador, em que tomamos a Deus como a nossa porção, o nosso dirigente, o nosso tudo em tudo. A respeito dos coríntios lemos que "... deram-se a si mesmos primeiro ao Senhor" (II Coríntios 8:5). O desejo e a determinação daqueles que verdadeiramente se converteram é que "não viviam mais para si mesmos, mas para Aquele que por eles morreu e ressuscitou" (II Coríntios 5:15).
Então as reivindicações de Deus passam a ser reconhecidas, e admitimos o Seu legítimo domínio sobre nós mesmos, porque Ele é reconhecido como Deus. Os convertidos se entregam a Deus como "ressurretos dentre os mortos", e os seus membros são entregues como "instrumentos de justiça" (Romanos 6:13). Essa é a exigência que o Senhor nos impõe: ser o nosso Deus, ser servido por nós como tal; e que nós sejamos e façamos, de forma absoluta e sem reservas, tudo quanto Ele nos ordenar, rendendo-nos totalmente a Ele (Lucas 14:26,27,33). A Deus cabe, porque é Deus, legislar, prescrever e determinar tudo o que nos concerne; e a nós compete, como dever obrigatório, sermos dirigidos, governados e sermos livremente usados por Ele, segundo o Seu beneplácito.
Reconhecer que Deus é o nosso Deus eqüivale a dar-Lhe o trono dos nossos corações. É a mesma coisa dita na linguagem de Isaías 26:13: "Ó Senhor Deus nosso, outros senhores têm tido domínio sobre nós; mas graças a Ti somente é que louvamos o Teu nome". Também é declarar, juntamente com o salmista, sem hipocrisia, mas com sinceridade: "Ó Deus, tu és o meu Deus forte, eu te busco ansiosamente" (Salmos 63 :1). Ora, é na proporção em que isso se torna nossa experiência real que nos beneficiamos com as Escrituras. É nelas, e somente nelas, que as reivindicações de Deus são reveladas e postas em vigor; na medida exata em que estivermos obtendo um ponto de vista mais claro e mais completo sobre os direitos de Deus, em que nos estivermos submetendo a eles é que estaremos sendo realmente abençoados.
2. Sente maior temor pela majestade de Deus.
"Tema ao SENHOR toda a terra, temam-no todos as habitantes do mundo" (Salmos 33:8). Deus está tão acima de nós que o simples pensamento de Sua majestade nos deveria fazer estremecer. O Seu poder é tão grande que a percepção dele deveria aterrorizar-nos. E Ele é tão inefavelmente santo, e Seu ódio ao pecado é tão infinito, que o próprio pensamento de atos errados nos deveria encher de horror. "Deus é sobremodo tremendo na assembléia dos santos, e temível sobre todos o que o rodeiam" (Salmos 89:7).
"O temor do SENHOR é o princípio da sabedoria, e o conhecimento do Santo é prudência" (Provérbios 9:10). Ora, a "sabedoria" consiste do correto uso do "conhecimento". Até ao ponto onde Deus é verdadeiramente conhecido, até esse ponto será devidamente temido. Acerca dos ímpios, porém, está escrito: "Não há temor de Deus diante de seus olhos" (Romanos 3 :18). Esses homens não têm qualquer percepção acerca da majestade de Deus, não tem nenhuma preocupação com a Sua autoridade, não tem qualquer respeito pelos Seus mandamentos, não se alarmam ante o fato de que Ele os julgará. No entanto, no tocante ao povo que entrou em pacto com Deus, o Senhor prometeu: "Porei o meu temor no seu coração, para que nunca se apartem de mim" (Jeremias 32:40). Par essa razão é que os remidos tremem ante a Sua Palavra (Isaías 66:5), e andam cautelosamente diante dos Seus olhos.
"O temor do SENHOR consiste em aborrecer o mal" (Provérbios 8:13). E novamente: "... pelo temor do Senhor os homens evitam o mal" (Provérbios 16:6). O homem que vive no temor de Deus tem consciência que "os olhos do SENHOR estão em todo lugar, contemplando os maus e os bons" (Provérbios 15:3). Por isso mesmo, vive conscienciosamente tanto em sua conduta particular como em sua conduta em público.
O homem que evita cometer determinados pecados, porque os olhos dos homens estão fixos sobre ele, mas que não hesita em cometê-los quando está sozinho, é destituído do temor de Deus. Por semelhante modo, o indivíduo que modera a sua linguagem quando há crentes ao seu redor, mas que não age assim noutras ocasiões, não tem temor a Deus. Não sente a consciência inspiradora de respeito de que Deus o vê e ouve a todos os momentos.
A alma verdadeiramente regenerada teme desobedecer a Deus e desafiá-Lo. E nem mesmo deseja fazer tal. Não, porquanto seu real e mais profundo anelo consiste em agradar ao Senhor em todas as coisas, em todas as oportunidades e em todos os lugares. Sua oração intensa é: "Dispõe-me o coração para só temer o Teu nome" (Salmos 86:11).
Ora, até mesmo aos santos é mister ensinar o temor de Deus, segundo se vê em Salmos 34:11. E nesse aspecto, como em tudo o mais, é através das Escrituras que esse ensinamento nos é conferido (Provérbios 2 :5).
É por meio das Escrituras que aprendemos que os olhos do Senhor estão continuamente fixos sabre nós, assinalando as nossas ações e pesando os nossos motivos. Na medida em que o Espírito Santo vai aplicando as Escrituras ao nosso coração, assim também vamos obedecendo crescentemente aquele mandamento que diz: ''... no temor do SENHOR perseverarás todo dia" (Provérbios 23:17). Por conseguinte, na medida exata em que formos tomados pelo senso de respeito da tremenda majestade divina, nessa medida também teremos consciência de que "Tu és Deus que vês" (Gênesis 16:13), pondo em ação a nossa salvação com "temor e tremor" (Filipenses 2:12), e assim tiramos real proveito de nossos estudos bíblicos e da leitura das Escrituras.
3. Tem mais profunda reverência pelos mandamentos de Deus.
O pecado entrou no mundo através da desobediência de Adão contra a lei de Deus, e todos os seus filhos decaídos são gerados com similar depravação (Gênesis 5:3). "O pecado é a transgressão da lei" (I João 3:4). O pecado é uma forma de alta traição, de anarquia espiritual. É o repúdio ao domínio exercido por Deus, em que a Sua autoridade é repelida, em que o indivíduo se rebela contra a Sua vontade. O pecado consiste em seguirmos por nosso próprio caminho. Ora, a salvação consiste em sermos livrados do pecado, de sua culpa, de seu poder e até mesmo de sua penalidade. O mesmo Espírito que nos convence sobre a necessidade da graça de Deus também nos convence da necessidade que temos de ser dirigidos pelo governo de Deus. A promessa de Deus ao povo que com Ele entrou em pacto, é: "Nas suas mentes imprimirei as Minhas leis, também sobre os seus corações as inscreverei; e Eu serei o seu Deus, e eles serão o Meu povo" (Hebreus 8:10).
O espírito de obediência é proporcionado a toda a alma regenerada. Cristo Jesus disse: "Se alguém Me ama, guardará a Minha palavra" (João 14:23). Portanto, esse é o grande teste: "Ora, sabemos que O temos conhecido por isto: se guardamos os Seus mandamentos" (I Joio 2:3). Nenhum de nós observa os mandamentos de Deus com perfeição; mas todo o verdadeiro crente tanto deseja fazê-lo como se esforça nesse sentido. O crente verdadeiro diz juntamente com Paulo: "Porque, no tocante ao homem interior, tenho prazer na lei de Deus" (Romanos 7:22). E também declara, juntamente com o salmista: "Escolhi o caminho da fidelidade; decidi-me pelos teus juízos. Os teus testemunhos recebi-os por legado perpétuo" (Salmo 119:30, 111).
E todo e qualquer ensinamento que avilta a autoridade de Deus, que ignora as seus mandamentos, que afirma que o crente, em nenhum sentido, está sob a lei, vem da parte do diabo, sem importar quão suaves sejam as palavras do seu instrumento humano. Cristo redimiu o Seu povo da maldição da lei, e não dos mandamentos que ela contém; Cristo os salvou da ira de Deus, mas não para ficarem fora do Seu governo. Nunca foram e nunca serão revogadas as palavras que dizem: "Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração" (Mateus 22:37).
A passagem de I Coríntios 9:21 afirma expressamente que estamos ''debaixo da lei de Cristo." E o trecho de I João 2:6 estipula: "Aquele que diz que permanece nele, esse deve também andar assim como Ele andou". Ora, como foi que Cristo "andou"? Na perfeita obediência a Deus Pai; em total sujeição às Suas leis, honrando-as e obedecendo-as em Seus pensamentos, em Suas palavras e em Seus atos. Cristo não veio a fim de destruir a lei, e, sim, a fim de cumpri-la (ver Mateus 5:17). E o nosso amor por Ele é expresso, não em emoções agradáveis ou em palavras bonitas, e, sim, na observância aos seus mandamentos (João 14:15). E os mandamentos de Cristo são os mandamentos de Deus (conferir Êxodo 20:6).
A oração intensa do crente autêntico é: "Guia-me pela vereda dos Teus mandamentos, pois nela me comprazo" (Salmos 119:35). Até ao ponto em que nossa leitura e nossos estudos da Bíblia, mediante a aplicação do Espírito Santo, vai gerando em nós um maior amor e um mais profundo respeito, além da observância mais exata dos mandamentos de Deus, nessa proporção vamos sendo realmente beneficiados.
4. Uma confiança mais firme na suficiência de Deus.
Aquilo ou aquele em quem um homem mais confia, esse é o seu "deus". Algumas pessoas confiam na saúde, e outros nas riquezas; alguns confiam em si mesmos, e outros confiam em seus amigos. E a atitude que caracteriza a todos os indivíduos sem regeneração é que dependem do braço da carne. Porém, a eleição da graça desvia os seus corações de todos os apoios dados pela criatura, para que se estribe no Deus vivo. O povo de Deus são os filhos da fé. A linguagem emitida pelos seus corações é: "Deus meu, em ti confio, não seja eu envergonhado" (Salmos 25:2). E uma vez mais: "Eis que me matará, já não tenho esperança; contudo defenderei o meu procedimento" (Jó 13:15). Esses dependem de Deus, para que lhes proveja o necessário, para que os proteja e abençoe. Olham continuamente para um recurso invisível, ficam na dependência ao Deus invisível, apoiam-se em um Braço oculto.
É verdade que há ocasiões em que a fé dos verdadeiros crentes hesita; mas, embora tropecem, não ficam inteiramente prostrados. Embora isso não reflita a experiência uniforme deles, contudo o Salmo 56:11 expressa o estado geral de suas almas: "... neste Deus ponho a minha confiança e nada temerei. Que me pode fazer o homem? " (Lucas 17.5). E a oração anelante deles é: "Senhor, aumenta a nossa fé!" Conforme diz a passagem de Romanos 10:17: "E assim, a fé vem pela pregação e a pregação pela palavra de Cristo". E dessa maneira, enquanto meditamos sobre as Escrituras, em que as suas promessas são acolhidas em nossa mente, a nossa fé é fortalecida, a nossa confiança em Deus aumenta, e a nossa segurança se aprofunda. Desse modo podemos descobrir que estamos tirando proveito ou não de nosso estudo da Bíblia.
5. Deleita-se mais plenamente nas perfeições de Deus.
Aquilo em que um homem mais se deleita é o seu "deus". O pobre indivíduo mundano procura satisfação em suas atividades, prazeres e possessões materiais. Ignorando a "substância", ele persegue inutilmente as sombras. O crente, entretanto, se deleita nas admiráveis perfeições de Deus. Realmente, reconhecermos a Deus como o nosso Deus consiste não somente em nos submetermos ao Seu cetro, mas em amá-Lo mais do que ao mundo, e valorizá-Lo acima de tudo e de todos. Consiste também em termos, paralelamente ao salmista, a percepção experimental de que ". . .Todas as minhas fontes são em Ti" (Salmos 87:7). Os remidos não apenas receberam alegria da parte de Deus, tal alegria que este nosso pobre mundo jamais nos poderia outorgar, mas também se gloriam e regozijam em Deus (ver Romanos 5:11); e acerca disso o indivíduo mundano nada sabe. A linguagem dos remidos é aquela que afirma: "A minha porção é o SENHOR. . ." (Lamentações 3:24).
Os exercícios espirituais são enfadonhos para a carne. Mas o crente autêntico diz: "Quanto a mim, bom é estar junto a Deus..." (Sal. 73:28). O homem carnal é arrastado por muitas paixões e ambições; porém, a alma regenerada assevera: "Uma cousa peço ao SENHOR, e a buscarei: que eu possa morar na casa do SENHOR todos os dias da minha vida, para contemplar a beleza do SENHOR, e meditar no seu tempo" (Salmos 27:4). E, por que? Por que o verdadeiro sentimento de seu coração diz: "Quem mais tenho eu no céu? Não há outro em quem eu me compraza na terra" (Salmos 73:25). Ah, prezado leitor, se o seu coração não tem sido impelido a amar a Deus e a deleitar-se nEle, então é que ainda está morto para com Ele.
A linguagem dos santos é a que diz: "Ainda que a figueira não floresce, nem há fruto na vide; o produto da oliveira mente, e os campos não produzem mantimento; as ovelhas foram arrebatadas do aprisco e nos currais não há gado, todavia eu me alegro no SENHOR, exulto no Deus da minha salvação" (Hab. 3:17,18). Ah! essa é verdadeiramente uma experiência sobrenatural! Sim, o crente pode regozijar-se quando todas as suas possessões materiais lhe são tiradas (ver Hebreus 10:34). Quando jaz em uma masmorra, com as costas a sangrar, ainda assim pode entoar louvores a Deus (Atos 16:25). Portanto, na proporção em que você estiver sendo desmamado dos prazeres ocos deste mundo, também estará aprendendo que não há bênção fora de Deus, estará descobrindo que Ele é a fonte e a súmula de toda a excelência, e o seu coração estará sendo atraído para o Senhor, a sua mente estará se apegando a Ele, a sua alma estará encontrando nEle a sua alegria e satisfação, e você estará realmente se beneficiando com as Escrituras.
6. Maior submissão aos atos providenciais de Deus.
É natural murmurarmos quando as coisas não nos correm bem, mas é sobrenatural conservar a tranqüilidade nessas ocasiões (Levítico 10:3). É natural sentirmo-nos desapontados quando nossos planos abortam, mas é sobrenatural inclinarmo-nos ante as determinações divinas. É natural querermos as coisas a nosso jeito, mas é sobrenatural poder dizer: "Não seja feita a minha vontade, mas a tua" (Lucas 21.42). É natural rebelarmo-nos quando algum ente querido nos é arrebatado pela morte; mas é sobrenatural poder dizer de todo o coração: ". . .o SENHOR o deu, e o SENHOR o tomou: bendito seja o nome do SENHOR!" (Jó 1:21). Quando Deus Se tem tornado verdadeiramente a nossa porção, então aprendemos a admirar a Sua sabedoria, e é então também que reconhecemos que Ele faz bem feitas todas as coisas.
Dessa maneira, por igual modo, o coração é conservado "...em perfeita paz...", quando a mente se fixa no Senhor (Isaías 26:3). Neste particular, pois, encontramos um outro teste seguro: se a Bíblia que você estuda está lhe ensinando que o caminho de Deus é o melhor, se isso o está levando a submeter-se sem queixumes a todas as Suas dispensações, se você se sente capaz de dar graças a Deus por todas as coisas (Efésios 5:20), então você realmente está se beneficiando das Escrituras.
7. Mais fervorosos louvores devido à bondade de Deus.
O louvor é o extravasamento de um coração que encontra satisfação em Deus. A linguagem de tal pessoa é: "Bendirei ao Senhor em todo o tempo, o Seu louvor estará sempre nos meus lábios" (Salmos 34:1). Quão Abundantes são os motivos que tem o povo de Deus para louvá-Lo! Amados com um amor eterno, feitos filhos e herdeiros, todas as coisas cooperam para o bem deles, cada uma de suas necessidades é suprida, uma eternidade de bem-aventurança lhes é assegurada – suas harpas de alegria jamais deveriam ficar silentes. De fato, não se silenciarão enquanto desfrutarem de companheirismo com o Senhor, o qual é "...totalmente desejável..." (Cantares 5:16).
Quanto mais crescemos no "conhecimento de Deus" (Col. 1:10), mais haveremos de adorá-Lo. Porém, é somente na medida em que a Palavra vier habitar ricamente em nós que ficaremos invadidos de cânticos espirituais (Col. 3:16), pois então poderemos entoar melodias ao Senhor, em nossos corações. Quanto mais as nossas almas são impulsionadas a uma verdadeira adoração, tanto mais nos sentiremos impelidos a agradecer e a louvar ao nosso grande Deus, o que é evidência claríssima de que nossos estudos na Palavra de Deus nos estão beneficiando.
AS ESCRITURAS E CRISTO
A ordem que seguimos nesta série é a ordem da experiência comum a todos. Não é senão quando o homem vem a ficar inteiramente insatisfeito consigo mesmo que começa a aspirar a Deus. A criatura decaída, iludida por Satanás, sente-se satisfeita consigo mesma até que os seus olhos, cegados pelo pecado, sejam abertos para que possa contemplar a si mesma. O Espírito Santo primeiramente insufla em nós o senso de nossa própria ignorância, vaidade, pobreza espiritual e depravação, antes que nos leve a perceber e a reconhecer que somente em Deus podem ser encontradas a verdadeira sabedoria, a bênção real, a bondade perfeita e a justiça imaculada. Nossa consciência precisa ser despertada para as nossas próprias imperfeições, antes que possamos apreciar de fato as perfeições divinas. E, quando as perfeições de Deus são contempladas, então é que o homem se torna ainda mais cônscio da infinita distância que o separa do Deus Altíssimo. Quando aprende algo sobre as prementes reivindicações de Deus sabre ele, e também sobre sua total incapacidade de satisfazer a essas reivindicações, é que fica capacitado para ouvir e para dar acolhida às boas novas de que Outro satisfez plenamente essas reivindicações, para todos quantos forem levados a depositar confiança nEle.
"Examinais as Escrituras", declarou o Senhor Jesus; e acrescentou: "... e são elas mesmas que testificam de Mim" (João 5:39). Sim, as Escrituras testificam acerca de Cristo como o Único Salvador dos pecadores que perecem, como o Único Mediador entre Deus e os homens, como o Único por intermédio de quem nos podemos aproximar de Deus Pai. Elas testificam, igualmente, acerca das admiráveis perfeições de Sua pessoa, das glórias variegadas de Seus ofícios, da suficiência de Sua Obra terminada. À parte das Escrituras, Cristo não pode ser conhecido. Somente por meio delas é que Ele é revelado.
Quando o Espírito Santo toma aquilo que pertence a Cristo e as mostra a Seu povo, dessa maneira tornando essas coisas conhecidas às almas remidas, não usa Ele outra coisa além daquilo que está escrito. E apesar de ser verdade que Cristo é a chave para a compreensão das Escrituras Sagradas, é igualmente verdadeiro que somente nas Escrituras nos é desvendado o "mistério de Cristo", sobre o qual se lê em Efésios 3:4.
Ora, a medida em que tiramos proveito de nossa leitura e estudo das Escrituras pode ser verificada pela extensão em que Cristo Se está tornando mais real e mais precioso para os nossos corações. O "crescimento na graça" é definido como um desenvolvimento "...na graça e no conhecimento de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo" (II Pedro 3:18). E na segunda cláusula não é acrescentado algo à primeira; antes, há uma explicação sabre a primeira cláusula. "Conhecer" a Cristo (Filipenses 3:10) era o supremo anseio e o grande alvo do apóstolo Paulo, um anelo e um alvo ao que ele subordinava todos os demais interesses. Mas, convém que prestemos toda a atenção, que o "conhecimento" referido nesses versículos não é o conhecimento intelectual, mas o espiritual, não é o teórico, mas o experimental, não é de natureza geral, e, sim, pessoal. Trata-se de um conhecimento sobrenatural, propiciado ao coração regenerado devido às operações do Espírito Santo, conforme Ele vai interpretando e aplicando em nós as passagens bíblicas concernentes a Cristo.
Ora, o conhecimento de Cristo que o bendito Espírito Santo outorga ao crente, por intermédio das Sagradas Escrituras, lhe é proveitoso de diferentes maneiras, de acordo com suas variadas situações, circunstâncias e necessidades. No tocante ao pão que Deus deu aos filhos de Israel, durante suas peregrinações pelo deserto, está registrado que eles "...colheram, uns mais, outros menos" (Êxodo 16:17). Outro tanto se dá no caso de nosso recebimento dAquele de quem o maná era um tipo simbólico. Existe algo, na admirável pessoa de Cristo, que se adapta exatamente a todas as nossas condições, a todas as nossas circunstâncias e a todas as nossas necessidades, tanto para o tempo como para a eternidade; no entanto, mostramo-nos lentos para perceber tal verdade, e mais lentos ainda para agir de conformidade com essa verdade.
Existe uma plenitude na pessoa de Cristo (João 1:16), e que é posta em disponibilidade para dela tirarmos proveito. E o princípio que regula a profundidade com que nos tornaremos fortes na "... graça que está em Cristo Jesus" (II Timóteo 2:1), é "Faça-se-vos conforme a vossa fé" (Mateus 9:29).
1. O indivíduo se beneficia do estudo das Escrituras quando elas lhe revelam a sua necessidade de Cristo.
O homem, em seu estado natural, se considera auto-suficiente. Naturalmente que ele tem uma apagada percepção de que nem tudo está perfeitamente certo entre ele mesmo e Deus; no entanto, não tem dificuldade alguma para persuadir a si próprio de que é capaz de fazer aquilo que propicie a Deus. Isso faz parte do fundamento mesmo da religião de todo o homem, e que teve início em Caim, e em cujo "caminho" (Judas 11) as multidões continuam andando. Basta que se diga ao homem religioso comum que "... os que estão na carne não podem agradar a Deus" (Romanos 8:8), para que esse homem se sinta imediatamente ofendido. E basta que se pressione sabre ele o fato de que "... todas as nossas justiças (são) como trapo de imundícia" (Isaías 64:6), para que sua urbanidade hipócrita imediatamente dê lugar à ira. Assim acontecia nos dias em que Cristo estava na terra. O povo mais religioso de todos, os judeus, não tinha qualquer senso de que eles estavam "perdidos", como também da urgente necessidade de um Salvador Todo-poderoso.
"Os sãos não precisam de médico, e, sim, os doentes" (Mateus 9:12). Faz parte do oficio específico do Espírito Santo, mediante a Sua aplicação das verdades bíblicas, o convencer os pecadores de sua desesperadora situação, para que assim possam perceber que o seu estado é tal que "Desde a planta do pé até à cabeça não há nele cousa sã, senão feridas, contusões e chagas inflamadas, umas e outras não espremidas, nem atadas, nem amolecidas com óleo" (Isaías 1:6). Mas, na proporção em que o Espírito nos convence de nossos pecados – de nossas ingratidões contra Deus, de nossas murmurações contra Ele, de nosso afastamento para longe dEle – e à medida em que nos impressiona com as reivindicações de Deus – os direitos que Ele tem ao nosso amor, à nossa obediência e à nossa adoração bem como de nossas tristes e fracassadas tentativas de prestar-Lhe aquilo que Lhe devemos, então somos levados a reconhecer que Cristo é a nossa Única esperança, e que, a menos que nos abriguemos nEle, qual refúgio, a justa indignação de Deus mui certamente haverá de cair sobre nós.
Entretanto, não devemos limitar isso à experiência inicial da conversão. Quanto mais o Espírito Santo aprofunda a Sua obra graciosa na alma regenerada, tanto mais o indivíduo se torna cônscio de sua própria corrupção, de sua pecaminosidade e de sua vileza; e percebe ainda mais a sua necessidade de dar valor àquele precioso sangue que o purifica de todo pecado. O Espírito Santo está aqui a fim de glorificar a Cristo; e uma das principais maneiras pela qual Ele faz isso é abrindo mais e mais os olhos daqueles em favor de quem Cristo morreu, para que percebam quão apropriado é Ele para criaturas tão miseráveis, tão imundas, tão merecedoras do inferno. Sim, quanto mais verdadeiramente tiramos proveito de nossa leitura das Escrituras, tanto mais sentimos que precisamos de Cristo.
2. O indivíduo se beneficia das Escrituras quando elas tornam Cristo mais real para ele.
A grande massa da nação israelita nada mais via senão a casca externa, nos ritos e cerimônias que Deus lhes deu para que os observassem; mas um remanescente regenerado teve o privilégio de contemplar o próprio Cristo. "Vosso pai Abraão alegrou-se por ver o meu dia, viu-o e regozijou-se... ", declarou o Senhor Jesus, em João 8: 56. Moisés "... considerou o opróbrio de Cristo por maiores riquezas do que os tesouros do Egito... " (Hebreus 11:26).
Outro tanto ocorre na cristandade. Para as multidões, Cristo é apenas um nome, ou, quando muito, um caráter histórico. Esses não têm contatos pessoais com Ele, não desfrutaram de qualquer companheirismo espiritual com Ele. Se porventura ouvirem alguém falar, arrebatado, sobre as excelências de Sua pessoa, haverão de considerá-lo um entusiasta ou um fanático. Para tais indivíduos, Cristo é irreal, vago, intangível. No caso do crente autêntico, todavia, a atitude é inteiramente outra. A linguagem de seu coração é:
Tenho ouvido a voz de Jesus.
Para mim, só Ele é perfeito.
Tenho visto a face de Jesus,
Minha alma ficou satisfeita.
Contudo, essa visão bem-aventurada não é a experiência constante e invariável dos santos. Assim como as nuvens se interpõem entre o sol e a terra, assim também as falhas, em nosso andar diário, interrompem a nossa comunhão com Cristo e servem para ocultar de nós o resplendor de Sua face. "Aquele que tem os Meus mandamentos e os guarda, esse é o que me ama; e aquele que me ama, será amado por Meu Pai, e Eu também o amarei e Me manifestarei a ele" (João 14:21). Sim, é aquele que, pela graça, palmilha pela senda da obediência, que recebe as manifestações conferidas pelo próprio Senhor Jesus. E quanto mais freqüentes e prolongadas forem essas manifestações, mais real Ele se torna para a alma, até sermos capazes de dizer juntamente com Jó: "Eu te conhecia só de ouvir, mas agora os meus olhos Te vêem" (Jó 42:5). Assim, pois, quanto mais Cristo for Se tornando uma realidade viva para mim, mais tirarei proveito da Palavra.
3. O indivíduo se beneficia das Escrituras quando se ocupa das perfeições de Cristo.
É o senso de necessidade que lança a alma aos braços de Cristo, no princípio; mas é a percepção de Suas excelências que nos faz achegarmo-nos a Ele, desde então. Quanto mais real Cristo Se torna para nós, tanto mais vamos sendo atraídos pelas Suas perfeições. No começo Ele é visto apenas como Salvador; mas, na proporção em que o Espírito Santo continua a destacar diante de nossos olhos aquilo que pertence a Cristo, descobrimos que sobre a Sua cabeça há "... muitos diademas... " (Apocalipse 19:12). Desde a antigüidade que foi dito: "... e o seu nome será: Maravilhoso... " (Isaías 9:6). E o nome de Cristo significa tudo quanto dEle as Escrituras dão a conhecer. "Maravilhosos" são os Seus ofícios, quanto ao seu número, quanto à sua variedade e quanto à Sua suficiência. Ele é o Amigo que nos é mais chegado do que um irmão, que nos ajuda em cada momento de necessidade. Ele é o grande Sumo Sacerdote, que Se deixa comover diante das nossas debilidades. Ele é o nosso Advogado junto a Deus Pai, o qual nos faz a defesa quando Satanás nos acusa.
Nossa grande necessidade é ocuparmo-nos com Cristo, assentarmo-nos a Seus pés, conforme fez Maria, recebendo assim de Sua plenitude. Nosso principal deleite deve ser considerar ". . . atentamente o Apóstolo e Sumo Sacerdote da nossa confissão, Jesus" (Hebreus 3:1); deve ser contemplar as várias relações que Ele mantém para conosco, meditar acerca das muitas promessas que Ele nos tem feito, demorarmo-nos na contemplação de Seu admirável e imutável amor por nós. Ao fazermos assim, haveremos de deleitar-nos no Senhor de tal modo que as vozes de sereia deste mundo perderão todo o seu encantamento em nosso caso.
Ah, prezado amigo, você conhece experiência assim, em sua vida diária? Cristo é, para a sua alma, o principal entre dez milhares? Conquistou Ele o seu coração? Sua principal alegria é ficar sozinho com Ele, a conversar com o Senhor? Caso contrário, a sua leitura e o seu estudo da Bíblia bem pouco lhe tem aproveitado.
4. O indivíduo se beneficia das Escrituras quando Cristo se torna mais precioso para ele.
Cristo é precioso na estima de todos os crentes (I Pedro 2:7). Esses consideram todas as coisas como perda, em face da excelência do conhecimento de Cristo Jesus, seu Senhor (Filipenses 3:8). O nome dEle, para eles, é um ungüento derramado (Cantares 1:3). Assim como a glória de Deus, que aparecia em beleza indescritível, no templo, bem como na sabedoria e no resplendor da corte de Salomão, atraía adoradores desde as regiões mais distantes da terra, assim também a excelência sem paralelos de Cristo – ali prefigurada – atrai ainda mais poderosamente os corações de Seu povo. O diabo sabe disso perfeitamente bem, pelo que ele também procura enegrecer as mentes daqueles que não crêem, colocando entre eles e Cristo as atrações deste mundo. E Deus permite ao diabo assediar igualmente ao crente. Entretanto, está escrito: "...resisti ao diabo, e ele fugirá de vós" (Tiago 4:7). Devemos resistir-lhe mediante oração definida e sincera, rogando ao Espírito Santo que incline as nossas afeições para Cristo.
Quanto mais nos ocuparmos com as perfeições de Cristo, mais haveremos de amá-Lo e de adorá-Lo. É a falta de familiaridade experimental com Ele que faz nossos corações se tornarem tão frios para com Ele. Mas, sempre que uma comunhão real e diária é cultivada, o crente será capacitado a dizer junto com o salmista: "Quem mais tenho eu no Céu? Não há outro em quem eu me compraza na terra" (Salmo 73:25). Essa é a própria essência e a natureza distinta do verdadeiro cristianismo. Os zelotes legalistas talvez se ocupem atarefadamente em dizimar a hortelã, o endro e o cominho, e talvez percorram mares e terras para fazer um prosélito, e contudo não têm amor a Deus, em Cristo. Deus olha para o coração: "Dá-me, filho meu, o teu coração... " (Provérbios 23:26) é a Sua exigência. E quanto mais precioso Cristo é para nós, tanto maior é o deleite que Ele tem em nós.
5. O indivíduo que tira proveito das Escrituras tem uma confiança crescente em Cristo.
Há "pequena fé" (Mateus 14:31) e também há "grande fé" (Mateus 8:10). Há também a "plena certeza de fé", segundo se lê em Hebreus 10:22, como há também o confiar no Senhor de todo o "coração", conforme se vê em Provérbios 3:5. Assim como há o crescimento que vai "... de força em força... " (Salmo 84:7), assim também lemos em subir "... de fé em fé... " (Romanos 1:17). Quanto mais forte e mais constante for a nossa fé, tanto mais o Senhor Jesus será honrado. Até mesmo a leitura apressada dos quatro evangelhos revela o fato de que coisa alguma agradava tanto ao Salvador como a firme dependência que aqueles que permaneceram em Sua companhia demonstraram ter dEle. O próprio Cristo viveu e andou pela fé, e quanto mais o fizermos, mais estaremos sendo transformados em Sua imagem, como os membros para com a Sua cabeça. Acima de tudo há uma coisa que deve ser nosso alvo, e que devemos buscar diligentemente, através de oração intensa: que a nossa fé aumente. Paulo foi capaz de dizer: "... a vossa fé cresce sobremaneira... " (II Tessalonicenses 1:3).
Ora, ninguém pode confiar em Cristo, a menos que seja Ele conhecido; e quanto melhor for Ele conhecido, tanto mais confiaremos nEle: "Em Ti, pois, confiam os que conhecem o teu nome, porque Tu, SENHOR, não desamparas os que te buscam" (Salmos 9:10). Na proporção em que Cristo Se vai tornando mais real para nossos corações, e na medida em que nós vamos crescentemente nos ocupando com Suas multiformes perfeições e Ele se torna mais e mais precioso para nós, a confiança em Sua pessoa se vai acentuando de tal maneira que chega a ser natural confiarmos nEle, como natural é o respirar. A vida cristã é um "andar" de fé (II Coríntios 5:7), e essa própria expressão denota um progresso contínuo, o livramento crescente de todas as dúvidas e temores, a mais ampla certeza de que tudo quanto Ele prometeu haverá de cumprir.
Abraão é o pai de todos aqueles que crêem, pelo que também o registro de sua vida terrena fornece-nos a indicação do que significa ter uma confiança dependente no Senhor. Primeiramente, ante a simples palavra divina Abraão voltou as costas para tudo quanto lhe era caro na carne. Em segundo lugar, ele partiu dependendo simplesmente de Deus, e habitou como estrangeiro e forasteiro na Terra da Promessa, onde jamais possuiu um simples acre de área. Em terceiro lugar, quando foi feita a promessa de que geraria um filho em sua idade avançada, ele não levou em conta os obstáculos que pareciam impedir a concretização dessa promessa. Finalmente, quando lhe foi ordenado que oferecesse a Isaque em sacrifício, par meio de quem aquelas promessas deveriam concretizar-se, ele considerou que Deus era capaz de até mesmo "ressuscitá-lo dentre os mortos'' (Hebreus 11:19).
Na história de Abraão nos é demonstrado como a graça é capaz de subjugar um maldoso coração cheio de incredulidade, como o espírito pode ser vitorioso sabre a carne, como os frutos sobrenaturais de uma fé dada e sustentada por Deus podem ser produzidos por um homem de paixões semelhantes às nossas. Tudo isso foi registrado visando ao nosso encorajamento, para que oremos a fim de que o Senhor Se agrade por operar em nós aquilo que Ele operou no pai dos fiéis e através dele. Não há outra coisa que tanto agrade, honre e glorifique a Cristo do que a confiança nEle, do que a confiança que espera, do que a fé similar à de uma criança, da parte daqueles para quem Ele deu todos os motivos para nEle confiarem de todo o coração. E não existe outra coisa que tanto evidencie o fato de que estamos sendo beneficiados pelas Escrituras do que a nossa fé crescente em Cristo.
6. O indivíduo se beneficia das Escrituras quando estas geram nele o profundo desejo de agradar a Cristo.
"Acaso não sabeis que o vosso corpo é santuário do Espírito Santo que está em vós, o qual tendes da parte de Deus, e que não sois de vós mesmos? Porque fostes comprados por preço. Agora, pois, glorificai a Deus no vosso corpo" (I Coríntios 6:19,10). Esse é o primeiro grande fato que os crentes precisam aprender. Desse ponto em diante é mister que os crentes "... não vivam mais para si mesmos, mas para aquele que por eles morreu e ressuscitou" (II Coríntios 5:15). O amor se deleita por agradar a seu objeto, e quanto mais os nossos afetos se voltam para Cristo, mais haveremos de desejar honrá-Lo mediante uma vida de obediência à Sua vontade conhecida. "Se alguém me ama, guardará a Minha palavra. . ." (João 14:23). Não é com emoções felizes e nem em profissões ou devoções verbais, e, sim, na aceitação real do jugo de Cristo, quando nos submetemos de maneira prática a Seus preceitos, que o Senhor Jesus é verdadeiramente honrado.
É particularmente neste ponto que a genuinidade de nossa profissão cristã pode ser testada e provada. Temos nós real fé em Cristo se porventura não fazemos qualquer esforço para aprender a Sua vontade? Que desprezo para um rei se os seus súditos se recusassem a ler as suas proclamações! Sempre que houver fé em Cristo haverá também o deleite em Seus mandamentos, bem como a tristeza quando qualquer um deles é desobedecido por nós. Quando desagradamos a Cristo, cumpre-nos lamentar tão grande falha. É impossível crer seriamente que foram os meus pecados que levaram o Filho de Deus a derramar o seu precioso sangue, se eu mesmo não odiar esses pecados. Se Cristo gemeu sob o peso do pecado, igualmente nós devemos gemer. E quanto mais sinceros forem esses gemidos, mais intensamente deveremos buscar a graça para ser libertos de tudo quanto desagrada a nosso bendito Redentor, e para ser fortalecidos e capacitados a fazer o que Lhe agrada.
7. O indivíduo se beneficia das Escrituras quando estas fazem-no ansiar pelo retorno de Cristo.
O amor não pode satisfazer-se com qualquer coisa menos que a vista do objeto amado. É verdade que até mesmo agora contemplamos a Cristo pela fé, contudo, fazemo-lo "como em espelho, obscuramente." Porém, por ocasião de Sua vinda, haveremos de contemplá-Lo "... face a face... " (I Coríntios 13:12). Naquela oportunidade é que se cumprirão as palavras de Cristo: "Pai, a minha vontade é que onde eu estou, estejam também comigo os que me deste, para que vejam a minha glória que me conferiste, porque me amaste antes da fundação do mundo" (João 17:24). Somente isso cumprirá perfeitamente os anelos de Seu coração, e somente isso satisfará os anseios daqueles que foram remidos por Ele. E somente então é que Ele "... verá o fruto do penoso trabalho da sua alma, e ficará satisfeito... " (Isa. 53:11). "Eu, porém, na justiça contemplarei a tua face; quando acordar eu me satisfarei com a Tua semelhança" (Sal. 17:15).
Por ocasião da volta de Cristo liquidaremos a conta com o pecado para todo o sempre. Os eleitos foram predestinados a serem conformados segundo a imagem do Filho de Deus, e esse propósito divino só será concretizado quando Cristo receber para Si mesmo o Seu povo.
"Sabemos que, quando Ele Se manifestar, seremos semelhantes a Ele, porque havemos de vê-Lo como Ele é" (I João 3:2). Nunca mais se interromperá a nossa comunhão com Ele, nunca mais gemeremos e nos lamentaremos por causa de nossa corrupção no íntimo: nunca mais seremos assaltados pela incredulidade. Mas Ele apresentará a Si mesmo a Sua igreja, como "... igreja gloriosa, sem mácula, nem ruga, nem cousa semelhante, porém santa e sem defeito" (Efésios 5:27). Estamos aguardando ansiosamente par aquela hora. Esperamos amorosamente pelo nosso Redentor. E quanto mais anelarmos por Aquele que vem, mais haveremos de preparar as nossas lâmpadas, em ardente expectação pela Sua vinda, e mais daremos evidências de que estamos nos beneficiando espiritualmente de nosso conhecimento da Palavra.
Que tanto os ouvintes como o orador se perscrutem honestamente, na presença mesma de Deus. Busquemos as respostas verazes para as perguntas seguintes: Temos um senso mais profundo de nossa necessidade de Cristo? Para nós, Cristo está Se tornando uma realidade viva cada vez mais resplendente? Estamos encontrando um crescente deleite em nos ocuparmos na contemplação de suas perfeições? O próprio Cristo está Se tornando mais e mais precioso para nós, a cada dia? A nossa fé em Sua pessoa está crescendo de tal modo que confiamos nEle quanto a tudo? Estamos realmente procurando agradá-Lo, em todos os detalhes de nossa vida? Estamos anelando tão ardorosamente por Ele que ficaríamos invadidos de júbilo se soubéssemos com certeza que Ele voltaria dentro das próximas vinte e quatro horas?
Que o Espírito Santo sonde os nossos corações com essas incisivas perguntas!
AS ESCRITURAS E A ORAÇÃO
Um crente que não ora é uma contradição de termos. Tal como um aborto é uma criança morta, assim também o crente professo que não ora está destituído de vida espiritual. A oração é como que a respiração da nova vida dos santos, do mesmo modo que a Palavra de Deus é o seu alimento. Quando o Senhor quis assegurar ao Seu discípulo de Damasco que Saulo de Tarso verdadeiramente se convertera, disse-lhe: "... pois ele está orando" (Atos 9:11). Em muitas ocasiões anteriores aquele fariseu, tão justo a seus próprios olhos, tinha dobrado os joelhos diante de Deus em suas "devoções"; mas aquela era a primeira vez em que ele realmente orava. Essa importantíssima distinção precisa ser frisada nesta nossa época de formalidades externas mas sem poder (II Timóteo 3:5). Aqueles que se contentam em dirigir-se formalmente a Deus, na realidade não o conhecem; e isso porque "o espírito de graça e de súplicas" (Zacarias 12:10) jamais poderão ser separados. Deus não possui filhos mudos em Sua família de regenerados: "Não fará Deus justiça aos seus escolhidos, que a Ele clamam dia e noite, embora pareça demorado em defendê-los?'' (Lucas 18:7). Sim, os escolhidos "clamam" ao Senhor, e não meramente "rezam".
Mas, ficará o prezado ouvinte surpreendido se este pregador lhe disser que a sua profunda convicção é que o povo do Senhor, com toda a probabilidade, peca mais em seus esforços para orar do que em conexão com qualquer outra coisa que costumam fazer? Quanta hipocrisia existe, onde deveria haver sinceridade! Quantas exigências presunçosas, onde deveria haver submissão! Quanta formalidade, onde deveria haver quebrantamento de coração! Quão pouco realmente sentimos os pecados que confessamos, e quão superficial é nosso senso de necessidade das misericórdias que buscamos! E até mesmo nos casos em que Deus nos confere certa medida de livramento desses tremendos pecados, quanta frieza de coração, quanta incredulidade, quanta atitude voluntariosa e quanto desejo de agradar a nós mesmos deveríamos lamentar! Aqueles que não têm consciência dessas coisas são inteiramente estranhos para o espírito de santidade.
Ora, a Palavra de Deus deveria ser o nosso manual de orações. Infelizmente, porém, com quanta freqüência as nossas próprias inclinações carnais servem de regra para as nossas petições. As Sagradas Escrituras nos foram outorgadas a fim de que "... o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra" (II Timóteo 3:17). Visto que de nos é requerido orar "... no Espírito Santo... " (Judas 20), segue-se que as nossas orações deveriam seguir o padrão das Escrituras, pasto que Ele é o Seu autor do princípio ao fim. E disso se conclui, por semelhante modo, que segundo a medida em que estiver habitando em nós ''ricamente" (Colossenses 3:16) a Palavra de Deus – ou então com pobreza – as nossas orações estarão mais ou menos em harmonia com a mente do Espírito, porquanto "... a boca fala do que está cheio o coração" (Mateus 12:34). Na proporção em que entesourarmos a Palavra, em nossos corações, e na medida em que ela limpar, amoldar e regulamentar nosso homem interior, assim também as nossas orações serão aceitáveis aos olhos de Deus. E então seremos capazes de dizer, conforme fez Davi em outra conexão: "Porque tudo vem de ti, e das tuas mãos to damos" (1 Crônicas 29:14).
Por conseguinte, a pureza e a potência de nossa vida de oração servem de um outro índice mediante o qual podemos determinar até que ponto nos estamos beneficiando de nossa leitura e pesquisa bíblicas. Se, debaixo da bênção do Espírito Santo, nossos estudos da Bíblia não nos estão convencendo de que não orar é pecado, e nem nos estão revelando o papel que a oração deveria ocupar em nossas vidas diárias, para que dediquemos mais tempo real a nos abrigarmos no lugar secreto do Altíssimo; a menos que isso nos esteja ensinando como orar de maneira mais aceitável a Deus, como nos apossarmos de Suas promessas e como fazer-lhe os nossos rogos, como nos apropriarmos de Seus preceitos para que os transformemos em petições, então não somente o tempo que gastamos com a Bíblia em pouco ou nada tem contribuído para o enriquecimento da alma, mas também o próprio conhecimento que tivermos adquirido com a letra das Escrituras contribuirá para a nossa condenação, naquele dia vindouro. "Tornai-vos, pois, praticantes da palavra, e não somente ouvintes, enganando-vos a vós mesmos" (Tiago 1:22). Essa declaração se aplica às admoestações da Bíblia relativas à oração, como a todas as demais instruções que nela há. Desejamos, em seguida, salientar sete critérios a respeito.
1.Tiramos proveito das Escrituras quando somos levados a perceber a importância profunda da oração.
É de temer-se que, de fato, muitos dos ouvintes (e até mesmo estudiosos) da Bíblia não tenham qualquer convicção formada de que uma definida vida de oração é absolutamente essencial para andarmos e comungarmos diariamente com Deus, tal como é essencial para que sejamos libertados do poder do pecado no íntimo, das seduções do mundo e dos assédios de Satanás. Se tal convicção realmente se tivesse apossado de seus corações, não passariam muito mais tempo de rosto em terra, perante Deus? É mais do que em vão dizer: "Uma multidão de deveres impedem que eu me entregue à oração, embora isso seja contra os meus desejos". Porém, permanece de pé o fato de que cada um de nós dedica tempo para qualquer coisa que consideramos imperativo. Quem jamais viveu uma vida tão atarefada como o nosso Salvador? No entanto, quem encontrava mais tempo do que Ele para orar? Se verdadeiramente anelamos por ser súplices e intercessores perante Deus, e usamos todo o tempo disponível, Ele porá as coisas em tal ordem que nos sobrará mais tempo.
A falta de convicção positiva sabre a profunda importância da oração se evidencia claramente na vida coletiva dos crentes professos. Deus declarou com toda a clareza: "A Minha casa será chamada casa de oração" (Mateus 21:13). Notemos que não se trata de uma casa para "pregar" ou para "cantar", e, sim, uma casa de oração. No entanto, na maioria até mesmo das chamadas igrejas ortodoxas, o ministério da oração se tem reduzido a um ponto desprezível. Continua havendo campanhas evangelísticas e conferências bíblicas, mas quão raramente se ouve falar na dedicação de duas semanas a orações especiais! E quanto bem podem fazer essas "conferências bíblicas", se a vida de oração das igrejas não for fortalecida?
Porém, quando o Espírito Santo aplica poderosamente aos nossos corações palavras como "Vigiai e orai, para que não entreis em tentação" (Marcos 14:38), ". . . em tudo, porém, sejam conhecidas diante de Deus as vossas petições, pela oração e pela súplica, com ações de graça" (Filipenses 4:6), e "Perseverai na oração, vigiando com ações de graça" (Colossenses 4:2), então é que estamos nos beneficiando de nossos estudos das Escrituras.
2. Tiramos proveito das Escrituras quando somos levados a refletir que não sabemos como orar.
". . .não sabemos orar como convém... " (Romanos 8:26). Quão poucos crentes professos realmente acreditam nisso! A idéia mais generalizada entre os homens é que eles sabem bem acerca do que devem orar, mas que por serem descuidados e ímpios, não oram em favor daquilo que sabem com certeza ser o seu dever. Esse conceito, entretanto, está em total desarmonia com a inspirada declaração de Romanos 8:26. Devemos também observar que essa afirmação, tão humilhante para a carne, não diz respeito aos homens em geral, tão-somente, mas dirige-se particularmente aos santos de Deus, entre os quais o apóstolo não hesitou em incluir a si próprio: "... não sabemos orar como convém.... ''
Ora, se essa é a condição que prevalece entre os regenerados, quanto mais no caso dos não regenerados! Contudo, uma coisa é lermos e assentirmos mentalmente ao que este versículo assevera; mas é coisa inteiramente diversa perceber experimentalmente a sua verdade, pois, para que o coração seja levado a sentir aquilo que Deus requer de nós, é necessário que Ele mesmo opere em nós e por nosso intermédio.
Com freqüência digo minhas orações,
Mas, realmente chego a orar?
E harmonizo os desejos do coração
Com as palavras que profiro?
Eqüivaleria a ajoelhar-me
E a adorar deuses de pedra,
Se apenas ofereço ao Deus vivo
Orações que são somente palavras.
Faz muitos anos que essas linhas foram ensinadas a um teólogo pela sua mãe – que já é falecida – mas a sua perscrutadora mensagem ainda o impressiona muitíssimo. O crente não pode orar sem a aptidão dada diretamente pelo Espírito Santo, como também não pode criar um mundo. Assim realmente deve ser, pois a oração verdadeira é uma necessidade sentida e despertada em nós pelo Espírito, porquanto pedimos a Deus, em nome de Cristo, aquilo que está de conformidade com a Sua santa vontade. "E esta é a confiança que temos para com ele, que, se pedirmos alguma cousa segundo a sua vontade, ele nos ouve" (I Joio 5:14). Por outro lado, pedir qualquer coisa que não esteja de acordo com a vontade de Deus não é oração, é presunção.
É verdade que a vontade revelada de Deus se faz conhecida em sua Palavra; mas não da mesma maneira que um livro de receitas de cozinha contém receitas para o preparo de vários pratos. As Escrituras freqüentemente enumeram princípios que exigem um contínuo exercício do coração, bem como a ajuda divina, para que nos seja mostrada a sua aplicação a diferentes casos e circunstâncias.
Portanto, estamos realmente tirando proveito das Escrituras quando nos é ensinada a nossa profunda necessidade de clamar: "Senhor, ensina-nos a orar" (Lucas 11:1). Porque então é que realmente somos constrangidos a pedir dEle o espírito de oração.
3. Beneficiamo-nos de nossos estudos bíblicos quando ficamos conscientes da necessidade que temos da ajuda do Espírito Santo.
Em primeiro lugar, para que Ele nos torne conhecidas as nossas autênticas necessidades. Tomemos, par exemplo, as nossas necessidades temporais. Com quanta freqüência achamo-nos em alguma situação aflitiva; externamente falando, as coisas nos pressionam fortemente, e desejamos muito ser libertos desses testes e dessas dificuldades. Certamente que, nesse caso, sabemos, por nós mesmos, acerca do que nos convém orar.
Mas não! De fato, as coisas são bem diferentes disso! Pois a verdade é que, a despeito de nosso desejo natural de alívio, tão ignorantes somos nós e tão embotado é o nosso discernimento, que (até mesmo quando nossa consciência está desperta) não sabemos em que ponto Deus quer que nos submetamos à Sua vontade, ou de que modo poderemos ser santificados nessas aflições, fazendo-as redundar em nosso bem interno. Por conseguinte, Deus designa as petições da maioria daqueles que buscam alívio, devido a aflições externas, de "uivos", e não "clamores de coração" (Oséias 7:14). "Pois quem sabe o que é bom para o homem, durante os poucos dias da sua vida de vaidade os quais gasta como sombra?" (Eclesiastes 6:12). Ah, a sabedoria celestial se torna necessária, para ensinar-nos a orar acerca das nossas "necessidades" temporais, de conformidade com a mente de Deus.
Talvez algumas poucas palavras precisem ser acrescentadas àquilo que acabamos de dizer. Podemos orar, com sanção bíblica, pelas coisas temporais (Mateus 6:11ss.); mas isso com a seguinte tríplice limitação: Incidentalmente, mas não primariamente, podemos orar par elas, pois não são essas as coisas que mais preocupam o crente (Mateus 6:33). As realidades celestiais e eternas (Colossenses 3:1) é que devem ser procuradas primeira e principalmente, por serem de muito maior importância do que as coisas de valor meramente temporal.
Também podemos orar subordinadamente, como um meio para obtenção de um fim qualquer. Ao pedirmos as coisas materiais da parte de Deus, não devemos fazê-lo a fim de obter satisfação própria, e, sim, como ajuda que nos permita agradar melhor ao Senhor. Por fim, podemos orar de maneira submissa, e não como ditadores, porquanto isso importaria no pecado de presunção. Outrossim, não sabemos dizer com certeza se qualquer misericórdia temporal realmente contribuiria para nosso maior bem (Salmo 106:18), pelo que também devemos permitir que Deus decida a questão.
Temos desejos internos; tanto quanta desejos externos. Alguns desses desejos podem ser discernidos à luz da consciência, tal como a culpa e a contaminação do pecado, como os pecados contra a luz e contra a natureza de acordo com a clara letra da lei. Não obstante, o conhecimento que temos de nós mesmos, através da consciência, é tão obscuro e confuso que, à parte do auxílio do Espírito Santo, de forma alguma seremos capazes de descobrir a verdadeira fonte da purificação. As coisas a respeito das quais os crentes devem tratar primariamente com Deus, e geralmente o fazem, em suas súplicas, são as atitudes intimas e as disposições espirituais de suas almas.
Assim é que Davi não se satisfez somente em confessar todas as transgressões conhecidas e o seu pecado original (Salmo 51:1-5), nem ainda em reconhecer que ninguém poderia compreender os seus erros próprios, em razão de que almejava ser purgado de suas ''faltas ocultas" (Salmo 19:12); mas também implorou a Deus que levasse a efeito a sondagem profunda de seu coração, para que desvendasse o que havia de errado ali (Salmo 139:23,24), porque sabia que Deus, antes de tudo, requer a "... verdade no íntimo... " (Salmos 51:6).
Portanto, em face do trecho de I Coríntios 2:10-12, devemos buscar, de maneira bem definida, a ajuda do Espírito Santo, a fim de podermos orar de modo aceitável a Deus.
4. Extraímos benefícios das Escrituras quando o Espírito Santo nos ensina a correta finalidade da oração.
Deus determinou a ordenança da oração com, pelo menos, um designo tríplice. Primeiro, para que o grande Deus triuno seja honrado, já que a oração é um ato de adoração, a prestação de uma homenagem – a Deus Pai, como o Doador, em nome do Filho, o Único por intermédio de quem nos aproximamos dEle, devido ao poder impulsionador e orientador do Espírito Santo. Segundo, para humilhar os nossos corações, já que a oração foi determinada para levar-nos a uma posição de dependência, para que em nós se desenvolva o senso de incapacidade reconhecendo que sem o Senhor nada podemos fazer, porquanto também dependemos da Sua caridade por tudo quanto somos e temos. Porém, quão debilmente isso é percebido (se é que é percebido) por qualquer de nós, até que o Espírito Santo nos tome em Sua mão, remova de nós o orgulho e dê a Deus o lugar que a Ele compete, em nossos corações e em nossos pensamentos. Terceiro, como meio pelo que obtenhamos para nós mesmos as coisas boas que pedimos.
É de temer-se grandemente que uma das principais razões pelas quais tantas de nossas orações ficam sem resposta é que temos alguma finalidade errônea e indigna em mira. Nosso Salvador disse: "Pedi, e dar-se-vos-á" (Mateus 7 :7). No entanto, Tiago ensina a respeito de certos homens: ". . . pedis, e não recebeis, porque pedis mal, para esbanjardes em vossos prazeres" (Tiago 4:3). Orar em prol de qualquer coisa, mas não expressamente para a finalidade designada por Deus, é "pedir mal", e, portanto, é pedir sem propósito algum. Qualquer que seja a confiança que podemos ter em nossa própria sabedoria e integridade, se formos abandonados aos nossos próprios recursos, nossos alvos jamais se harmonizarão com a vontade de Deus. A menos que o Espírito Santo refreie a natureza carnal que há em nós, nossos próprios afetos naturais e insubmissos se imiscuirão em nossas súplicas, e estas se tomarão vãs. "Quer comais, quer bebais, ou façais outra coisa qualquer, fazei tudo para a glória de Deus" (I Coríntios 10:31). Contudo, somente o Espírito pode capacitar-nos a subordinar todos os nossos desejos à glória divina.
5. Tiramos proveito das Escrituras quando ali somos ensinados sobre como devemos pleitear as promessas de Deus.
Toda a oração deve ser feita na atmosfera da fé (Romanos 10:14), pois, do contrário, Deus não a ouvirá. Ora, a fé diz respeito às promessas de Deus (Hebreus 4:1; Rom. 4:21); por conseguinte, se não entendermos o que Deus Se comprometeu a dar-nos, não poderemos nem ao menos orar. As promessas de Deus contêm a matéria da oração e definem as suas dimensões. Aquilo que Deus tem prometido, tudo quanto Ele tem prometido, e nada mais, sobre isso podemos orar. "As cousas encobertas pertencem ao SENHOR nosso Deus. . ." (Deut. 29:29), mas aquilo que Ele tem mostrado ser de Sua vontade, como revelação de Sua igreja, pertence a nós; e isso nos serve de regra.
Não há nada de que tenhamos necessidade que Deus não tenha prometido suprir; mas o faz de tal maneira e sob tais limitações que sejam boas e úteis para nós. Por semelhante modo, nada há que Deus tenha prometido, e de que não tenhamos necessidade, ou que, de um modo ou de outro, não se refira a nós, na qualidade de membros do corpo místico de Cristo. Portanto, quanto melhor estivermos familiarizados com as promessas divinas, e quanto mais formos capazes de compreender a bondade, a graça e a misericórdia preparadas e propostas naquelas promessas, tanto melhor equipados estaremos para fazer orações aceitáveis ao Senhor.
Algumas das promessas de Deus são gerais, e não específicas; algumas delas são condicionais, ao passo que outras são incondicionais; algumas se cumprem ainda nesta vida, mas outras, somente no mundo vindouro. Por nós mesmos não somos capazes de discernir qual promessa se adapta melhor para nosso caso específico e para nossa presente urgência e necessidade, para que dela nos apropriemos pela fé e façamos um apelo correto perante Deus. É por isso que nos é expressamente dito: "Porque qual dos homens sabe as cousas do homem, senão o seu próprio espírito que nele está? Assim também as cousas de Deus ninguém as conhece, senão o Espírito de Deus. Ora, nós não temos recebido o espírito do mundo, e, sim, o Espírito que vem de Deus, para que conheçamos o que por Deus nos foi dada gratuitamente" (I Coríntios 2:11,12).
Se porventura alguém replicar: "Se tanta coisa é exigida para que se façam orações aceitáveis, e se não se podem fazer súplicas corretas a Deus sem tanta dificuldade como aqui é indicado, poucos se dedicarão por muito tempo a este mister", então a resposta é que a pessoa que assim objeta não sabe o que é orar, e nem está disposta a aprender a fazê-lo.
6. Tiramos real proveito das Escrituras quando somos levados a uma completa submissão a Deus.
Conforme foi declarado acima, uma das finalidades divinas, ao determinar a ordenança da oração, é que assim fôssemos humilhados. Isso é externamente denotado quando nos prostramos de joelhos perante o Senhor. A oração é o reconhecimento de nossa incapacidade e impotência, em que olhamos para Aquele de onde chega toda a nossa ajuda. Isso reconhece a Sua suficiência para suprir cada uma das nossas necessidades. Orar é tornar conhecidas as nossas "petições" (Filipenses 4:6) a Deus; mas petições são bem diferentes de exigências. "O trono da graça não foi erigido para que ali cheguemos e descarreguemos nossos sentimentos indignados perante Deus" (Wm. Gurnall). Compete-nos expor o nosso caso na presença de Deus, mas permitir que a Sua sabedoria superior prescreva como a questão deve ser solucionada. Não podemos ditar a Deus, e nem podemos "reivindicar" qualquer coisa da parte de Deus, porquanto somos esmoleiros que dependem de Sua pura misericórdia. Em todas as orações devemos acrescentar: "No entanto, não seja feita a minha vontade, e, sim, a Tua".
Porém, não pode a fé pleitear as promessas de Deus e esperar a resposta? Certamente, mas deve ser a resposta de Deus. O apóstolo Paulo rogou ao Senhor, por três vezes, que lhe removesse certo espinho na carne; ao invés de fazê-lo, o Senhor lhe conferiu a graça para suportar tal espinho (II Coríntios 12:7-9). Muitas das promessas de Deus são coletivas, e não pessoais. Ele prometeu dar à Sua Igreja pastores, mestres e evangelistas; no entanto, muitas das comunidades de Seus santos tem definhado por longo tempo sem esses ministérios. Outras promessas divinas são indefinidas e gerais, ao invés de serem absolutas e universais. Isso se verifica, por exemplo, no trecho de Efésios 6:2,3. Deus jamais Se comprometeu a dar-nos bens definidos em espécie ou tipo, a conferir-nos aquela coisa específica que pedimos, embora a peçamos com fé.
Outrossim, Ele reserva para Si mesmo o direito de determinar o tempo próprio, a ocasião certa, para derramar sabre nós a Sua mercê. "Buscai o SENHOR, vós todos os mansos da terra... porventura lograreis esconder-vos no dia da ira do SENHOR" (Sofonias 2:3). Justamente porque "pode" fazer parte da vontade de Deus proporcionar-me determinada bênção temporal, é meu dever lançar-me aos Seus cuidados e pleitear essa bênção; mas sempre com inteira submissão ao Seu beneplácito, para que isso se realize.
7. Beneficiamo-nos das Escrituras quando a oração se torna uma alegria real e profunda.
Meramente "dizer as orações" a cada manhã e tarde é uma tarefa enfadonha, um dever que produz um suspiro de alívio ao ser realizado. Porém, realmente chegar à presença consciente de Deus, contemplar a luz gloriosa de Sua face, ter comunhão com Ele diante do propiciatório, é prelibação da bem-aventurança eterna que nos espera nos Céus. Aquele que é abençoado com essa experiência pode dizer juntamente com o salmista: "Quanto a mim, bom é estar junto a Deus... " (Salmo 73:28). Sim, é bom para o coração, porque esse é aquietado; é bom para a fé, pois essa é fortalecida; é bom para a alma, pois ela é abençoada. A ausência dessa comunhão de alma com Deus é a raiz que impede a resposta às nossas orações: "Agrada-te do SENHOR, e Ele satisfará aos desejos do teu coração" (Salmo 37:4).
Qual é o fator que, sob a bênção do Espírito Santo, produz e promove essa alegria na oração? Em primeiro lugar, é o deleite do próprio coração em Deus, como o grande Objeto da oração; e, mais particularmente, o reconhecimento e a percepção de Deus como nosso Pai. Por essa razão é que quando os discípulos pediram ao Senhor Jesus que lhes ensinasse a orar, Ele respondeu: "... vós orareis assim: Pai nosso que estás nos Céus..." (Mateus 6:9). E também se lê : "E, porque vós sois filhos, enviou Deus aos nossos corações o Espírito de seu Filho, que clama: Aba (termo hebraico que significa "Pai") Gálatas 4:6. E isso inclui um deleite filial e santo em Deus, tal como as crianças têm em seus progenitores, quando se dirigem de maneira mais amorosa a eles. Por essa razão, por semelhante modo, é que nos é dito, em Efésios 2:18, para fortalecimento da fé e para consolo de nossos corações que "...por Ele (ou seja, Cristo), ambos temos acesso ao Pai em um Espírito". Que paz, que certeza e que liberdade isso nos confere à alma – sabermos que nos aproximamos de nosso Pai!
Em segundo lugar, a alegria na oração é promovida pelo fato de que o coração aprende e a alma vê a Deus, como Alguém assentado no trono da graça – uma visão de expectação, conferida, não pela imaginação carnal, e, sim, pela iluminação espiritual, já que é pela fé que vemos "...aquele que é invisível" (Hebreus 11:27), porque também a fé é "... a convicção de fatos que se não vêem" (Hebreus 11:1), o que faz com que o seu objeto se torne evidente e presente para aqueles que crêem. Tal vista de Deus sobre um "trono" não pode deixar de arrebatar a alma. Por isso mesmo, somos exortados: "Acheguemo-nos, portanto, confiadamente, junto ao trono da graça, a fim de recebermos misericórdia e acharmos graça para socorro em ocasião oportuna" (Hebreus 4:16).
Em terceiro lugar, e isso com base no último trecho bíblico citado, a liberdade e o deleite na oração são estimulados polo consciência de que Deus, por intermédio de Jesus Cristo, está disposto e pronto a dispensar graça e misericórdia aos pecadores súplices. Não há nEle qualquer relutância que precisamos vencer. Por esse motivo é que ele é representado, em Isaías 30:18, do seguinte modo: "Por isso o SENHOR espera, para ter misericórdia de vós, e se detém para se compadecer de vós, porque o SENHOR é Deus de justiça; bem-aventurados todos os que nele esperam".
Sim, Deus espera ser solicitado por nós; Ele espera que depositemos fé em Sua pronta disposição para abençoar-nos. Seus ouvidos estão perenemente abertos para os clamores dos justos. Assim sendo, "... aproximemo-nos, com sincero coração, em plena certeza de fé... " (Hebreus 10:22). E também se lê em Filipenses 4:6,7 : "... em tudo, porém, sejam conhecidas diante de Deus as vossas petições, pela oração e pela súplica, com ações de graça. E a paz de Deus, que excede todo o entendimento, guardará os vossos corações e as vossas mentes em Cristo Jesus".
AS ESCRITURAS E AS BOAS OBRAS
A verdade de Deus bem poderia ser assemelhada a uma vereda estreita, a cada margem ladeada por um precipício perigoso e destruidor: em outras palavras, fica entre dois golfos de erro. Essa figura simbólica, como se pode perceber, é apropriada devido à nossa tendência de passar de um ponto extremo para outro. Somente a aptidão outorgada pelo Espírito Santo pode permitir-nos preservar o equilíbrio, pois a falta de tal equilíbrio inevitavelmente nos levaria a cair no erro; pois o erro não é tanto a negação da verdade, mas antes, é a perversão da verdade, em que lançamos uma parte dela contra a outra.
A história da teologia ilustra vigorosa e solenemente esse fato. Uma geração de homens tem contendido correta e sinceramente por aquele aspecto da verdade que era mais urgentemente necessário em seus dias. A geração seguinte, ao invés de palmilhar pela mesma senda e seguir avante, fica a guerrear intelectualmente por ela, como se fora o sinal distintivo do partido deles, e usualmente, na defesa do que passa a ser alvo de assédios externos, recusa-se a dar ouvidos à verdade que é o extremo oposto acerca do qual seus oponentes tanto insistiam e que poderia dar-lhes equilíbrio. O resultado é que perde seu senso de perspectiva, frisando aquilo que acreditam de maneira alheia às proporções bíblicas. Consequentemente, na geração seguinte, os verdadeiros servos de Deus são forçados quase a ignorar o que era tão valioso aos olhos da geração anterior, preferindo salientar aquilo que os primeiros, se não negaram, pelo menos desconsideraram quase completamente.
Alguém disse que "Os raios de luz, sem importar se procedem do sol, das estrelas ou de uma lâmpada, movem-se em linhas perfeitamente retas; contudo, tão inferiores são as nossas obras, em contraste com as obras de Deus, que a mão mais firme não sabe traçar uma linha perfeitamente reta; e a despeito de todas as suas habilidades, o homem nunca foi capaz de inventar um instrumento capaz de fazer uma coisa aparentemente tão simples" (T. Guthrie, 1867). Seja assim ou não, o fato é que os homens, deixados a depender de seus próprios recursos, têm achado impossível manter a linha certa da verdade que fica entre o que parecem estar em conflito. Entre esses casos poderíamos citar as doutrinas da soberania de Deus e da responsabilidade do homem; da eleição pela graça e da proclamação universal do evangelho; da fé justificadora, ensinada par Paulo, e das obras justificadoras, ensinadas por Tiago.
Com grande freqüência, sempre que se tem insistido acerca da soberania absoluta de Deus, isso é feito ignorando-se a necessidade que os homens têm de prestar contas ao Senhor; e sempre que a eleição incondicional tem sido ressaltada, a pregação generalizada do evangelho, entre os perdidos, tem sido esquecida. Por outro lado, sempre que a responsabilidade humana tem sido destacada e que o ministério evangelizador tem sido frisado, a soberania de Deus e a verdade da eleição geralmente têm sido olvidados ou mesmo completamente ignorados.
Muitos de nossos eleitores têm testemunhado exemplos que ilustram a verdade do que dissemos acima; mas poucos parecem perceber que exatamente a mesma dificuldade é experimentada quando se faz a tentativa de demonstrar as relações exatas entre a fé e as boas obras. Se, por um lado, alguns têm errado par atribuir às boas obras um lugar que as Escrituras não ensinam, o que é certo também é que, por outro lado, outros têm deixado de atribuir às boas obras a província que as Escrituras lhes dão. E assim também, se por um lado, é erro sério atribuirmos a nossa justificação perante Deus a qualquer realização pessoal, por outro lado, tornam-se igualmente culpados de erro aqueles que negam que as boas obras são necessárias para chegarmos ao Céu, nada mais admitindo senão que são meras evidências ou frutos de nossa justificação.
E temos perfeita consciência de que a esta altura, (por assim dizer) pisamos sobre cascas de ovos, correndo o sério risco de sermos por nossa vez acusados de heresia. Não obstante, consideramos expediente buscar a ajuda divina para manusearmos essa dificuldade, entregando a questão e seus resultados ao próprio Deus.
Em alguns segmentos da cristandade as reivindicações da fé, embora não tenham sido inteiramente negadas, têm sido desprezadas, devido ao zelo que ali têm pelas obras boas. Em outros círculos, reputados como ortodoxos (e esses é que temos agora principalmente em foco), somente com grande raridade as boas obras recebem o seu devido lugar, e apenas uma vez ou outra os cristãos professes são exortados, com zelo apostólico, a se dedicarem às boas obras. Não há que duvidar que, em certos casos, essa atitude é tomada por receio de não dar o devido valor à fé, como se tal exortação encorajasse os pecadores a caírem no erro fatal de confiarem em suas próprias realizações, e não na justiça de Cristo. Nenhuma apreensão dessa natureza, porém, deveria impedir o pregador de declarar "todo o conselho de Deus" (Atos 20:27). Se o tema do pregador é a fé em Jesus Cristo, como Salvador dos perdidos, que ele exponha perfeitamente aquela verdade sem quaisquer modificações, proporcionando à graça divina o lugar que o apóstolo lhe deu, na resposta ao carcereiro de Filipos (Atos 16:31).
Entretanto, se o seu tema é as boas obras, que ele seja igualmente fiel, nada retendo de tudo quanto as Escrituras ensinam a respeito; e que não se esqueça daquele mandamento divino, que diz: "... quero que, no tocante a estas cousas, faças afirmação, confiadamente, para que os que têm crido em Deus sejam solícitos na prática de boas obras..." (Tito 3:8).
A passagem citada em último lugar é o trecho bíblico mais pertinente para estes dias de lassidão e frouxidão, de profissões de fé sem valor, de jactâncias vazias. A expressão "boas obras" encontra-se, no singular ou no plural, nas páginas do Novo Testamento, por não menos de trinta vezes; contudo, a julgar pela raridade com que muitos pregadores – que são considerados ortodoxos a usam, salientam e a explanam, muitos de seus ouvintes haverão de concluir que essas palavras figuram apenas por uma ou duas vezes na Bíblia inteira.
Falando aos judeus e abordando um outro assunto, disse o Senhor: "...o que Deus ajuntou não o separe o homem" (Marcos 10:19). Ora, em Efésios 2:8-10, Deus reúne duas das mais vitais e benditas realidades, às quais jamais deveriam ser separadas em nossas mentes e em nossos corações, embora assim suceda com freqüência, nos púlpitos modernos. Quão grande é o número de sermões alicerçados sabre os dois primeiros desses versículos, os quais declaram enfaticamente que a salvação vem pela graça, mediante a fé, e não através das obras. No entanto, quão raramente somos relembrados de que a declaração que começa a falar sabre a graça e a fé só se completa no décimo versículo, onde somos informados: "Pois somos feitura dele, criados em Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus de antemão preparou para que andássemos nelas".
Esta série foi iniciada ficando ressaltado o fato de que a Palavra de Deus pode ser estudada com base em diversos motivos ou lida com diferentes desígnios, mas que o trecho de II Timóteo 3:16,17 esclarece para o que as Escrituras Sagradas são realmente "proveitosas", a saber, para ensinar, para repreender, para corrigir e para instruir na justiça; e tudo isso para que o homem de Deus "... seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra". Tendo-nos demorado em torno dos ensinamentos bíblicos acerca de Deus, de Cristo, de reprimendas e correções do pecado, de instruções relativas à oração, consideremos agora como esses ensinamentos nos prepararam para "toda boa obra".
Temos nesse ponto um outro critério vital mediante o qual toda a alma honesta, com a ajuda do Espírito Santo, pode verificar se seu estudo e sua leitura da Palavra realmente lhe estão sendo benéficos ou não.
1.Tiramos proveito da Palavra quando aprendemos ali qual é o verdadeiro lugar das boas obras.
"Muitas pessoas, em seu afã de dar apoio à ortodoxia como um sistema, falam sobre a salvação mediante a graça e a fé de tal maneira que subestimam a santidade e a vida consagrada a Deus. Mas as próprias Sagradas Escrituras não dão margem a isso. O mesmo evangelho que declara que a salvação vem pela gratuita graça de Deus, através da fé no sangue de Cristo, e que nos termos mais fortes possíveis assevera que os pecadores são justificados pela justiça do Salvador, lançada na conta daqueles que nEle confiam, independentemente das obras, também nos asseguram que, sem a santificação nenhum homem jamais verá a Deus.
"Também ensinam que os crentes são purificados pelo sangue expiatório de Cristo; que os seus corações são limpos pela fé, a qual opera por intermédio do amor, a qual também vence o mundo; e que a graça divina que oferece a salvação a todos os homens também ensina que aqueles que a recebem devem negar a impiedade e as paixões mundanas, a fim de que vivam sóbria, justa e piedosamente neste mundo.
"E qualquer temor de que a doutrina da graça sofrerá alguma perda, devido a saliência dada às boas obras, com base bíblica, deixa transparecer o conhecimento inadequado e grandemente defeituoso da verdade divina; e qualquer manuseio das verdades bíblicas, a fim de silenciar o testemunho das Escrituras em favor dos frutos da justiça, como algo absolutamente necessário para o crente, é tão-somente uma perversão e uma idéia forjada no tocante à Palavra de Deus" (Alexander Carson).
Mas alguns indagam: "Que força tem essa ordenação ou mandamento de Deus, que nos recomenda as boas obras, se, apesar de não aplicarmos diligentemente nossos esforços para obedecer-lhe, ainda assim formos justificados devido à imputação da justiça de Cristo, e desse modo sermos salvos?" Uma objeção tão sem sentido procede da total ignorância sobre o presente estado e das presentes relações do crente para com Deus. Supor que os corações dos homens regenerados não são tão profunda e eficazmente influenciados pela autoridade e pelos mandamentos divinos, para que se inclinem à obediência, tanto quanto tivessem sido dados para sua justificação, é ignorar a verdadeira natureza da fé, bem como os argumentos e os motivos que afetam e constrangem principalmente aos crentes. Além disso, fazer tal objeção é perder de vista a conexão inseparável que Deus estabeleceu entre a nossa justificação e a nossa santificação. Supor que uma dessas duas verdades pode existir sem a outra é desfazer o evangelho inteiro. O apóstolo Paulo trata exatamente dessa objeção, em Romanos 6:1-3.
2. Tiramos proveito da Palavra quando ali aprendemos a absoluta necessidade das boas obras.
Se por um lado está escrito que "... sem derramamento de sangue não há remissão" (Hebreus 9:22), e que "... sem fé é impossível agradar a Deus... " (Hebreus I1:6), por outro lado a Escritura da Verdade também declara: "Segui a paz com todos, e a santificação, sem a qual ninguém verá o Senhor" (Hebreus 12:14). A vida que os santos desfrutarão nos lugares celestiais será tão-somente o término e a consumação daquela vida que, após terem sido regenerados, viveram nesta terra. A diferença entre essas duas fases não é de tipo, e, sim, apenas uma diferença de grau. "Mas a vereda dos justos é como a luz da aurora que vai brilhando mais e mais até ser dia perfeito (Provérbios 4:18).
Se porventura alguém não tiver andado com Deus neste nível terreno, também não poderá habitar com Deus, lá nas alturas. Se não tiver havido real comunhão com Deus, dentro do tempo, não haverá comunhão com Deus na eternidade. A morte física não produz qualquer transformação vital no coração. É verdade que, no caso dos santos, por ocasião da morte física, os remanescentes do pecado ficarão para sempre deixados para trás, mas nenhuma natureza nova lhes é conferida naquela ocasião. Portanto, se alguém não odiou ao pecado e não amou à santidade, antes da morte, certamente não o fará depois.
Ninguém deseja realmente ir para o inferno, embora poucos sejam verdadeiramente aqueles que estão dispostos a abandonar aquela estrada larga que inevitavelmente termina ali. Todos os homens gostariam de ir para o céu; mas quem, dentre as multidões de cristãos professos, está realmente disposto e resolvido a palmilhar por aquele caminho estreito que é o único que conduz até ali? É neste ponto que podemos discernir o lugar preciso que tem as boas obras, em conexão com a salvação. As boas obras não merecem a salvação; mas estão inseparavelmente ligadas a ela. Não ganham um título de posse dos céus, mas se encontram entre os meios que Deus determinou para que Seu povo chegasse nos lugares celestiais.
Em sentido algum as boas obras são a causa eficiente da vida eterna; mas fazem parte dos meios (tal como são meios a operação do Espírito em nosso interior, o que nos confere o arrependimento, a fé e a atitude de obediência) que levam à vida eterna. Deus determinou o caminho pelo qual devemos andar, a fim de chegarmos à herança que Cristo adquiriu para nós. A vida de obediência diária a Deus é a única forma de vida diária que nos dá real admissão à fruição daquilo que Cristo comprou para o Seu povo – tanto a admissão agora, pela fé, como a admissão por ocasião da morte física, ou como a admissão quando de Sua Vinda, em sua total amplitude.
3. Beneficiamo-nos da Palavra quando ali aprendemos qual é o desígnio das boas obras.
Isso fica perfeitamente esclarecido no trecho de Mateus 5:16: "Assim brilhe também a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem a vosso Pai que está nos céus." É digno de nossa atenção o fato de que essa é a primeira ocorrência dessa expressão, e, conforme geralmente é o caso, a primeira menção de qualquer verdade, nas Escrituras, dá a entender seu escopo e seu uso subsequentes. Nesta altura aprendemos que os discípulos de Cristo precisam autenticar a sua profissão cristã pelo silencioso mas impressionante testemunho de suas vidas (pois a "luz" não faz nenhum ruído ao "iluminar"), a fim de que os homens possam ver (e não ouvir as jactâncias) as boas obras dos crentes; pois é assim que nosso Pai celestial, que está nos céus, pode ser glorificado. Aqui, pois, temos o seu desígnio fundamental – a honra de Deus.
Posto que o conteúdo do trecho de Mateus 5:16 é tão geralmente mal entendido e pervertido, acrescentamos aqui um outro pensamento. Com exagerada freqüência as "boas obras" são confundidas com a própria "luz". Entretanto, são perfeitamente distintas, posto que estejam inseparavelmente vinculadas entre si. A "luz" é o nosso testemunho em favor de Cristo; mas, que valor teria esse testemunho, se a própria vida não o exemplificasse? As "boas obras" não visam a chamar a atenção dos homens para nós mesmos, mas antes, para Aquele (Deus) que as lavrou em nós. E essas boas obras devem revestir-se de tal qualidade e caráter que até mesmo os ímpios reconheçam que elas procedem de alguma fonte superior à natureza humana decaída. Um fruto sobrenatural requer uma raiz sobrenatural; e quando isso é reconhecido, o divino Viticultor é devidamente glorificado.
Igualmente significativa é a última referência às boas obras, existente nas Escrituras: "... mantendo exemplar o vosso procedimento no meio dos gentios, para que, naquilo que falam contra vós outros como de malfeitores, observando-vos em vossas boas obras, glorifiquem a Deus no da visitação" (I Pedro 2:12). Por conseguinte, a primeira e a última menção às "boas obras" frisam o seu desígnio: glorificar a Deus, devido às Suas obras, realizadas por meio de Seu povo, neste mundo.
4. Tiramos proveito da Palavra quando ali aprendemos a verdadeira natureza das boas obras.
Eis alguma coisa sobre o que os indivíduos não regenerados são totalmente ignorantes. A julgar meramente pelas coisas externas, a aquilatar as coisas apenas pelos padrões humanos, aquelas e estes são totalmente incompetentes para determinar quais obras são boas, segundo o pensamento divino, e quais não são boas. Supondo que aquilo que os homens reputam como boas obras também seja aprovado pelo Senhor, ainda assim os homens permanecem nas trevas de seu entendimento embotado pelo pecado; e ninguém pode convencê-los sabre seu erro, enquanto o Espírito Santo não os vivifica para que recebam novidade de vida, arrebatando-os das trevas e trazendo-os para a maravilhosa luz de Deus. Então transparecerá claramente que boas obras são somente aquelas que são realizadas em obediência à vontade de Deus (Romanos 6:16), com base no princípio de amor a Ele (Hebreus 10:24), em nome de Cristo (Colossenses 3:17), visando sempre à glória de Deus por intermédio dEle (I Coríntios 10:31).
A natureza autêntica das "boas obras" foi perfeitamente exemplificada pelo Senhor Jesus. Tudo quanto Ele praticou, fê-lo em obediência a Seu Pai. Cristo "... não Se agradou a Si mesmo..." (Rom. 15:3), mas sempre obedeceu Àquele que O enviara (João 6:38). Por isso mesmo, Cristo pôde dizer: "...Eu faço sempre o que Lhe agrada" (João 8:29). Não havia limites à sujeição de Cristo à vontade do Pai. Ele tornou-Se "... obediente até à morte, e morte de cruz" (Filipenses 2:8).
Por semelhante modo, tudo quanto Cristo fez procedia de Seu amor ao Pai, bem como do amor a Seus semelhantes humanos. De fato, o amor é o cumprimento da lei; sem amor, a anuência à lei nada é senão uma sujeição servil, e isso não pode ser aceito par Aquele que é o próprio Amor. A prova que a obediência de Cristo, em todos os seus aspectos, fluía do amor, se encontra em Suas próprias palavras: "...agrada-me fazer a tua vontade, ó Deus meu..." (Salmo 40:8). E, por igual modo, tudo quanto Cristo fez tinha em vista a glória do Pai. Disse Ele: "Pai, glorifica o teu nome..." (João 12:28). E essas palavras revelam-nos o objetivo que Ele tinha constantemente em mira.
5. Tiramos proveito da Palavra quando ali aprendemos qual é a verdadeira fonte das boas obras.
Os homens não regenerados são capazes de realizar obras que são boas, em sentido natural e civil, embora não em sentido espiritual.
Esses homens podem fazer aquelas coisas que, externamente, no que diz respeito à sua matéria e substância, são boas, como a leitura da Bíblia, o recebimento de instruções bíblicas, a dádiva de esmolas para os pobres, etc.; contudo, o manancial dessas ações, bem com a ausência de motivos realmente piedosos, torna tais obras como trapos de imundícia aos olhos do Deus três vezes santo. Os homens não regenerados não têm a capacidade de realizar obras de forma espiritual, razão por que está escrito: "... não há quem faça o bem, não há nem um sequer..." (Romanos 3:12). De fato, para tais homens isso é simplesmente impossível – eles têm uma natureza que "...não está sujeita à lei de Deus, nem mesmo pode estar" (Romanos 8:7). Por conseguinte, as boas obras dos ímpios são inaceitáveis para Deus. E os próprios crentes não são capazes de ter um bom pensamento ou fazer qualquer boa obra par si mesmos (ver II Coríntios 3:5); porquanto é Deus quem opera neles "...tanto o querer como o realizar, segundo a sua boa vontade" (Filipenses 2:13).
Quando um etíope puder mudar a cor de sua pele, ou o leopardo puder trocar as manchas de seu couro, então também poderão fazer o bem aqueles que estão acostumados a fazer o mal (Jeremias 13:23). É mais fácil os homens esperarem poder colher uvas dos espinheiros ou figos dos abrolhos do que poderem os não regenerados dar bom fruto ou produzir boas obras. É mister que primeiramente sejamos "...criados em Cristo Jesus..." (Efésios 2:10), que o Seu Santo Espírito nos seja outorgado (Gálatas 4:6) e também que a Sua graça seja implantada em nossos corações, (Efésios 4:7 e I Coríntios 15:10), para que tenhamos qualquer capacidade para praticar as boas obras. E mesmo depois dessa experiência, nada poderemos fazer à parte de Cristo (João 15:5). Com grande freqüência, nós, os crentes, temos vontade de fazer coisas boas; mas não sabemos como realizá-las (Romanos 7:18). Isso nos leva a cair de joelhos, implorando para que Deus nos faça "perfeitos para toda boa obra, operando em nós "...o que é agradável diante dEle..." (Hebreus 13:21). Dessa maneira é que somos libertados de nosso senso de auto-suficiência, sendo levados a perceber que todas as nossas fontes se encontram em Deus (Salmos 87:7); e dessa maneira também descobrimos que tudo podemos, mediante Cristo, que nos fortalece (Filipenses 4:13).
6. Tiramos proveito da Palavra quando ali aprendemos qual é a grande importância das boas obras.
Condensando a questão o mais possível, diremos que as "boas obras" se revestem de capital importância porque, por meio delas Deus é glorificado (Mateus 5:16), por meio delas são caladas as bocas daqueles que falam contra nós (I Pedro 2:12), e por meio delas evidenciamos a genuinidade de nossa profissão de fé (Tiago 2:13-17).
É altamente desejável e válido que ornemos "... em todas as coisas a doutrina de Deus, nosso Salvador" (Tito 2 :10). Nada redunda em maior honra para Cristo do que o fato de que aqueles que receberam o Seu nome são encontrados a viver constantemente (devido à força capacitadora dada por Ele) de maneira cristã, no espírito cristão.
Não foi sem razão que o mesmo Espírito que levou o apóstolo a prefaciar sua declaração concernente à vida de Cristo a este mundo, para salvar aos pecadores, com as palavras "Fiel é a palavra...", também o impulsionou para que escrevesse: "Fiel é a palavra...que os que tem crido em Deus sejam solícitos na prática de boas obras" (Tito 3:8). Que todos nós verdadeiramente sejamos zelosos "...de boas obras" (Tito 2:14).
7. Tiramos proveito da Palavra quando ali aprendemos qual é o verdadeiro escopo das boas obras.
Isso é tão amplo que inclui a realização de nossos deveres, em todas as relações em que Deus nos colocou. É deveras interessante e instrutivo observarmos que a primeira "boa obra" (assim descrita nas Santas Escrituras) foi a unção do Salvador por parte de Maria de Betânia (Mateus 26:10 e Marcos 14:6).
Indiferente tanto para com as acusações como para com as aplausos dos homens, tendo olhos somente para o "mais distinguido entre dez mil" (Cantares 5:10), ela derramou abundantemente sobre Ele o seu precioso ungüento. E uma outra mulher, de nome Dorcas (Atos 9:36), também é mencionada como mulher "...notável pelas boas obras... ''
Sim, após a adoração vem o serviço, em que glorificamos a Deus entre os homens e nos tornamos beneficentes para com o próximo.
"... A fim de viverdes de modo digno do Senhor, para o seu inteiro agrado, frutificando em toda boa obra..." (Colossenses 1:10). A criação dos filhos (em que não é preciso arrastá-los à força!), a hospitalidade para com os estrangeiros (espirituais), a lavagem dos pés dos santos (que também indica a ministração a seus confortos temporais) e o alívio dado aos aflitos (I Timóteo 5:10), tudo é considerado como "boas obras".
A menos que nossa leitura e estudo das Escrituras estejam contribuindo para nos tornarmos melhores soldados de Jesus Cristo, melhores cidadãos do país onde vivemos como forasteiro, e melhores membros de nossos lares terrenos (mais gentis, mais bondosos, mais altruístas), ficando assim preparados para "toda boa obra", aquilo de pouco ou nada nos está aproveitando.
AS ESCRITURAS E A OBEDIÊNCIA
Todos os crentes professos estão acordes, pelo menos quanto à teoria em que é dever obrigatório daqueles que trazem o nome de Cristo honrá-Lo e glorificá-Lo neste mundo. Todavia, acerca de como isso deve ser feito, acerca do que Deus exige de nós quanto a essa finalidade, há imensa gama de opiniões. Muitos supõem que honrar a Cristo meramente significa unir-se a alguma "igreja", tomando parte de suas várias atividades e dando-lhes apoio. Outros imaginam que honrar a Cristo significa falar a Seu respeito a outros, ocupando-se diligentemente no "trabalho pessoal de evangelização". Outros parecem sentir que honrar a Cristo significa pouco mais do que fazer contribuições financeiras liberais em benefício de Sua causa.
Poucos, realmente, são os que percebem que Cristo só é honrado quando vivemos santamente para Ele, e isso se andarmos em sujeição à Sua vontade revelada. Poucos são os que verdadeiramente acreditam naquela palavra que diz: "Eis que o obedecer é melhor do que o sacrificar, e o atender melhor do que a gordura de carneiros" (I Samuel 15 :22).
Não seremos crentes, sob hipótese alguma, a menos que nos tenhamos rendido totalmente a Cristo e que tenhamos recebido a Cristo, "... o Senhor... " (Col. 2:6). Queremos instar com o prezado leitor para que pondere diligentemente sobre essa declaração acima. Satanás anda enganando a muitos, hoje em dia, levando-os a suporem que estão confiando na "obra consumada" de Cristo, para salvação de suas almas, ao mesmo tempo que seus corações permanecem inalterados e que o "ego" continua a governar as suas vidas. Ouçamos o que diz a Palavra de Deus: "A salvação está longe dos ímpios, pois não procuram os teus decretos" (Salmos 119:155).
O prezado leitor realmente busca os decretos de Deus? Você pesquisa com diligência a Sua Palavra, para descobrir o que Ele ordenou? "Aquele que diz: Eu o conheço, e não guarda os seus mandamentos, é mentiroso, e nele não está a verdade" (I João 2:4). O que poderia ser mais claro do que isso?
"Por que me chamais, Senhor, Senhor, e não fazeis o que vos mando? " (Lucas 6:46). A obediência ao Senhor na vida diária, e não apenas na forma de palavras ribombantes nos lábios, é o que Cristo exige. Que mensagem perscrutadora e solene é aquela que se acha em Tiago 1:22: "Tornai-vos, pois, praticantes da palavra, e não somente ouvintes, enganando-vos a vós mesmos!" Existem muitos "ouvintes" da Palavra, ouvintes regulares, ouvintes reverentes, ouvintes interessados; mas, infelizmente, aquilo que ouvem não incorporam em suas vidas – a Palavra não guia o seu caminho. E Deus é quem diz que aqueles que não são praticantes da Palavra meramente enganam a si mesmos!
Desafortunadamente, quantos existem assim na Cristandade, nesta nossa época! Não são hipócritas desavergonhados, mas apenas estão iludidos. Supõem os tais que em face de serem tão claros seus conceitos sobre a salvação só pela graça, que eles estão salvos. Supõem, igualmente, que por estarem sob o ministério de um homem que "fez da Bíblia um livro novo" para eles, que já cresceram na graça. Supõem que por terem aumentado o cabedal de seus conhecimentos bíblicos, aumentou também a sua espiritualidade. Supõem que o mero ouvir a um servo de Deus, ou que a mera leitura de seus escritos os alimenta com a Palavra. Nada disso! "Alimentamo-nos" com a Palavra de Deus somente quando nos apropriamos dela pessoalmente, quando mastigamos e assimilamos em nossas vidas aquilo que ouvimos ou lemos: Sempre que a vida não se amolda mais perfeitamente à Palavra de Deus, desde o coração, o conhecimento acrescido somente servirá para agravar a condenação da alma. "Aquele servo, porém, que conheceu a vontade de seu senhor e não se aprontou, nem fez segundo a sua vontade, será punido com muitos açoites" (Lucas 12 :47).
". . .que aprendem sempre e jamais podem chegar ao conhecimento da verdade" (II Timóteo 3:7). Essa é uma das mais proeminentes características dos "tempos perigosos" que atualmente atravessamos. As pessoas ouvem um pregador após outro, vão a esta e aquela conferência, lêem livros e mais livros sobre temas bíblicos, e, no entanto, jamais chegam a ter um conhecimento vital e prático da verdade, de tal modo que o seu poder e eficácia fiquem impressos sobre suas almas. Existe aquilo que poderíamos chamar de hidropisia espiritual, e multidões estão sofrendo desse mal. Quanto mais ouvem, tanto mais desejam ouvir: bebem sermões e discursos com avidez, mas suas vidas em nada se modificam para melhor. Antes, sentem-se orgulhosos de seu conhecimento, e não se humilham no pó diante de Deus. Mas a fé dos eleitos de Deus consiste no "... pleno conhecimento da verdade segundo a piedade.... " (Tito 1:1), ainda que isso seja ignorado pela vasta maioria.
Deus nos deu a Sua Palavra não apenas com o intuito de instruir-nos, mas também com o propósito de orientar-nos – para que soubéssemos o que Ele requer que façamos. A primeira coisa de que precisamos, pois, é do claro e distinto conhecimento de nosso dever; e a primeira coisa que Deus requer de nós é a prática conscienciosa do dever, que corresponda ao nosso conhecimento. "E que é o que o Senhor pede de ti, senão que pratiques a justiça e ames a misericórdia, e andes humildemente com o teu Deus? " (Miquéias 6:8). "De tudo o que se tem ouvido, a suma é: Teme a Deus, e guarda os seus mandamentos; porque isto é o dever de todo homem" (Eclesiastes 12:13). O Senhor Jesus salientou a mesma particularidade, quando disse: "Vós sois meus amigos, se fazeis o que eu vos mando" (João 15:14).
Assim sendo:
1. O indivíduo se beneficia da Palavra ao descobrir quais são as exigências que Deus lhe impõe.
Esses são os Seus mandamentos inalteráveis, pois Deus não sofre sombra de variação. É grave e grande erro supormos que, nesta presente Dispensação Deus rebaixou as Suas exigências, porquanto isso necessariamente implicaria em que Suas exigências anteriores eram severas demais e injustas.
Mas, não é assim! "Por conseguinte, a Lei é santa; e o mandamento, santo e justo e bom" (Romanos 7 :12). A súmula das exigências de Deus é a seguinte : "Amarás, pois, o SENHOR teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, e de toda a tua força" (Deuteronômio 6:5 ). E o Senhor Jesus reiterou esse conceito no trecho de Mateus 22:37. O apóstolo Paulo, por sua vez, reforçou o ponto, quando escreveu: "Se alguém não ama ao Senhor, seja anátema!" (I Coríntios 16:22).
2. O homem tira proveito da Palavra quando descobre quão total e pecaminosamente tem deixado de satisfazer às exigências de Deus.
E apressamo-nos por salientar, para benefício de qualquer pessoa que ponha em dúvida a veracidade daquele último parágrafo, que ninguém pode perceber quão profundamente pecador ele é, quão infinitamente aquém da medida dos padrões de Deus vive ele, enquanto não houver recebido a clara visão das exaltadas exigências que Deus lhe impõe! Na proporção exata em que os pregadores rebaixam os padrões divinos, sobre aquilo que o Senhor requer de todos os seres humanos, nessa mesma proporção os seus ouvintes obterão a idéia inadequada e distorcida de sua própria pecaminosidade, e menos perceberão eles a necessidade que têm do Salvador Todo-poderoso.
Porém, uma vez que uma alma realmente perceba quais são as exigências que Deus lhe faz, e também chegue a perceber que tem deixado completa e constantemente de fazer o que lhe compete, então é que ela reconhece quão desesperadora é a situação em que se encontra. A lei precisa ser ressaltada, antes que alguém esteja pronto para ouvir com proveito o evangelho.
3. Um homem se beneficia da Palavra quando ali aprende que Deus, em Sua infinita graça, providenciou plenamente para que Seu povo cumpra as Suas exigências.
Quanto a esse particular, igualmente, grande parte da pregação de nossos dias envolve defeitos sérios. Atualmente se anuncia aquilo que poderia ser chamado de "meio-evangelho", mas que, na realidade, virtualmente nega o verdadeiro evangelho. Cristo é incluído, mas tão-somente como um contrapeso. Que Cristo satisfez vicariamente a cada exigência que Deus impõe àqueles que crêem é uma bendita verdade; mas isso é apenas metade da verdade. O Senhor Jesus não apenas satisfez, em favor de Seu povo, os requisitos da justiça divina, mas igualmente assegurou que Seus discípulos os satisfariam pessoalmente. Cristo garantiu-nos o Espírito Santo, o qual opera em nós aquilo que o Redentor fez por nós.
O grandioso e glorioso milagre da salvação consiste do fato de que os salvos são regenerados. Há um trabalho de transformação operado neles. Seu entendimento é iluminado, seus corações são modificados e sua vontade é renovada. São feitos "novas criaturas", conforme se aprende em II Coríntios 5:17. Deus tece comentários sobre esse milagre da graça sob os seguintes termos: "Nas suas mentes imprimirei as minhas leis, também sobre os seus corações as inscreverei; e Eu serei o Seu Deus e eles serão o Meu povo" (Hebreus 8:10). A partir daí o coração se inclina para a lei de Deus: certa disposição foi transmitida ao coração que corresponde às exigências da lei; há um desejo sincero de executá-la. Por essa razão também é que a alma vivificada pode dizer: "Ao meu coração me ocorre: Buscai a Minha presença; buscarei, pois, SENHOR, a Tua presença" (Salmo 27:8).
Cristo não apenas prestou obediência perfeita à lei, visando à justificação de Seu povo, que nEle confia, mas também mereceu para eles aqueles suprimentos de Seu Santo Espírito que são essenciais para a santificação deles, e que é a única coisa que pode transformar criaturas carnais, capacitando-as a prestar obediência aceitável a Deus. Embora Cristo tenha morrido a seu tempo pelos "ímpios" (Romanos 5:6), e embora Ele os ache ímpios (Romanos 4:5), contudo, quando os justifica, não os abandona nesse estado abominável. Pelo contrário, ensina-lhes com eficácia, pelo Seu Espírito, a negarem a impiedade e as paixões mundanas (ver Tito 2:12). Assim como não se pode separar uma pedra de seu próprio peso, e nem o fogo ser separado de seu calor, assim também não se pode separar a justificação da santificação.
Quando Deus realmente perdoa a um pecador, no tribunal de sua consciência, e sob o senso daquela graça admirável, o coração é purificado, a vida é retificada e o indivíduo inteiro é santificado. "...Cristo Jesus ... a Si mesmo se deu por nós, a fim de remir-nos de toda iniqüidade, e purificar para si mesmo um povo exclusivamente Seu, (não descuidado e indiferente, mas) zeloso de boas obras" (Tito 2:14). Tal como uma substância é inseparável de suas propriedades, ou como as causas e seus efeitos necessários não se podem separar, assim também a fé salvadora e a obediência consciente a Deus são inseparáveis. Por isso mesmo é que lemos acerca da "...obediência por fé...", em Romanos 16:26.
O Senhor Jesus disse de certa feita: "Aquele que tem os Meus mandamentos e os guarda, esse é o que me ama..." (João 14:21). Nem no Antigo Testamento, nem nos Evangelhos e nem nas Epístolas Deus reconhece que alguém O ama, exceto aqueles que observa as Suas ordens. Pois o amor inclui algo mais que meros sentimentos e emoções; antes, é um princípio em ação, que se expressa em algo mais do que melosas expressões de afeto, já que se manifesta por meio de atos que agradam ao objeto amado. "Porque este é o amor de Deus, que guardemos os seus mandamentos..." (I João 5:3).
Oh, meu prezado amigo, você estará se enganando a si mesmo se pensa que ama a Deus, mas, no entanto, não tem o profundo desejo de obedecer ao Senhor e nem faz qualquer esforço real de andar obedientemente perante Ele!
Porém, do que consiste a obediência a Deus? Consiste em muito mais do que na realização mecânica de certos deveres. Talvez eu tenha sido criado por pais crentes, e sob a educação dada por eles tenha adquirido certos hábitos morais; no entanto, minha abstenção de não tomar o nome do Senhor em vão e de não furtar, pode não ser devido à minha obediência consciente ao terceiro e ao oitavo mandamentos. Pois, uma vez mais dizemos que a obediência a Deus consiste de muito mais do que nos amoldarmos à conduta normal de Seu povo.
Talvez eu esteja em um lar onde o descanso semanal é estritamente observado; e então, por motivo de respeito aos demais, ou então porque eu penso que é bom e sábio descansar nesse dia, talvez eu me refreie de todo o labor desnecessário naquele dia; mas nem por isso estarei observando o quarto mandamento, de modo algum! Pois a obediência não consiste apenas da sujeição a algum preceito externo, mas consiste em render eu a minha vontade à autoridade de outrem.
Por conseguinte, a obediência a Deus depende do reconhecimento, vindo do coração, de que Deus é o Senhor, de que Ele tem o direito de determinar, e de que o meu dever é anuir. Obedecer é sujeitar totalmente a alma ao jugo bendito de Cristo. Aquela forma de obediência que Deus requer só pode proceder de um coração que O ama. "Tudo quanto fizerdes, fazei-o de todo o coração, como para o Senhor, e não para homens..." (Colossenses 3 :23).
A obediência que se origina do temor do castigo é uma obediência servil. Aquela obediência prestada a fim de obter favores da parte de Deus é egoísta e carnal. Mas a obediência espiritual e aceitável é prestada com alegria: trata-se da livre reação favorável do coração agradecido pela consideração e pelo amor desmerecidos de Deus por nós.
4. Tiramos proveito da Palavra quando percebemos que não somente temos o dever obrigatório de obedecer a Deus, mas também quando em nós se cria o amor pelos Seus mandamentos.
O homem "bem-aventurado" é aquele cujo prazer "...está na lei do SENHOR..." (Salmo 1:2). E noutra passagem lemos: "Bem-aventurado o homem que teme ao SENHOR, e se compraz nos seus mandamentos" (Salmo 112:1). Nossos corações são verdadeiramente provados quando enfrentamos com honestidade a seguinte pergunta: Dou realmente valor aos "mandamentos" de Deus, tanto quanto dou valor às Suas promessas? E não deve ser essa a minha atitude? Não há o que duvidar de que assim deva ser, pois tanto uma coisa como a outra verdadeiramente procedem do Seu amor. A anuência do coração, ante a voz de Cristo é o fundamento de toda a santidade prática.
Neste ponto desejamos também rogar intensa e amorosamente ao prezado leitor que dê toda a atenção a este detalhe. Todo o indivíduo que se considera salvo, mas que não tem amor genuíno pelos mandamentos de Deus, na realidade está se iludindo a si mesmo. Declarou o salmista: "Quanto amo a tua Lei!" (Sal. 119:97). E novamente: "Amo os teus mandamentos mais do que o ouro, mais do que o ouro refinado" (Sal. 119:127).
E se porventura alguém objetar que assim acontecia durante o tempo do Antigo Testamento, então lhe perguntamos: ''Supõe o amigo que o Espírito de Jesus produz uma transformação inferior, nos corações daqueles que Ele agora regenera, à que fazia nos corações dos antigos crentes?" Na verdade, um santo do Novo Testamento registrou: "...no tocante ao homem interior, tenho prazer na lei de Deus" (Romanos 7:22). Ora, meu prezado leitor, a menos que o seu coração se deleite na "lei de Deus", algo de radicalmente errado estará ocorrendo consigo; sim, é realmente de temer-se que você esteja espiritualmente morto.
5. Um homem tira proveito da Palavra quando o seu coração e a sua vontade cedem diante de todos os mandamentos de Deus.
A obediência parcial nem pode ser reputada como obediência. A mente santa declina do tudo aquilo que é proibido por Deus, e prefere praticar o que Ele requer, sem fazer qualquer exceção. Se as nossas mentes não se submetem a Deus, em todos os Seus mandamentos, então é que não nos submetemos à Sua autoridade em qualquer coisa que Ele nos determina. Se não aprovamos a totalidade de nossos deveres cristãos, de todo o coração, então estaremos grandemente equivocados se imaginarmos que temos qualquer prazer com qualquer porção dos mesmos. O indivíduo que não possui em si mesmo qualquer princípio de santidade, ainda assim pode sentir repulsa por muitos vícios e ser praticante de muitas virtudes, pois percebe que os primeiros não são atos apropriados e que estas últimas, por si mesmas, são ações convenientes; todavia, a sua desaprovação aos vícios e a sua aprovação às virtudes não se originarão de qualquer disposição de submeter-se à vontade de Deus.
A verdadeira obediência espiritual é imparcial. O coração renovado não seleciona e nem escolhe entre os mandamentos de Deus: o indivíduo que age dessa maneira não procura cumprir a vontade de Deus, mas a sua própria. Não nos equivoquemos quanto a esse particular – se não desejamos sinceramente agradar a Deus em todas as coisas, então na realidade não desejamos agradá-Lo em qualquer coisa.
Precisamos renegar ao próprio "eu"; não renegar meramente algumas das coisas que antes desejáramos, mas ao próprio "eu"! Se permitirmos voluntariamente a presença de qualquer pecado conhecido, isso quebrará a lei inteira, conforme nos define a passagem de Tiago 2:10,11. "Então não terei de que me envergonhar, quando considerar em todos os teus mandamentos" (Salmo 119:6). Declarou o Senhor Jesus: "Vós sois meus amigos, se fazeis o que Eu vos mando" (João 15:14). Ora, se porventura eu não for amigo de Cristo, então terei de ser Seu inimigo, porquanto não há uma terceira alternativa (ver Lucas 19:27).
6. Tiramos proveito da Palavra quando nossa alma é impelida a orar intensamente pedindo a graça capacitadora.
Quando da regeneração, o Espírito Santo nos transmite uma tendência que se inclina para a obediência de acordo com a Palavra de Deus. O coração ó conquistado por Deus. Há um novo e profundo desejo de agradar ao Senhor. Mas a nova inclinação não possui qualquer poder inerente a si mesma, e a velha natureza, também chamada de "carne", se esforça contra ela, sem falarmos nas oposições do diabo. Por isso é que o crente pode exclamar: "...o querer o bem está em mim; não, porém o efetuá-lo" (Romanos 7:18).
Isso não significa que o crente seja escravo do pecado, conforme era antes de sua conversão, mas significa que agora ele não sabe como cumprir plenamente as suas aspirações espirituais. Por essa razão é que ora: "Guia-me pela vereda dos Teus mandamentos, pois nela me comprazo" (Salmos 119:35). E novamente: "Firma os meus passos na tua Palavra; e não me domine iniqüidade alguma" (Salmo 119:133).
Nesta altura, poderíamos replicar a uma objeção que as declarações feitas acima mui provavelmente levantaram em muitas mentes: O pregador está afirmando que Deus requer perfeita obediência de nossa parte, nesta vida? E a nossa resposta é: Sim! Deus nunca Se satisfará com qualquer padrão inferior a esse (I Pedro 1:15). Nesse caso, o verdadeiro crente está à altura desse elevadíssimo padrão? Sim e não! Sim, em meu coração; e é para o coração que Deus olha (I Samuel 16:7). No seu coração, cada pessoa regenerada tem verdadeiro amor pelos mandamentos de Deus, e deseja genuinamente observar a todos eles, completamente. É nesse sentido, mas somente nesse, que o crente é experimentalmente "perfeito''. A palavra "perfeito", tanto no Antigo Testamento (Jó 1:1 e Salmos 37:37) como no Novo Testamento (Filipenses 3:15), quer dizer "reto", "sincero", em contraste com "hipócrita".
"Tens ouvido, SENHOR, o desejo dos humildes; tu lhes fortalecerás o coração e lhes acudirás" (Salmos 10:17). Os "desejos" dos santos são a linguagem de sua alma; e a promessa divina, feita a eles, é a seguinte: "Ele acode à vontade dos que o temem; atende-lhes ao clamor e os salva" (Salmos 145:19). O desejo do crente é obedecer a Deus em todas as coisas, conformar-se inteiramente à imagem de Cristo. Mas isso só se concretizará quando por ocasião da ressurreição. Entrementes, por amor a Cristo, Deus aceita graciosamente a vontade dos crentes, em lugar de seus feitos não realizados (I Pedro 2:5). Deus conhece os nossos corações e vê nos Seus filhos um amor genuíno e o desejo sincero de observar todos os Seus mandamentos; e aceita os anelos fervorosos e o esforço cordial, em lugar de uma realização exata (II Coríntios 8:12).
Porém, que todo aquele que vive em desobediência voluntária não extraia desse fato uma paz falsa e perversa, porquanto isso contribuiria somente para a sua própria destruição, ao passo que serve para o consolo daqueles que, de todo o coração, desejam cumprir a vontade de Deus, agradando-O em todos os detalhes de suas vidas.
E se alguém indagar: "Como é que saberei que os meus desejos realmente são os desejos de uma alma regenerada?", nossa resposta será: A graça da salvação transmite ao coração uma disposição habitual na direção de atos santos. Os "desejos" do leitor devem ser testados como segue: São eles constantes e contínuos, ou obedecem a impulsos e interrupções? São eles intensos e sérios, de tal modo, que têm fome e sede de justiça (Mateus 5:6) e "suspira" pelo Deus vivo (Salmo 42:1)? Esses desejos são operantes e eficazes? Muitos desejam escapar do inferno; mas seus desejos não são suficientemente fortes para que abominem aos seus pecados, abandonando-os, os quais, inevitavelmente, os conduzirão ao inferno, a saber, os pecados voluntários contra Deus.
Muitos desejam escapar do inferno; mas seus desejos não são suficientemente fortes para que abominem aos seus pecados, abandonando-os, os quais, inevitavelmente, os conduzirão ao inferno, a saber, os pecados voluntários contra Deus. Muitos outros desejam ir para os céus, mas não intensamente que entrem naquele "caminho estreito" e por ele sigam, sendo esse o único caminho que conduz aos lugares celestiais. Os autênticos "desejos" espirituais usam os meios da graça e não poupam esforços por obter a concretização deles, mas pressionam continuamente, sob oração, na direção do alvo proposto.
7. Tiramos proveito da Palavra quando, desde agora, já desfrutamos da recompensa da obediência.
"A piedade para tudo é proveitosa..." (I Timóteo 4:8). É por intermédio da obediência à Palavra que purificamos as nossas próprias almas (I Pedro 1:21). É por meio da obediência que obtemos a atenção dos ouvidos de Deus (I João 3:22). Por outro lado, a desobediência é uma barreira para as nossas orações (Isaías 59:2 e Jeremias 5:25). Através da obediência obtemos preciosas e íntimas manifestações de Cristo para a nossa alma (João 14:21). Se estivermos palmilhando a senda da sabedoria (em completa sujeição a Deus), então descobriremos que "Os seus caminhos são caminhos deliciosos, e todas as suas veredas paz" (Provérbios 3:17). "...os Seus mandamentos não são penosos" (I João 5 :3). ''Muita paz tem os que guardam a Tua lei'' (Salmo 119:165) e "...em os guardar há grande recompensa" (Salmos 19:11).
AS ESCRITURAS E O MUNDO
Não é pouco o que está escrito no Novo Testamento, ao crente, acerca do "mundo" e da atitude que os crentes devem ter para com o mundo. Sua natureza real é claramente definida; e o crente é solenemente advertido a seu respeito. A santa Palavra de Deus é qual lâmpada descida dos céus, que brilha em "... lugar tenebroso..." (II Pedro 1:19). Os seus raios divinos exibem as coisas segundo as suas verdadeiras cores, penetrando profundamente e desmascarando o falso verniz e encanto de que muitas coisas estão envoltas. Aquele mundo, em favor do qual tanto labor é dedicado e tanto dinheiro é gasto, e que é tão altamente exaltado e admirado por seus ingênuos e fascinados habitantes, declaradamente se encontra em "inimizade contra Deus". Por esse motivo, os filhos de Deus são proibidos de se deixarem "amoldar" a este mundo, ou mesmo de fixarem nele os seus afetos.
A presente fase de nosso tema de forma alguma é o aspecto menos importante dentre aqueles que nos temos proposto a considerar; e o leitor sério fará bem se buscar a graça divina para poder aquilatar-se por meio desse critério. Uma das exortações que Deus dirige a Seus filhos diz como segue: "... desejai ardentemente, como crianças recém-nascidas, o genuíno leite espiritual, para que por ele vos seja dado crescimento para salvação" (II Pedro 2:2). E convém que cada um deles se examine, honesta e diligentemente, a fim de descobrir se isso ocorre em Seu caso ou não.
Por semelhante modo, não nos devemos contentar com o mero aumento do conhecimento intelectual sobre as Escrituras – pois aquilo que mais necessitamos buscar é o nosso desenvolvimento prático, a nossa conformação experimental com a imagem de Cristo. E um dos pontos onde nos podemos submeter a teste é o seguinte: A leitura e o estudo que faço da Bíblia me estão tornando menos mundano?
1. Estamos tirando proveito da Palavra quando os nossos olhos são abertos para discernir o verdadeiro caráter do mundo.
Certo poeta escreveu: "Deus está nos céus – tudo vai bem com o mundo". De certo ângulo, isso é uma bendita verdade; mas, de outro ponto de vista, é um conceito que peca pela base, porquanto "o mundo inteiro jaz no maligno" (I João 5 :19). Porém, somente quando o coração humano é sobrenaturalmente iluminado, pelo Espírito Santo, que se vê capacitado a perceber que aquilo que é altamente considerado entre os homens, na realidade é "abominação diante de Deus" (Lucas 16:15). Muito agradecidos devemos sentir-nos quando nossa própria alma é capaz de ver que o "mundo" é uma fraude gigantesca, uma ninhada oca, uma coisa vil, que algum dia será consumida nas chamas.
Antes de prosseguirmos, convém que definamos o "mundo" que ao crente é vedado amar. Existem poucas palavras, encontradas nas páginas das Santas Escrituras, usadas com mais ampla variedade de sentidos do que esta. No entanto, a atenção cuidadosa ao contexto usualmente basta para determinar o seu escopo. O "mundo" é um sistema ou ordem de coisas, completo em si mesmo. Nenhum elemento estranho pode ali intrometer-se; e ainda que o faça, não demora a ser assimilado ou tem de sofrer certa acomodação. O "mundo" consiste da natureza decaída, que se manifesta no seio da família humana, amoldando o arcabouço da sociedade humana de conformidade com as suas próprias tendências. É o reino organizado da "mente carnal" que se encontra em "inimizade contra Deus", e essa mente, ou seu pendor "... não está sujeito à lei de Deus, nem mesmo pode estar" (Romanos 8:7). Onde quer que se manifeste a "mente carnal", aí está igualmente o "mundo". Portanto, o mundanismo é o mundo sem Deus.
2. Tiramos proveito da Palavra quando aprendemos que o mundo é um inimigo ao qual devemos resistir e vencer.
Ao crente é ordenado combater o "...bom combate da fé..." (I Timóteo 6:12), o que subentende que há adversários a ser enfrentados e derrotados. Tal como existe a Santa Trindade – o Pai, o Filho e o Espírito Santo – assim também há uma maléfica trindade a carne, o mundo e o diabo. O filho de Deus é chamado a entrar em combate mortal contra essa trindade maléfica; e dizemos "mortal" porque ou o crente obtém a vitória sobre esses três adversários, ou é destruído por eles. Portanto, meu prezado leitor, ponha na sua mente que o mundo é um inimigo mortífero; e, se você não o vencer no seu coração, então é que não é filho de Deus, porquanto está escrito: "...tudo o que é nascido de Deus vence o mundo.'' (l João 5:4).
Dentre muitas outras razões, poderíamos apresentar as seguintes, que mostram por que o mundo deve ser "vencido". Em primeiro lugar, todos os seus objetos tendem a desviar a nossa atenção, alienando da de Deus as afeições da alma. Assim é necessário que seja, porquanto a tendência das coisas visíveis é desviar-nos o coração das realidades invisíveis. Em segundo lugar, o espírito do mundo é diametralmente contrário ao Espírito de Cristo; por isso mesmo é que o apóstolo escreveu: "Ora, nós não temos recebido o espírito do mundo, e, sim, o Espírito que vem de Deus..." (I Coríntios 2:12). O Filho de Deus veio a este mundo, mas "...o mundo não O conheceu..." (João 1:10). E, por esse motivo, os seus "poderosos" e governantes O crucificaram (I Coríntios 2:8). Em terceiro lugar, as preocupações e cuidados do mundo são hostis para com uma vida devota e celestial. Os crentes, tal como o resto da humanidade, têm por dever trabalhar seis dias na semana; porém, estando assim atarefados, precisam estar constantemente de sobreaviso, a fim de que interesses cobiçosos não venham governá-los, ao invés de serem dirigidos pelo senso do cumprimento do dever.
"E esta é a vitória que vence o mundo, a nossa fé" (1 João 5:4). Nada, senão a fé conferida por Deus, pode vencer ao mundo. Porém, assim como o coração se ocupa com realidades invisíveis e eternas, assim também vai sendo libertado da influência corruptora dos objetos mundanos. Os olhos da fé discernem aquilo que fere os sentidos físicos em suas verdadeiras cores, percebendo que as coisas terrenas são vazias e vãs, que não são dignas de comparação com os grandes e gloriosos objetivos da eternidade. O senso das perfeições e da presença de Deus faz o mundo parecer menos do que nada. Quando o crente vê que o divino Redentor morreu pelos seus pecados, vivendo para interceder pela sua perseverança, bem como para manobrar os acontecimentos, com vistas à sua salvação final, exclama: "Ninguém há na terra que eu deseje além de ti, ó Senhor!"
E como se dá no seu caso, prezado leitor, enquanto ouve essas considerações? Talvez você concorde cordialmente com o que acabamos de dizer. Mas, na realidade, como as coisas correm em sua experiência? Você pratica as coisas que os homens não regenerados tanto apreciam, qual pessoa enfeitiçada? Basta que se tire do indivíduo mundano aquilo em que ele se deleita, para que se sinta um miserável. E isso também sucede no seu caso? Ou a sua alegria e satisfação presentes se encontram em objetos que jamais poderão ser-lhe arrebatados?
E não cuide o prezado leitor que essas coisas são destituídas de importância, rogamos-lhe; antes, que pondere seriamente sobre elas, na presença de Deus. A resposta honesta, apresentada a essas perguntas, servirá de índice para que perceba se está sendo enganado ou não ao pensar que é uma "nova criatura" em Cristo Jesus.
3. Tiramos proveito da Palavra quando aprendemos que Cristo morreu a fim de livrar-nos "deste mundo perverso" (Gálatas 1:4).
O Filho de Deus veio a este mundo não somente com o fito de "cumprir" os requisitos da lei mosaica (Mateus 5:17), de "destruir as obras do diabo" (I João 3:8), de livrar-nos "da ira vindoura" (I Tessalonicenses 1:10) e de salvar-nos dos nossos pecados (Mateus 1:21), mas também veio a fim de livrar-nos da servidão a este mundo, liberando-nos a alma de suas influências enfeitiçadoras.
Isso foi prefigurado na antigüidade, quando das relações entre Deus e o povo de Israel. Os israelitas tinham sido escravos no Egito; e o "Egito" é um dos símbolos deste mundo. Ali se encontravam em servidão cruel, passando todo o tempo a fazer tijolos para Faraó. Eram incapazes de libertar-se. Mas o Senhor, em seu grande poder, os emancipou e os tirou da "fornalha de ferro". Outro tanto faz Cristo em favor dos que Lhe pertencem. Também interrompe o poder que o mundo tem de atrair seus corações. Torna-os independentes do mundo, de tal maneira que nem cortejam os seus favores e nem temem as suas ameaças.
Cristo deu-Se como sacrifício pelos pecados de Seu povo a fim de que, em conseqüência disso, sejam eles libertados do poder condenatório e das influências dominadoras de todos os males que existem neste mundo: de Satanás, que é o seu príncipe; das concupiscências que ali predominam; das conversas tolas dos mundanos. E o Espírito Santo, por habitar nos santos, coopera com Cristo nessa obra bendita. Ele desvia seus pensamentos e afetos para longe das coisas terrenas, para que se fixem nas realidades celestiais. Devido à operação de Seu poder, Ele os livra da influência desmoralizadora que os circunda, amoldando-os aos padrões celestiais.
E à medida que o crente vai crescendo na graça, vai reconhecendo esse fato mais e mais, agindo de conformidade com esse reconhecimento. E assim o crente busca libertação ainda mais completa deste "presente mundo mau", implorando a Deus que o livre totalmente do mesmo. E assim, aquilo que antes o atraía, agora lhe causa náuseas. Anela pelo momento em que será tirado deste palco terrestre, onde o seu bendito Senhor foi tão vilmente desonrado.
4. Somos beneficiados com o uso da Palavra quando nossos corações são desligados do mundo.
"Não ameis o mundo nem as cousas que há no mundo." (I João 2:15). "O que a pedra de tropeço é para o pedestre, no caminho, o que a carga é para o fundista e os ramos de folhas para o pássaro em seu vôo, assim também é o amor ao mundo para o crente, em seu curso – ou desviando-lhe completamente a atenção desse curso, porque o fascina, ou forçando-o a desviar-se do mesmo" (Nathaniel Hardy, 1660). A verdade é que enquanto o coração não for expurgado de suas corrupções, o ouvido será surdo para com as instruções divinas. Enquanto não formos elevados acima das coisas pertencentes ao tempo e aos sentidos físicos, também não seremos levados a obedecer a Deus. As verdades celestiais escapam da mente carnal como a água escorre de qualquer corpo esférico sobre o qual caia.
O mundo voltou as costas para Cristo; e embora o Seu nome seja professado em muitíssimos lugares, nada quer ter a ver com Ele. Todos os desejos e desígnios dos indivíduos mundanos visam à satisfação do próprio "eu". Que esses alvos e inquirições sejam tão variados quanto o queiram tais homens, o fato é que o próprio "eu" reina supremamente, e tudo tem por escopo agradar ao próprio "eu". Ora, os crentes se encontram no mundo, não podendo sair dele; precisam viver o tempo que o Senhor lhes determinou. E, estando aqui, têm de ganhar o próprio sustento e de cuidar de seus familiares, além de darem a devida atenção às suas atividades profissionais. No entanto, aos crentes é proibido amarem ao mundo, porquanto este não pode torná-los felizes. Seu "tesouro" e sua "porção" se encontram algures.
O mundo mostra-se atraente para cada instinto do homem decaído. Contém mil e um objetos que o encantam – esses objetos atraem a sua atenção, a atenção cria o desejo e o amor por esses objetos, e, de maneira insensível mas segura, vão fazendo impressões cada vez mais profundas em seu coração. O mundo exerce a mesma influência fatal sobre todas as classes de homens. Porém, por mais sedutores e atraentes que sejam seus variados objetos, todos os interesses e prazeres do mundo têm por intuito promover a felicidade somente nesta vida, para isso estando adaptados – pelo que também foi feita a indagação: "Pois, que aproveitará o homem se ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma? " (Mateus 16:26).
Os crentes são ensinados pelo Espírito Santo, e através da apresentação que Ele nos faz de Cristo, à nossa alma, os nossos pensamentos se desviam para longe do mundo. Tal como uma criancinha abandona um objeto sujo qualquer, quando algo mais agradável lhe é oferecido, assim também o coração que se acha em comunhão com Deus, dirá: "Considero tudo como perda, por causa da sublimidade do conhecimento de Cristo Jesus meu Senhor... e as considero como refugo, para ganhar a Cristo" (Filipenses 3:8).
5. Beneficiamo-nos da Palavra quando andamos separados do mundo.
"Não compreendeis que a amizade do mundo é inimiga de Deus? Aquele, pois, que quiser ser amigo do mundo constitui-se inimigo de Deus" (Tiago 4:4). Um versículo como esse deveria ser capaz de sondar-nos de um lado a outro, fazendo-nos estremecer. Como posso confraternizar com aquilo ou buscar o meu prazer naquilo que condenou o Filho de Deus? Se porventura eu vier a assim fazê-lo, de imediato serei identificado como um dos seus inimigos. Oh, meu prezado leitor, não se equivoque quanto a esse particular. Está escrito: "Se alguém amar o mundo, o amor do Pai não está nele" (I João 2:15).
Desde os dias antigos foi dito acerca do povo de Deus que eles seriam um "...povo que habita só..." (Números 23:9). Não há que duvidar que a disparidade de caráter e de conduta, de desejos e de alvos, que distingue os regenerados dos não regenerados deve ser um fator que os conserva separados uns dos outros. Nós, que professamos ser cidadãos de um outro mundo, que nos reputamos orientados por outro Espírito, que nos consideramos dirigidos por outra regra, que nos imaginamos como quem viaja para outro país, não podemos andar de braços dados com aqueles que desprezam essas realidades!
Por conseguinte, que todas as coisas, em nós e ao nosso derredor, exibam o caráter de peregrinos crentes. Sempre seremos: "...homens de presságio...", ou seja, de significância (Zacarias 3:8); e isso porque não nos amoldamos a este mundo (Romanos 12:2).
6. Tiramos proveito da Palavra quando despertamos contra nós o ódio do mundo.
Quanto esforço este mundo envida para salvar as aparências e para conservar um estado bom e decente! Suas convenções e civilidades, suas cortesias e caridades, são outros tantos artifícios que lhe emprestam certo ar de respeitabilidade. Por semelhante modo, seus templos e catedrais, seus sacerdotes e prelados são necessários para encobrir as corrupções que fervilham logo abaixo da superfície. E, como contrapeso, o "cristianismo" é acrescentado, ao passo que o nome de Cristo é proferido com os lábios por milhares e milhares de pessoas que nunca aceitaram o seu "jugo". A respeito dessas pessoas, declara o Senhor Deus: "Este povo honra-me com os lábios, mas o seu coração está longe de mim" (Mat.15:8).
E qual deve ser a atitude de todos os verdadeiros crentes em relação a isso? A resposta, dada pelas Sagradas Escrituras, é perfeitamente clara: "Foge também destes" (II Timóteo 3:5). "...retirai-vos do meio deles, separai-vos, diz o Senhor..." (II Coríntios 6:17). E qual será o resultado, quando essas ordens bíblicas são atendidas? Ora, é então que provaremos o sabor da veracidade daquelas palavras de Cristo: "Se vós fôsseis do mundo, o mundo amaria o que era seu; como, todavia, não sois do mundo, pelo contrário dele vos escolhi, por isso o mundo vos odeia" (João 15:19). Qual "mundo" está especificamente em foco aqui? Que o versículo prévio o responda: "Se o mundo vos odeia, sabei que, primeiro do que a vós outros, Me odiou a mim" (João 15:18). Ora, qual foi o "mundo" que odiou a Cristo e o condenou à morte? Foi o mundo religioso, aqueles que fingiam ser os elementos mais zelosos em prol da glória de Deus. Assim também acontece até hoje. Que o crente volte as costas para a cristandade que desonra a Cristo, e os seus adversários mais ferozes e mais incansáveis e inescrupulosos serão aqueles que se afirmam cristãos! Porém, "Bem-aventurados sois quando, por Minha causa, vos injuriarem e vos perseguirem... Regozijai-vos e exultai, porque é grande o vosso galardão nos céus..." (Mateus 5:11,12).
Ah, meu prezado irmão, é um bom e claro sinal, é marca segura de que você está tirando proveito da Palavra de Deus, quando o mundo dos religiosos passa a odiá-lo. Mas, por outro lado, se você ainda goza de boa reputação nas "igrejas" ou "assembléias", isso é motivo grave para temer que continua amando mais o louvor dos homens do que a aprovação divina!
7. Tiramos proveito da Palavra quando somos elevados acima do mundo.
Antes de tudo, acima de seus costumes e de suas modas. Os indivíduos mundanos são verdadeiros escravos dos hábitos e estilos que prevalecem em seus dias. Mas isso não acontece com aquele que anda com Deus – pois a sua principal preocupação é "conformar-se com a imagem do Filho de Deus".
Em segundo lugar, somos elevados acima dos cuidados e das tristezas do mundo. Foi dito acerca dos antigos santos que eles aceitavam de bom grado o espólio de seus bens, sabendo que nos céus, tinham "...patrimônio superior e durável" (Hebreus 10:34).
Em terceiro lugar, quando somos elevados acima das tentações exercidas pelo mundo – que atração têm o brilho e o resplendor do mundo para aqueles que se deleitam no Senhor? Nenhuma!
Em quarto lugar, quando somos elevados acima de suas opiniões e aprovações. Você já aprendeu a ser independente e a desafiar o mundo? Se todo o seu coração está resolvido a agradar a Deus, então nunca se preocupará com a desaprovação dos ímpios.
Ora, meu prezado leitor, você deseja verdadeiramente aquilatar-se de acordo com o conteúdo desta mensagem? Então procure dar respostas honestas às seguintes perguntas:
Primeiramente, quais são os seus objetivos, na mente, em períodos de recreação? Sobre o que se ocupam os seus pensamentos, antes de tudo?
Em segundo lugar, quais são os objetos de sua preferência? Quando você resolve como passar uma tarde ou um domingo à tarde, o que seleciona?
Em terceiro lugar, quais destas duas coisas você mais lamenta: a perda de bens materiais, ou a falta de comunhão com Deus? O que lhe causa maior pesar (ou enfado), a derrocada dos seus planos ou a frieza de seu coração para com Cristo?
Em quarto lugar, qual é o seu tópico favorito de conversação? Você fica debatendo sobre as novidades do dia, ou prefere encontrar-se com aqueles que falam sobre Aquele que é "inteiramente amável"?
Em quinto lugar, as suas "boas intenções" passam a ser cumpridas, ou elas são apenas sonhos vazios de determinação? Você está gastando mais tempo ou menos tempo do que antes, de joelhos? A Palavra de Deus parece mais doce ao seu paladar, ou sua alma perdeu o gosto para ela?
AS ESCRITURAS E AS PROMESSAS
As promessas divinas tornam conhecido o beneplácito da vontade de Deus relativamente a Seu povo, de que queria derramar sobre eles as riquezas de Sua graça. Essas promessas são os testemunhos externos do seu coração, o qual, desde toda a eternidade os ama e determinou previamente todas as coisas em favor deles e acerca deles. Na pessoa e na obra realizada por Seu Filho, Deus estabeleceu uma provisão toda-suficiente para a completa salvação deles, tanto quanto ao tempo como quanto à eternidade. Com a finalidade de que Seus remidos tivessem um conhecimento autêntico, claro e espiritual, dessa provisão, pareceu bem ao Senhor apresentá-la dentro das grandes e preciosíssimas promessas que se encontram dispersas por todas as Escrituras Sagradas, como outras tantas estrelas, no glorioso firmamento da graça divina. E, através delas, podem eles ficar certos da vontade de Deus, em Cristo Jesus, a respeito deles, abrigando-se em Cristo qual seu santuário, para que, por esse intermédio, gozem de real comunhão com Deus, em Sua graça e misericórdia, a todo o tempo, sem importar quais sejam o seu caso e as suas circunstâncias.
As promessas divinas são outras tantas declarações de que Deus nos propiciará algum bem ou removerá algum mal. Nesse sentido, elas tornam conhecido e manifestam o amor de Deus a Seu povo, da maneira mais abençoada possível. Há três passos vinculados ao amor de Deus: Primeiro, há o Seu propósito íntimo de exercê-lo; por fim, há a real execução desse propósito; mas, entre uma e outra coisa há o desvendamento gracioso desse propósito aos Seus beneficiários.
Enquanto o amor conservar-se oculto, não poderemos ser consolados pelo mesmo. Ora, Deus, que é "amor", não somente ama aos que Lhe pertencem, e não somente mostrará plenamente o Seu amor a eles, no tempo devido, mas também, nesse ínterim, conserva-os informados acerca dos Seus benévolos desígnios, a fim de que possam descansar docemente em Seu amor, dependendo confortavelmente de Suas firmes promessas. Por esse motivo é que somos capacitados a dizer: "Que preciosos para mim, SENHOR, são os teus pensamentos! E como é grande a soma deles!" (Salmo 139:17).
Na passagem de II Pedro 1:4, as promessas divinas são referidas como "...preciosas e mui grandes..." Conforme Spurgeon salientou, "...a grandiosidade e a preciosidade dificilmente andam juntas; mas, no presente caso, acham-se unidas de forma admirável". Quando o Senhor acha por bem abrir a Sua boca, revelando Seu coração, fá-lo de maneira digna de Si mesmo, com palavras de poder e riqueza superlativos. Citando novamente aquele amado pastor londrino: "Procedem de um grande Deus, dirigem-se a grandes pecadores, operam em nosso favor grandes resultados, e abordam grandes questões". E apesar de que o intelecto natural é capaz de perceber muito dessa grandeza, somente o coração renovado pode sentir o gosto de suas inefáveis promessas, dizendo, juntamente com Davi: "Quão doces são as tuas palavras ao meu paladar! mais do que o mel à minha boca" (Salmo 119:103).
1. Tiramos real proveito da Palavra quando percebemos a quem pertencem as promessas.
Essas promessas foram postas à disposição exclusivamente daqueles que estão em Cristo. "Porque quantas são as promessas de Deus tantas têm nele (em Cristo Jesus) o sim; porquanto também por ele é o amém para glória de Deus, por nosso intermédio" (II Coríntios 1:20). Não pode haver qualquer relacionamento entre o Deus três vezes santo e as criaturas pecaminosas, a não ser através de um Mediador que tenha satisfeito a Deus em nosso favor. Por essa mesma razão, esse Mediador deve receber, da parte de Deus, todas as bênçãos para Seu povo, recebendo-as este das mãos desse Mediador. Um pecador, se despreza e rejeita a Cristo, poderia implorar misericórdia de uma árvore, tanto quanto a implora de Deus – e nada receberia.
Tanto as promessas como as bênçãos prometidas são entregues ao Senhor Jesus e são transmitidas aos santos por intermédio dEle. "E esta é a (principal e maior) promessa que ele mesmo nos fez, a vida eterna" (I João 2:25). E conforme somos informados, nessa mesma epístola: "esta vida está no seu Filho" (I João 5:11).
Sendo as coisas assim, qual é o benefício que podem ter aqueles que não estão em Cristo, com base nessas promessas? Nenhum benefício. O indivíduo fora de Cristo também não desfruta do favor divino; de fato, está debaixo de Sua justa indignação. Sua porção são as ameaças divinas, e não as promessas de Deus. Solene, soleníssima consideração é aquela que diz que aqueles que estão "sem Cristo" são "...separados da comunidade de Israel, e estranhos às alianças da promessa, não tendo esperança, e sem Deus no mundo" (Efésios 2:12). Somente os filhos de Deus são igualmente "filhos da promessa" (Rom. 9:8). Certifique-se, meu prezado leitor, de que você é um deles também.
Quão terrível, pois, é a cegueira, e quão profundo é o pecado daqueles pregadores que aplicam indiscriminadamente as promessas divinas a salvos e perdidos igualmente! Esses não somente tomam o "pão dos filhos" e os lançam aos "cães", mas também adulteram "...a palavra de Deus..." (II Coríntios 4:2), além de enganarem a almas mortais. E aqueles que lhes dão ouvidos são pouco menos culpados, porquanto Deus reputa a todos responsáveis por examinarem as Escrituras por si mesmos, submetendo a teste tudo quanto lêem ou escutam, através desse padrão insofismável. Se porventura alguém é por demais preguiçoso para fazer tal exame, preferindo seguir cegamente os seus guias cegos, então que o seu sangue recaia sobre suas próprias cabeças. A verdade tem de ser "comprada" (Provérbios 23:23), e aqueles que não estão dispostos a pagar o preço pela sua possessão, devem fatalmente ficar sem ela.
2. Tiramos proveito da Palavra quando nos esforçamos por tornar nossas as promessas de Deus.
Para tanto devemos, antes de tudo, estar dispostos ao trabalho de nos familiarizarmos verdadeiramente com essas promessas. É surpreendente o grande número de promessas existentes nas Escrituras, acerca das quais os santos nada sabem, sobretudo quando levamos em conta que essas promessas são o tesouro peculiar dos remidos, já que a substância da herança da fé depende delas. É verdade que os crentes já são os beneficiários de bênçãos admiráveis; no entanto o capital de suas riquezas, a parte principal de suas propriedades encontra-se ainda em estado latente. Já receberam o "penhor" das promessas; mas a porção melhor daquilo que Cristo adquiriu para eles, jaz ainda nas promessas divinas. Quão diligentes, portanto, deveriam mostrar-se os crentes, no estudo de seu testamento, familiarizando-se com aquelas coisas boas que o Espírito nos "...revelou..." (I Coríntios 2:10), pois assim procurariam fazer o inventário de seus tesouros espirituais!
Não somente convém que eu pesquise as páginas da Bíblia para descobrir o que já me foi entregue, devido ao pacto eterno; mas também preciso meditar sobre as promessas, revolvendo-as sempre na minha mente e clamando ao Senhor para que me seja conferido entendimento espiritual delas. Uma abelha não extrai mel da flor, enquanto fica somente a contemplá-la. Por igual modo, o crente não deriva qualquer consolo real e nem qualquer força espiritual das promessas divinas, enquanto a sua fé não se apossa delas, e enquanto elas não penetram em seu coração. Deus não deixou qualquer promessa de que os desinteressados serão espiritualmente alimentados, mas declarou: "...a alma dos diligentes se farta" (Provérbios 13:4). Por essa mesma razão é que Cristo ensinou: "Trabalhai, não pela comida que perece, mas pela que subsiste para a vida eterna" (João 6:27). Somente quando as promessas divinas são entesouradas em nossas mentes é que o Espírito as traz à nossa memória, naquelas ocasiões de desânimo quando delas mais necessitarmos.
3. Tiramos real proveito da Palavra quando reconhecemos o bendito escopo das promessas de Deus.
"Há certa forma de afetação que impede alguns crentes de inquirirem pelas realidades religiosas, como se a sua esfera estivesse entre as trivialidades da vida diária. Para eles, essas promessas parecem transcendentais, sonhadoras; mais uma criação da ficção pia do que uma realidade palpável. Crêem em Deus de certo modo, como também assim acreditam nas coisas espirituais e na vida vindoura; mas andam totalmente esquecidos de que a verdadeira piedade tem a promessa da vida que agora é, e daquela que haverá no futuro. Para esses, a oração acerca das pequenas questões diárias de que se compõe a vida, seria quase uma profanação. Talvez ficassem boquiabertos se eu me aventurasse a sugerir que isso deveria levá-los a pôr em dúvida a realidade de sua fé. Se esta não pode ajudá-los nas pequenas dificuldades da vida, porventura poderá sustentá-los nas tribulações maiores da morte?
"A piedade para tudo é proveitosa, porque tem a promessa da vida que agora é e da que há de ser" (I Timóteo 4:8). Prezado leitor, você realmente crê que as promessas de Deus envolvem cada aspecto e particularidade de sua vida diária? Ou os "dispensacionalistas" conseguiram iludi-lo, levando-o a supor que o Antigo Testamento pertence exclusivamente aos judeus carnais, e que as "nossas promessas" dizem respeito a bênçãos espirituais, mas não materiais?
Quantos e quantos crentes têm derivado consolo das palavras que dizem: "De maneira alguma te deixarei, nunca jamais te abandonarei" (Heb. 13:5). Pois bem, essa é uma citação extraída do trecho de Josué 1:5! Por semelhante modo, a passagem de II Coríntios 7:1 fala em termos de "...tais promessas..." Mas uma delas, citada em II Coríntios 6:18, foi tirada do livro de Levítico!
Mas alguém poderia indagar: "Onde devo traçar a linha divisória? Quais das promessas do Antigo Testamento realmente me pertencem?" Respondemos com a declaração do trecho de Salmos 84:11: "O Senhor dá graça e glória; nenhum bem sonega aos que andam retamente". Se você realmente está andando em "retidão", então tem o direito de apropriar-se dessa bendita promessa, dependendo do Senhor, o qual lhe conferirá qualquer "coisa boa" de que você realmente precisar. "E o meu Deus, segundo a Sua riqueza em glória, há de suprir em Cristo Jesus, cada uma de vossas necessidades" (Filipenses 4:19). Por conseguinte, se em qualquer segmento da Bíblia há alguma promessa que se encaixa à situação e às circunstâncias presentes do prezado leitor, que se aposse dela pela fé, segundo a sua "necessidade". E que o prezado leitor resista firmemente a qualquer tentativa de Satanás de furtar-lhe qualquer porção da Palavra do Pai.
4. Beneficiamo-nos realmente da Palavra quando discriminamos acertadamente entre as promessas de Deus.
Muitos, dentre o povo de Deus, tornam-se culpados do pecado de furto espiritual. Ao assim dizermos, referimo-nos ao fato de que esses se apropriam de coisas a que não têm direito, porquanto pertencem a outrem.
"Alguns termos do pacto, estabelecidos entre o Senhor Jesus Cristo e Seus eleitos remidos, são inteiramente incondicionais naquilo que concerne a estes últimos; mas existem muitas outras ricas declarações do Senhor que contêm estipulações que devem ser ciosamente resguardadas, pois, de outro modo, não obteremos as bênçãos ali prometidas. Uma parte das pesquisas diligentes que você faz deve visar a esse importantíssimo ponto. Deus haverá de cumprir no seu caso as promessas que fez; tão-somente você deve observar zelosamente as condições estipuladas no pacto. Pois somente quando cumprimos as exigências de uma promessa condicional é que podemos esperar que aquela promessa seja concretizada para nós". (C. H. Spurgeon).
Muitas das promessas divinas se dirigem a caracteres particulares, ou, usando de uma linguagem mais correta, visam ao derramamento de graças particulares. Por exemplo, em Salmos 25:9, o Senhor declara que ele "Guia os humildes na justiça, e ensina aos mansos o seu caminho". Porém, se por acaso eu estiver fora de comunhão com Ele, e estiver palmilhando uma vereda de minha própria escolha teimosa, se meu coração for altivo, então não estarei com a razão ao pensar que esse citado versículo pode consolar-me.
Novamente, na passagem de João 15:7, o Senhor nos ensina como segue: "Se permanecerdes em mim e as minhas palavras permanecerem em vós, pedireis o que quiserdes, e vos será feito". Porém, se eu não gozo de comunhão experimental com o Senhor, e se os Seus preceitos não estão regulamentando a minha conduta, então minhas orações ficarão sem resposta. Pois, apesar do fato de que as promessas de Deus se derivam de Sua pura graça, contudo, nunca nos deveríamos olvidar que a graça reina "...pela justiça...", segundo se lê em Romanos 5:21, jamais ficando eliminada a faceta da responsabilidade humana.
Se porventura eu ignorar as leis da saúde, não poderei ficar surpreendido se as enfermidades me impedirem de desfrutar de muitas das misericórdias temporais de Deus; e, por semelhante modo, se eu estiver negligenciando aos preceitos divinos, terei de culpar somente a mim mesmo, se porventura não receber o cumprimento de muitas das promessas do Senhor.
Que ninguém suponha que, devido às Suas promessas, Deus se obrigou a ignorar as exigências de sua santidade, porquanto Ele jamais exerceu qualquer de Suas perfeições às expensas de outra. E que ninguém imagine, por semelhante modo, que Deus haveria de magnificar a obra expiatória do Calvário se porventura proporcionasse de seus frutos a almas impenitentes e descuidadas. Neste ponto, há certo equilíbrio da verdade que precisa ser preservado; infelizmente, esse equilíbrio, nestes nossos dias, com freqüência é olvidado, e isso sob a pretensão de exaltar a graça divina, que assim os homens, na realidade, tornam em "lascívia".
Com quanta freqüência se ouve a seguinte citação: "Invoca-me no dia da angústia: eu te livrarei, e tu me glorificarás" (Salmos 50:15). Mas esse versículo começa somente depois das palavras antecedentes. "Cumpre os teus votos para com o Altíssimo." Assim também, com grande freqüência se ouve repetir: "Sob as minhas vistas, te darei conselho" (Salmos 32:8). Mas isso é dito por pessoas que não dão a mínima atenção ao contexto dessa passagem! Contudo, temos aqui a promessa de Deus para aqueles que tiverem confessado a sua "iniqüidade" (ver Salmos 32:5).
Assim sendo, se você tiver deixado de confessar algum pecado que lhe pesa sobre a consciência, dependendo do braço da carne ou buscando ajuda da parte de seus semelhantes, ao invés de esperar somente em Deus (Salmo 62:5), então não terá qualquer direito de esperar pela orientação sob as vistas de Deus. Esta orientação divina necessariamente pressupõe que você estará andando em comunhão com Ele, já que não posso estar sob a vigilância de alguém se estou distante desse alguém.
5. Tiramos proveito da Palavra quando somos capacitados de fazer das promessas de Deus nosso apoio e arrimo.
Essa é uma das razões que explicam por que Deus nos deu as Suas promessas – não somente a fim de manifestar o Seu amor, tornando-nos conhecidos os Seus benévolos desígnios, mas também a fim de consolar nossos corações e desenvolver a nossa fé. Se Deus assim tivesse querido, poderia proporcionar-nos as Suas bênçãos sem avisar-nos de antemão acerca dos Seus propósitos. O Senhor poderia conferir-nos todas as misericórdias de que necessitamos, sem comprometer-Se de forma alguma a fazê-lo. Nesse caso, entretanto, não poderíamos ser crentes; pois a fé sem qualquer promessa seria como um pé sem chão onde pisar. Nosso terno Pai celestial planejou que desfrutássemos por duas vezes em seguida de Suas bênçãos – primeiramente, através da fé; e então pelo recebimento concretizado das promessas feitas. Por esses meios Ele, mui sabiamente, desliga os nossos corações daquelas coisas que vemos e que perecem, convocando-nos para olhar para a frente e para o alto, isto é, para aquelas realidades espirituais e eternas.
Além disso, se não houvesse nenhuma promessa, não somente seria inexistente a fé, mas também não haveria esperança. Pois, do que consiste a esperança senão da expectação daquelas coisas que Deus declarou que nos daria? A fé olha para a Palavra que faz a promessa; e a esperança espera a concretização da promessa. Assim também sucedeu no caso de Abraão: ''...esperando contra a esperança, creu... E, sem enfraquecer na fé, embora levasse em conta o seu próprio corpo amortecido, sendo já de cem anos, e a idade avançada de Sara, não duvidou da promessa de Deus." (Romanos 4:18-20).
Outro tanto aconteceu na vida de Moisés: "...porquanto considerou o opróbrio de Cristo por maiores riquezas do que os tesouros do Egito, porque contemplava o galardão" (Hebreus 11:26). E a mesma atitude sustentou o apóstolo Paulo: "...pois eu confio em Deus, que sucederá do modo por que me foi dito" (Atos 27:25).
Assim também acontece em seu caso, prezado leitor? As promessas dAquele que não pode mentir são o lugar de descanso de seu pobre coração?
6. Tiramos real proveito da Palavra quando esperamos com paciência pelo cumprimento das promessas de Deus.
Deus prometeu à Abraão um filho; mas Abraão teve de esperar por muitos anos, até que essa promessa tivesse cumprimento. Simeão recebeu a promessa de que não provaria a morte física enquanto não visse ao Ungido do Senhor (Lucas 2:26). Contudo, essa promessa só se cumpriu quando ele já estava praticamente com um dos pés no sepulcro. Geralmente ocorre um longo e difícil inverno entre o tempo da semeadura da oração e a colheita da resposta. O próprio Senhor Jesus ainda não recebeu plena resposta para a oração que fez, e que se acha registrada no 17o capítulo do evangelho de João, embora a tenha feito há quase 2000 anos.
Muitas das melhores promessas divinas para o Seu povo não receberão Sua mais rica realização enquanto não Se acharem os remidos já na glória. Aquele que tem a eternidade inteira à Sua disposição, não precisa de pressa. Com freqüência Deus nos faz esperar, a fim de que a paciência seja "aperfeiçoada"; não devemos, pois, desconfiar dEle. "Porque a visão ainda está para cumprir-se no tempo determinado, mas se apressa para o fim, e não falhará; se tardar, espera-o, porque certamente virá, não tardará" (Habacuque 2:3).
"Todos estes morreram na fé, sem ter obtido as promessas, vendo-as porém, de longe, e saudando-as, e confessando que eram estrangeiros e peregrinos sobre a terra" (Hebreus 11:13). Neste versículo podemos perceber o escopo inteiro da fé – conhecimento, confiança e aderência amorosa. As palavras "...de longe..." se referem às realidades prometidas; essas os santos antigos "viram" com a mente, discernindo a substância existente por detrás da sombra simbólica, descobrindo nesta última a sabedoria e a bondade de Deus. E também "saudaram" às promessas porque estavam "persuadidos" a seu respeito. Não duvidaram, mas antes, ficaram convictos de que haveriam de participar daquelas promessas, sabendo que não ficariam desapontados. Essa palavra também expressa o deleite e a veneração que tiveram, em que seus corações se aferraram às promessas com amor, saudando cordialmente às mesmas. As promessas foram o consolo e o arrimo daquelas almas crentes, em suas peregrinações, tentações e sofrimentos.
Várias finalidades são alcançadas por Deus quando Se demora na execução de Suas promessas. Não somente a nossa fé é submetida a grande teste, de forma que assim transparece mais claramente o seu caráter genuíno; não somente a paciência ou constância se desenvolve e à esperança é conferida a oportunidade de exercitar-se; mas também a submissão à vontade divina é fomentada.
"O processo de desligamento ainda não se cumpriu por essa altura: ainda almejamos pelos consolos que o Senhor deseja que ultrapassemos. Abraão muito festejou quando Isaque, seu filho, foi desmamado; e talvez nosso Pai celestial faz outro tanto conosco. Deita-te, coração orgulhoso. Abandona os teus ídolos; esquece-te dos teus feitos queridos; e a paz prometida te será conferida". (C. H. Spurgeon).
7. Tiramos real proveito da Palavra quando nos utilizamos corretamente de suas promessas.
Em primeiro lugar, em nosso relacionamento com o próprio Deus. Quando nos avizinhamos de Seu trono, isso deveria ser feito para pleitearmos alguma de Suas promessas. Elas formam não apenas o alicerce de nossa fé, mas também a substância dos nossos pedidos.
Precisamos fazer nossas petições de conformidade com a vontade de Deus, se quisermos ser ouvidos; e a vontade do Senhor acha-se revelada naquelas boas coisas que Ele declarou que há de nos dar. Portanto, compete-nos tomar posse das certezas que Ele nos confere, expondo-as perante Ele e dizendo: "Faze como falaste" (II Samuel 7:25). Observamos como Jacó pleiteou certa promessa, no trecho de Gênesis 32:12; como Moisés, o fez, na narrativa bíblica de Êxodo 32:13; como Davi agiu, segundo se lê em Salmo 119:58; e como fez Salomão, conforme se aprende em I Reis 8:25. Quanto a você, prezado leitor, aja por semelhante modo.
Em segundo lugar, utilizamo-nos corretamente das promessas de Deus segundo a forma de vida que vivermos neste mundo. Na passagem de Hebreus 11:13, lemos que os patriarcas não somente discerniram as promessas divinas, confiando nelas e saudando-as de longe, mas também somos informados acerca dos efeitos que essas promessas produziram sobre eles: "...confessando que eram estrangeiros e peregrinos sobre a terra", o que significa que se manifestaram publicamente acerca de sua fé. Reconheceram eles (e demonstraram-no através de sua conduta) que os seus interesses não estavam fixados nas coisas deste mundo; antes, sua porção satisfatória eram as promessas de que se tinham apropriado pela fé. Seus corações se voltavam para as realidades celestes; pois, onde estiver firmado o coração de um homem, aí estará igualmente o seu tesouro.
"Tendo, pois, ó amados, tais promessas, purifiquemo-nos de toda impureza, tanto da carne, como do espírito, aperfeiçoando a nossa santidade no temor do Senhor.'' (II Coríntios 7:1). Esse é o efeito que essas promessas devem produzir em nós; e assim sucederá, de fato, se nossa fé apossar-se delas. "...pelas quais nos têm sido doadas as suas preciosas e mui grandes promessas para que por elas vos tomeis co-participantes da natureza divina, livrando-vos da corrupção das paixões que há no mundo" (II Pedro 1:4). Ora, quando o evangelho e suas preciosas promessas são graciosamente conferidos e poderosamente aplicados, exercem profunda influência sobre a conduta e sobre a pureza de coração, ensinando os homens a negarem a impiedade e as concupiscências mundanas, a fim de que vivam sóbria, justa e piedosamente.
Estes são os poderosíssimos efeitos das promessas contidas no evangelho, debaixo da influência divina, o que leva os remidos a se tomarem participantes, no íntimo, da própria natureza divina, e para que, externamente, se abstenham das corrupções prevalecentes e evitem os vícios que caracterizam os homens em seus dias.
A. W. Pink
Original em inglês:
PROFITING FROM THE WORD
Copyright © I. C. Herendeen
Primeira edição em português – 1979
EDITORA FIEL LTDA.
Caixa Postal, 210 12940 – Atibaia – SP.
1979
ENRIQUECENDO-SE COM A BÍBLIA
De que maneira podemos ser beneficiados da Bíblia?
A passagem de 2 Timóteo 3:16-17, nos fornece clara resposta a essa pergunta: "Toda a escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção, para a educação na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra". Nos dez capítulos deste livro o autor examina o que a Bíblia nos ensina acerca de: PECADO, DEUS, CRISTO, ORAÇÃO, BOAS OBRAS, OBEDIÊNCIA, MUNDO, PROMESSAS, ALEGRIA, AMOR.
ÍNDICE
1 – As Escrituras e o Pecado . . . . . . . . . . . . . . 3
2 – As Escrituras e Deus . . . . . . . . . . . . . . . . 14
3 – As Escrituras e Cristo . . . . . . . . . . . . . . . 27
4 – As Escrituras e a Oração . . . . . . . . . . . . . 39
5 – As Escrituras e as Boas Obras . . . . . . . . . 52
6 – As Escrituras e a Obediência . . . . . . . . . . 64
7 – As Escrituras e o Mundo . . . . . . . . . . . . . . 76
8 – As Escrituras e as Promessas . . . . . . . . . 86
9 – As Escrituras e a Alegria . . . . . . . . . . . . . 98
10 – As Escrituras e o Amor . . . . .. . . . . . . . . 110
AS ESCRITURAS E O PECADO
Há seriíssimas razões para crermos que grande parte da leitura e do estudo bíblicos, nestes últimos poucos anos, não tem sido de grande proveito para aqueles que disso se tem ocupado. E vamos mais longe; pois tememos grandemente que, em muitos casos, isso tem sido antes uma maldição do que uma bênção. Estamos perfeitamente cônscios de que esta é uma linguagem dura, mas não mais forte do que o caso exige. Os dons divinos podem ser sujeitados a uso errôneo, e as misericórdias divinas podem ser alvo de abusos. Que assim tem sido, naquilo que aqui salientamos, é evidente através dos frutos produzidos.
Até mesmo o homem natural pode (e com freqüência o faz) atirar-se ao estudo das Escrituras com o mesmo entusiasmo e prazer que faria se estudasse as ciências. Quando assim faz, aumenta o seu cabedal de conhecimentos, mas também aumenta o seu orgulho. Tal como o químico atarefado em fazer experiências interessantes, o pesquisador intelectual da Palavra é invadido de satisfação ao fazer ali alguma descoberta; mas a alegria deste último não é mais espiritual do que a alegria daquele primeiro.
Outrossim, tal como os sucessos de um químico geralmente acentuam o seu senso de importância própria, levando-o a olhar com desdém para outros, que sejam mais ignorantes que ele mesmo, assim também, desafortunadamente, dá-se no caso daqueles que investigam a numerologia, a tipologia, a profecia bíblica e outros temas dessa natureza.
O estudo da Palavra de Deus pode ser levado a efeito com base em vários motivos. Alguns lêem-na a fim de satisfazerem seu orgulho literário. Em certos círculos tornou-se algo respeitável e popular a obtenção de um conhecimento geral do conteúdo da Bíblia, simplesmente por ser considerado como defeito de educação a ignorância dela. Outros lêem a Bíblia para satisfazer seu senso de curiosidade, como o fariam com qualquer outro livro famoso. Ainda outros lêem-na para satisfazer seu orgulho sectarista. Esses consideram um dever estar bem familiarizados com as crenças particulares de sua própria denominação, pelo que também buscam ansiosamente textos de prova que dão apoio ao que eles chamam de ''nossas doutrinas''. Ainda há aqueles que lêem a Bíblia com a finalidade de argumentar com êxito com aqueles que discordam de suas opiniões. Em toda essa atividade, entretanto, não há qualquer pensamento acerca de Deus, não há qualquer anelo pela edificação espiritual, e, portanto, não há qualquer beneficio real para a alma.
Assim sendo, de que maneira nos podemos beneficiar da Bíblia? A passagem de II Timóteo 3:16,17 não nos fornece clara resposta para essa pergunta? Lemos ali: "Toda Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção, para a educação na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra." Observemos o que aqui é omitido: as Sagradas Escrituras não nos foram dadas a fim de satisfazer nossa curiosidade intelectual e nem nossas especulações carnais, e sim para habilitar-nos para toda boa obra, e isso mediante o ensino, a reprovação e a correção. Envidaremos esforços por ampliar isso com a ajuda de outros trechos bíblicos.
1. O indivíduo se beneficia espiritualmente quando a Palavra o convence de pecado.
Este é o seu primeiro préstimo: revelar a nossa depravação, desmascarar a nossa vileza, tornar conhecida a nossa iniquidade. A vida moral de um homem pode ser irrepreensível, seu trato com os seus semelhantes pode ser sem faltas; mas quando o Espírito Santo aplica a Palavra ao seu coração e à sua consciência, abrindo os seus olhos fechados pelo pecado para que perceba a sua relação e a sua atitude para com Deus, então ele exclama: "Ai de mim! Estou perdido!" (Isaías 6:5). É desse modo que toda a alma verdadeiramente salva é levada a perceber a necessidade que tem de Cristo. "Os sãos não precisam de médicos, e, sim, os doentes" (Lucas 5:31). Contudo, somente quando o Espírito aplica a Palavra, com poder divino, é que qualquer indivíduo é levado a sentir-se enfermo, enfermo até à morte.
Essa convicção, que impressiona o coração com o fato de que o pecado produziu tremenda devastação na constituição humana, não se restringe à experiência inicial, que precede de imediato à conversão. De cada vez que Deus bendiz a sua Palavra em meu coração, sou levado a sentir quão longe ando do padrão que Ele me apresenta, a saber: "...tornai-vos santos também vós mesmos em todo vosso procedimento" (I Pedro 1:15). Aqui, por conseguinte, temos o primeiro teste a ser aplicado: quando leio acerca dos tristes fracassos de diferentes personagens das Escrituras, isso me faz perceber quão infelizmente parecido com eles eu sou? E quando leio sabre a vida bem-aventurada e perfeita como a de Cristo, isso me faz reconhecer quão terrivelmente diferente sou eu dEle?
2. O indivíduo se beneficia espiritualmente quando a Palavra o faz entristecer-se por causa do pecado.
Com respeito ao ouvinte do solo rochoso foi dito que "...esse é o que ouve a palavra e a recebe logo, com alegria; mas não tem raiz em si mesmo, sendo antes de pouca duração..." (Mateus 13:20, 21). Porém, acerca daqueles que foram convencidos de pecado, sob a pregação de Pedro, está registrado que eles se sentiram compungidos em seus corações (ver Atos 2:37). O mesmo contraste se verifica hoje. Muitos ouvem um sermão floreado ou um discurso sobre a ''verdade dispensacional'', que exibe a capacidade de oratória ou mostra a habilidade intelectual do orador, mas que, usualmente, não contém qualquer aplicação à consciência. Aquela exposição é recebida com aprovação, mas ninguém é humilhado diante de Deus e nem é levado a andar mais perto dEle, por ela.
Porém, deixe-se que um servo fiel do Senhor (o qual pela graça divina não busca adquirir reputação por ''brilhantismo'') faça os ensinamentos bíblicos exercerem pressão sabre o caráter e a conduta, desvendando os tristes fracassos até mesmo dos melhores entre o povo de Deus, e embora a multidão despreze o mensageiro, as pessoas realmente regeneradas sentir-se-ão gratas pela mensagem que as leva a se lamentarem diante de Deus e a clamarem: "Desventurado homem que sou!" (Romanos 7:24). Assim acontece quando lemos pessoalmente a Palavra. E assim sucede quando o Espírito Santo a aplica de tal maneira que sou levado a ver e a sentir minha corrupção íntima, para que eu seja verdadeiramente abençoado.
Que palavra encontramos no trecho de Jeremias 31:19: "Na verdade, depois que me converti, arrependi-me; depois que fui instruído, bati no peito; fiquei envergonhado, confuso, porque levei o opróbrio da minha mocidade!"
Meu prezado amigo, você conhece algo parecido com essa experiência? Os seus estudos da Palavra de Deus produzem um coração quebrantado e o levam a humilhar-se perante Deus? Fica você convicto de seus pecados, de tal modo que é levado a arrepender-se diariamente perante ele? O cordeiro pascal tinha de ser comido com ''ervas amargas'' (Êxodo 12:8). Por semelhante modo, quando realmente nos alimentamos da Palavra, o Espírito Santo a torna "amarga" para nós, antes de tornar-se doce ao nosso paladar. Notemos a ordem das coisas, no trecho de Apocalipse 10.9: "Fui pois, ao anjo, dizendo-lhe que me desse o livrinho. Ele então me fala: Toma-o, e devora-o; certamente ele será amargo ao teu estômago, mas na tua boca, doce coma mel". Essa será sempre a ordem da experiência: primeiramente deve vir a lamentação, e somente depois vem o consolo (Mateus 5:4); primeiro a humilhação, e depois a exaltação (I Pedro 5 :6).
3. O indivíduo se beneficia espiritualmente quando a Palavra o conduz à confissão de pecado.
As Escrituras são proveitosas para a "repreensão" (II Timóteo 3:16); e a alma honesta está pronta a reconhecer as suas próprias faltas. Mas acerca do indivíduo carnal é declarado: "Pois todo aquele que pratica o mal, aborrece a luz e não se chega para a luz, a fim de não serem argüidas as suas obras" (João 3:20). "Deus tenha misericórdia de mim, um pecador", é o clamor dos corações renovados; e cada vez que somos revivificados pela Palavra (Salmo 119), recebemos nova revelação e renovada convicção de nossas transgressões aos olhos de Deus. "O que encobre as suas transgressões, jamais prosperará; mas o que as confessa e deixa, alcançará misericórdia" (Provérbios 28:13). Não pode haver prosperidade nem frutificação espirituais (Salmos 1:3), enquanto ocultarmos em nosso seio as nossas culpas secretas; somente quando são livremente reconhecidas perante Deus, e isso com detalhes, é que desfrutaremos de Sua misericórdia.
Não há paz real para a consciência e nem descanso para o coração, enquanto sepultarmos a carga do pecado não confessado. O alívio só nos é outorgado se confessarmos o pecado a Deus. Notemos bem a experiência de Davi: "Enquanto calei os meus pecados, envelheceram os meus ossos, pelos meus constantes gemidos todo o dia. Porque a tua mão pesava dia e noite sobre mim; e o meu vigor se tornou em sequidão de estio." (Salmos 32:3,4).
Essa linguagem figurada mas vigorosa lhe parece ininteligível? ou a sua própria história espiritual a explica? Há muitos versículos nas Escrituras que nenhum comentário pode interpretar satisfatoriamente, mas que a experiência pessoal pode fazê-lo. Verdadeiramente bem-aventuradas são as palavras seguintes: "Confessei-te o meu pecado e a minha iniqüidade não mais ocultei. Disse: Confessarei ao SENHOR as minhas transgressões; e tu perdoaste a iniqüidade do meu pecado." (Salmos 32:5)
4. O indivíduo se beneficia da Palavra, espiritualmente falando, quando ele odeia o pecado com maior profundidade.
"Vós, que amais o SENHOR, detestai o mal: ele guarda as almas dos seus santos, livra-os da mão dos ímpios" (Salmos 97:10). "Não podemos amar a Deus sem odiar aquilo que Ele odeia. Não somente devemos evitar o mal, recusando-nos a continuar nele, mas também devemos declarar guerra contra ele, voltando-nos contra ele com indignação no íntimo" (C.H. Spurgeon).
Um dos testes mais seguros que se pode aplicar à professada conversão é a atitude do coração para com o pecado. Sempre que o princípio de santidade houver sido implantado, necessariamente haverá repulsa por tudo quanto é profano. E se nosso repúdio ao mal for genuíno, então seremos gratos quando a Palavra reprovar até mesmo o mal de que nem suspeitávamos.
Essa foi também a experiência de Davi: "Por meio dos teus preceitos consigo entendimento; par isso detesto todo caminho de falsidade" (Salmos 119:104). Observemos atentamente que não devemos meramente "abster-nos do pecado", pois "detesto"; e não somente a "alguns" ou "muitos" pecados, mas antes, a "todo caminho de falsidade", e não apenas a "todo mal" mas a "todo caminho de falsidade". E continua o salmista: "Por isso tenho por em tudo retos os teus preceitos todos, e aborreço todo caminho de falsidade" (Salmos 119:128).
No entanto, dá-se exatamente o contrário no caso do ímpio: "De que te serve repetires os meus preceitos e teres nos lábios a minha aliança, uma vez que aborreces a disciplina e rejeitas as minhas palavras? " (Salmos 50:16,17).
E em Provérbios 8:13, lemos: "O temor do SENHOR consiste em aborrecer o mal; a soberba, a arrogância, o mau caminho, e a boca perversa, eu os aborreço". Ora, esse temor piedoso nos vem através da leitura da Palavra (ver a passagem de Deuteronômio 17:18,19). Com razão, pois, é que alguém declarou: "Enquanto não odiarmos ao pecado, não poderemos mortificá-lo, ninguém clamará contra o pecado, como os judeus clamaram contra o Cristo: ''Crucifica-O! Crucifica-O!'', enquanto realmente não abominar o pecado como Ele foi abominado" (Edward Reyner, 1635).
5. O indivíduo se beneficia espiritualmente quando a Palavra o leva a abandonar o pecado.
"Aparte-se da injustiça todo aquele que professa o nome do Senhor" (II Timóteo 2:19). Quanto mais lemos a Palavra com o objetivo definido de descobrir o que é agradável e o que é desagradável ao Senhor, mais a Sua vontade tornar-se-á conhecida por nós; e se os nossos corações forem corretos diante dEle, mais ainda os nossos caminhos se harmonizarão com a Sua vontade. Então é que andaremos "na verdade" (II João 4).
No fim do sexto capítulo da segunda epístola aos Coríntios algumas promessas preciosas são dadas àqueles que se separarem dos incrédulos. Observemos, naquela passagem, a aplicação feita pelo Espírito Santo. Não diz o Senhor "Tendo, pois, ó amados, tais promessas, consolemo-nos e nos entreguemos à complacência...", e, sim: "Tendo, pois, ó amados, tais promessas, purifiquemo-nos de toda impureza, tanto da carne, como do espírito..." (II Coríntios 7:1).
"Vós já estais limpos, pela palavra que vos tenho falado" (João I5:3). Eis aqui uma outra importante regra, par meio da qual nos deveríamos testar com freqüência: a leitura e o estudo da Palavra de Deus está produzindo a purgação de minha conduta? Desde os dias antigos vinha sendo feita a indagação: "De que maneira poderá o jovem guardar puro o seu caminho?" E a resposta do salmista inspirado declara: ''Observando-o segundo a Tua Palavra" (Salmo119:9).
Sim, não basta ler a Palavra, crer nela ou memorizá-la; mas é preciso haver a aplicação pessoal da Palavra ao nosso "caminho". É quando "damos ouvidos" a exortações como aquelas que estipulam: "Fugi da impureza!" (I Coríntios 6:18), "Fugi da idolatria" (I Coríntios 10:14), "... foge destas cousas..." – da cobiça apaixonada pelo dinheiro (1 Tim. 6:11) e "Foge, outrossim, das paixões da mocidade" (II Tim. 2:22), é que o crente é levado a separar-se do mal, na prática; pois então o pecado não somente tem sido confessado, mas também tem sido "deixado" (ver Provérbios 28:13).
6. O indivíduo se beneficia espiritualmente quando a Palavra o fortalece contra o pecado.
As Sagradas Escrituras nos foram dadas não somente com o propósito de revelar-nos a nossa pecaminosidade inata, ou a fim de mostrar as muitas e muitas maneiras mediante as quais carecemos "da glória de Deus" (Romanos 3:23), mas igualmente para ensinar-nos como podemos obter livramento do pecado, como podemos ser livres de desagradar a Deus. "Guardo no coração as tuas palavras, para não pecar contra ti" (Salmos 119:11). E de cada um de nós é requerido o seguinte: "Aceita, pego-te, a instrução que profere, e põe as suas palavras no teu coração" (Jó 22:22).
O de que precisamos é, particularmente, dos mandamentos, das advertências, das exortações da Bíblia, para que sejam como que nosso tesouro particular; devemos memorizá-los, meditar sobre os mesmos, orar a seu respeito e pô-los em prática. Eis a única maneira eficaz de se evitar que um terreno qualquer seja invadido por ervas daninhas: é semear ali a boa semente: "...vence o mal com o bem" (Romanos 12:21). Por conseguinte, quanto mais "ricamente" estiver habitando em nós a Palavra de Cristo (ver Colossenses 3:16), menos espaço haverá para o exercício do pecado, em nossos corações e em nossas vidas.
Não é suficiente apenas assentirmos à veracidade das Escrituras, mas é necessário que elas sejam recebidas em nossos afetos. É uma verdade soleníssima aquela em que o Espírito Santo especifica a base da apostasia, "...porque ao amor da verdade eles não receberam" (II Tessalonicenses 2:10, grego).
"Se essa semente ficar apenas na língua ou na mente, para que seja apenas uma questão de palavras ou de especulação, não demorará muito para que desapareça. A semente que jaz à superfície será apanhada pelas aves do céu. Portanto, que cada qual a esconda no profundo do ser; que vá dos ouvidos para a mente, da mente para o coração; e que ela penetre cada vez mais profundamente. Somente ao exercer ela um domínio soberano sobre o coração, é que a receberemos na força de seu amor – quando ela é mais cara para nós que nossas concupiscências mais queridas, então nos apegamos a ela". (Thomas Manton).
Não há qualquer outra coisa que nos preserve das infecções deste mundo, que nos livre das tentações de Satanás, que se mostre preservativo tão eficaz contra o pecado, como a Palavra de Deus recebida em nossos afetos: "No coração tem ele a lei do seu Deus; os seus passos não vacilarão" (Salmos 37:31). Enquanto a verdade mostrar-se ativa em nosso íntimo, despertando-nos a consciência e sendo realmente amada par nós, seremos preservados da queda. Quando José foi tentado pela esposa de Potifar, respondeu ele: "... como, pois, cometeria eu tamanha maldade, e pecaria contra Deus?" (Gênesis 39:9). A Palavra de Deus se achava em seu coração, pelo que também prevaleceu sobre os seus desejos. Essa é a inefável santidade, o grandioso poder de Deus, o qual é poderoso tanto para salvar como para destruir.
Nenhum de nós sabemos em que ocasião será sujeito às tentações; portanto, é mister estarmos preparados contra elas. "Quem há entre vós que ouça isto? que atenda e ouça o que há de ser depois?" (Isaías 42:23). Sim, compete-nos antecipar o futuro e nos fortalecermos intimamente para ele, entesourando a Palavra em nossos corações, para as emergências futuras.
7. O indivíduo se beneficia espiritualmente quando a Palavra o leva a praticar o contrário do pecado.
"... o pecado é a transgressão da lei" (I João 3 :4). Deus diz: "Farás...'', mas o pecado retruca: "Não quero". Deus diz: "Não farás...", e o pecado diz: "Farei". Assim, pois, o pecado é a rebeldia contra Deus, é a determinação do indivíduo seguir o seu próprio caminho (ver Isa. 53:6).
Isso capacita-nos a entender que o pecado é uma espécie de anarquia no campo espiritual, o que pode ser comparado com o ato de sacudir uma bandeira vermelha no rosto de Deus. Ora, a atitude oposta ao pecado contra Deus é a submissão a Ele, da mesma maneira que o contrário da iniqüidade é a sujeição à lei. Portanto, praticar o contrário do pecado é andar na vereda da obediência.
Esta é uma das outras grandes razões pelas quais as Escrituras nos foram dadas: tornar conhecida a senda pela qual devemos andar, o que agrada a Deus. As Escrituras são proveitosas não somente para repreensão e correção, mas também para a "instrução na justiça".
Neste ponto, pois, encontramos outra importante regra mediante a qual devemos testar freqüentemente a nós mesmos: Os meus pensamentos estão sendo formados, o meu coração está sendo controlado e a minha conduta e as minhas obras estão sendo regulamentadas pela Palavra de Deus? Eis o que o Senhor exige: "Tornai-vos, pois, praticantes da palavra, e não somente ouvintes, enganando-vos a vós mesmos" (Tiago 1:22). E aqui temos a declaração de como devem ser expressos a nossa gratidão e os nossos afetos por Cristo: "Se Me amais, guardareis os Meus mandamentos" (João 14:15). Para tanto, é necessário a ajuda divina. Davi orava: "Guia-me pela vereda dos teus mandamentos, pois nela me comprazo" (Salmos I19:35).
"Precisamos não somente de luz para reconhecermos o nosso caminho, mas também de um coração bem disposto para andar por esse caminho. A orientação é necessária por causa da cegueira das nossas mentes; e os impulsos eficazes da graça são necessários par causa da fraqueza dos nossos corações. Não cumpriremos o nosso dever mediante a mera noção das verdades, a menos que as abracemos e as sigamos". (Manton). Notemos que o salmista falava sabre a "... vereda dos Teus mandamentos..." Não aludia ele a algum caminho pessoal, auto-escolhido, e, sim, a um caminho bem demarcado; não se trata de uma estrada "pública", mas de uma vereda ''particular''.
Que tanto o escritor como o leitor se aquilatem, honesta e diligentemente, como na presença de Deus, pelas sete coisas acima enumeradas. O estudo da Bíblia, prezado amigo, o tem tornado uma pessoa mais humilde, ou mais orgulhosa – orgulhosa com o conhecimento que assim adquiriu? Esse estudo o elevou na estima de seus semelhantes, ou o rebaixou a um lugar inferior, na presença de Deus? Tem isso produzido, em sua experiência, uma atitude de mais profunda repulsa e asco par si mesmo, ou tornou-o mais complacente? Isso tem feito com que aqueles que entram em contato consigo, aos quais talvez você ensine, digam: "Gostaria de ter o seu conhecimento sobre a Bíblia!"; ou isso os tem levado a orar: "Senhor, dá-me a fé, a graça e a santidade que tens conferido a meu amigo ou professor?'' "Medita estas cousas, e nelas sê diligente, para que o teu progresso a todos seja manifesto" (1 Timóteo 4:15).
AS ESCRITURAS E DEUS
As Santas Escrituras são totalmente sobrenaturais. São uma revelação divina. "Toda Escritura é inspirada por Deus. . ." (II Timóteo 3:16). Não ocorreu apenas que Deus elevou as mentes de certos homens, mas antes, que dirigiu os seus pensamentos. Não é simplesmente que Ele transmitiu a eles determinados conceitos, mas também ditou as próprias palavras que eles empregaram. "...porque nunca jamais qualquer profecia foi dada por vontade humana, entretanto homens (santos) falaram da parte de Deus, movidos pelo Espírito Santo" (II Pedro 1:21). Qualquer "teoria" humana que pretenda negar a inspiração verbal das Escrituras é um artifício de Satanás, um ataque contra a verdade divina. A imagem divina se acha estampada em cada uma de suas páginas. Escritos tão santos, tão celestiais, tão profundamente criadores de temor não poderiam ser produzidos pelos homens.
As Escrituras dão a conhecer um Deus sobrenatural. Talvez essa seja uma observação perfeitamente óbvia; mas, hoje em dia, precisa ser feita. O "deus" no qual crêem muitos cristãos professes, está sendo por eles paganizado cada vez mais. O lugar proeminente que o "esporte" tem ocupado na vida da nação, o amor excessivo pelos prazeres, a abolição da vida doméstica, a descarada imodéstia das mulheres, são outros tantos sintomas da mesma enfermidade que causou a queda e o desaparecimento de impérios como os da Babilônia, da Pérsia, da Grécia e de Roma. E o conceito de Deus que se propaga neste nosso século XX pela maioria das pessoas de países nominalmente "cristãos" rapidamente se aproxima do caráter atribuído aos deuses da antigüidade. Em violento contraste com isso, o Deus das Santas Escrituras está revestido de tais perfeições e está revestido de tais atributos que nenhum mero intelecto humano poderia tê-los inventado.
Deus só pode vir a ser conhecido por meio da revelação sobrenatural sobre a Sua própria pessoa. À parte das Escrituras, é totalmente impossível até mesmo a familiarização teórica com Deus. Continua sendo uma verdade que "... o mundo não O conheceu por sua própria sabedoria..." (I Coríntios 1:21). Em todos os lugares onde as Sagradas Escrituras são ignoradas, Deus é o "....DEUS DESCONHECIDO" (Atos 17 :23).
Porém, algo mais do que apenas as Escrituras se requer, antes que a alma possa conhecer a Deus, antes que possa conhecê-Lo de forma real, pessoal e vital. Mas isso parece ser reconhecido por bem poucos, hoje em dia. A prática prevalecente dá a entender que se pode obter o conhecimento de Deus através do mero estudo da Bíblia, da mesma maneira que o conhecimento acerca da química pode ser obtido através do estudo de compêndios de química. O conhecimento intelectual de Deus talvez possa ser obtido desta maneira; mas nunca o conhecimento espiritual.
Pois o Deus sobrenatural só pode ser conhecido sobrenaturalmente (isto é, de um modo superior àquilo que a mera natureza humana pode adquirir), ou seja, mediante a revelação sobrenatural do próprio Deus ao coração humano. "Porque Deus que disse: De trevas resplandecerá luz –, ele mesmo resplandeceu em nossos corações, para iluminação do conhecimento da glória de Deus na face de Cristo" (II Coríntios 4:6). Aquele que já foi favorecido com essa experiência sobrenatural já aprendeu que "... na Tua luz vemos a luz" (Salmos 36:9).
Deus só pode ser conhecido através da faculdade sobrenatural. Isso Cristo deixou bem claro, ao dizer: "Em verdade, em verdade te digo que se alguém não nascer de novo, não pode ver o reino de Deus" (João 3:3). Os indivíduos sem regeneração não têm qualquer conhecimento espiritual de Deus. "Ora, o homem natural não aceita as cousas do Espírito de Deus, porque lhe são loucura; e não pode entendê-las porque elas se discernem espiritualmente" (I Coríntios 2:14). A água, por si mesma, jamais se eleva acima de seu próprio nível. Assim também o homem natural é incapaz de perceber aquilo que transcende à mera natureza. No entanto, "... a vida eterna é esta: que te conhecem a Ti, o único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste" (João 17:3). A vida eterna precisa ser outorgada, antes que se possa conhecer o "verdadeiro Deus". Isso é afirmado claramente na passagem de I João 5:20: "Também sabemos que o Filho de Deus é vindo, e nos tem dada entendimento para reconhecermos o verdadeiro; e estamos no verdadeiro, em seu Filho Jesus Cristo.... " Sim, o "entendimento", um entendimento de natureza espiritual, par meio de uma nova criação, precisa ser-nos dada, antes que possamos conhecer a Deus de maneira espiritual.
O conhecimento sobrenatural de Deus produz uma experiência sobrenatural, mas isso é algo para o que multidões de membros de igrejas são totalmente estranhos. A maior parte da "religiosidade" de nossa época é apenas um "velho Adão" retocado. É meramente o adornar de sepulcros cheios de corrupção. É apenas uma formalidade "externa". E até nos casos onde há um credo saudável, com exagerada freqüência tal ortodoxia é morta.
E também não nos deveríamos admirar com tal estado de coisas. Sempre foi assim. Assim sucedia quando Cristo estava neste mundo. Os judeus eram muito ortodoxos. Naquela ocasião eles estavam isentos de idolatria. O templo permanecia de pé em Jerusalém, a lei mosaica era exposta e o Senhor era adorado. No entanto, Cristo disse a respeito deles: "... Aquele que me enviou é verdadeiro, aquele a quem vós não conheceis" (João 7:28). "Não Me conheceis a Mim nem a Meu Pai; se conhecêsseis a Mim, também conheceríeis a Meu Pai" (João 8:19). "...Quem Me glorifica é Meu Pai, o Qual vós dizeis que é vosso Deus, entretanto vós não O tendes conhecido; eu, porém, O conheço. Se disser que não O conheço, serei como vós, mentiroso; mas eu O conheço e guardo a Sua palavra" (Joio 8:54,55). E não nos olvidemos de que tudo isso foi dito a um povo que tinha as Escrituras e que as rebuscavam diligentemente, venerando-as como a Palavra de Deus! (João 5:39) Teoricamente, pelo menos, estavam bem familiarizados com a idéia de Deus, mas não possuíam o conhecimento espiritual a Seu respeito.
Assim como ocorria no mundo do judaísmo, assim também sucede na cristandade. Multidões que "acreditam" no Espírito Santo são completamente despidas de conhecimento sobrenatural ou espiritual de Deus. E como podemos ter tanta certeza a esse respeito? Da seguinte maneira: o caráter do fruto revela o caráter da árvore que o produz; a natureza da água dá a conhecer a natureza do manancial de onde ela flui. O conhecimento sobrenatural de Deus produz uma experiência sobrenatural, e a experiência sobrenatural resulta em fruto espiritual.
Isso eqüivale a dizer que quando Deus vem realmente residir em um coração, aquela vida é sujeita a uma revolução, é transformada. E então é produzido aquilo que a simples natureza não pode produzir, sim, aquilo que é diretamente contrário a essa natureza. Mas isso se faz notavelmente ausente nas vidas de talvez noventa e cinco entre cada cem pessoas que atualmente professam ser filhos de Deus. Na vida dos cristãos professos comuns nada existe que não possa ser explicado com base em questões naturais. No caso de um genuíno filho de Deus a questão é totalmente diferente. Tal filho de Deus é, na verdade, um milagre da graça divina – ele é "... nova criatura..." (II Coríntios 5:17). Tanto a sua experiência como a sua vida são sobrenaturais.
A experiência sobrenatural do crente se vê em sua atitude para com Deus. Possuindo intimamente a própria vida de Deus, ele se torna participante da "natureza divina" (ver II Pedro 1:4), e necessariamente ama a Deus, ama aquilo que pertence a Deus, ama aquilo que Deus ama; e, por outro lado, abomina aquilo que Deus abomina.
Essa experiência sobrenatural é efetuada no crente pelo Espírito de Deus, e isso por intermédio da Palavra de Deus. De fato, o Espírito nunca opera à parte da Palavra. É por meio dessa Palavra que Ele revivifica. É por meio dessa Palavra que Ele produz convicção de pecado. É por meio dessa Palavra que Ele santifica. É por meio dessa Palavra que Ele confere segurança. E é por meio dessa Palavra que Ele faz o santo se desenvolver espiritualmente.
Desse modo, qualquer um de nós pode averiguar até que ponto está tirando proveito de sua leitura e de seu estudo das Escrituras, mediante os efeitos que elas estão produzindo em nós, através da aplicação que delas faz o Espírito. Entremos em seguida nos pormenores. Aquele que se beneficia das Escrituras verdadeira e espiritualmente:
1. Recebe um mais claro reconhecimento das reivindicações de Deus.
A grande controvérsia entre o Criador e a criatura tem girado em torno de se Ele ou ela deve ser Deus, se a sabedoria dEle ou a sabedoria dela deve ser o princípio orientador de suas ações, se a vontade divina ou a vontade da criatura deve ser suprema. O que produziu a queda de Lúcifer foi o seu ressentimento por estar em sujeição ao Senhor: "Tu dizias no teu coração: Eu subirei ao céu; acima das estrelas de Deus exaltarei o meu trono. . . subirei acima das mais altas nuvens, e serei semelhante ao Altíssimo" (Isaías 14:13,14). A mentira da serpente que encantou nossos primeiros pais e os levou à destruição, foi a seguinte: "...como Deus, sereis conhecedores do bem e do mal" (Gênesis 3:5). E desde essa ocasião, o sentimento do coração do homem natural tem sido: "Retira-te de nós! Não desejamos conhecer as teus caminhos. Que é o Todo-poderoso, para que nós o sirvamos? E que nos aproveitará que lhe façamos orações?" (Jó 21:14,15). "... pois dizem: Com a língua prevaleceremos, os lábios são nossos: quem é senhor sabre nós? " (Salmos 12:4). "Por que, pois, diz o Meu povo: Somos livres! Jamais tornaremos a ti?" (Jeremias 2:31).
O pecado alienou o homem para longe de Deus (Efésios 4:18). O coração humano se tornou avesso a Deus, sua vontade oposta à Sua vontade, a sua mente em inimizade contra Deus. Em contraste com isso, a salvação significa ser alguém restaurado a Deus: "Pois também Cristo morreu, uma única vez, pelos pecados, o justo pelos injustos, para conduzir-vos a Deus. . . " (1 Pedro 3:18). Legalmente falando, isso já foi feito; experimentalmente, porém, acha-se no processo de realização.
Ser salvo significa ter sido reconciliado com Deus; e isso envolve e inclui o fato de que o domínio do pecado sobre nós foi interrompido, que a inimizade foi descontinuada, e que o coração foi conquistado para Deus. Disso é que consiste a verdadeira conversão – da derrubada de todo ídolo, da renúncia das vaidades ocas de um mundo enganador, em que tomamos a Deus como a nossa porção, o nosso dirigente, o nosso tudo em tudo. A respeito dos coríntios lemos que "... deram-se a si mesmos primeiro ao Senhor" (II Coríntios 8:5). O desejo e a determinação daqueles que verdadeiramente se converteram é que "não viviam mais para si mesmos, mas para Aquele que por eles morreu e ressuscitou" (II Coríntios 5:15).
Então as reivindicações de Deus passam a ser reconhecidas, e admitimos o Seu legítimo domínio sobre nós mesmos, porque Ele é reconhecido como Deus. Os convertidos se entregam a Deus como "ressurretos dentre os mortos", e os seus membros são entregues como "instrumentos de justiça" (Romanos 6:13). Essa é a exigência que o Senhor nos impõe: ser o nosso Deus, ser servido por nós como tal; e que nós sejamos e façamos, de forma absoluta e sem reservas, tudo quanto Ele nos ordenar, rendendo-nos totalmente a Ele (Lucas 14:26,27,33). A Deus cabe, porque é Deus, legislar, prescrever e determinar tudo o que nos concerne; e a nós compete, como dever obrigatório, sermos dirigidos, governados e sermos livremente usados por Ele, segundo o Seu beneplácito.
Reconhecer que Deus é o nosso Deus eqüivale a dar-Lhe o trono dos nossos corações. É a mesma coisa dita na linguagem de Isaías 26:13: "Ó Senhor Deus nosso, outros senhores têm tido domínio sobre nós; mas graças a Ti somente é que louvamos o Teu nome". Também é declarar, juntamente com o salmista, sem hipocrisia, mas com sinceridade: "Ó Deus, tu és o meu Deus forte, eu te busco ansiosamente" (Salmos 63 :1). Ora, é na proporção em que isso se torna nossa experiência real que nos beneficiamos com as Escrituras. É nelas, e somente nelas, que as reivindicações de Deus são reveladas e postas em vigor; na medida exata em que estivermos obtendo um ponto de vista mais claro e mais completo sobre os direitos de Deus, em que nos estivermos submetendo a eles é que estaremos sendo realmente abençoados.
2. Sente maior temor pela majestade de Deus.
"Tema ao SENHOR toda a terra, temam-no todos as habitantes do mundo" (Salmos 33:8). Deus está tão acima de nós que o simples pensamento de Sua majestade nos deveria fazer estremecer. O Seu poder é tão grande que a percepção dele deveria aterrorizar-nos. E Ele é tão inefavelmente santo, e Seu ódio ao pecado é tão infinito, que o próprio pensamento de atos errados nos deveria encher de horror. "Deus é sobremodo tremendo na assembléia dos santos, e temível sobre todos o que o rodeiam" (Salmos 89:7).
"O temor do SENHOR é o princípio da sabedoria, e o conhecimento do Santo é prudência" (Provérbios 9:10). Ora, a "sabedoria" consiste do correto uso do "conhecimento". Até ao ponto onde Deus é verdadeiramente conhecido, até esse ponto será devidamente temido. Acerca dos ímpios, porém, está escrito: "Não há temor de Deus diante de seus olhos" (Romanos 3 :18). Esses homens não têm qualquer percepção acerca da majestade de Deus, não tem nenhuma preocupação com a Sua autoridade, não tem qualquer respeito pelos Seus mandamentos, não se alarmam ante o fato de que Ele os julgará. No entanto, no tocante ao povo que entrou em pacto com Deus, o Senhor prometeu: "Porei o meu temor no seu coração, para que nunca se apartem de mim" (Jeremias 32:40). Par essa razão é que os remidos tremem ante a Sua Palavra (Isaías 66:5), e andam cautelosamente diante dos Seus olhos.
"O temor do SENHOR consiste em aborrecer o mal" (Provérbios 8:13). E novamente: "... pelo temor do Senhor os homens evitam o mal" (Provérbios 16:6). O homem que vive no temor de Deus tem consciência que "os olhos do SENHOR estão em todo lugar, contemplando os maus e os bons" (Provérbios 15:3). Por isso mesmo, vive conscienciosamente tanto em sua conduta particular como em sua conduta em público.
O homem que evita cometer determinados pecados, porque os olhos dos homens estão fixos sobre ele, mas que não hesita em cometê-los quando está sozinho, é destituído do temor de Deus. Por semelhante modo, o indivíduo que modera a sua linguagem quando há crentes ao seu redor, mas que não age assim noutras ocasiões, não tem temor a Deus. Não sente a consciência inspiradora de respeito de que Deus o vê e ouve a todos os momentos.
A alma verdadeiramente regenerada teme desobedecer a Deus e desafiá-Lo. E nem mesmo deseja fazer tal. Não, porquanto seu real e mais profundo anelo consiste em agradar ao Senhor em todas as coisas, em todas as oportunidades e em todos os lugares. Sua oração intensa é: "Dispõe-me o coração para só temer o Teu nome" (Salmos 86:11).
Ora, até mesmo aos santos é mister ensinar o temor de Deus, segundo se vê em Salmos 34:11. E nesse aspecto, como em tudo o mais, é através das Escrituras que esse ensinamento nos é conferido (Provérbios 2 :5).
É por meio das Escrituras que aprendemos que os olhos do Senhor estão continuamente fixos sabre nós, assinalando as nossas ações e pesando os nossos motivos. Na medida em que o Espírito Santo vai aplicando as Escrituras ao nosso coração, assim também vamos obedecendo crescentemente aquele mandamento que diz: ''... no temor do SENHOR perseverarás todo dia" (Provérbios 23:17). Por conseguinte, na medida exata em que formos tomados pelo senso de respeito da tremenda majestade divina, nessa medida também teremos consciência de que "Tu és Deus que vês" (Gênesis 16:13), pondo em ação a nossa salvação com "temor e tremor" (Filipenses 2:12), e assim tiramos real proveito de nossos estudos bíblicos e da leitura das Escrituras.
3. Tem mais profunda reverência pelos mandamentos de Deus.
O pecado entrou no mundo através da desobediência de Adão contra a lei de Deus, e todos os seus filhos decaídos são gerados com similar depravação (Gênesis 5:3). "O pecado é a transgressão da lei" (I João 3:4). O pecado é uma forma de alta traição, de anarquia espiritual. É o repúdio ao domínio exercido por Deus, em que a Sua autoridade é repelida, em que o indivíduo se rebela contra a Sua vontade. O pecado consiste em seguirmos por nosso próprio caminho. Ora, a salvação consiste em sermos livrados do pecado, de sua culpa, de seu poder e até mesmo de sua penalidade. O mesmo Espírito que nos convence sobre a necessidade da graça de Deus também nos convence da necessidade que temos de ser dirigidos pelo governo de Deus. A promessa de Deus ao povo que com Ele entrou em pacto, é: "Nas suas mentes imprimirei as Minhas leis, também sobre os seus corações as inscreverei; e Eu serei o seu Deus, e eles serão o Meu povo" (Hebreus 8:10).
O espírito de obediência é proporcionado a toda a alma regenerada. Cristo Jesus disse: "Se alguém Me ama, guardará a Minha palavra" (João 14:23). Portanto, esse é o grande teste: "Ora, sabemos que O temos conhecido por isto: se guardamos os Seus mandamentos" (I Joio 2:3). Nenhum de nós observa os mandamentos de Deus com perfeição; mas todo o verdadeiro crente tanto deseja fazê-lo como se esforça nesse sentido. O crente verdadeiro diz juntamente com Paulo: "Porque, no tocante ao homem interior, tenho prazer na lei de Deus" (Romanos 7:22). E também declara, juntamente com o salmista: "Escolhi o caminho da fidelidade; decidi-me pelos teus juízos. Os teus testemunhos recebi-os por legado perpétuo" (Salmo 119:30, 111).
E todo e qualquer ensinamento que avilta a autoridade de Deus, que ignora as seus mandamentos, que afirma que o crente, em nenhum sentido, está sob a lei, vem da parte do diabo, sem importar quão suaves sejam as palavras do seu instrumento humano. Cristo redimiu o Seu povo da maldição da lei, e não dos mandamentos que ela contém; Cristo os salvou da ira de Deus, mas não para ficarem fora do Seu governo. Nunca foram e nunca serão revogadas as palavras que dizem: "Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração" (Mateus 22:37).
A passagem de I Coríntios 9:21 afirma expressamente que estamos ''debaixo da lei de Cristo." E o trecho de I João 2:6 estipula: "Aquele que diz que permanece nele, esse deve também andar assim como Ele andou". Ora, como foi que Cristo "andou"? Na perfeita obediência a Deus Pai; em total sujeição às Suas leis, honrando-as e obedecendo-as em Seus pensamentos, em Suas palavras e em Seus atos. Cristo não veio a fim de destruir a lei, e, sim, a fim de cumpri-la (ver Mateus 5:17). E o nosso amor por Ele é expresso, não em emoções agradáveis ou em palavras bonitas, e, sim, na observância aos seus mandamentos (João 14:15). E os mandamentos de Cristo são os mandamentos de Deus (conferir Êxodo 20:6).
A oração intensa do crente autêntico é: "Guia-me pela vereda dos Teus mandamentos, pois nela me comprazo" (Salmos 119:35). Até ao ponto em que nossa leitura e nossos estudos da Bíblia, mediante a aplicação do Espírito Santo, vai gerando em nós um maior amor e um mais profundo respeito, além da observância mais exata dos mandamentos de Deus, nessa proporção vamos sendo realmente beneficiados.
4. Uma confiança mais firme na suficiência de Deus.
Aquilo ou aquele em quem um homem mais confia, esse é o seu "deus". Algumas pessoas confiam na saúde, e outros nas riquezas; alguns confiam em si mesmos, e outros confiam em seus amigos. E a atitude que caracteriza a todos os indivíduos sem regeneração é que dependem do braço da carne. Porém, a eleição da graça desvia os seus corações de todos os apoios dados pela criatura, para que se estribe no Deus vivo. O povo de Deus são os filhos da fé. A linguagem emitida pelos seus corações é: "Deus meu, em ti confio, não seja eu envergonhado" (Salmos 25:2). E uma vez mais: "Eis que me matará, já não tenho esperança; contudo defenderei o meu procedimento" (Jó 13:15). Esses dependem de Deus, para que lhes proveja o necessário, para que os proteja e abençoe. Olham continuamente para um recurso invisível, ficam na dependência ao Deus invisível, apoiam-se em um Braço oculto.
É verdade que há ocasiões em que a fé dos verdadeiros crentes hesita; mas, embora tropecem, não ficam inteiramente prostrados. Embora isso não reflita a experiência uniforme deles, contudo o Salmo 56:11 expressa o estado geral de suas almas: "... neste Deus ponho a minha confiança e nada temerei. Que me pode fazer o homem? " (Lucas 17.5). E a oração anelante deles é: "Senhor, aumenta a nossa fé!" Conforme diz a passagem de Romanos 10:17: "E assim, a fé vem pela pregação e a pregação pela palavra de Cristo". E dessa maneira, enquanto meditamos sobre as Escrituras, em que as suas promessas são acolhidas em nossa mente, a nossa fé é fortalecida, a nossa confiança em Deus aumenta, e a nossa segurança se aprofunda. Desse modo podemos descobrir que estamos tirando proveito ou não de nosso estudo da Bíblia.
5. Deleita-se mais plenamente nas perfeições de Deus.
Aquilo em que um homem mais se deleita é o seu "deus". O pobre indivíduo mundano procura satisfação em suas atividades, prazeres e possessões materiais. Ignorando a "substância", ele persegue inutilmente as sombras. O crente, entretanto, se deleita nas admiráveis perfeições de Deus. Realmente, reconhecermos a Deus como o nosso Deus consiste não somente em nos submetermos ao Seu cetro, mas em amá-Lo mais do que ao mundo, e valorizá-Lo acima de tudo e de todos. Consiste também em termos, paralelamente ao salmista, a percepção experimental de que ". . .Todas as minhas fontes são em Ti" (Salmos 87:7). Os remidos não apenas receberam alegria da parte de Deus, tal alegria que este nosso pobre mundo jamais nos poderia outorgar, mas também se gloriam e regozijam em Deus (ver Romanos 5:11); e acerca disso o indivíduo mundano nada sabe. A linguagem dos remidos é aquela que afirma: "A minha porção é o SENHOR. . ." (Lamentações 3:24).
Os exercícios espirituais são enfadonhos para a carne. Mas o crente autêntico diz: "Quanto a mim, bom é estar junto a Deus..." (Sal. 73:28). O homem carnal é arrastado por muitas paixões e ambições; porém, a alma regenerada assevera: "Uma cousa peço ao SENHOR, e a buscarei: que eu possa morar na casa do SENHOR todos os dias da minha vida, para contemplar a beleza do SENHOR, e meditar no seu tempo" (Salmos 27:4). E, por que? Por que o verdadeiro sentimento de seu coração diz: "Quem mais tenho eu no céu? Não há outro em quem eu me compraza na terra" (Salmos 73:25). Ah, prezado leitor, se o seu coração não tem sido impelido a amar a Deus e a deleitar-se nEle, então é que ainda está morto para com Ele.
A linguagem dos santos é a que diz: "Ainda que a figueira não floresce, nem há fruto na vide; o produto da oliveira mente, e os campos não produzem mantimento; as ovelhas foram arrebatadas do aprisco e nos currais não há gado, todavia eu me alegro no SENHOR, exulto no Deus da minha salvação" (Hab. 3:17,18). Ah! essa é verdadeiramente uma experiência sobrenatural! Sim, o crente pode regozijar-se quando todas as suas possessões materiais lhe são tiradas (ver Hebreus 10:34). Quando jaz em uma masmorra, com as costas a sangrar, ainda assim pode entoar louvores a Deus (Atos 16:25). Portanto, na proporção em que você estiver sendo desmamado dos prazeres ocos deste mundo, também estará aprendendo que não há bênção fora de Deus, estará descobrindo que Ele é a fonte e a súmula de toda a excelência, e o seu coração estará sendo atraído para o Senhor, a sua mente estará se apegando a Ele, a sua alma estará encontrando nEle a sua alegria e satisfação, e você estará realmente se beneficiando com as Escrituras.
6. Maior submissão aos atos providenciais de Deus.
É natural murmurarmos quando as coisas não nos correm bem, mas é sobrenatural conservar a tranqüilidade nessas ocasiões (Levítico 10:3). É natural sentirmo-nos desapontados quando nossos planos abortam, mas é sobrenatural inclinarmo-nos ante as determinações divinas. É natural querermos as coisas a nosso jeito, mas é sobrenatural poder dizer: "Não seja feita a minha vontade, mas a tua" (Lucas 21.42). É natural rebelarmo-nos quando algum ente querido nos é arrebatado pela morte; mas é sobrenatural poder dizer de todo o coração: ". . .o SENHOR o deu, e o SENHOR o tomou: bendito seja o nome do SENHOR!" (Jó 1:21). Quando Deus Se tem tornado verdadeiramente a nossa porção, então aprendemos a admirar a Sua sabedoria, e é então também que reconhecemos que Ele faz bem feitas todas as coisas.
Dessa maneira, por igual modo, o coração é conservado "...em perfeita paz...", quando a mente se fixa no Senhor (Isaías 26:3). Neste particular, pois, encontramos um outro teste seguro: se a Bíblia que você estuda está lhe ensinando que o caminho de Deus é o melhor, se isso o está levando a submeter-se sem queixumes a todas as Suas dispensações, se você se sente capaz de dar graças a Deus por todas as coisas (Efésios 5:20), então você realmente está se beneficiando das Escrituras.
7. Mais fervorosos louvores devido à bondade de Deus.
O louvor é o extravasamento de um coração que encontra satisfação em Deus. A linguagem de tal pessoa é: "Bendirei ao Senhor em todo o tempo, o Seu louvor estará sempre nos meus lábios" (Salmos 34:1). Quão Abundantes são os motivos que tem o povo de Deus para louvá-Lo! Amados com um amor eterno, feitos filhos e herdeiros, todas as coisas cooperam para o bem deles, cada uma de suas necessidades é suprida, uma eternidade de bem-aventurança lhes é assegurada – suas harpas de alegria jamais deveriam ficar silentes. De fato, não se silenciarão enquanto desfrutarem de companheirismo com o Senhor, o qual é "...totalmente desejável..." (Cantares 5:16).
Quanto mais crescemos no "conhecimento de Deus" (Col. 1:10), mais haveremos de adorá-Lo. Porém, é somente na medida em que a Palavra vier habitar ricamente em nós que ficaremos invadidos de cânticos espirituais (Col. 3:16), pois então poderemos entoar melodias ao Senhor, em nossos corações. Quanto mais as nossas almas são impulsionadas a uma verdadeira adoração, tanto mais nos sentiremos impelidos a agradecer e a louvar ao nosso grande Deus, o que é evidência claríssima de que nossos estudos na Palavra de Deus nos estão beneficiando.
AS ESCRITURAS E CRISTO
A ordem que seguimos nesta série é a ordem da experiência comum a todos. Não é senão quando o homem vem a ficar inteiramente insatisfeito consigo mesmo que começa a aspirar a Deus. A criatura decaída, iludida por Satanás, sente-se satisfeita consigo mesma até que os seus olhos, cegados pelo pecado, sejam abertos para que possa contemplar a si mesma. O Espírito Santo primeiramente insufla em nós o senso de nossa própria ignorância, vaidade, pobreza espiritual e depravação, antes que nos leve a perceber e a reconhecer que somente em Deus podem ser encontradas a verdadeira sabedoria, a bênção real, a bondade perfeita e a justiça imaculada. Nossa consciência precisa ser despertada para as nossas próprias imperfeições, antes que possamos apreciar de fato as perfeições divinas. E, quando as perfeições de Deus são contempladas, então é que o homem se torna ainda mais cônscio da infinita distância que o separa do Deus Altíssimo. Quando aprende algo sobre as prementes reivindicações de Deus sabre ele, e também sobre sua total incapacidade de satisfazer a essas reivindicações, é que fica capacitado para ouvir e para dar acolhida às boas novas de que Outro satisfez plenamente essas reivindicações, para todos quantos forem levados a depositar confiança nEle.
"Examinais as Escrituras", declarou o Senhor Jesus; e acrescentou: "... e são elas mesmas que testificam de Mim" (João 5:39). Sim, as Escrituras testificam acerca de Cristo como o Único Salvador dos pecadores que perecem, como o Único Mediador entre Deus e os homens, como o Único por intermédio de quem nos podemos aproximar de Deus Pai. Elas testificam, igualmente, acerca das admiráveis perfeições de Sua pessoa, das glórias variegadas de Seus ofícios, da suficiência de Sua Obra terminada. À parte das Escrituras, Cristo não pode ser conhecido. Somente por meio delas é que Ele é revelado.
Quando o Espírito Santo toma aquilo que pertence a Cristo e as mostra a Seu povo, dessa maneira tornando essas coisas conhecidas às almas remidas, não usa Ele outra coisa além daquilo que está escrito. E apesar de ser verdade que Cristo é a chave para a compreensão das Escrituras Sagradas, é igualmente verdadeiro que somente nas Escrituras nos é desvendado o "mistério de Cristo", sobre o qual se lê em Efésios 3:4.
Ora, a medida em que tiramos proveito de nossa leitura e estudo das Escrituras pode ser verificada pela extensão em que Cristo Se está tornando mais real e mais precioso para os nossos corações. O "crescimento na graça" é definido como um desenvolvimento "...na graça e no conhecimento de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo" (II Pedro 3:18). E na segunda cláusula não é acrescentado algo à primeira; antes, há uma explicação sabre a primeira cláusula. "Conhecer" a Cristo (Filipenses 3:10) era o supremo anseio e o grande alvo do apóstolo Paulo, um anelo e um alvo ao que ele subordinava todos os demais interesses. Mas, convém que prestemos toda a atenção, que o "conhecimento" referido nesses versículos não é o conhecimento intelectual, mas o espiritual, não é o teórico, mas o experimental, não é de natureza geral, e, sim, pessoal. Trata-se de um conhecimento sobrenatural, propiciado ao coração regenerado devido às operações do Espírito Santo, conforme Ele vai interpretando e aplicando em nós as passagens bíblicas concernentes a Cristo.
Ora, o conhecimento de Cristo que o bendito Espírito Santo outorga ao crente, por intermédio das Sagradas Escrituras, lhe é proveitoso de diferentes maneiras, de acordo com suas variadas situações, circunstâncias e necessidades. No tocante ao pão que Deus deu aos filhos de Israel, durante suas peregrinações pelo deserto, está registrado que eles "...colheram, uns mais, outros menos" (Êxodo 16:17). Outro tanto se dá no caso de nosso recebimento dAquele de quem o maná era um tipo simbólico. Existe algo, na admirável pessoa de Cristo, que se adapta exatamente a todas as nossas condições, a todas as nossas circunstâncias e a todas as nossas necessidades, tanto para o tempo como para a eternidade; no entanto, mostramo-nos lentos para perceber tal verdade, e mais lentos ainda para agir de conformidade com essa verdade.
Existe uma plenitude na pessoa de Cristo (João 1:16), e que é posta em disponibilidade para dela tirarmos proveito. E o princípio que regula a profundidade com que nos tornaremos fortes na "... graça que está em Cristo Jesus" (II Timóteo 2:1), é "Faça-se-vos conforme a vossa fé" (Mateus 9:29).
1. O indivíduo se beneficia do estudo das Escrituras quando elas lhe revelam a sua necessidade de Cristo.
O homem, em seu estado natural, se considera auto-suficiente. Naturalmente que ele tem uma apagada percepção de que nem tudo está perfeitamente certo entre ele mesmo e Deus; no entanto, não tem dificuldade alguma para persuadir a si próprio de que é capaz de fazer aquilo que propicie a Deus. Isso faz parte do fundamento mesmo da religião de todo o homem, e que teve início em Caim, e em cujo "caminho" (Judas 11) as multidões continuam andando. Basta que se diga ao homem religioso comum que "... os que estão na carne não podem agradar a Deus" (Romanos 8:8), para que esse homem se sinta imediatamente ofendido. E basta que se pressione sabre ele o fato de que "... todas as nossas justiças (são) como trapo de imundícia" (Isaías 64:6), para que sua urbanidade hipócrita imediatamente dê lugar à ira. Assim acontecia nos dias em que Cristo estava na terra. O povo mais religioso de todos, os judeus, não tinha qualquer senso de que eles estavam "perdidos", como também da urgente necessidade de um Salvador Todo-poderoso.
"Os sãos não precisam de médico, e, sim, os doentes" (Mateus 9:12). Faz parte do oficio específico do Espírito Santo, mediante a Sua aplicação das verdades bíblicas, o convencer os pecadores de sua desesperadora situação, para que assim possam perceber que o seu estado é tal que "Desde a planta do pé até à cabeça não há nele cousa sã, senão feridas, contusões e chagas inflamadas, umas e outras não espremidas, nem atadas, nem amolecidas com óleo" (Isaías 1:6). Mas, na proporção em que o Espírito nos convence de nossos pecados – de nossas ingratidões contra Deus, de nossas murmurações contra Ele, de nosso afastamento para longe dEle – e à medida em que nos impressiona com as reivindicações de Deus – os direitos que Ele tem ao nosso amor, à nossa obediência e à nossa adoração bem como de nossas tristes e fracassadas tentativas de prestar-Lhe aquilo que Lhe devemos, então somos levados a reconhecer que Cristo é a nossa Única esperança, e que, a menos que nos abriguemos nEle, qual refúgio, a justa indignação de Deus mui certamente haverá de cair sobre nós.
Entretanto, não devemos limitar isso à experiência inicial da conversão. Quanto mais o Espírito Santo aprofunda a Sua obra graciosa na alma regenerada, tanto mais o indivíduo se torna cônscio de sua própria corrupção, de sua pecaminosidade e de sua vileza; e percebe ainda mais a sua necessidade de dar valor àquele precioso sangue que o purifica de todo pecado. O Espírito Santo está aqui a fim de glorificar a Cristo; e uma das principais maneiras pela qual Ele faz isso é abrindo mais e mais os olhos daqueles em favor de quem Cristo morreu, para que percebam quão apropriado é Ele para criaturas tão miseráveis, tão imundas, tão merecedoras do inferno. Sim, quanto mais verdadeiramente tiramos proveito de nossa leitura das Escrituras, tanto mais sentimos que precisamos de Cristo.
2. O indivíduo se beneficia das Escrituras quando elas tornam Cristo mais real para ele.
A grande massa da nação israelita nada mais via senão a casca externa, nos ritos e cerimônias que Deus lhes deu para que os observassem; mas um remanescente regenerado teve o privilégio de contemplar o próprio Cristo. "Vosso pai Abraão alegrou-se por ver o meu dia, viu-o e regozijou-se... ", declarou o Senhor Jesus, em João 8: 56. Moisés "... considerou o opróbrio de Cristo por maiores riquezas do que os tesouros do Egito... " (Hebreus 11:26).
Outro tanto ocorre na cristandade. Para as multidões, Cristo é apenas um nome, ou, quando muito, um caráter histórico. Esses não têm contatos pessoais com Ele, não desfrutaram de qualquer companheirismo espiritual com Ele. Se porventura ouvirem alguém falar, arrebatado, sobre as excelências de Sua pessoa, haverão de considerá-lo um entusiasta ou um fanático. Para tais indivíduos, Cristo é irreal, vago, intangível. No caso do crente autêntico, todavia, a atitude é inteiramente outra. A linguagem de seu coração é:
Tenho ouvido a voz de Jesus.
Para mim, só Ele é perfeito.
Tenho visto a face de Jesus,
Minha alma ficou satisfeita.
Contudo, essa visão bem-aventurada não é a experiência constante e invariável dos santos. Assim como as nuvens se interpõem entre o sol e a terra, assim também as falhas, em nosso andar diário, interrompem a nossa comunhão com Cristo e servem para ocultar de nós o resplendor de Sua face. "Aquele que tem os Meus mandamentos e os guarda, esse é o que me ama; e aquele que me ama, será amado por Meu Pai, e Eu também o amarei e Me manifestarei a ele" (João 14:21). Sim, é aquele que, pela graça, palmilha pela senda da obediência, que recebe as manifestações conferidas pelo próprio Senhor Jesus. E quanto mais freqüentes e prolongadas forem essas manifestações, mais real Ele se torna para a alma, até sermos capazes de dizer juntamente com Jó: "Eu te conhecia só de ouvir, mas agora os meus olhos Te vêem" (Jó 42:5). Assim, pois, quanto mais Cristo for Se tornando uma realidade viva para mim, mais tirarei proveito da Palavra.
3. O indivíduo se beneficia das Escrituras quando se ocupa das perfeições de Cristo.
É o senso de necessidade que lança a alma aos braços de Cristo, no princípio; mas é a percepção de Suas excelências que nos faz achegarmo-nos a Ele, desde então. Quanto mais real Cristo Se torna para nós, tanto mais vamos sendo atraídos pelas Suas perfeições. No começo Ele é visto apenas como Salvador; mas, na proporção em que o Espírito Santo continua a destacar diante de nossos olhos aquilo que pertence a Cristo, descobrimos que sobre a Sua cabeça há "... muitos diademas... " (Apocalipse 19:12). Desde a antigüidade que foi dito: "... e o seu nome será: Maravilhoso... " (Isaías 9:6). E o nome de Cristo significa tudo quanto dEle as Escrituras dão a conhecer. "Maravilhosos" são os Seus ofícios, quanto ao seu número, quanto à sua variedade e quanto à Sua suficiência. Ele é o Amigo que nos é mais chegado do que um irmão, que nos ajuda em cada momento de necessidade. Ele é o grande Sumo Sacerdote, que Se deixa comover diante das nossas debilidades. Ele é o nosso Advogado junto a Deus Pai, o qual nos faz a defesa quando Satanás nos acusa.
Nossa grande necessidade é ocuparmo-nos com Cristo, assentarmo-nos a Seus pés, conforme fez Maria, recebendo assim de Sua plenitude. Nosso principal deleite deve ser considerar ". . . atentamente o Apóstolo e Sumo Sacerdote da nossa confissão, Jesus" (Hebreus 3:1); deve ser contemplar as várias relações que Ele mantém para conosco, meditar acerca das muitas promessas que Ele nos tem feito, demorarmo-nos na contemplação de Seu admirável e imutável amor por nós. Ao fazermos assim, haveremos de deleitar-nos no Senhor de tal modo que as vozes de sereia deste mundo perderão todo o seu encantamento em nosso caso.
Ah, prezado amigo, você conhece experiência assim, em sua vida diária? Cristo é, para a sua alma, o principal entre dez milhares? Conquistou Ele o seu coração? Sua principal alegria é ficar sozinho com Ele, a conversar com o Senhor? Caso contrário, a sua leitura e o seu estudo da Bíblia bem pouco lhe tem aproveitado.
4. O indivíduo se beneficia das Escrituras quando Cristo se torna mais precioso para ele.
Cristo é precioso na estima de todos os crentes (I Pedro 2:7). Esses consideram todas as coisas como perda, em face da excelência do conhecimento de Cristo Jesus, seu Senhor (Filipenses 3:8). O nome dEle, para eles, é um ungüento derramado (Cantares 1:3). Assim como a glória de Deus, que aparecia em beleza indescritível, no templo, bem como na sabedoria e no resplendor da corte de Salomão, atraía adoradores desde as regiões mais distantes da terra, assim também a excelência sem paralelos de Cristo – ali prefigurada – atrai ainda mais poderosamente os corações de Seu povo. O diabo sabe disso perfeitamente bem, pelo que ele também procura enegrecer as mentes daqueles que não crêem, colocando entre eles e Cristo as atrações deste mundo. E Deus permite ao diabo assediar igualmente ao crente. Entretanto, está escrito: "...resisti ao diabo, e ele fugirá de vós" (Tiago 4:7). Devemos resistir-lhe mediante oração definida e sincera, rogando ao Espírito Santo que incline as nossas afeições para Cristo.
Quanto mais nos ocuparmos com as perfeições de Cristo, mais haveremos de amá-Lo e de adorá-Lo. É a falta de familiaridade experimental com Ele que faz nossos corações se tornarem tão frios para com Ele. Mas, sempre que uma comunhão real e diária é cultivada, o crente será capacitado a dizer junto com o salmista: "Quem mais tenho eu no Céu? Não há outro em quem eu me compraza na terra" (Salmo 73:25). Essa é a própria essência e a natureza distinta do verdadeiro cristianismo. Os zelotes legalistas talvez se ocupem atarefadamente em dizimar a hortelã, o endro e o cominho, e talvez percorram mares e terras para fazer um prosélito, e contudo não têm amor a Deus, em Cristo. Deus olha para o coração: "Dá-me, filho meu, o teu coração... " (Provérbios 23:26) é a Sua exigência. E quanto mais precioso Cristo é para nós, tanto maior é o deleite que Ele tem em nós.
5. O indivíduo que tira proveito das Escrituras tem uma confiança crescente em Cristo.
Há "pequena fé" (Mateus 14:31) e também há "grande fé" (Mateus 8:10). Há também a "plena certeza de fé", segundo se lê em Hebreus 10:22, como há também o confiar no Senhor de todo o "coração", conforme se vê em Provérbios 3:5. Assim como há o crescimento que vai "... de força em força... " (Salmo 84:7), assim também lemos em subir "... de fé em fé... " (Romanos 1:17). Quanto mais forte e mais constante for a nossa fé, tanto mais o Senhor Jesus será honrado. Até mesmo a leitura apressada dos quatro evangelhos revela o fato de que coisa alguma agradava tanto ao Salvador como a firme dependência que aqueles que permaneceram em Sua companhia demonstraram ter dEle. O próprio Cristo viveu e andou pela fé, e quanto mais o fizermos, mais estaremos sendo transformados em Sua imagem, como os membros para com a Sua cabeça. Acima de tudo há uma coisa que deve ser nosso alvo, e que devemos buscar diligentemente, através de oração intensa: que a nossa fé aumente. Paulo foi capaz de dizer: "... a vossa fé cresce sobremaneira... " (II Tessalonicenses 1:3).
Ora, ninguém pode confiar em Cristo, a menos que seja Ele conhecido; e quanto melhor for Ele conhecido, tanto mais confiaremos nEle: "Em Ti, pois, confiam os que conhecem o teu nome, porque Tu, SENHOR, não desamparas os que te buscam" (Salmos 9:10). Na proporção em que Cristo Se vai tornando mais real para nossos corações, e na medida em que nós vamos crescentemente nos ocupando com Suas multiformes perfeições e Ele se torna mais e mais precioso para nós, a confiança em Sua pessoa se vai acentuando de tal maneira que chega a ser natural confiarmos nEle, como natural é o respirar. A vida cristã é um "andar" de fé (II Coríntios 5:7), e essa própria expressão denota um progresso contínuo, o livramento crescente de todas as dúvidas e temores, a mais ampla certeza de que tudo quanto Ele prometeu haverá de cumprir.
Abraão é o pai de todos aqueles que crêem, pelo que também o registro de sua vida terrena fornece-nos a indicação do que significa ter uma confiança dependente no Senhor. Primeiramente, ante a simples palavra divina Abraão voltou as costas para tudo quanto lhe era caro na carne. Em segundo lugar, ele partiu dependendo simplesmente de Deus, e habitou como estrangeiro e forasteiro na Terra da Promessa, onde jamais possuiu um simples acre de área. Em terceiro lugar, quando foi feita a promessa de que geraria um filho em sua idade avançada, ele não levou em conta os obstáculos que pareciam impedir a concretização dessa promessa. Finalmente, quando lhe foi ordenado que oferecesse a Isaque em sacrifício, par meio de quem aquelas promessas deveriam concretizar-se, ele considerou que Deus era capaz de até mesmo "ressuscitá-lo dentre os mortos'' (Hebreus 11:19).
Na história de Abraão nos é demonstrado como a graça é capaz de subjugar um maldoso coração cheio de incredulidade, como o espírito pode ser vitorioso sabre a carne, como os frutos sobrenaturais de uma fé dada e sustentada por Deus podem ser produzidos por um homem de paixões semelhantes às nossas. Tudo isso foi registrado visando ao nosso encorajamento, para que oremos a fim de que o Senhor Se agrade por operar em nós aquilo que Ele operou no pai dos fiéis e através dele. Não há outra coisa que tanto agrade, honre e glorifique a Cristo do que a confiança nEle, do que a confiança que espera, do que a fé similar à de uma criança, da parte daqueles para quem Ele deu todos os motivos para nEle confiarem de todo o coração. E não existe outra coisa que tanto evidencie o fato de que estamos sendo beneficiados pelas Escrituras do que a nossa fé crescente em Cristo.
6. O indivíduo se beneficia das Escrituras quando estas geram nele o profundo desejo de agradar a Cristo.
"Acaso não sabeis que o vosso corpo é santuário do Espírito Santo que está em vós, o qual tendes da parte de Deus, e que não sois de vós mesmos? Porque fostes comprados por preço. Agora, pois, glorificai a Deus no vosso corpo" (I Coríntios 6:19,10). Esse é o primeiro grande fato que os crentes precisam aprender. Desse ponto em diante é mister que os crentes "... não vivam mais para si mesmos, mas para aquele que por eles morreu e ressuscitou" (II Coríntios 5:15). O amor se deleita por agradar a seu objeto, e quanto mais os nossos afetos se voltam para Cristo, mais haveremos de desejar honrá-Lo mediante uma vida de obediência à Sua vontade conhecida. "Se alguém me ama, guardará a Minha palavra. . ." (João 14:23). Não é com emoções felizes e nem em profissões ou devoções verbais, e, sim, na aceitação real do jugo de Cristo, quando nos submetemos de maneira prática a Seus preceitos, que o Senhor Jesus é verdadeiramente honrado.
É particularmente neste ponto que a genuinidade de nossa profissão cristã pode ser testada e provada. Temos nós real fé em Cristo se porventura não fazemos qualquer esforço para aprender a Sua vontade? Que desprezo para um rei se os seus súditos se recusassem a ler as suas proclamações! Sempre que houver fé em Cristo haverá também o deleite em Seus mandamentos, bem como a tristeza quando qualquer um deles é desobedecido por nós. Quando desagradamos a Cristo, cumpre-nos lamentar tão grande falha. É impossível crer seriamente que foram os meus pecados que levaram o Filho de Deus a derramar o seu precioso sangue, se eu mesmo não odiar esses pecados. Se Cristo gemeu sob o peso do pecado, igualmente nós devemos gemer. E quanto mais sinceros forem esses gemidos, mais intensamente deveremos buscar a graça para ser libertos de tudo quanto desagrada a nosso bendito Redentor, e para ser fortalecidos e capacitados a fazer o que Lhe agrada.
7. O indivíduo se beneficia das Escrituras quando estas fazem-no ansiar pelo retorno de Cristo.
O amor não pode satisfazer-se com qualquer coisa menos que a vista do objeto amado. É verdade que até mesmo agora contemplamos a Cristo pela fé, contudo, fazemo-lo "como em espelho, obscuramente." Porém, por ocasião de Sua vinda, haveremos de contemplá-Lo "... face a face... " (I Coríntios 13:12). Naquela oportunidade é que se cumprirão as palavras de Cristo: "Pai, a minha vontade é que onde eu estou, estejam também comigo os que me deste, para que vejam a minha glória que me conferiste, porque me amaste antes da fundação do mundo" (João 17:24). Somente isso cumprirá perfeitamente os anelos de Seu coração, e somente isso satisfará os anseios daqueles que foram remidos por Ele. E somente então é que Ele "... verá o fruto do penoso trabalho da sua alma, e ficará satisfeito... " (Isa. 53:11). "Eu, porém, na justiça contemplarei a tua face; quando acordar eu me satisfarei com a Tua semelhança" (Sal. 17:15).
Por ocasião da volta de Cristo liquidaremos a conta com o pecado para todo o sempre. Os eleitos foram predestinados a serem conformados segundo a imagem do Filho de Deus, e esse propósito divino só será concretizado quando Cristo receber para Si mesmo o Seu povo.
"Sabemos que, quando Ele Se manifestar, seremos semelhantes a Ele, porque havemos de vê-Lo como Ele é" (I João 3:2). Nunca mais se interromperá a nossa comunhão com Ele, nunca mais gemeremos e nos lamentaremos por causa de nossa corrupção no íntimo: nunca mais seremos assaltados pela incredulidade. Mas Ele apresentará a Si mesmo a Sua igreja, como "... igreja gloriosa, sem mácula, nem ruga, nem cousa semelhante, porém santa e sem defeito" (Efésios 5:27). Estamos aguardando ansiosamente par aquela hora. Esperamos amorosamente pelo nosso Redentor. E quanto mais anelarmos por Aquele que vem, mais haveremos de preparar as nossas lâmpadas, em ardente expectação pela Sua vinda, e mais daremos evidências de que estamos nos beneficiando espiritualmente de nosso conhecimento da Palavra.
Que tanto os ouvintes como o orador se perscrutem honestamente, na presença mesma de Deus. Busquemos as respostas verazes para as perguntas seguintes: Temos um senso mais profundo de nossa necessidade de Cristo? Para nós, Cristo está Se tornando uma realidade viva cada vez mais resplendente? Estamos encontrando um crescente deleite em nos ocuparmos na contemplação de suas perfeições? O próprio Cristo está Se tornando mais e mais precioso para nós, a cada dia? A nossa fé em Sua pessoa está crescendo de tal modo que confiamos nEle quanto a tudo? Estamos realmente procurando agradá-Lo, em todos os detalhes de nossa vida? Estamos anelando tão ardorosamente por Ele que ficaríamos invadidos de júbilo se soubéssemos com certeza que Ele voltaria dentro das próximas vinte e quatro horas?
Que o Espírito Santo sonde os nossos corações com essas incisivas perguntas!
AS ESCRITURAS E A ORAÇÃO
Um crente que não ora é uma contradição de termos. Tal como um aborto é uma criança morta, assim também o crente professo que não ora está destituído de vida espiritual. A oração é como que a respiração da nova vida dos santos, do mesmo modo que a Palavra de Deus é o seu alimento. Quando o Senhor quis assegurar ao Seu discípulo de Damasco que Saulo de Tarso verdadeiramente se convertera, disse-lhe: "... pois ele está orando" (Atos 9:11). Em muitas ocasiões anteriores aquele fariseu, tão justo a seus próprios olhos, tinha dobrado os joelhos diante de Deus em suas "devoções"; mas aquela era a primeira vez em que ele realmente orava. Essa importantíssima distinção precisa ser frisada nesta nossa época de formalidades externas mas sem poder (II Timóteo 3:5). Aqueles que se contentam em dirigir-se formalmente a Deus, na realidade não o conhecem; e isso porque "o espírito de graça e de súplicas" (Zacarias 12:10) jamais poderão ser separados. Deus não possui filhos mudos em Sua família de regenerados: "Não fará Deus justiça aos seus escolhidos, que a Ele clamam dia e noite, embora pareça demorado em defendê-los?'' (Lucas 18:7). Sim, os escolhidos "clamam" ao Senhor, e não meramente "rezam".
Mas, ficará o prezado ouvinte surpreendido se este pregador lhe disser que a sua profunda convicção é que o povo do Senhor, com toda a probabilidade, peca mais em seus esforços para orar do que em conexão com qualquer outra coisa que costumam fazer? Quanta hipocrisia existe, onde deveria haver sinceridade! Quantas exigências presunçosas, onde deveria haver submissão! Quanta formalidade, onde deveria haver quebrantamento de coração! Quão pouco realmente sentimos os pecados que confessamos, e quão superficial é nosso senso de necessidade das misericórdias que buscamos! E até mesmo nos casos em que Deus nos confere certa medida de livramento desses tremendos pecados, quanta frieza de coração, quanta incredulidade, quanta atitude voluntariosa e quanto desejo de agradar a nós mesmos deveríamos lamentar! Aqueles que não têm consciência dessas coisas são inteiramente estranhos para o espírito de santidade.
Ora, a Palavra de Deus deveria ser o nosso manual de orações. Infelizmente, porém, com quanta freqüência as nossas próprias inclinações carnais servem de regra para as nossas petições. As Sagradas Escrituras nos foram outorgadas a fim de que "... o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra" (II Timóteo 3:17). Visto que de nos é requerido orar "... no Espírito Santo... " (Judas 20), segue-se que as nossas orações deveriam seguir o padrão das Escrituras, pasto que Ele é o Seu autor do princípio ao fim. E disso se conclui, por semelhante modo, que segundo a medida em que estiver habitando em nós ''ricamente" (Colossenses 3:16) a Palavra de Deus – ou então com pobreza – as nossas orações estarão mais ou menos em harmonia com a mente do Espírito, porquanto "... a boca fala do que está cheio o coração" (Mateus 12:34). Na proporção em que entesourarmos a Palavra, em nossos corações, e na medida em que ela limpar, amoldar e regulamentar nosso homem interior, assim também as nossas orações serão aceitáveis aos olhos de Deus. E então seremos capazes de dizer, conforme fez Davi em outra conexão: "Porque tudo vem de ti, e das tuas mãos to damos" (1 Crônicas 29:14).
Por conseguinte, a pureza e a potência de nossa vida de oração servem de um outro índice mediante o qual podemos determinar até que ponto nos estamos beneficiando de nossa leitura e pesquisa bíblicas. Se, debaixo da bênção do Espírito Santo, nossos estudos da Bíblia não nos estão convencendo de que não orar é pecado, e nem nos estão revelando o papel que a oração deveria ocupar em nossas vidas diárias, para que dediquemos mais tempo real a nos abrigarmos no lugar secreto do Altíssimo; a menos que isso nos esteja ensinando como orar de maneira mais aceitável a Deus, como nos apossarmos de Suas promessas e como fazer-lhe os nossos rogos, como nos apropriarmos de Seus preceitos para que os transformemos em petições, então não somente o tempo que gastamos com a Bíblia em pouco ou nada tem contribuído para o enriquecimento da alma, mas também o próprio conhecimento que tivermos adquirido com a letra das Escrituras contribuirá para a nossa condenação, naquele dia vindouro. "Tornai-vos, pois, praticantes da palavra, e não somente ouvintes, enganando-vos a vós mesmos" (Tiago 1:22). Essa declaração se aplica às admoestações da Bíblia relativas à oração, como a todas as demais instruções que nela há. Desejamos, em seguida, salientar sete critérios a respeito.
1.Tiramos proveito das Escrituras quando somos levados a perceber a importância profunda da oração.
É de temer-se que, de fato, muitos dos ouvintes (e até mesmo estudiosos) da Bíblia não tenham qualquer convicção formada de que uma definida vida de oração é absolutamente essencial para andarmos e comungarmos diariamente com Deus, tal como é essencial para que sejamos libertados do poder do pecado no íntimo, das seduções do mundo e dos assédios de Satanás. Se tal convicção realmente se tivesse apossado de seus corações, não passariam muito mais tempo de rosto em terra, perante Deus? É mais do que em vão dizer: "Uma multidão de deveres impedem que eu me entregue à oração, embora isso seja contra os meus desejos". Porém, permanece de pé o fato de que cada um de nós dedica tempo para qualquer coisa que consideramos imperativo. Quem jamais viveu uma vida tão atarefada como o nosso Salvador? No entanto, quem encontrava mais tempo do que Ele para orar? Se verdadeiramente anelamos por ser súplices e intercessores perante Deus, e usamos todo o tempo disponível, Ele porá as coisas em tal ordem que nos sobrará mais tempo.
A falta de convicção positiva sabre a profunda importância da oração se evidencia claramente na vida coletiva dos crentes professos. Deus declarou com toda a clareza: "A Minha casa será chamada casa de oração" (Mateus 21:13). Notemos que não se trata de uma casa para "pregar" ou para "cantar", e, sim, uma casa de oração. No entanto, na maioria até mesmo das chamadas igrejas ortodoxas, o ministério da oração se tem reduzido a um ponto desprezível. Continua havendo campanhas evangelísticas e conferências bíblicas, mas quão raramente se ouve falar na dedicação de duas semanas a orações especiais! E quanto bem podem fazer essas "conferências bíblicas", se a vida de oração das igrejas não for fortalecida?
Porém, quando o Espírito Santo aplica poderosamente aos nossos corações palavras como "Vigiai e orai, para que não entreis em tentação" (Marcos 14:38), ". . . em tudo, porém, sejam conhecidas diante de Deus as vossas petições, pela oração e pela súplica, com ações de graça" (Filipenses 4:6), e "Perseverai na oração, vigiando com ações de graça" (Colossenses 4:2), então é que estamos nos beneficiando de nossos estudos das Escrituras.
2. Tiramos proveito das Escrituras quando somos levados a refletir que não sabemos como orar.
". . .não sabemos orar como convém... " (Romanos 8:26). Quão poucos crentes professos realmente acreditam nisso! A idéia mais generalizada entre os homens é que eles sabem bem acerca do que devem orar, mas que por serem descuidados e ímpios, não oram em favor daquilo que sabem com certeza ser o seu dever. Esse conceito, entretanto, está em total desarmonia com a inspirada declaração de Romanos 8:26. Devemos também observar que essa afirmação, tão humilhante para a carne, não diz respeito aos homens em geral, tão-somente, mas dirige-se particularmente aos santos de Deus, entre os quais o apóstolo não hesitou em incluir a si próprio: "... não sabemos orar como convém.... ''
Ora, se essa é a condição que prevalece entre os regenerados, quanto mais no caso dos não regenerados! Contudo, uma coisa é lermos e assentirmos mentalmente ao que este versículo assevera; mas é coisa inteiramente diversa perceber experimentalmente a sua verdade, pois, para que o coração seja levado a sentir aquilo que Deus requer de nós, é necessário que Ele mesmo opere em nós e por nosso intermédio.
Com freqüência digo minhas orações,
Mas, realmente chego a orar?
E harmonizo os desejos do coração
Com as palavras que profiro?
Eqüivaleria a ajoelhar-me
E a adorar deuses de pedra,
Se apenas ofereço ao Deus vivo
Orações que são somente palavras.
Faz muitos anos que essas linhas foram ensinadas a um teólogo pela sua mãe – que já é falecida – mas a sua perscrutadora mensagem ainda o impressiona muitíssimo. O crente não pode orar sem a aptidão dada diretamente pelo Espírito Santo, como também não pode criar um mundo. Assim realmente deve ser, pois a oração verdadeira é uma necessidade sentida e despertada em nós pelo Espírito, porquanto pedimos a Deus, em nome de Cristo, aquilo que está de conformidade com a Sua santa vontade. "E esta é a confiança que temos para com ele, que, se pedirmos alguma cousa segundo a sua vontade, ele nos ouve" (I Joio 5:14). Por outro lado, pedir qualquer coisa que não esteja de acordo com a vontade de Deus não é oração, é presunção.
É verdade que a vontade revelada de Deus se faz conhecida em sua Palavra; mas não da mesma maneira que um livro de receitas de cozinha contém receitas para o preparo de vários pratos. As Escrituras freqüentemente enumeram princípios que exigem um contínuo exercício do coração, bem como a ajuda divina, para que nos seja mostrada a sua aplicação a diferentes casos e circunstâncias.
Portanto, estamos realmente tirando proveito das Escrituras quando nos é ensinada a nossa profunda necessidade de clamar: "Senhor, ensina-nos a orar" (Lucas 11:1). Porque então é que realmente somos constrangidos a pedir dEle o espírito de oração.
3. Beneficiamo-nos de nossos estudos bíblicos quando ficamos conscientes da necessidade que temos da ajuda do Espírito Santo.
Em primeiro lugar, para que Ele nos torne conhecidas as nossas autênticas necessidades. Tomemos, par exemplo, as nossas necessidades temporais. Com quanta freqüência achamo-nos em alguma situação aflitiva; externamente falando, as coisas nos pressionam fortemente, e desejamos muito ser libertos desses testes e dessas dificuldades. Certamente que, nesse caso, sabemos, por nós mesmos, acerca do que nos convém orar.
Mas não! De fato, as coisas são bem diferentes disso! Pois a verdade é que, a despeito de nosso desejo natural de alívio, tão ignorantes somos nós e tão embotado é o nosso discernimento, que (até mesmo quando nossa consciência está desperta) não sabemos em que ponto Deus quer que nos submetamos à Sua vontade, ou de que modo poderemos ser santificados nessas aflições, fazendo-as redundar em nosso bem interno. Por conseguinte, Deus designa as petições da maioria daqueles que buscam alívio, devido a aflições externas, de "uivos", e não "clamores de coração" (Oséias 7:14). "Pois quem sabe o que é bom para o homem, durante os poucos dias da sua vida de vaidade os quais gasta como sombra?" (Eclesiastes 6:12). Ah, a sabedoria celestial se torna necessária, para ensinar-nos a orar acerca das nossas "necessidades" temporais, de conformidade com a mente de Deus.
Talvez algumas poucas palavras precisem ser acrescentadas àquilo que acabamos de dizer. Podemos orar, com sanção bíblica, pelas coisas temporais (Mateus 6:11ss.); mas isso com a seguinte tríplice limitação: Incidentalmente, mas não primariamente, podemos orar par elas, pois não são essas as coisas que mais preocupam o crente (Mateus 6:33). As realidades celestiais e eternas (Colossenses 3:1) é que devem ser procuradas primeira e principalmente, por serem de muito maior importância do que as coisas de valor meramente temporal.
Também podemos orar subordinadamente, como um meio para obtenção de um fim qualquer. Ao pedirmos as coisas materiais da parte de Deus, não devemos fazê-lo a fim de obter satisfação própria, e, sim, como ajuda que nos permita agradar melhor ao Senhor. Por fim, podemos orar de maneira submissa, e não como ditadores, porquanto isso importaria no pecado de presunção. Outrossim, não sabemos dizer com certeza se qualquer misericórdia temporal realmente contribuiria para nosso maior bem (Salmo 106:18), pelo que também devemos permitir que Deus decida a questão.
Temos desejos internos; tanto quanta desejos externos. Alguns desses desejos podem ser discernidos à luz da consciência, tal como a culpa e a contaminação do pecado, como os pecados contra a luz e contra a natureza de acordo com a clara letra da lei. Não obstante, o conhecimento que temos de nós mesmos, através da consciência, é tão obscuro e confuso que, à parte do auxílio do Espírito Santo, de forma alguma seremos capazes de descobrir a verdadeira fonte da purificação. As coisas a respeito das quais os crentes devem tratar primariamente com Deus, e geralmente o fazem, em suas súplicas, são as atitudes intimas e as disposições espirituais de suas almas.
Assim é que Davi não se satisfez somente em confessar todas as transgressões conhecidas e o seu pecado original (Salmo 51:1-5), nem ainda em reconhecer que ninguém poderia compreender os seus erros próprios, em razão de que almejava ser purgado de suas ''faltas ocultas" (Salmo 19:12); mas também implorou a Deus que levasse a efeito a sondagem profunda de seu coração, para que desvendasse o que havia de errado ali (Salmo 139:23,24), porque sabia que Deus, antes de tudo, requer a "... verdade no íntimo... " (Salmos 51:6).
Portanto, em face do trecho de I Coríntios 2:10-12, devemos buscar, de maneira bem definida, a ajuda do Espírito Santo, a fim de podermos orar de modo aceitável a Deus.
4. Extraímos benefícios das Escrituras quando o Espírito Santo nos ensina a correta finalidade da oração.
Deus determinou a ordenança da oração com, pelo menos, um designo tríplice. Primeiro, para que o grande Deus triuno seja honrado, já que a oração é um ato de adoração, a prestação de uma homenagem – a Deus Pai, como o Doador, em nome do Filho, o Único por intermédio de quem nos aproximamos dEle, devido ao poder impulsionador e orientador do Espírito Santo. Segundo, para humilhar os nossos corações, já que a oração foi determinada para levar-nos a uma posição de dependência, para que em nós se desenvolva o senso de incapacidade reconhecendo que sem o Senhor nada podemos fazer, porquanto também dependemos da Sua caridade por tudo quanto somos e temos. Porém, quão debilmente isso é percebido (se é que é percebido) por qualquer de nós, até que o Espírito Santo nos tome em Sua mão, remova de nós o orgulho e dê a Deus o lugar que a Ele compete, em nossos corações e em nossos pensamentos. Terceiro, como meio pelo que obtenhamos para nós mesmos as coisas boas que pedimos.
É de temer-se grandemente que uma das principais razões pelas quais tantas de nossas orações ficam sem resposta é que temos alguma finalidade errônea e indigna em mira. Nosso Salvador disse: "Pedi, e dar-se-vos-á" (Mateus 7 :7). No entanto, Tiago ensina a respeito de certos homens: ". . . pedis, e não recebeis, porque pedis mal, para esbanjardes em vossos prazeres" (Tiago 4:3). Orar em prol de qualquer coisa, mas não expressamente para a finalidade designada por Deus, é "pedir mal", e, portanto, é pedir sem propósito algum. Qualquer que seja a confiança que podemos ter em nossa própria sabedoria e integridade, se formos abandonados aos nossos próprios recursos, nossos alvos jamais se harmonizarão com a vontade de Deus. A menos que o Espírito Santo refreie a natureza carnal que há em nós, nossos próprios afetos naturais e insubmissos se imiscuirão em nossas súplicas, e estas se tomarão vãs. "Quer comais, quer bebais, ou façais outra coisa qualquer, fazei tudo para a glória de Deus" (I Coríntios 10:31). Contudo, somente o Espírito pode capacitar-nos a subordinar todos os nossos desejos à glória divina.
5. Tiramos proveito das Escrituras quando ali somos ensinados sobre como devemos pleitear as promessas de Deus.
Toda a oração deve ser feita na atmosfera da fé (Romanos 10:14), pois, do contrário, Deus não a ouvirá. Ora, a fé diz respeito às promessas de Deus (Hebreus 4:1; Rom. 4:21); por conseguinte, se não entendermos o que Deus Se comprometeu a dar-nos, não poderemos nem ao menos orar. As promessas de Deus contêm a matéria da oração e definem as suas dimensões. Aquilo que Deus tem prometido, tudo quanto Ele tem prometido, e nada mais, sobre isso podemos orar. "As cousas encobertas pertencem ao SENHOR nosso Deus. . ." (Deut. 29:29), mas aquilo que Ele tem mostrado ser de Sua vontade, como revelação de Sua igreja, pertence a nós; e isso nos serve de regra.
Não há nada de que tenhamos necessidade que Deus não tenha prometido suprir; mas o faz de tal maneira e sob tais limitações que sejam boas e úteis para nós. Por semelhante modo, nada há que Deus tenha prometido, e de que não tenhamos necessidade, ou que, de um modo ou de outro, não se refira a nós, na qualidade de membros do corpo místico de Cristo. Portanto, quanto melhor estivermos familiarizados com as promessas divinas, e quanto mais formos capazes de compreender a bondade, a graça e a misericórdia preparadas e propostas naquelas promessas, tanto melhor equipados estaremos para fazer orações aceitáveis ao Senhor.
Algumas das promessas de Deus são gerais, e não específicas; algumas delas são condicionais, ao passo que outras são incondicionais; algumas se cumprem ainda nesta vida, mas outras, somente no mundo vindouro. Por nós mesmos não somos capazes de discernir qual promessa se adapta melhor para nosso caso específico e para nossa presente urgência e necessidade, para que dela nos apropriemos pela fé e façamos um apelo correto perante Deus. É por isso que nos é expressamente dito: "Porque qual dos homens sabe as cousas do homem, senão o seu próprio espírito que nele está? Assim também as cousas de Deus ninguém as conhece, senão o Espírito de Deus. Ora, nós não temos recebido o espírito do mundo, e, sim, o Espírito que vem de Deus, para que conheçamos o que por Deus nos foi dada gratuitamente" (I Coríntios 2:11,12).
Se porventura alguém replicar: "Se tanta coisa é exigida para que se façam orações aceitáveis, e se não se podem fazer súplicas corretas a Deus sem tanta dificuldade como aqui é indicado, poucos se dedicarão por muito tempo a este mister", então a resposta é que a pessoa que assim objeta não sabe o que é orar, e nem está disposta a aprender a fazê-lo.
6. Tiramos real proveito das Escrituras quando somos levados a uma completa submissão a Deus.
Conforme foi declarado acima, uma das finalidades divinas, ao determinar a ordenança da oração, é que assim fôssemos humilhados. Isso é externamente denotado quando nos prostramos de joelhos perante o Senhor. A oração é o reconhecimento de nossa incapacidade e impotência, em que olhamos para Aquele de onde chega toda a nossa ajuda. Isso reconhece a Sua suficiência para suprir cada uma das nossas necessidades. Orar é tornar conhecidas as nossas "petições" (Filipenses 4:6) a Deus; mas petições são bem diferentes de exigências. "O trono da graça não foi erigido para que ali cheguemos e descarreguemos nossos sentimentos indignados perante Deus" (Wm. Gurnall). Compete-nos expor o nosso caso na presença de Deus, mas permitir que a Sua sabedoria superior prescreva como a questão deve ser solucionada. Não podemos ditar a Deus, e nem podemos "reivindicar" qualquer coisa da parte de Deus, porquanto somos esmoleiros que dependem de Sua pura misericórdia. Em todas as orações devemos acrescentar: "No entanto, não seja feita a minha vontade, e, sim, a Tua".
Porém, não pode a fé pleitear as promessas de Deus e esperar a resposta? Certamente, mas deve ser a resposta de Deus. O apóstolo Paulo rogou ao Senhor, por três vezes, que lhe removesse certo espinho na carne; ao invés de fazê-lo, o Senhor lhe conferiu a graça para suportar tal espinho (II Coríntios 12:7-9). Muitas das promessas de Deus são coletivas, e não pessoais. Ele prometeu dar à Sua Igreja pastores, mestres e evangelistas; no entanto, muitas das comunidades de Seus santos tem definhado por longo tempo sem esses ministérios. Outras promessas divinas são indefinidas e gerais, ao invés de serem absolutas e universais. Isso se verifica, por exemplo, no trecho de Efésios 6:2,3. Deus jamais Se comprometeu a dar-nos bens definidos em espécie ou tipo, a conferir-nos aquela coisa específica que pedimos, embora a peçamos com fé.
Outrossim, Ele reserva para Si mesmo o direito de determinar o tempo próprio, a ocasião certa, para derramar sabre nós a Sua mercê. "Buscai o SENHOR, vós todos os mansos da terra... porventura lograreis esconder-vos no dia da ira do SENHOR" (Sofonias 2:3). Justamente porque "pode" fazer parte da vontade de Deus proporcionar-me determinada bênção temporal, é meu dever lançar-me aos Seus cuidados e pleitear essa bênção; mas sempre com inteira submissão ao Seu beneplácito, para que isso se realize.
7. Beneficiamo-nos das Escrituras quando a oração se torna uma alegria real e profunda.
Meramente "dizer as orações" a cada manhã e tarde é uma tarefa enfadonha, um dever que produz um suspiro de alívio ao ser realizado. Porém, realmente chegar à presença consciente de Deus, contemplar a luz gloriosa de Sua face, ter comunhão com Ele diante do propiciatório, é prelibação da bem-aventurança eterna que nos espera nos Céus. Aquele que é abençoado com essa experiência pode dizer juntamente com o salmista: "Quanto a mim, bom é estar junto a Deus... " (Salmo 73:28). Sim, é bom para o coração, porque esse é aquietado; é bom para a fé, pois essa é fortalecida; é bom para a alma, pois ela é abençoada. A ausência dessa comunhão de alma com Deus é a raiz que impede a resposta às nossas orações: "Agrada-te do SENHOR, e Ele satisfará aos desejos do teu coração" (Salmo 37:4).
Qual é o fator que, sob a bênção do Espírito Santo, produz e promove essa alegria na oração? Em primeiro lugar, é o deleite do próprio coração em Deus, como o grande Objeto da oração; e, mais particularmente, o reconhecimento e a percepção de Deus como nosso Pai. Por essa razão é que quando os discípulos pediram ao Senhor Jesus que lhes ensinasse a orar, Ele respondeu: "... vós orareis assim: Pai nosso que estás nos Céus..." (Mateus 6:9). E também se lê : "E, porque vós sois filhos, enviou Deus aos nossos corações o Espírito de seu Filho, que clama: Aba (termo hebraico que significa "Pai") Gálatas 4:6. E isso inclui um deleite filial e santo em Deus, tal como as crianças têm em seus progenitores, quando se dirigem de maneira mais amorosa a eles. Por essa razão, por semelhante modo, é que nos é dito, em Efésios 2:18, para fortalecimento da fé e para consolo de nossos corações que "...por Ele (ou seja, Cristo), ambos temos acesso ao Pai em um Espírito". Que paz, que certeza e que liberdade isso nos confere à alma – sabermos que nos aproximamos de nosso Pai!
Em segundo lugar, a alegria na oração é promovida pelo fato de que o coração aprende e a alma vê a Deus, como Alguém assentado no trono da graça – uma visão de expectação, conferida, não pela imaginação carnal, e, sim, pela iluminação espiritual, já que é pela fé que vemos "...aquele que é invisível" (Hebreus 11:27), porque também a fé é "... a convicção de fatos que se não vêem" (Hebreus 11:1), o que faz com que o seu objeto se torne evidente e presente para aqueles que crêem. Tal vista de Deus sobre um "trono" não pode deixar de arrebatar a alma. Por isso mesmo, somos exortados: "Acheguemo-nos, portanto, confiadamente, junto ao trono da graça, a fim de recebermos misericórdia e acharmos graça para socorro em ocasião oportuna" (Hebreus 4:16).
Em terceiro lugar, e isso com base no último trecho bíblico citado, a liberdade e o deleite na oração são estimulados polo consciência de que Deus, por intermédio de Jesus Cristo, está disposto e pronto a dispensar graça e misericórdia aos pecadores súplices. Não há nEle qualquer relutância que precisamos vencer. Por esse motivo é que ele é representado, em Isaías 30:18, do seguinte modo: "Por isso o SENHOR espera, para ter misericórdia de vós, e se detém para se compadecer de vós, porque o SENHOR é Deus de justiça; bem-aventurados todos os que nele esperam".
Sim, Deus espera ser solicitado por nós; Ele espera que depositemos fé em Sua pronta disposição para abençoar-nos. Seus ouvidos estão perenemente abertos para os clamores dos justos. Assim sendo, "... aproximemo-nos, com sincero coração, em plena certeza de fé... " (Hebreus 10:22). E também se lê em Filipenses 4:6,7 : "... em tudo, porém, sejam conhecidas diante de Deus as vossas petições, pela oração e pela súplica, com ações de graça. E a paz de Deus, que excede todo o entendimento, guardará os vossos corações e as vossas mentes em Cristo Jesus".
AS ESCRITURAS E AS BOAS OBRAS
A verdade de Deus bem poderia ser assemelhada a uma vereda estreita, a cada margem ladeada por um precipício perigoso e destruidor: em outras palavras, fica entre dois golfos de erro. Essa figura simbólica, como se pode perceber, é apropriada devido à nossa tendência de passar de um ponto extremo para outro. Somente a aptidão outorgada pelo Espírito Santo pode permitir-nos preservar o equilíbrio, pois a falta de tal equilíbrio inevitavelmente nos levaria a cair no erro; pois o erro não é tanto a negação da verdade, mas antes, é a perversão da verdade, em que lançamos uma parte dela contra a outra.
A história da teologia ilustra vigorosa e solenemente esse fato. Uma geração de homens tem contendido correta e sinceramente por aquele aspecto da verdade que era mais urgentemente necessário em seus dias. A geração seguinte, ao invés de palmilhar pela mesma senda e seguir avante, fica a guerrear intelectualmente por ela, como se fora o sinal distintivo do partido deles, e usualmente, na defesa do que passa a ser alvo de assédios externos, recusa-se a dar ouvidos à verdade que é o extremo oposto acerca do qual seus oponentes tanto insistiam e que poderia dar-lhes equilíbrio. O resultado é que perde seu senso de perspectiva, frisando aquilo que acreditam de maneira alheia às proporções bíblicas. Consequentemente, na geração seguinte, os verdadeiros servos de Deus são forçados quase a ignorar o que era tão valioso aos olhos da geração anterior, preferindo salientar aquilo que os primeiros, se não negaram, pelo menos desconsideraram quase completamente.
Alguém disse que "Os raios de luz, sem importar se procedem do sol, das estrelas ou de uma lâmpada, movem-se em linhas perfeitamente retas; contudo, tão inferiores são as nossas obras, em contraste com as obras de Deus, que a mão mais firme não sabe traçar uma linha perfeitamente reta; e a despeito de todas as suas habilidades, o homem nunca foi capaz de inventar um instrumento capaz de fazer uma coisa aparentemente tão simples" (T. Guthrie, 1867). Seja assim ou não, o fato é que os homens, deixados a depender de seus próprios recursos, têm achado impossível manter a linha certa da verdade que fica entre o que parecem estar em conflito. Entre esses casos poderíamos citar as doutrinas da soberania de Deus e da responsabilidade do homem; da eleição pela graça e da proclamação universal do evangelho; da fé justificadora, ensinada par Paulo, e das obras justificadoras, ensinadas por Tiago.
Com grande freqüência, sempre que se tem insistido acerca da soberania absoluta de Deus, isso é feito ignorando-se a necessidade que os homens têm de prestar contas ao Senhor; e sempre que a eleição incondicional tem sido ressaltada, a pregação generalizada do evangelho, entre os perdidos, tem sido esquecida. Por outro lado, sempre que a responsabilidade humana tem sido destacada e que o ministério evangelizador tem sido frisado, a soberania de Deus e a verdade da eleição geralmente têm sido olvidados ou mesmo completamente ignorados.
Muitos de nossos eleitores têm testemunhado exemplos que ilustram a verdade do que dissemos acima; mas poucos parecem perceber que exatamente a mesma dificuldade é experimentada quando se faz a tentativa de demonstrar as relações exatas entre a fé e as boas obras. Se, por um lado, alguns têm errado par atribuir às boas obras um lugar que as Escrituras não ensinam, o que é certo também é que, por outro lado, outros têm deixado de atribuir às boas obras a província que as Escrituras lhes dão. E assim também, se por um lado, é erro sério atribuirmos a nossa justificação perante Deus a qualquer realização pessoal, por outro lado, tornam-se igualmente culpados de erro aqueles que negam que as boas obras são necessárias para chegarmos ao Céu, nada mais admitindo senão que são meras evidências ou frutos de nossa justificação.
E temos perfeita consciência de que a esta altura, (por assim dizer) pisamos sobre cascas de ovos, correndo o sério risco de sermos por nossa vez acusados de heresia. Não obstante, consideramos expediente buscar a ajuda divina para manusearmos essa dificuldade, entregando a questão e seus resultados ao próprio Deus.
Em alguns segmentos da cristandade as reivindicações da fé, embora não tenham sido inteiramente negadas, têm sido desprezadas, devido ao zelo que ali têm pelas obras boas. Em outros círculos, reputados como ortodoxos (e esses é que temos agora principalmente em foco), somente com grande raridade as boas obras recebem o seu devido lugar, e apenas uma vez ou outra os cristãos professes são exortados, com zelo apostólico, a se dedicarem às boas obras. Não há que duvidar que, em certos casos, essa atitude é tomada por receio de não dar o devido valor à fé, como se tal exortação encorajasse os pecadores a caírem no erro fatal de confiarem em suas próprias realizações, e não na justiça de Cristo. Nenhuma apreensão dessa natureza, porém, deveria impedir o pregador de declarar "todo o conselho de Deus" (Atos 20:27). Se o tema do pregador é a fé em Jesus Cristo, como Salvador dos perdidos, que ele exponha perfeitamente aquela verdade sem quaisquer modificações, proporcionando à graça divina o lugar que o apóstolo lhe deu, na resposta ao carcereiro de Filipos (Atos 16:31).
Entretanto, se o seu tema é as boas obras, que ele seja igualmente fiel, nada retendo de tudo quanto as Escrituras ensinam a respeito; e que não se esqueça daquele mandamento divino, que diz: "... quero que, no tocante a estas cousas, faças afirmação, confiadamente, para que os que têm crido em Deus sejam solícitos na prática de boas obras..." (Tito 3:8).
A passagem citada em último lugar é o trecho bíblico mais pertinente para estes dias de lassidão e frouxidão, de profissões de fé sem valor, de jactâncias vazias. A expressão "boas obras" encontra-se, no singular ou no plural, nas páginas do Novo Testamento, por não menos de trinta vezes; contudo, a julgar pela raridade com que muitos pregadores – que são considerados ortodoxos a usam, salientam e a explanam, muitos de seus ouvintes haverão de concluir que essas palavras figuram apenas por uma ou duas vezes na Bíblia inteira.
Falando aos judeus e abordando um outro assunto, disse o Senhor: "...o que Deus ajuntou não o separe o homem" (Marcos 10:19). Ora, em Efésios 2:8-10, Deus reúne duas das mais vitais e benditas realidades, às quais jamais deveriam ser separadas em nossas mentes e em nossos corações, embora assim suceda com freqüência, nos púlpitos modernos. Quão grande é o número de sermões alicerçados sabre os dois primeiros desses versículos, os quais declaram enfaticamente que a salvação vem pela graça, mediante a fé, e não através das obras. No entanto, quão raramente somos relembrados de que a declaração que começa a falar sabre a graça e a fé só se completa no décimo versículo, onde somos informados: "Pois somos feitura dele, criados em Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus de antemão preparou para que andássemos nelas".
Esta série foi iniciada ficando ressaltado o fato de que a Palavra de Deus pode ser estudada com base em diversos motivos ou lida com diferentes desígnios, mas que o trecho de II Timóteo 3:16,17 esclarece para o que as Escrituras Sagradas são realmente "proveitosas", a saber, para ensinar, para repreender, para corrigir e para instruir na justiça; e tudo isso para que o homem de Deus "... seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra". Tendo-nos demorado em torno dos ensinamentos bíblicos acerca de Deus, de Cristo, de reprimendas e correções do pecado, de instruções relativas à oração, consideremos agora como esses ensinamentos nos prepararam para "toda boa obra".
Temos nesse ponto um outro critério vital mediante o qual toda a alma honesta, com a ajuda do Espírito Santo, pode verificar se seu estudo e sua leitura da Palavra realmente lhe estão sendo benéficos ou não.
1.Tiramos proveito da Palavra quando aprendemos ali qual é o verdadeiro lugar das boas obras.
"Muitas pessoas, em seu afã de dar apoio à ortodoxia como um sistema, falam sobre a salvação mediante a graça e a fé de tal maneira que subestimam a santidade e a vida consagrada a Deus. Mas as próprias Sagradas Escrituras não dão margem a isso. O mesmo evangelho que declara que a salvação vem pela gratuita graça de Deus, através da fé no sangue de Cristo, e que nos termos mais fortes possíveis assevera que os pecadores são justificados pela justiça do Salvador, lançada na conta daqueles que nEle confiam, independentemente das obras, também nos asseguram que, sem a santificação nenhum homem jamais verá a Deus.
"Também ensinam que os crentes são purificados pelo sangue expiatório de Cristo; que os seus corações são limpos pela fé, a qual opera por intermédio do amor, a qual também vence o mundo; e que a graça divina que oferece a salvação a todos os homens também ensina que aqueles que a recebem devem negar a impiedade e as paixões mundanas, a fim de que vivam sóbria, justa e piedosamente neste mundo.
"E qualquer temor de que a doutrina da graça sofrerá alguma perda, devido a saliência dada às boas obras, com base bíblica, deixa transparecer o conhecimento inadequado e grandemente defeituoso da verdade divina; e qualquer manuseio das verdades bíblicas, a fim de silenciar o testemunho das Escrituras em favor dos frutos da justiça, como algo absolutamente necessário para o crente, é tão-somente uma perversão e uma idéia forjada no tocante à Palavra de Deus" (Alexander Carson).
Mas alguns indagam: "Que força tem essa ordenação ou mandamento de Deus, que nos recomenda as boas obras, se, apesar de não aplicarmos diligentemente nossos esforços para obedecer-lhe, ainda assim formos justificados devido à imputação da justiça de Cristo, e desse modo sermos salvos?" Uma objeção tão sem sentido procede da total ignorância sobre o presente estado e das presentes relações do crente para com Deus. Supor que os corações dos homens regenerados não são tão profunda e eficazmente influenciados pela autoridade e pelos mandamentos divinos, para que se inclinem à obediência, tanto quanto tivessem sido dados para sua justificação, é ignorar a verdadeira natureza da fé, bem como os argumentos e os motivos que afetam e constrangem principalmente aos crentes. Além disso, fazer tal objeção é perder de vista a conexão inseparável que Deus estabeleceu entre a nossa justificação e a nossa santificação. Supor que uma dessas duas verdades pode existir sem a outra é desfazer o evangelho inteiro. O apóstolo Paulo trata exatamente dessa objeção, em Romanos 6:1-3.
2. Tiramos proveito da Palavra quando ali aprendemos a absoluta necessidade das boas obras.
Se por um lado está escrito que "... sem derramamento de sangue não há remissão" (Hebreus 9:22), e que "... sem fé é impossível agradar a Deus... " (Hebreus I1:6), por outro lado a Escritura da Verdade também declara: "Segui a paz com todos, e a santificação, sem a qual ninguém verá o Senhor" (Hebreus 12:14). A vida que os santos desfrutarão nos lugares celestiais será tão-somente o término e a consumação daquela vida que, após terem sido regenerados, viveram nesta terra. A diferença entre essas duas fases não é de tipo, e, sim, apenas uma diferença de grau. "Mas a vereda dos justos é como a luz da aurora que vai brilhando mais e mais até ser dia perfeito (Provérbios 4:18).
Se porventura alguém não tiver andado com Deus neste nível terreno, também não poderá habitar com Deus, lá nas alturas. Se não tiver havido real comunhão com Deus, dentro do tempo, não haverá comunhão com Deus na eternidade. A morte física não produz qualquer transformação vital no coração. É verdade que, no caso dos santos, por ocasião da morte física, os remanescentes do pecado ficarão para sempre deixados para trás, mas nenhuma natureza nova lhes é conferida naquela ocasião. Portanto, se alguém não odiou ao pecado e não amou à santidade, antes da morte, certamente não o fará depois.
Ninguém deseja realmente ir para o inferno, embora poucos sejam verdadeiramente aqueles que estão dispostos a abandonar aquela estrada larga que inevitavelmente termina ali. Todos os homens gostariam de ir para o céu; mas quem, dentre as multidões de cristãos professos, está realmente disposto e resolvido a palmilhar por aquele caminho estreito que é o único que conduz até ali? É neste ponto que podemos discernir o lugar preciso que tem as boas obras, em conexão com a salvação. As boas obras não merecem a salvação; mas estão inseparavelmente ligadas a ela. Não ganham um título de posse dos céus, mas se encontram entre os meios que Deus determinou para que Seu povo chegasse nos lugares celestiais.
Em sentido algum as boas obras são a causa eficiente da vida eterna; mas fazem parte dos meios (tal como são meios a operação do Espírito em nosso interior, o que nos confere o arrependimento, a fé e a atitude de obediência) que levam à vida eterna. Deus determinou o caminho pelo qual devemos andar, a fim de chegarmos à herança que Cristo adquiriu para nós. A vida de obediência diária a Deus é a única forma de vida diária que nos dá real admissão à fruição daquilo que Cristo comprou para o Seu povo – tanto a admissão agora, pela fé, como a admissão por ocasião da morte física, ou como a admissão quando de Sua Vinda, em sua total amplitude.
3. Beneficiamo-nos da Palavra quando ali aprendemos qual é o desígnio das boas obras.
Isso fica perfeitamente esclarecido no trecho de Mateus 5:16: "Assim brilhe também a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem a vosso Pai que está nos céus." É digno de nossa atenção o fato de que essa é a primeira ocorrência dessa expressão, e, conforme geralmente é o caso, a primeira menção de qualquer verdade, nas Escrituras, dá a entender seu escopo e seu uso subsequentes. Nesta altura aprendemos que os discípulos de Cristo precisam autenticar a sua profissão cristã pelo silencioso mas impressionante testemunho de suas vidas (pois a "luz" não faz nenhum ruído ao "iluminar"), a fim de que os homens possam ver (e não ouvir as jactâncias) as boas obras dos crentes; pois é assim que nosso Pai celestial, que está nos céus, pode ser glorificado. Aqui, pois, temos o seu desígnio fundamental – a honra de Deus.
Posto que o conteúdo do trecho de Mateus 5:16 é tão geralmente mal entendido e pervertido, acrescentamos aqui um outro pensamento. Com exagerada freqüência as "boas obras" são confundidas com a própria "luz". Entretanto, são perfeitamente distintas, posto que estejam inseparavelmente vinculadas entre si. A "luz" é o nosso testemunho em favor de Cristo; mas, que valor teria esse testemunho, se a própria vida não o exemplificasse? As "boas obras" não visam a chamar a atenção dos homens para nós mesmos, mas antes, para Aquele (Deus) que as lavrou em nós. E essas boas obras devem revestir-se de tal qualidade e caráter que até mesmo os ímpios reconheçam que elas procedem de alguma fonte superior à natureza humana decaída. Um fruto sobrenatural requer uma raiz sobrenatural; e quando isso é reconhecido, o divino Viticultor é devidamente glorificado.
Igualmente significativa é a última referência às boas obras, existente nas Escrituras: "... mantendo exemplar o vosso procedimento no meio dos gentios, para que, naquilo que falam contra vós outros como de malfeitores, observando-vos em vossas boas obras, glorifiquem a Deus no da visitação" (I Pedro 2:12). Por conseguinte, a primeira e a última menção às "boas obras" frisam o seu desígnio: glorificar a Deus, devido às Suas obras, realizadas por meio de Seu povo, neste mundo.
4. Tiramos proveito da Palavra quando ali aprendemos a verdadeira natureza das boas obras.
Eis alguma coisa sobre o que os indivíduos não regenerados são totalmente ignorantes. A julgar meramente pelas coisas externas, a aquilatar as coisas apenas pelos padrões humanos, aquelas e estes são totalmente incompetentes para determinar quais obras são boas, segundo o pensamento divino, e quais não são boas. Supondo que aquilo que os homens reputam como boas obras também seja aprovado pelo Senhor, ainda assim os homens permanecem nas trevas de seu entendimento embotado pelo pecado; e ninguém pode convencê-los sabre seu erro, enquanto o Espírito Santo não os vivifica para que recebam novidade de vida, arrebatando-os das trevas e trazendo-os para a maravilhosa luz de Deus. Então transparecerá claramente que boas obras são somente aquelas que são realizadas em obediência à vontade de Deus (Romanos 6:16), com base no princípio de amor a Ele (Hebreus 10:24), em nome de Cristo (Colossenses 3:17), visando sempre à glória de Deus por intermédio dEle (I Coríntios 10:31).
A natureza autêntica das "boas obras" foi perfeitamente exemplificada pelo Senhor Jesus. Tudo quanto Ele praticou, fê-lo em obediência a Seu Pai. Cristo "... não Se agradou a Si mesmo..." (Rom. 15:3), mas sempre obedeceu Àquele que O enviara (João 6:38). Por isso mesmo, Cristo pôde dizer: "...Eu faço sempre o que Lhe agrada" (João 8:29). Não havia limites à sujeição de Cristo à vontade do Pai. Ele tornou-Se "... obediente até à morte, e morte de cruz" (Filipenses 2:8).
Por semelhante modo, tudo quanto Cristo fez procedia de Seu amor ao Pai, bem como do amor a Seus semelhantes humanos. De fato, o amor é o cumprimento da lei; sem amor, a anuência à lei nada é senão uma sujeição servil, e isso não pode ser aceito par Aquele que é o próprio Amor. A prova que a obediência de Cristo, em todos os seus aspectos, fluía do amor, se encontra em Suas próprias palavras: "...agrada-me fazer a tua vontade, ó Deus meu..." (Salmo 40:8). E, por igual modo, tudo quanto Cristo fez tinha em vista a glória do Pai. Disse Ele: "Pai, glorifica o teu nome..." (João 12:28). E essas palavras revelam-nos o objetivo que Ele tinha constantemente em mira.
5. Tiramos proveito da Palavra quando ali aprendemos qual é a verdadeira fonte das boas obras.
Os homens não regenerados são capazes de realizar obras que são boas, em sentido natural e civil, embora não em sentido espiritual.
Esses homens podem fazer aquelas coisas que, externamente, no que diz respeito à sua matéria e substância, são boas, como a leitura da Bíblia, o recebimento de instruções bíblicas, a dádiva de esmolas para os pobres, etc.; contudo, o manancial dessas ações, bem com a ausência de motivos realmente piedosos, torna tais obras como trapos de imundícia aos olhos do Deus três vezes santo. Os homens não regenerados não têm a capacidade de realizar obras de forma espiritual, razão por que está escrito: "... não há quem faça o bem, não há nem um sequer..." (Romanos 3:12). De fato, para tais homens isso é simplesmente impossível – eles têm uma natureza que "...não está sujeita à lei de Deus, nem mesmo pode estar" (Romanos 8:7). Por conseguinte, as boas obras dos ímpios são inaceitáveis para Deus. E os próprios crentes não são capazes de ter um bom pensamento ou fazer qualquer boa obra par si mesmos (ver II Coríntios 3:5); porquanto é Deus quem opera neles "...tanto o querer como o realizar, segundo a sua boa vontade" (Filipenses 2:13).
Quando um etíope puder mudar a cor de sua pele, ou o leopardo puder trocar as manchas de seu couro, então também poderão fazer o bem aqueles que estão acostumados a fazer o mal (Jeremias 13:23). É mais fácil os homens esperarem poder colher uvas dos espinheiros ou figos dos abrolhos do que poderem os não regenerados dar bom fruto ou produzir boas obras. É mister que primeiramente sejamos "...criados em Cristo Jesus..." (Efésios 2:10), que o Seu Santo Espírito nos seja outorgado (Gálatas 4:6) e também que a Sua graça seja implantada em nossos corações, (Efésios 4:7 e I Coríntios 15:10), para que tenhamos qualquer capacidade para praticar as boas obras. E mesmo depois dessa experiência, nada poderemos fazer à parte de Cristo (João 15:5). Com grande freqüência, nós, os crentes, temos vontade de fazer coisas boas; mas não sabemos como realizá-las (Romanos 7:18). Isso nos leva a cair de joelhos, implorando para que Deus nos faça "perfeitos para toda boa obra, operando em nós "...o que é agradável diante dEle..." (Hebreus 13:21). Dessa maneira é que somos libertados de nosso senso de auto-suficiência, sendo levados a perceber que todas as nossas fontes se encontram em Deus (Salmos 87:7); e dessa maneira também descobrimos que tudo podemos, mediante Cristo, que nos fortalece (Filipenses 4:13).
6. Tiramos proveito da Palavra quando ali aprendemos qual é a grande importância das boas obras.
Condensando a questão o mais possível, diremos que as "boas obras" se revestem de capital importância porque, por meio delas Deus é glorificado (Mateus 5:16), por meio delas são caladas as bocas daqueles que falam contra nós (I Pedro 2:12), e por meio delas evidenciamos a genuinidade de nossa profissão de fé (Tiago 2:13-17).
É altamente desejável e válido que ornemos "... em todas as coisas a doutrina de Deus, nosso Salvador" (Tito 2 :10). Nada redunda em maior honra para Cristo do que o fato de que aqueles que receberam o Seu nome são encontrados a viver constantemente (devido à força capacitadora dada por Ele) de maneira cristã, no espírito cristão.
Não foi sem razão que o mesmo Espírito que levou o apóstolo a prefaciar sua declaração concernente à vida de Cristo a este mundo, para salvar aos pecadores, com as palavras "Fiel é a palavra...", também o impulsionou para que escrevesse: "Fiel é a palavra...que os que tem crido em Deus sejam solícitos na prática de boas obras" (Tito 3:8). Que todos nós verdadeiramente sejamos zelosos "...de boas obras" (Tito 2:14).
7. Tiramos proveito da Palavra quando ali aprendemos qual é o verdadeiro escopo das boas obras.
Isso é tão amplo que inclui a realização de nossos deveres, em todas as relações em que Deus nos colocou. É deveras interessante e instrutivo observarmos que a primeira "boa obra" (assim descrita nas Santas Escrituras) foi a unção do Salvador por parte de Maria de Betânia (Mateus 26:10 e Marcos 14:6).
Indiferente tanto para com as acusações como para com as aplausos dos homens, tendo olhos somente para o "mais distinguido entre dez mil" (Cantares 5:10), ela derramou abundantemente sobre Ele o seu precioso ungüento. E uma outra mulher, de nome Dorcas (Atos 9:36), também é mencionada como mulher "...notável pelas boas obras... ''
Sim, após a adoração vem o serviço, em que glorificamos a Deus entre os homens e nos tornamos beneficentes para com o próximo.
"... A fim de viverdes de modo digno do Senhor, para o seu inteiro agrado, frutificando em toda boa obra..." (Colossenses 1:10). A criação dos filhos (em que não é preciso arrastá-los à força!), a hospitalidade para com os estrangeiros (espirituais), a lavagem dos pés dos santos (que também indica a ministração a seus confortos temporais) e o alívio dado aos aflitos (I Timóteo 5:10), tudo é considerado como "boas obras".
A menos que nossa leitura e estudo das Escrituras estejam contribuindo para nos tornarmos melhores soldados de Jesus Cristo, melhores cidadãos do país onde vivemos como forasteiro, e melhores membros de nossos lares terrenos (mais gentis, mais bondosos, mais altruístas), ficando assim preparados para "toda boa obra", aquilo de pouco ou nada nos está aproveitando.
AS ESCRITURAS E A OBEDIÊNCIA
Todos os crentes professos estão acordes, pelo menos quanto à teoria em que é dever obrigatório daqueles que trazem o nome de Cristo honrá-Lo e glorificá-Lo neste mundo. Todavia, acerca de como isso deve ser feito, acerca do que Deus exige de nós quanto a essa finalidade, há imensa gama de opiniões. Muitos supõem que honrar a Cristo meramente significa unir-se a alguma "igreja", tomando parte de suas várias atividades e dando-lhes apoio. Outros imaginam que honrar a Cristo significa falar a Seu respeito a outros, ocupando-se diligentemente no "trabalho pessoal de evangelização". Outros parecem sentir que honrar a Cristo significa pouco mais do que fazer contribuições financeiras liberais em benefício de Sua causa.
Poucos, realmente, são os que percebem que Cristo só é honrado quando vivemos santamente para Ele, e isso se andarmos em sujeição à Sua vontade revelada. Poucos são os que verdadeiramente acreditam naquela palavra que diz: "Eis que o obedecer é melhor do que o sacrificar, e o atender melhor do que a gordura de carneiros" (I Samuel 15 :22).
Não seremos crentes, sob hipótese alguma, a menos que nos tenhamos rendido totalmente a Cristo e que tenhamos recebido a Cristo, "... o Senhor... " (Col. 2:6). Queremos instar com o prezado leitor para que pondere diligentemente sobre essa declaração acima. Satanás anda enganando a muitos, hoje em dia, levando-os a suporem que estão confiando na "obra consumada" de Cristo, para salvação de suas almas, ao mesmo tempo que seus corações permanecem inalterados e que o "ego" continua a governar as suas vidas. Ouçamos o que diz a Palavra de Deus: "A salvação está longe dos ímpios, pois não procuram os teus decretos" (Salmos 119:155).
O prezado leitor realmente busca os decretos de Deus? Você pesquisa com diligência a Sua Palavra, para descobrir o que Ele ordenou? "Aquele que diz: Eu o conheço, e não guarda os seus mandamentos, é mentiroso, e nele não está a verdade" (I João 2:4). O que poderia ser mais claro do que isso?
"Por que me chamais, Senhor, Senhor, e não fazeis o que vos mando? " (Lucas 6:46). A obediência ao Senhor na vida diária, e não apenas na forma de palavras ribombantes nos lábios, é o que Cristo exige. Que mensagem perscrutadora e solene é aquela que se acha em Tiago 1:22: "Tornai-vos, pois, praticantes da palavra, e não somente ouvintes, enganando-vos a vós mesmos!" Existem muitos "ouvintes" da Palavra, ouvintes regulares, ouvintes reverentes, ouvintes interessados; mas, infelizmente, aquilo que ouvem não incorporam em suas vidas – a Palavra não guia o seu caminho. E Deus é quem diz que aqueles que não são praticantes da Palavra meramente enganam a si mesmos!
Desafortunadamente, quantos existem assim na Cristandade, nesta nossa época! Não são hipócritas desavergonhados, mas apenas estão iludidos. Supõem os tais que em face de serem tão claros seus conceitos sobre a salvação só pela graça, que eles estão salvos. Supõem, igualmente, que por estarem sob o ministério de um homem que "fez da Bíblia um livro novo" para eles, que já cresceram na graça. Supõem que por terem aumentado o cabedal de seus conhecimentos bíblicos, aumentou também a sua espiritualidade. Supõem que o mero ouvir a um servo de Deus, ou que a mera leitura de seus escritos os alimenta com a Palavra. Nada disso! "Alimentamo-nos" com a Palavra de Deus somente quando nos apropriamos dela pessoalmente, quando mastigamos e assimilamos em nossas vidas aquilo que ouvimos ou lemos: Sempre que a vida não se amolda mais perfeitamente à Palavra de Deus, desde o coração, o conhecimento acrescido somente servirá para agravar a condenação da alma. "Aquele servo, porém, que conheceu a vontade de seu senhor e não se aprontou, nem fez segundo a sua vontade, será punido com muitos açoites" (Lucas 12 :47).
". . .que aprendem sempre e jamais podem chegar ao conhecimento da verdade" (II Timóteo 3:7). Essa é uma das mais proeminentes características dos "tempos perigosos" que atualmente atravessamos. As pessoas ouvem um pregador após outro, vão a esta e aquela conferência, lêem livros e mais livros sobre temas bíblicos, e, no entanto, jamais chegam a ter um conhecimento vital e prático da verdade, de tal modo que o seu poder e eficácia fiquem impressos sobre suas almas. Existe aquilo que poderíamos chamar de hidropisia espiritual, e multidões estão sofrendo desse mal. Quanto mais ouvem, tanto mais desejam ouvir: bebem sermões e discursos com avidez, mas suas vidas em nada se modificam para melhor. Antes, sentem-se orgulhosos de seu conhecimento, e não se humilham no pó diante de Deus. Mas a fé dos eleitos de Deus consiste no "... pleno conhecimento da verdade segundo a piedade.... " (Tito 1:1), ainda que isso seja ignorado pela vasta maioria.
Deus nos deu a Sua Palavra não apenas com o intuito de instruir-nos, mas também com o propósito de orientar-nos – para que soubéssemos o que Ele requer que façamos. A primeira coisa de que precisamos, pois, é do claro e distinto conhecimento de nosso dever; e a primeira coisa que Deus requer de nós é a prática conscienciosa do dever, que corresponda ao nosso conhecimento. "E que é o que o Senhor pede de ti, senão que pratiques a justiça e ames a misericórdia, e andes humildemente com o teu Deus? " (Miquéias 6:8). "De tudo o que se tem ouvido, a suma é: Teme a Deus, e guarda os seus mandamentos; porque isto é o dever de todo homem" (Eclesiastes 12:13). O Senhor Jesus salientou a mesma particularidade, quando disse: "Vós sois meus amigos, se fazeis o que eu vos mando" (João 15:14).
Assim sendo:
1. O indivíduo se beneficia da Palavra ao descobrir quais são as exigências que Deus lhe impõe.
Esses são os Seus mandamentos inalteráveis, pois Deus não sofre sombra de variação. É grave e grande erro supormos que, nesta presente Dispensação Deus rebaixou as Suas exigências, porquanto isso necessariamente implicaria em que Suas exigências anteriores eram severas demais e injustas.
Mas, não é assim! "Por conseguinte, a Lei é santa; e o mandamento, santo e justo e bom" (Romanos 7 :12). A súmula das exigências de Deus é a seguinte : "Amarás, pois, o SENHOR teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, e de toda a tua força" (Deuteronômio 6:5 ). E o Senhor Jesus reiterou esse conceito no trecho de Mateus 22:37. O apóstolo Paulo, por sua vez, reforçou o ponto, quando escreveu: "Se alguém não ama ao Senhor, seja anátema!" (I Coríntios 16:22).
2. O homem tira proveito da Palavra quando descobre quão total e pecaminosamente tem deixado de satisfazer às exigências de Deus.
E apressamo-nos por salientar, para benefício de qualquer pessoa que ponha em dúvida a veracidade daquele último parágrafo, que ninguém pode perceber quão profundamente pecador ele é, quão infinitamente aquém da medida dos padrões de Deus vive ele, enquanto não houver recebido a clara visão das exaltadas exigências que Deus lhe impõe! Na proporção exata em que os pregadores rebaixam os padrões divinos, sobre aquilo que o Senhor requer de todos os seres humanos, nessa mesma proporção os seus ouvintes obterão a idéia inadequada e distorcida de sua própria pecaminosidade, e menos perceberão eles a necessidade que têm do Salvador Todo-poderoso.
Porém, uma vez que uma alma realmente perceba quais são as exigências que Deus lhe faz, e também chegue a perceber que tem deixado completa e constantemente de fazer o que lhe compete, então é que ela reconhece quão desesperadora é a situação em que se encontra. A lei precisa ser ressaltada, antes que alguém esteja pronto para ouvir com proveito o evangelho.
3. Um homem se beneficia da Palavra quando ali aprende que Deus, em Sua infinita graça, providenciou plenamente para que Seu povo cumpra as Suas exigências.
Quanto a esse particular, igualmente, grande parte da pregação de nossos dias envolve defeitos sérios. Atualmente se anuncia aquilo que poderia ser chamado de "meio-evangelho", mas que, na realidade, virtualmente nega o verdadeiro evangelho. Cristo é incluído, mas tão-somente como um contrapeso. Que Cristo satisfez vicariamente a cada exigência que Deus impõe àqueles que crêem é uma bendita verdade; mas isso é apenas metade da verdade. O Senhor Jesus não apenas satisfez, em favor de Seu povo, os requisitos da justiça divina, mas igualmente assegurou que Seus discípulos os satisfariam pessoalmente. Cristo garantiu-nos o Espírito Santo, o qual opera em nós aquilo que o Redentor fez por nós.
O grandioso e glorioso milagre da salvação consiste do fato de que os salvos são regenerados. Há um trabalho de transformação operado neles. Seu entendimento é iluminado, seus corações são modificados e sua vontade é renovada. São feitos "novas criaturas", conforme se aprende em II Coríntios 5:17. Deus tece comentários sobre esse milagre da graça sob os seguintes termos: "Nas suas mentes imprimirei as minhas leis, também sobre os seus corações as inscreverei; e Eu serei o Seu Deus e eles serão o Meu povo" (Hebreus 8:10). A partir daí o coração se inclina para a lei de Deus: certa disposição foi transmitida ao coração que corresponde às exigências da lei; há um desejo sincero de executá-la. Por essa razão também é que a alma vivificada pode dizer: "Ao meu coração me ocorre: Buscai a Minha presença; buscarei, pois, SENHOR, a Tua presença" (Salmo 27:8).
Cristo não apenas prestou obediência perfeita à lei, visando à justificação de Seu povo, que nEle confia, mas também mereceu para eles aqueles suprimentos de Seu Santo Espírito que são essenciais para a santificação deles, e que é a única coisa que pode transformar criaturas carnais, capacitando-as a prestar obediência aceitável a Deus. Embora Cristo tenha morrido a seu tempo pelos "ímpios" (Romanos 5:6), e embora Ele os ache ímpios (Romanos 4:5), contudo, quando os justifica, não os abandona nesse estado abominável. Pelo contrário, ensina-lhes com eficácia, pelo Seu Espírito, a negarem a impiedade e as paixões mundanas (ver Tito 2:12). Assim como não se pode separar uma pedra de seu próprio peso, e nem o fogo ser separado de seu calor, assim também não se pode separar a justificação da santificação.
Quando Deus realmente perdoa a um pecador, no tribunal de sua consciência, e sob o senso daquela graça admirável, o coração é purificado, a vida é retificada e o indivíduo inteiro é santificado. "...Cristo Jesus ... a Si mesmo se deu por nós, a fim de remir-nos de toda iniqüidade, e purificar para si mesmo um povo exclusivamente Seu, (não descuidado e indiferente, mas) zeloso de boas obras" (Tito 2:14). Tal como uma substância é inseparável de suas propriedades, ou como as causas e seus efeitos necessários não se podem separar, assim também a fé salvadora e a obediência consciente a Deus são inseparáveis. Por isso mesmo é que lemos acerca da "...obediência por fé...", em Romanos 16:26.
O Senhor Jesus disse de certa feita: "Aquele que tem os Meus mandamentos e os guarda, esse é o que me ama..." (João 14:21). Nem no Antigo Testamento, nem nos Evangelhos e nem nas Epístolas Deus reconhece que alguém O ama, exceto aqueles que observa as Suas ordens. Pois o amor inclui algo mais que meros sentimentos e emoções; antes, é um princípio em ação, que se expressa em algo mais do que melosas expressões de afeto, já que se manifesta por meio de atos que agradam ao objeto amado. "Porque este é o amor de Deus, que guardemos os seus mandamentos..." (I João 5:3).
Oh, meu prezado amigo, você estará se enganando a si mesmo se pensa que ama a Deus, mas, no entanto, não tem o profundo desejo de obedecer ao Senhor e nem faz qualquer esforço real de andar obedientemente perante Ele!
Porém, do que consiste a obediência a Deus? Consiste em muito mais do que na realização mecânica de certos deveres. Talvez eu tenha sido criado por pais crentes, e sob a educação dada por eles tenha adquirido certos hábitos morais; no entanto, minha abstenção de não tomar o nome do Senhor em vão e de não furtar, pode não ser devido à minha obediência consciente ao terceiro e ao oitavo mandamentos. Pois, uma vez mais dizemos que a obediência a Deus consiste de muito mais do que nos amoldarmos à conduta normal de Seu povo.
Talvez eu esteja em um lar onde o descanso semanal é estritamente observado; e então, por motivo de respeito aos demais, ou então porque eu penso que é bom e sábio descansar nesse dia, talvez eu me refreie de todo o labor desnecessário naquele dia; mas nem por isso estarei observando o quarto mandamento, de modo algum! Pois a obediência não consiste apenas da sujeição a algum preceito externo, mas consiste em render eu a minha vontade à autoridade de outrem.
Por conseguinte, a obediência a Deus depende do reconhecimento, vindo do coração, de que Deus é o Senhor, de que Ele tem o direito de determinar, e de que o meu dever é anuir. Obedecer é sujeitar totalmente a alma ao jugo bendito de Cristo. Aquela forma de obediência que Deus requer só pode proceder de um coração que O ama. "Tudo quanto fizerdes, fazei-o de todo o coração, como para o Senhor, e não para homens..." (Colossenses 3 :23).
A obediência que se origina do temor do castigo é uma obediência servil. Aquela obediência prestada a fim de obter favores da parte de Deus é egoísta e carnal. Mas a obediência espiritual e aceitável é prestada com alegria: trata-se da livre reação favorável do coração agradecido pela consideração e pelo amor desmerecidos de Deus por nós.
4. Tiramos proveito da Palavra quando percebemos que não somente temos o dever obrigatório de obedecer a Deus, mas também quando em nós se cria o amor pelos Seus mandamentos.
O homem "bem-aventurado" é aquele cujo prazer "...está na lei do SENHOR..." (Salmo 1:2). E noutra passagem lemos: "Bem-aventurado o homem que teme ao SENHOR, e se compraz nos seus mandamentos" (Salmo 112:1). Nossos corações são verdadeiramente provados quando enfrentamos com honestidade a seguinte pergunta: Dou realmente valor aos "mandamentos" de Deus, tanto quanto dou valor às Suas promessas? E não deve ser essa a minha atitude? Não há o que duvidar de que assim deva ser, pois tanto uma coisa como a outra verdadeiramente procedem do Seu amor. A anuência do coração, ante a voz de Cristo é o fundamento de toda a santidade prática.
Neste ponto desejamos também rogar intensa e amorosamente ao prezado leitor que dê toda a atenção a este detalhe. Todo o indivíduo que se considera salvo, mas que não tem amor genuíno pelos mandamentos de Deus, na realidade está se iludindo a si mesmo. Declarou o salmista: "Quanto amo a tua Lei!" (Sal. 119:97). E novamente: "Amo os teus mandamentos mais do que o ouro, mais do que o ouro refinado" (Sal. 119:127).
E se porventura alguém objetar que assim acontecia durante o tempo do Antigo Testamento, então lhe perguntamos: ''Supõe o amigo que o Espírito de Jesus produz uma transformação inferior, nos corações daqueles que Ele agora regenera, à que fazia nos corações dos antigos crentes?" Na verdade, um santo do Novo Testamento registrou: "...no tocante ao homem interior, tenho prazer na lei de Deus" (Romanos 7:22). Ora, meu prezado leitor, a menos que o seu coração se deleite na "lei de Deus", algo de radicalmente errado estará ocorrendo consigo; sim, é realmente de temer-se que você esteja espiritualmente morto.
5. Um homem tira proveito da Palavra quando o seu coração e a sua vontade cedem diante de todos os mandamentos de Deus.
A obediência parcial nem pode ser reputada como obediência. A mente santa declina do tudo aquilo que é proibido por Deus, e prefere praticar o que Ele requer, sem fazer qualquer exceção. Se as nossas mentes não se submetem a Deus, em todos os Seus mandamentos, então é que não nos submetemos à Sua autoridade em qualquer coisa que Ele nos determina. Se não aprovamos a totalidade de nossos deveres cristãos, de todo o coração, então estaremos grandemente equivocados se imaginarmos que temos qualquer prazer com qualquer porção dos mesmos. O indivíduo que não possui em si mesmo qualquer princípio de santidade, ainda assim pode sentir repulsa por muitos vícios e ser praticante de muitas virtudes, pois percebe que os primeiros não são atos apropriados e que estas últimas, por si mesmas, são ações convenientes; todavia, a sua desaprovação aos vícios e a sua aprovação às virtudes não se originarão de qualquer disposição de submeter-se à vontade de Deus.
A verdadeira obediência espiritual é imparcial. O coração renovado não seleciona e nem escolhe entre os mandamentos de Deus: o indivíduo que age dessa maneira não procura cumprir a vontade de Deus, mas a sua própria. Não nos equivoquemos quanto a esse particular – se não desejamos sinceramente agradar a Deus em todas as coisas, então na realidade não desejamos agradá-Lo em qualquer coisa.
Precisamos renegar ao próprio "eu"; não renegar meramente algumas das coisas que antes desejáramos, mas ao próprio "eu"! Se permitirmos voluntariamente a presença de qualquer pecado conhecido, isso quebrará a lei inteira, conforme nos define a passagem de Tiago 2:10,11. "Então não terei de que me envergonhar, quando considerar em todos os teus mandamentos" (Salmo 119:6). Declarou o Senhor Jesus: "Vós sois meus amigos, se fazeis o que Eu vos mando" (João 15:14). Ora, se porventura eu não for amigo de Cristo, então terei de ser Seu inimigo, porquanto não há uma terceira alternativa (ver Lucas 19:27).
6. Tiramos proveito da Palavra quando nossa alma é impelida a orar intensamente pedindo a graça capacitadora.
Quando da regeneração, o Espírito Santo nos transmite uma tendência que se inclina para a obediência de acordo com a Palavra de Deus. O coração ó conquistado por Deus. Há um novo e profundo desejo de agradar ao Senhor. Mas a nova inclinação não possui qualquer poder inerente a si mesma, e a velha natureza, também chamada de "carne", se esforça contra ela, sem falarmos nas oposições do diabo. Por isso é que o crente pode exclamar: "...o querer o bem está em mim; não, porém o efetuá-lo" (Romanos 7:18).
Isso não significa que o crente seja escravo do pecado, conforme era antes de sua conversão, mas significa que agora ele não sabe como cumprir plenamente as suas aspirações espirituais. Por essa razão é que ora: "Guia-me pela vereda dos Teus mandamentos, pois nela me comprazo" (Salmos 119:35). E novamente: "Firma os meus passos na tua Palavra; e não me domine iniqüidade alguma" (Salmo 119:133).
Nesta altura, poderíamos replicar a uma objeção que as declarações feitas acima mui provavelmente levantaram em muitas mentes: O pregador está afirmando que Deus requer perfeita obediência de nossa parte, nesta vida? E a nossa resposta é: Sim! Deus nunca Se satisfará com qualquer padrão inferior a esse (I Pedro 1:15). Nesse caso, o verdadeiro crente está à altura desse elevadíssimo padrão? Sim e não! Sim, em meu coração; e é para o coração que Deus olha (I Samuel 16:7). No seu coração, cada pessoa regenerada tem verdadeiro amor pelos mandamentos de Deus, e deseja genuinamente observar a todos eles, completamente. É nesse sentido, mas somente nesse, que o crente é experimentalmente "perfeito''. A palavra "perfeito", tanto no Antigo Testamento (Jó 1:1 e Salmos 37:37) como no Novo Testamento (Filipenses 3:15), quer dizer "reto", "sincero", em contraste com "hipócrita".
"Tens ouvido, SENHOR, o desejo dos humildes; tu lhes fortalecerás o coração e lhes acudirás" (Salmos 10:17). Os "desejos" dos santos são a linguagem de sua alma; e a promessa divina, feita a eles, é a seguinte: "Ele acode à vontade dos que o temem; atende-lhes ao clamor e os salva" (Salmos 145:19). O desejo do crente é obedecer a Deus em todas as coisas, conformar-se inteiramente à imagem de Cristo. Mas isso só se concretizará quando por ocasião da ressurreição. Entrementes, por amor a Cristo, Deus aceita graciosamente a vontade dos crentes, em lugar de seus feitos não realizados (I Pedro 2:5). Deus conhece os nossos corações e vê nos Seus filhos um amor genuíno e o desejo sincero de observar todos os Seus mandamentos; e aceita os anelos fervorosos e o esforço cordial, em lugar de uma realização exata (II Coríntios 8:12).
Porém, que todo aquele que vive em desobediência voluntária não extraia desse fato uma paz falsa e perversa, porquanto isso contribuiria somente para a sua própria destruição, ao passo que serve para o consolo daqueles que, de todo o coração, desejam cumprir a vontade de Deus, agradando-O em todos os detalhes de suas vidas.
E se alguém indagar: "Como é que saberei que os meus desejos realmente são os desejos de uma alma regenerada?", nossa resposta será: A graça da salvação transmite ao coração uma disposição habitual na direção de atos santos. Os "desejos" do leitor devem ser testados como segue: São eles constantes e contínuos, ou obedecem a impulsos e interrupções? São eles intensos e sérios, de tal modo, que têm fome e sede de justiça (Mateus 5:6) e "suspira" pelo Deus vivo (Salmo 42:1)? Esses desejos são operantes e eficazes? Muitos desejam escapar do inferno; mas seus desejos não são suficientemente fortes para que abominem aos seus pecados, abandonando-os, os quais, inevitavelmente, os conduzirão ao inferno, a saber, os pecados voluntários contra Deus.
Muitos desejam escapar do inferno; mas seus desejos não são suficientemente fortes para que abominem aos seus pecados, abandonando-os, os quais, inevitavelmente, os conduzirão ao inferno, a saber, os pecados voluntários contra Deus. Muitos outros desejam ir para os céus, mas não intensamente que entrem naquele "caminho estreito" e por ele sigam, sendo esse o único caminho que conduz aos lugares celestiais. Os autênticos "desejos" espirituais usam os meios da graça e não poupam esforços por obter a concretização deles, mas pressionam continuamente, sob oração, na direção do alvo proposto.
7. Tiramos proveito da Palavra quando, desde agora, já desfrutamos da recompensa da obediência.
"A piedade para tudo é proveitosa..." (I Timóteo 4:8). É por intermédio da obediência à Palavra que purificamos as nossas próprias almas (I Pedro 1:21). É por meio da obediência que obtemos a atenção dos ouvidos de Deus (I João 3:22). Por outro lado, a desobediência é uma barreira para as nossas orações (Isaías 59:2 e Jeremias 5:25). Através da obediência obtemos preciosas e íntimas manifestações de Cristo para a nossa alma (João 14:21). Se estivermos palmilhando a senda da sabedoria (em completa sujeição a Deus), então descobriremos que "Os seus caminhos são caminhos deliciosos, e todas as suas veredas paz" (Provérbios 3:17). "...os Seus mandamentos não são penosos" (I João 5 :3). ''Muita paz tem os que guardam a Tua lei'' (Salmo 119:165) e "...em os guardar há grande recompensa" (Salmos 19:11).
AS ESCRITURAS E O MUNDO
Não é pouco o que está escrito no Novo Testamento, ao crente, acerca do "mundo" e da atitude que os crentes devem ter para com o mundo. Sua natureza real é claramente definida; e o crente é solenemente advertido a seu respeito. A santa Palavra de Deus é qual lâmpada descida dos céus, que brilha em "... lugar tenebroso..." (II Pedro 1:19). Os seus raios divinos exibem as coisas segundo as suas verdadeiras cores, penetrando profundamente e desmascarando o falso verniz e encanto de que muitas coisas estão envoltas. Aquele mundo, em favor do qual tanto labor é dedicado e tanto dinheiro é gasto, e que é tão altamente exaltado e admirado por seus ingênuos e fascinados habitantes, declaradamente se encontra em "inimizade contra Deus". Por esse motivo, os filhos de Deus são proibidos de se deixarem "amoldar" a este mundo, ou mesmo de fixarem nele os seus afetos.
A presente fase de nosso tema de forma alguma é o aspecto menos importante dentre aqueles que nos temos proposto a considerar; e o leitor sério fará bem se buscar a graça divina para poder aquilatar-se por meio desse critério. Uma das exortações que Deus dirige a Seus filhos diz como segue: "... desejai ardentemente, como crianças recém-nascidas, o genuíno leite espiritual, para que por ele vos seja dado crescimento para salvação" (II Pedro 2:2). E convém que cada um deles se examine, honesta e diligentemente, a fim de descobrir se isso ocorre em Seu caso ou não.
Por semelhante modo, não nos devemos contentar com o mero aumento do conhecimento intelectual sobre as Escrituras – pois aquilo que mais necessitamos buscar é o nosso desenvolvimento prático, a nossa conformação experimental com a imagem de Cristo. E um dos pontos onde nos podemos submeter a teste é o seguinte: A leitura e o estudo que faço da Bíblia me estão tornando menos mundano?
1. Estamos tirando proveito da Palavra quando os nossos olhos são abertos para discernir o verdadeiro caráter do mundo.
Certo poeta escreveu: "Deus está nos céus – tudo vai bem com o mundo". De certo ângulo, isso é uma bendita verdade; mas, de outro ponto de vista, é um conceito que peca pela base, porquanto "o mundo inteiro jaz no maligno" (I João 5 :19). Porém, somente quando o coração humano é sobrenaturalmente iluminado, pelo Espírito Santo, que se vê capacitado a perceber que aquilo que é altamente considerado entre os homens, na realidade é "abominação diante de Deus" (Lucas 16:15). Muito agradecidos devemos sentir-nos quando nossa própria alma é capaz de ver que o "mundo" é uma fraude gigantesca, uma ninhada oca, uma coisa vil, que algum dia será consumida nas chamas.
Antes de prosseguirmos, convém que definamos o "mundo" que ao crente é vedado amar. Existem poucas palavras, encontradas nas páginas das Santas Escrituras, usadas com mais ampla variedade de sentidos do que esta. No entanto, a atenção cuidadosa ao contexto usualmente basta para determinar o seu escopo. O "mundo" é um sistema ou ordem de coisas, completo em si mesmo. Nenhum elemento estranho pode ali intrometer-se; e ainda que o faça, não demora a ser assimilado ou tem de sofrer certa acomodação. O "mundo" consiste da natureza decaída, que se manifesta no seio da família humana, amoldando o arcabouço da sociedade humana de conformidade com as suas próprias tendências. É o reino organizado da "mente carnal" que se encontra em "inimizade contra Deus", e essa mente, ou seu pendor "... não está sujeito à lei de Deus, nem mesmo pode estar" (Romanos 8:7). Onde quer que se manifeste a "mente carnal", aí está igualmente o "mundo". Portanto, o mundanismo é o mundo sem Deus.
2. Tiramos proveito da Palavra quando aprendemos que o mundo é um inimigo ao qual devemos resistir e vencer.
Ao crente é ordenado combater o "...bom combate da fé..." (I Timóteo 6:12), o que subentende que há adversários a ser enfrentados e derrotados. Tal como existe a Santa Trindade – o Pai, o Filho e o Espírito Santo – assim também há uma maléfica trindade a carne, o mundo e o diabo. O filho de Deus é chamado a entrar em combate mortal contra essa trindade maléfica; e dizemos "mortal" porque ou o crente obtém a vitória sobre esses três adversários, ou é destruído por eles. Portanto, meu prezado leitor, ponha na sua mente que o mundo é um inimigo mortífero; e, se você não o vencer no seu coração, então é que não é filho de Deus, porquanto está escrito: "...tudo o que é nascido de Deus vence o mundo.'' (l João 5:4).
Dentre muitas outras razões, poderíamos apresentar as seguintes, que mostram por que o mundo deve ser "vencido". Em primeiro lugar, todos os seus objetos tendem a desviar a nossa atenção, alienando da de Deus as afeições da alma. Assim é necessário que seja, porquanto a tendência das coisas visíveis é desviar-nos o coração das realidades invisíveis. Em segundo lugar, o espírito do mundo é diametralmente contrário ao Espírito de Cristo; por isso mesmo é que o apóstolo escreveu: "Ora, nós não temos recebido o espírito do mundo, e, sim, o Espírito que vem de Deus..." (I Coríntios 2:12). O Filho de Deus veio a este mundo, mas "...o mundo não O conheceu..." (João 1:10). E, por esse motivo, os seus "poderosos" e governantes O crucificaram (I Coríntios 2:8). Em terceiro lugar, as preocupações e cuidados do mundo são hostis para com uma vida devota e celestial. Os crentes, tal como o resto da humanidade, têm por dever trabalhar seis dias na semana; porém, estando assim atarefados, precisam estar constantemente de sobreaviso, a fim de que interesses cobiçosos não venham governá-los, ao invés de serem dirigidos pelo senso do cumprimento do dever.
"E esta é a vitória que vence o mundo, a nossa fé" (1 João 5:4). Nada, senão a fé conferida por Deus, pode vencer ao mundo. Porém, assim como o coração se ocupa com realidades invisíveis e eternas, assim também vai sendo libertado da influência corruptora dos objetos mundanos. Os olhos da fé discernem aquilo que fere os sentidos físicos em suas verdadeiras cores, percebendo que as coisas terrenas são vazias e vãs, que não são dignas de comparação com os grandes e gloriosos objetivos da eternidade. O senso das perfeições e da presença de Deus faz o mundo parecer menos do que nada. Quando o crente vê que o divino Redentor morreu pelos seus pecados, vivendo para interceder pela sua perseverança, bem como para manobrar os acontecimentos, com vistas à sua salvação final, exclama: "Ninguém há na terra que eu deseje além de ti, ó Senhor!"
E como se dá no seu caso, prezado leitor, enquanto ouve essas considerações? Talvez você concorde cordialmente com o que acabamos de dizer. Mas, na realidade, como as coisas correm em sua experiência? Você pratica as coisas que os homens não regenerados tanto apreciam, qual pessoa enfeitiçada? Basta que se tire do indivíduo mundano aquilo em que ele se deleita, para que se sinta um miserável. E isso também sucede no seu caso? Ou a sua alegria e satisfação presentes se encontram em objetos que jamais poderão ser-lhe arrebatados?
E não cuide o prezado leitor que essas coisas são destituídas de importância, rogamos-lhe; antes, que pondere seriamente sobre elas, na presença de Deus. A resposta honesta, apresentada a essas perguntas, servirá de índice para que perceba se está sendo enganado ou não ao pensar que é uma "nova criatura" em Cristo Jesus.
3. Tiramos proveito da Palavra quando aprendemos que Cristo morreu a fim de livrar-nos "deste mundo perverso" (Gálatas 1:4).
O Filho de Deus veio a este mundo não somente com o fito de "cumprir" os requisitos da lei mosaica (Mateus 5:17), de "destruir as obras do diabo" (I João 3:8), de livrar-nos "da ira vindoura" (I Tessalonicenses 1:10) e de salvar-nos dos nossos pecados (Mateus 1:21), mas também veio a fim de livrar-nos da servidão a este mundo, liberando-nos a alma de suas influências enfeitiçadoras.
Isso foi prefigurado na antigüidade, quando das relações entre Deus e o povo de Israel. Os israelitas tinham sido escravos no Egito; e o "Egito" é um dos símbolos deste mundo. Ali se encontravam em servidão cruel, passando todo o tempo a fazer tijolos para Faraó. Eram incapazes de libertar-se. Mas o Senhor, em seu grande poder, os emancipou e os tirou da "fornalha de ferro". Outro tanto faz Cristo em favor dos que Lhe pertencem. Também interrompe o poder que o mundo tem de atrair seus corações. Torna-os independentes do mundo, de tal maneira que nem cortejam os seus favores e nem temem as suas ameaças.
Cristo deu-Se como sacrifício pelos pecados de Seu povo a fim de que, em conseqüência disso, sejam eles libertados do poder condenatório e das influências dominadoras de todos os males que existem neste mundo: de Satanás, que é o seu príncipe; das concupiscências que ali predominam; das conversas tolas dos mundanos. E o Espírito Santo, por habitar nos santos, coopera com Cristo nessa obra bendita. Ele desvia seus pensamentos e afetos para longe das coisas terrenas, para que se fixem nas realidades celestiais. Devido à operação de Seu poder, Ele os livra da influência desmoralizadora que os circunda, amoldando-os aos padrões celestiais.
E à medida que o crente vai crescendo na graça, vai reconhecendo esse fato mais e mais, agindo de conformidade com esse reconhecimento. E assim o crente busca libertação ainda mais completa deste "presente mundo mau", implorando a Deus que o livre totalmente do mesmo. E assim, aquilo que antes o atraía, agora lhe causa náuseas. Anela pelo momento em que será tirado deste palco terrestre, onde o seu bendito Senhor foi tão vilmente desonrado.
4. Somos beneficiados com o uso da Palavra quando nossos corações são desligados do mundo.
"Não ameis o mundo nem as cousas que há no mundo." (I João 2:15). "O que a pedra de tropeço é para o pedestre, no caminho, o que a carga é para o fundista e os ramos de folhas para o pássaro em seu vôo, assim também é o amor ao mundo para o crente, em seu curso – ou desviando-lhe completamente a atenção desse curso, porque o fascina, ou forçando-o a desviar-se do mesmo" (Nathaniel Hardy, 1660). A verdade é que enquanto o coração não for expurgado de suas corrupções, o ouvido será surdo para com as instruções divinas. Enquanto não formos elevados acima das coisas pertencentes ao tempo e aos sentidos físicos, também não seremos levados a obedecer a Deus. As verdades celestiais escapam da mente carnal como a água escorre de qualquer corpo esférico sobre o qual caia.
O mundo voltou as costas para Cristo; e embora o Seu nome seja professado em muitíssimos lugares, nada quer ter a ver com Ele. Todos os desejos e desígnios dos indivíduos mundanos visam à satisfação do próprio "eu". Que esses alvos e inquirições sejam tão variados quanto o queiram tais homens, o fato é que o próprio "eu" reina supremamente, e tudo tem por escopo agradar ao próprio "eu". Ora, os crentes se encontram no mundo, não podendo sair dele; precisam viver o tempo que o Senhor lhes determinou. E, estando aqui, têm de ganhar o próprio sustento e de cuidar de seus familiares, além de darem a devida atenção às suas atividades profissionais. No entanto, aos crentes é proibido amarem ao mundo, porquanto este não pode torná-los felizes. Seu "tesouro" e sua "porção" se encontram algures.
O mundo mostra-se atraente para cada instinto do homem decaído. Contém mil e um objetos que o encantam – esses objetos atraem a sua atenção, a atenção cria o desejo e o amor por esses objetos, e, de maneira insensível mas segura, vão fazendo impressões cada vez mais profundas em seu coração. O mundo exerce a mesma influência fatal sobre todas as classes de homens. Porém, por mais sedutores e atraentes que sejam seus variados objetos, todos os interesses e prazeres do mundo têm por intuito promover a felicidade somente nesta vida, para isso estando adaptados – pelo que também foi feita a indagação: "Pois, que aproveitará o homem se ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma? " (Mateus 16:26).
Os crentes são ensinados pelo Espírito Santo, e através da apresentação que Ele nos faz de Cristo, à nossa alma, os nossos pensamentos se desviam para longe do mundo. Tal como uma criancinha abandona um objeto sujo qualquer, quando algo mais agradável lhe é oferecido, assim também o coração que se acha em comunhão com Deus, dirá: "Considero tudo como perda, por causa da sublimidade do conhecimento de Cristo Jesus meu Senhor... e as considero como refugo, para ganhar a Cristo" (Filipenses 3:8).
5. Beneficiamo-nos da Palavra quando andamos separados do mundo.
"Não compreendeis que a amizade do mundo é inimiga de Deus? Aquele, pois, que quiser ser amigo do mundo constitui-se inimigo de Deus" (Tiago 4:4). Um versículo como esse deveria ser capaz de sondar-nos de um lado a outro, fazendo-nos estremecer. Como posso confraternizar com aquilo ou buscar o meu prazer naquilo que condenou o Filho de Deus? Se porventura eu vier a assim fazê-lo, de imediato serei identificado como um dos seus inimigos. Oh, meu prezado leitor, não se equivoque quanto a esse particular. Está escrito: "Se alguém amar o mundo, o amor do Pai não está nele" (I João 2:15).
Desde os dias antigos foi dito acerca do povo de Deus que eles seriam um "...povo que habita só..." (Números 23:9). Não há que duvidar que a disparidade de caráter e de conduta, de desejos e de alvos, que distingue os regenerados dos não regenerados deve ser um fator que os conserva separados uns dos outros. Nós, que professamos ser cidadãos de um outro mundo, que nos reputamos orientados por outro Espírito, que nos consideramos dirigidos por outra regra, que nos imaginamos como quem viaja para outro país, não podemos andar de braços dados com aqueles que desprezam essas realidades!
Por conseguinte, que todas as coisas, em nós e ao nosso derredor, exibam o caráter de peregrinos crentes. Sempre seremos: "...homens de presságio...", ou seja, de significância (Zacarias 3:8); e isso porque não nos amoldamos a este mundo (Romanos 12:2).
6. Tiramos proveito da Palavra quando despertamos contra nós o ódio do mundo.
Quanto esforço este mundo envida para salvar as aparências e para conservar um estado bom e decente! Suas convenções e civilidades, suas cortesias e caridades, são outros tantos artifícios que lhe emprestam certo ar de respeitabilidade. Por semelhante modo, seus templos e catedrais, seus sacerdotes e prelados são necessários para encobrir as corrupções que fervilham logo abaixo da superfície. E, como contrapeso, o "cristianismo" é acrescentado, ao passo que o nome de Cristo é proferido com os lábios por milhares e milhares de pessoas que nunca aceitaram o seu "jugo". A respeito dessas pessoas, declara o Senhor Deus: "Este povo honra-me com os lábios, mas o seu coração está longe de mim" (Mat.15:8).
E qual deve ser a atitude de todos os verdadeiros crentes em relação a isso? A resposta, dada pelas Sagradas Escrituras, é perfeitamente clara: "Foge também destes" (II Timóteo 3:5). "...retirai-vos do meio deles, separai-vos, diz o Senhor..." (II Coríntios 6:17). E qual será o resultado, quando essas ordens bíblicas são atendidas? Ora, é então que provaremos o sabor da veracidade daquelas palavras de Cristo: "Se vós fôsseis do mundo, o mundo amaria o que era seu; como, todavia, não sois do mundo, pelo contrário dele vos escolhi, por isso o mundo vos odeia" (João 15:19). Qual "mundo" está especificamente em foco aqui? Que o versículo prévio o responda: "Se o mundo vos odeia, sabei que, primeiro do que a vós outros, Me odiou a mim" (João 15:18). Ora, qual foi o "mundo" que odiou a Cristo e o condenou à morte? Foi o mundo religioso, aqueles que fingiam ser os elementos mais zelosos em prol da glória de Deus. Assim também acontece até hoje. Que o crente volte as costas para a cristandade que desonra a Cristo, e os seus adversários mais ferozes e mais incansáveis e inescrupulosos serão aqueles que se afirmam cristãos! Porém, "Bem-aventurados sois quando, por Minha causa, vos injuriarem e vos perseguirem... Regozijai-vos e exultai, porque é grande o vosso galardão nos céus..." (Mateus 5:11,12).
Ah, meu prezado irmão, é um bom e claro sinal, é marca segura de que você está tirando proveito da Palavra de Deus, quando o mundo dos religiosos passa a odiá-lo. Mas, por outro lado, se você ainda goza de boa reputação nas "igrejas" ou "assembléias", isso é motivo grave para temer que continua amando mais o louvor dos homens do que a aprovação divina!
7. Tiramos proveito da Palavra quando somos elevados acima do mundo.
Antes de tudo, acima de seus costumes e de suas modas. Os indivíduos mundanos são verdadeiros escravos dos hábitos e estilos que prevalecem em seus dias. Mas isso não acontece com aquele que anda com Deus – pois a sua principal preocupação é "conformar-se com a imagem do Filho de Deus".
Em segundo lugar, somos elevados acima dos cuidados e das tristezas do mundo. Foi dito acerca dos antigos santos que eles aceitavam de bom grado o espólio de seus bens, sabendo que nos céus, tinham "...patrimônio superior e durável" (Hebreus 10:34).
Em terceiro lugar, quando somos elevados acima das tentações exercidas pelo mundo – que atração têm o brilho e o resplendor do mundo para aqueles que se deleitam no Senhor? Nenhuma!
Em quarto lugar, quando somos elevados acima de suas opiniões e aprovações. Você já aprendeu a ser independente e a desafiar o mundo? Se todo o seu coração está resolvido a agradar a Deus, então nunca se preocupará com a desaprovação dos ímpios.
Ora, meu prezado leitor, você deseja verdadeiramente aquilatar-se de acordo com o conteúdo desta mensagem? Então procure dar respostas honestas às seguintes perguntas:
Primeiramente, quais são os seus objetivos, na mente, em períodos de recreação? Sobre o que se ocupam os seus pensamentos, antes de tudo?
Em segundo lugar, quais são os objetos de sua preferência? Quando você resolve como passar uma tarde ou um domingo à tarde, o que seleciona?
Em terceiro lugar, quais destas duas coisas você mais lamenta: a perda de bens materiais, ou a falta de comunhão com Deus? O que lhe causa maior pesar (ou enfado), a derrocada dos seus planos ou a frieza de seu coração para com Cristo?
Em quarto lugar, qual é o seu tópico favorito de conversação? Você fica debatendo sobre as novidades do dia, ou prefere encontrar-se com aqueles que falam sobre Aquele que é "inteiramente amável"?
Em quinto lugar, as suas "boas intenções" passam a ser cumpridas, ou elas são apenas sonhos vazios de determinação? Você está gastando mais tempo ou menos tempo do que antes, de joelhos? A Palavra de Deus parece mais doce ao seu paladar, ou sua alma perdeu o gosto para ela?
AS ESCRITURAS E AS PROMESSAS
As promessas divinas tornam conhecido o beneplácito da vontade de Deus relativamente a Seu povo, de que queria derramar sobre eles as riquezas de Sua graça. Essas promessas são os testemunhos externos do seu coração, o qual, desde toda a eternidade os ama e determinou previamente todas as coisas em favor deles e acerca deles. Na pessoa e na obra realizada por Seu Filho, Deus estabeleceu uma provisão toda-suficiente para a completa salvação deles, tanto quanto ao tempo como quanto à eternidade. Com a finalidade de que Seus remidos tivessem um conhecimento autêntico, claro e espiritual, dessa provisão, pareceu bem ao Senhor apresentá-la dentro das grandes e preciosíssimas promessas que se encontram dispersas por todas as Escrituras Sagradas, como outras tantas estrelas, no glorioso firmamento da graça divina. E, através delas, podem eles ficar certos da vontade de Deus, em Cristo Jesus, a respeito deles, abrigando-se em Cristo qual seu santuário, para que, por esse intermédio, gozem de real comunhão com Deus, em Sua graça e misericórdia, a todo o tempo, sem importar quais sejam o seu caso e as suas circunstâncias.
As promessas divinas são outras tantas declarações de que Deus nos propiciará algum bem ou removerá algum mal. Nesse sentido, elas tornam conhecido e manifestam o amor de Deus a Seu povo, da maneira mais abençoada possível. Há três passos vinculados ao amor de Deus: Primeiro, há o Seu propósito íntimo de exercê-lo; por fim, há a real execução desse propósito; mas, entre uma e outra coisa há o desvendamento gracioso desse propósito aos Seus beneficiários.
Enquanto o amor conservar-se oculto, não poderemos ser consolados pelo mesmo. Ora, Deus, que é "amor", não somente ama aos que Lhe pertencem, e não somente mostrará plenamente o Seu amor a eles, no tempo devido, mas também, nesse ínterim, conserva-os informados acerca dos Seus benévolos desígnios, a fim de que possam descansar docemente em Seu amor, dependendo confortavelmente de Suas firmes promessas. Por esse motivo é que somos capacitados a dizer: "Que preciosos para mim, SENHOR, são os teus pensamentos! E como é grande a soma deles!" (Salmo 139:17).
Na passagem de II Pedro 1:4, as promessas divinas são referidas como "...preciosas e mui grandes..." Conforme Spurgeon salientou, "...a grandiosidade e a preciosidade dificilmente andam juntas; mas, no presente caso, acham-se unidas de forma admirável". Quando o Senhor acha por bem abrir a Sua boca, revelando Seu coração, fá-lo de maneira digna de Si mesmo, com palavras de poder e riqueza superlativos. Citando novamente aquele amado pastor londrino: "Procedem de um grande Deus, dirigem-se a grandes pecadores, operam em nosso favor grandes resultados, e abordam grandes questões". E apesar de que o intelecto natural é capaz de perceber muito dessa grandeza, somente o coração renovado pode sentir o gosto de suas inefáveis promessas, dizendo, juntamente com Davi: "Quão doces são as tuas palavras ao meu paladar! mais do que o mel à minha boca" (Salmo 119:103).
1. Tiramos real proveito da Palavra quando percebemos a quem pertencem as promessas.
Essas promessas foram postas à disposição exclusivamente daqueles que estão em Cristo. "Porque quantas são as promessas de Deus tantas têm nele (em Cristo Jesus) o sim; porquanto também por ele é o amém para glória de Deus, por nosso intermédio" (II Coríntios 1:20). Não pode haver qualquer relacionamento entre o Deus três vezes santo e as criaturas pecaminosas, a não ser através de um Mediador que tenha satisfeito a Deus em nosso favor. Por essa mesma razão, esse Mediador deve receber, da parte de Deus, todas as bênçãos para Seu povo, recebendo-as este das mãos desse Mediador. Um pecador, se despreza e rejeita a Cristo, poderia implorar misericórdia de uma árvore, tanto quanto a implora de Deus – e nada receberia.
Tanto as promessas como as bênçãos prometidas são entregues ao Senhor Jesus e são transmitidas aos santos por intermédio dEle. "E esta é a (principal e maior) promessa que ele mesmo nos fez, a vida eterna" (I João 2:25). E conforme somos informados, nessa mesma epístola: "esta vida está no seu Filho" (I João 5:11).
Sendo as coisas assim, qual é o benefício que podem ter aqueles que não estão em Cristo, com base nessas promessas? Nenhum benefício. O indivíduo fora de Cristo também não desfruta do favor divino; de fato, está debaixo de Sua justa indignação. Sua porção são as ameaças divinas, e não as promessas de Deus. Solene, soleníssima consideração é aquela que diz que aqueles que estão "sem Cristo" são "...separados da comunidade de Israel, e estranhos às alianças da promessa, não tendo esperança, e sem Deus no mundo" (Efésios 2:12). Somente os filhos de Deus são igualmente "filhos da promessa" (Rom. 9:8). Certifique-se, meu prezado leitor, de que você é um deles também.
Quão terrível, pois, é a cegueira, e quão profundo é o pecado daqueles pregadores que aplicam indiscriminadamente as promessas divinas a salvos e perdidos igualmente! Esses não somente tomam o "pão dos filhos" e os lançam aos "cães", mas também adulteram "...a palavra de Deus..." (II Coríntios 4:2), além de enganarem a almas mortais. E aqueles que lhes dão ouvidos são pouco menos culpados, porquanto Deus reputa a todos responsáveis por examinarem as Escrituras por si mesmos, submetendo a teste tudo quanto lêem ou escutam, através desse padrão insofismável. Se porventura alguém é por demais preguiçoso para fazer tal exame, preferindo seguir cegamente os seus guias cegos, então que o seu sangue recaia sobre suas próprias cabeças. A verdade tem de ser "comprada" (Provérbios 23:23), e aqueles que não estão dispostos a pagar o preço pela sua possessão, devem fatalmente ficar sem ela.
2. Tiramos proveito da Palavra quando nos esforçamos por tornar nossas as promessas de Deus.
Para tanto devemos, antes de tudo, estar dispostos ao trabalho de nos familiarizarmos verdadeiramente com essas promessas. É surpreendente o grande número de promessas existentes nas Escrituras, acerca das quais os santos nada sabem, sobretudo quando levamos em conta que essas promessas são o tesouro peculiar dos remidos, já que a substância da herança da fé depende delas. É verdade que os crentes já são os beneficiários de bênçãos admiráveis; no entanto o capital de suas riquezas, a parte principal de suas propriedades encontra-se ainda em estado latente. Já receberam o "penhor" das promessas; mas a porção melhor daquilo que Cristo adquiriu para eles, jaz ainda nas promessas divinas. Quão diligentes, portanto, deveriam mostrar-se os crentes, no estudo de seu testamento, familiarizando-se com aquelas coisas boas que o Espírito nos "...revelou..." (I Coríntios 2:10), pois assim procurariam fazer o inventário de seus tesouros espirituais!
Não somente convém que eu pesquise as páginas da Bíblia para descobrir o que já me foi entregue, devido ao pacto eterno; mas também preciso meditar sobre as promessas, revolvendo-as sempre na minha mente e clamando ao Senhor para que me seja conferido entendimento espiritual delas. Uma abelha não extrai mel da flor, enquanto fica somente a contemplá-la. Por igual modo, o crente não deriva qualquer consolo real e nem qualquer força espiritual das promessas divinas, enquanto a sua fé não se apossa delas, e enquanto elas não penetram em seu coração. Deus não deixou qualquer promessa de que os desinteressados serão espiritualmente alimentados, mas declarou: "...a alma dos diligentes se farta" (Provérbios 13:4). Por essa mesma razão é que Cristo ensinou: "Trabalhai, não pela comida que perece, mas pela que subsiste para a vida eterna" (João 6:27). Somente quando as promessas divinas são entesouradas em nossas mentes é que o Espírito as traz à nossa memória, naquelas ocasiões de desânimo quando delas mais necessitarmos.
3. Tiramos real proveito da Palavra quando reconhecemos o bendito escopo das promessas de Deus.
"Há certa forma de afetação que impede alguns crentes de inquirirem pelas realidades religiosas, como se a sua esfera estivesse entre as trivialidades da vida diária. Para eles, essas promessas parecem transcendentais, sonhadoras; mais uma criação da ficção pia do que uma realidade palpável. Crêem em Deus de certo modo, como também assim acreditam nas coisas espirituais e na vida vindoura; mas andam totalmente esquecidos de que a verdadeira piedade tem a promessa da vida que agora é, e daquela que haverá no futuro. Para esses, a oração acerca das pequenas questões diárias de que se compõe a vida, seria quase uma profanação. Talvez ficassem boquiabertos se eu me aventurasse a sugerir que isso deveria levá-los a pôr em dúvida a realidade de sua fé. Se esta não pode ajudá-los nas pequenas dificuldades da vida, porventura poderá sustentá-los nas tribulações maiores da morte?
"A piedade para tudo é proveitosa, porque tem a promessa da vida que agora é e da que há de ser" (I Timóteo 4:8). Prezado leitor, você realmente crê que as promessas de Deus envolvem cada aspecto e particularidade de sua vida diária? Ou os "dispensacionalistas" conseguiram iludi-lo, levando-o a supor que o Antigo Testamento pertence exclusivamente aos judeus carnais, e que as "nossas promessas" dizem respeito a bênçãos espirituais, mas não materiais?
Quantos e quantos crentes têm derivado consolo das palavras que dizem: "De maneira alguma te deixarei, nunca jamais te abandonarei" (Heb. 13:5). Pois bem, essa é uma citação extraída do trecho de Josué 1:5! Por semelhante modo, a passagem de II Coríntios 7:1 fala em termos de "...tais promessas..." Mas uma delas, citada em II Coríntios 6:18, foi tirada do livro de Levítico!
Mas alguém poderia indagar: "Onde devo traçar a linha divisória? Quais das promessas do Antigo Testamento realmente me pertencem?" Respondemos com a declaração do trecho de Salmos 84:11: "O Senhor dá graça e glória; nenhum bem sonega aos que andam retamente". Se você realmente está andando em "retidão", então tem o direito de apropriar-se dessa bendita promessa, dependendo do Senhor, o qual lhe conferirá qualquer "coisa boa" de que você realmente precisar. "E o meu Deus, segundo a Sua riqueza em glória, há de suprir em Cristo Jesus, cada uma de vossas necessidades" (Filipenses 4:19). Por conseguinte, se em qualquer segmento da Bíblia há alguma promessa que se encaixa à situação e às circunstâncias presentes do prezado leitor, que se aposse dela pela fé, segundo a sua "necessidade". E que o prezado leitor resista firmemente a qualquer tentativa de Satanás de furtar-lhe qualquer porção da Palavra do Pai.
4. Beneficiamo-nos realmente da Palavra quando discriminamos acertadamente entre as promessas de Deus.
Muitos, dentre o povo de Deus, tornam-se culpados do pecado de furto espiritual. Ao assim dizermos, referimo-nos ao fato de que esses se apropriam de coisas a que não têm direito, porquanto pertencem a outrem.
"Alguns termos do pacto, estabelecidos entre o Senhor Jesus Cristo e Seus eleitos remidos, são inteiramente incondicionais naquilo que concerne a estes últimos; mas existem muitas outras ricas declarações do Senhor que contêm estipulações que devem ser ciosamente resguardadas, pois, de outro modo, não obteremos as bênçãos ali prometidas. Uma parte das pesquisas diligentes que você faz deve visar a esse importantíssimo ponto. Deus haverá de cumprir no seu caso as promessas que fez; tão-somente você deve observar zelosamente as condições estipuladas no pacto. Pois somente quando cumprimos as exigências de uma promessa condicional é que podemos esperar que aquela promessa seja concretizada para nós". (C. H. Spurgeon).
Muitas das promessas divinas se dirigem a caracteres particulares, ou, usando de uma linguagem mais correta, visam ao derramamento de graças particulares. Por exemplo, em Salmos 25:9, o Senhor declara que ele "Guia os humildes na justiça, e ensina aos mansos o seu caminho". Porém, se por acaso eu estiver fora de comunhão com Ele, e estiver palmilhando uma vereda de minha própria escolha teimosa, se meu coração for altivo, então não estarei com a razão ao pensar que esse citado versículo pode consolar-me.
Novamente, na passagem de João 15:7, o Senhor nos ensina como segue: "Se permanecerdes em mim e as minhas palavras permanecerem em vós, pedireis o que quiserdes, e vos será feito". Porém, se eu não gozo de comunhão experimental com o Senhor, e se os Seus preceitos não estão regulamentando a minha conduta, então minhas orações ficarão sem resposta. Pois, apesar do fato de que as promessas de Deus se derivam de Sua pura graça, contudo, nunca nos deveríamos olvidar que a graça reina "...pela justiça...", segundo se lê em Romanos 5:21, jamais ficando eliminada a faceta da responsabilidade humana.
Se porventura eu ignorar as leis da saúde, não poderei ficar surpreendido se as enfermidades me impedirem de desfrutar de muitas das misericórdias temporais de Deus; e, por semelhante modo, se eu estiver negligenciando aos preceitos divinos, terei de culpar somente a mim mesmo, se porventura não receber o cumprimento de muitas das promessas do Senhor.
Que ninguém suponha que, devido às Suas promessas, Deus se obrigou a ignorar as exigências de sua santidade, porquanto Ele jamais exerceu qualquer de Suas perfeições às expensas de outra. E que ninguém imagine, por semelhante modo, que Deus haveria de magnificar a obra expiatória do Calvário se porventura proporcionasse de seus frutos a almas impenitentes e descuidadas. Neste ponto, há certo equilíbrio da verdade que precisa ser preservado; infelizmente, esse equilíbrio, nestes nossos dias, com freqüência é olvidado, e isso sob a pretensão de exaltar a graça divina, que assim os homens, na realidade, tornam em "lascívia".
Com quanta freqüência se ouve a seguinte citação: "Invoca-me no dia da angústia: eu te livrarei, e tu me glorificarás" (Salmos 50:15). Mas esse versículo começa somente depois das palavras antecedentes. "Cumpre os teus votos para com o Altíssimo." Assim também, com grande freqüência se ouve repetir: "Sob as minhas vistas, te darei conselho" (Salmos 32:8). Mas isso é dito por pessoas que não dão a mínima atenção ao contexto dessa passagem! Contudo, temos aqui a promessa de Deus para aqueles que tiverem confessado a sua "iniqüidade" (ver Salmos 32:5).
Assim sendo, se você tiver deixado de confessar algum pecado que lhe pesa sobre a consciência, dependendo do braço da carne ou buscando ajuda da parte de seus semelhantes, ao invés de esperar somente em Deus (Salmo 62:5), então não terá qualquer direito de esperar pela orientação sob as vistas de Deus. Esta orientação divina necessariamente pressupõe que você estará andando em comunhão com Ele, já que não posso estar sob a vigilância de alguém se estou distante desse alguém.
5. Tiramos proveito da Palavra quando somos capacitados de fazer das promessas de Deus nosso apoio e arrimo.
Essa é uma das razões que explicam por que Deus nos deu as Suas promessas – não somente a fim de manifestar o Seu amor, tornando-nos conhecidos os Seus benévolos desígnios, mas também a fim de consolar nossos corações e desenvolver a nossa fé. Se Deus assim tivesse querido, poderia proporcionar-nos as Suas bênçãos sem avisar-nos de antemão acerca dos Seus propósitos. O Senhor poderia conferir-nos todas as misericórdias de que necessitamos, sem comprometer-Se de forma alguma a fazê-lo. Nesse caso, entretanto, não poderíamos ser crentes; pois a fé sem qualquer promessa seria como um pé sem chão onde pisar. Nosso terno Pai celestial planejou que desfrutássemos por duas vezes em seguida de Suas bênçãos – primeiramente, através da fé; e então pelo recebimento concretizado das promessas feitas. Por esses meios Ele, mui sabiamente, desliga os nossos corações daquelas coisas que vemos e que perecem, convocando-nos para olhar para a frente e para o alto, isto é, para aquelas realidades espirituais e eternas.
Além disso, se não houvesse nenhuma promessa, não somente seria inexistente a fé, mas também não haveria esperança. Pois, do que consiste a esperança senão da expectação daquelas coisas que Deus declarou que nos daria? A fé olha para a Palavra que faz a promessa; e a esperança espera a concretização da promessa. Assim também sucedeu no caso de Abraão: ''...esperando contra a esperança, creu... E, sem enfraquecer na fé, embora levasse em conta o seu próprio corpo amortecido, sendo já de cem anos, e a idade avançada de Sara, não duvidou da promessa de Deus." (Romanos 4:18-20).
Outro tanto aconteceu na vida de Moisés: "...porquanto considerou o opróbrio de Cristo por maiores riquezas do que os tesouros do Egito, porque contemplava o galardão" (Hebreus 11:26). E a mesma atitude sustentou o apóstolo Paulo: "...pois eu confio em Deus, que sucederá do modo por que me foi dito" (Atos 27:25).
Assim também acontece em seu caso, prezado leitor? As promessas dAquele que não pode mentir são o lugar de descanso de seu pobre coração?
6. Tiramos real proveito da Palavra quando esperamos com paciência pelo cumprimento das promessas de Deus.
Deus prometeu à Abraão um filho; mas Abraão teve de esperar por muitos anos, até que essa promessa tivesse cumprimento. Simeão recebeu a promessa de que não provaria a morte física enquanto não visse ao Ungido do Senhor (Lucas 2:26). Contudo, essa promessa só se cumpriu quando ele já estava praticamente com um dos pés no sepulcro. Geralmente ocorre um longo e difícil inverno entre o tempo da semeadura da oração e a colheita da resposta. O próprio Senhor Jesus ainda não recebeu plena resposta para a oração que fez, e que se acha registrada no 17o capítulo do evangelho de João, embora a tenha feito há quase 2000 anos.
Muitas das melhores promessas divinas para o Seu povo não receberão Sua mais rica realização enquanto não Se acharem os remidos já na glória. Aquele que tem a eternidade inteira à Sua disposição, não precisa de pressa. Com freqüência Deus nos faz esperar, a fim de que a paciência seja "aperfeiçoada"; não devemos, pois, desconfiar dEle. "Porque a visão ainda está para cumprir-se no tempo determinado, mas se apressa para o fim, e não falhará; se tardar, espera-o, porque certamente virá, não tardará" (Habacuque 2:3).
"Todos estes morreram na fé, sem ter obtido as promessas, vendo-as porém, de longe, e saudando-as, e confessando que eram estrangeiros e peregrinos sobre a terra" (Hebreus 11:13). Neste versículo podemos perceber o escopo inteiro da fé – conhecimento, confiança e aderência amorosa. As palavras "...de longe..." se referem às realidades prometidas; essas os santos antigos "viram" com a mente, discernindo a substância existente por detrás da sombra simbólica, descobrindo nesta última a sabedoria e a bondade de Deus. E também "saudaram" às promessas porque estavam "persuadidos" a seu respeito. Não duvidaram, mas antes, ficaram convictos de que haveriam de participar daquelas promessas, sabendo que não ficariam desapontados. Essa palavra também expressa o deleite e a veneração que tiveram, em que seus corações se aferraram às promessas com amor, saudando cordialmente às mesmas. As promessas foram o consolo e o arrimo daquelas almas crentes, em suas peregrinações, tentações e sofrimentos.
Várias finalidades são alcançadas por Deus quando Se demora na execução de Suas promessas. Não somente a nossa fé é submetida a grande teste, de forma que assim transparece mais claramente o seu caráter genuíno; não somente a paciência ou constância se desenvolve e à esperança é conferida a oportunidade de exercitar-se; mas também a submissão à vontade divina é fomentada.
"O processo de desligamento ainda não se cumpriu por essa altura: ainda almejamos pelos consolos que o Senhor deseja que ultrapassemos. Abraão muito festejou quando Isaque, seu filho, foi desmamado; e talvez nosso Pai celestial faz outro tanto conosco. Deita-te, coração orgulhoso. Abandona os teus ídolos; esquece-te dos teus feitos queridos; e a paz prometida te será conferida". (C. H. Spurgeon).
7. Tiramos real proveito da Palavra quando nos utilizamos corretamente de suas promessas.
Em primeiro lugar, em nosso relacionamento com o próprio Deus. Quando nos avizinhamos de Seu trono, isso deveria ser feito para pleitearmos alguma de Suas promessas. Elas formam não apenas o alicerce de nossa fé, mas também a substância dos nossos pedidos.
Precisamos fazer nossas petições de conformidade com a vontade de Deus, se quisermos ser ouvidos; e a vontade do Senhor acha-se revelada naquelas boas coisas que Ele declarou que há de nos dar. Portanto, compete-nos tomar posse das certezas que Ele nos confere, expondo-as perante Ele e dizendo: "Faze como falaste" (II Samuel 7:25). Observamos como Jacó pleiteou certa promessa, no trecho de Gênesis 32:12; como Moisés, o fez, na narrativa bíblica de Êxodo 32:13; como Davi agiu, segundo se lê em Salmo 119:58; e como fez Salomão, conforme se aprende em I Reis 8:25. Quanto a você, prezado leitor, aja por semelhante modo.
Em segundo lugar, utilizamo-nos corretamente das promessas de Deus segundo a forma de vida que vivermos neste mundo. Na passagem de Hebreus 11:13, lemos que os patriarcas não somente discerniram as promessas divinas, confiando nelas e saudando-as de longe, mas também somos informados acerca dos efeitos que essas promessas produziram sobre eles: "...confessando que eram estrangeiros e peregrinos sobre a terra", o que significa que se manifestaram publicamente acerca de sua fé. Reconheceram eles (e demonstraram-no através de sua conduta) que os seus interesses não estavam fixados nas coisas deste mundo; antes, sua porção satisfatória eram as promessas de que se tinham apropriado pela fé. Seus corações se voltavam para as realidades celestes; pois, onde estiver firmado o coração de um homem, aí estará igualmente o seu tesouro.
"Tendo, pois, ó amados, tais promessas, purifiquemo-nos de toda impureza, tanto da carne, como do espírito, aperfeiçoando a nossa santidade no temor do Senhor.'' (II Coríntios 7:1). Esse é o efeito que essas promessas devem produzir em nós; e assim sucederá, de fato, se nossa fé apossar-se delas. "...pelas quais nos têm sido doadas as suas preciosas e mui grandes promessas para que por elas vos tomeis co-participantes da natureza divina, livrando-vos da corrupção das paixões que há no mundo" (II Pedro 1:4). Ora, quando o evangelho e suas preciosas promessas são graciosamente conferidos e poderosamente aplicados, exercem profunda influência sobre a conduta e sobre a pureza de coração, ensinando os homens a negarem a impiedade e as concupiscências mundanas, a fim de que vivam sóbria, justa e piedosamente.
Estes são os poderosíssimos efeitos das promessas contidas no evangelho, debaixo da influência divina, o que leva os remidos a se tomarem participantes, no íntimo, da própria natureza divina, e para que, externamente, se abstenham das corrupções prevalecentes e evitem os vícios que caracterizam os homens em seus dias.
AS ESCRITURAS E A ALEGRIA
Os ímpios vivem na busca incessante da alegria, mas sem nunca a encontrarem: ocupam-se e exaurem-se em sua procura, mas tudo em vão. Visto que os seus corações se afastaram decididamente do Senhor, olham para este mundo em busca de alegria, ainda que aqui ela não exista; rejeitando a substância, correm diligentemente após as suas sombras, somente para serem escarnecidos por elas.
Faz parte dos decretos soberanos dos céus que coisa alguma pode tornar felizes aos pecadores, senão Deus, na pessoa de Jesus Cristo. Mas é exatamente nisso que os incrédulos não crêem, pelo que também vão de criatura a criatura, de uma cisterna rota para outra, perguntando onde se pode encontrar a melhor alegria. Cada coisa terrena que os atrai, promete-lhes: "A alegria só pode ser achada em mim". Mas logo ficam desapontados. Não obstante, não cessam de procurar a alegria, hoje, naquilo que ontem os tinha enganado. Se, após muitas tentativas eles descobrem a futilidade de um conforto promissor, voltam-se para outro qualquer, dando-se com eles o que disse o Senhor Jesus: "Quem beber desta água tornará a ter sede" (João 4:13).
Voltando-nos agora para o outro extremo: Há certos crentes que imaginam que regozijar-se é um pecado. Não duvido que muitos de vocês se surpreenderão ao ouvir o que diremos agora; mas que esses se mostrem gratos ao Senhor por terem sido espiritualmente criados em um ambiente mais ensolarado, suportando tolerantemente aqueles que foram menos favorecidos. Alguns crentes têm sido ensinados – principalmente pela força do exemplo, ou como um subentendido, e não por ensinamento direto – que o seu dever é viverem na melancolia. Esses imaginam que os sentimentos de alegria são produzidos pelo diabo, que se disfarçada em anjo de luz. Concluem eles que a felicidade, em um mundo de pecado, como aquele em que vivemos, é praticamente uma espécie de iniqüidade. Julgam ser uma presunção se regozijarem no conhecimento do fato de que os seus pecados foram perdoados; e se porventura vêem novos convertidos se regozijando no Senhor, não se demoram a dizer-lhes que em breve estarão flutuando no Poço do Desânimo. A todos quantos concebem tais pensamentos, exortamos, sob oração, que ponderem sobre o assunto durante os minutos seguintes.
"Regozijai-vos sempre" (I Tessalonicenses 5:16). Sem dúvida não pode ser inseguro fazer aquilo que Deus nos ordenou. O Senhor nunca estabeleceu qualquer embargo contra a alegria. Não, mas é Satanás quem se esforça por fazer-nos dependurar as nossas harpas. Não existe qualquer preceito nas Escrituras que nos ordene: "Entristecei-vos no Senhor sempre: uma vez mais o digo, entristecei-vos". Pelo contrário, há uma exortação vazada nos seguintes termos: "Exultai, ó justos, no SENHOR! Aos retos fica bem louvá-Lo" (Salmos 33:1).
Prezado leitor, se você é um crente verdadeiro (e já é tempo de você submeter-se ao teste das Escrituras, certificando-se sobre esse particular), então Cristo lhe pertence, e tudo quanto se acha nEle também é seu. Ele lhe ordena: "Comei e bebei, amigos; bebei fartamente, ó amados" (Cantares 5:1). O único pecado que alguém pode cometer contra o banquete de amor do Senhor é ficar encolhido a um canto. "Ouvi-me atentamente, comei o que é bom, e vos deleitareis com finos manjares" (Isaías 55:2). E essas palavras não foram ditas para aqueles que já se encontram nos céus, e, sim, para os santos que ainda vivem à face da terra. E isso permite-nos dizer que:
1. Tiramos proveito real da Palavra quando percebemos que a alegria é um dever.
"Alegrai-vos sempre no Senhor; outra vez digo, alegrai-vos" (Filipenses 4:4). O Espírito Santo, neste ponto, fala acerca da alegria como um dever pessoal, presente e permanente, para todos quantos fazem parte do povo de Deus. O Senhor não deixou a nosso bel-prazer estar alegres ou estar tristes, mas antes, estabeleceu que a felicidade é um dever para nós. Não regozijar-se é um pecado de omissão. Da próxima vez que você se encontrar com um crente que transborda de alegria, não o repreenda; ao invés de pôr em dúvida a fonte divina de seu júbilo, julgue a si mesmo devido ao seu estado de desânimo.
Naturalmente que não devemos pensar aqui em alguma alegria carnal, isto é, uma alegria que tem origem em questões carnais. É inútil alguém buscar a alegria nas riquezas terrenas, porquanto, com freqüência, adquirem asas e se vão embora. Outros procuram desfrutar alegria em seu círculo familiar; mas este permanece completo apenas por alguns anos, quando muito. Por isso mesmo, se nos devemos alegrar "sempre", nossa alegria deverá estar firmada em objetos que perduram para sempre.
Por semelhante modo, não devemos pensar aqui em alguma alegria fanática. Existem certas pessoas, dotadas de natureza muito emotiva, que só se sentem felizes quando estão meio desvairadas; mas terrível é a reação. Não, aludimos aqui a um deleite inteligente, constante, proveniente do coração, firmado no próprio Deus. Cada atributo divino, quando é contemplado pelos olhos da fé, faz o coração remido entoar louvores. Cada doutrina do evangelho, quando é verdadeiramente apreendida, provoca satisfação e louvor.
A alegria é mesmo um dever cristão. Talvez você, por esta altura, esteja prestes a exclamar: "Mas minhas emoções de alegria e de tristeza não estão sob o meu controle; não posso evitar de ficar triste ou alegre, conforme o ditarem as circunstâncias". Porém, repetimos: Alegrar-se no Senhor é um mandamento divino; e a obediência a Ele depende em grande parte de nós mesmos. Tenho a responsabilidade de controlar as minhas próprias emoções. Naturalmente que não poderei evitar ficar triste na presença de pensamentos entristecedores, mas poderei recusar-me a permitir que minha mente se demore nos mesmos. Poderei derramar meu coração diante do Senhor, pedindo alívio, lançando sobre Ele os meus fardos. Posso buscar a graça para meditar acerca da Sua bondade, de Suas promessas e do glorioso futuro que me aguarda.
Preciso decidir se prosseguirei e me postarei de pé sob a luz, ou se me ocultarei entre as sombras. Não regozijar-se no Senhor é muito mais do que um infortúnio; é um pecado que precisa ser confessado e abandonado.
2. Tiramos proveito real da Palavra quando aprendemos o segredo da verdadeira alegria.
Esse segredo nos é revelado em 1 João 1:3,4; "Ora, a nossa comunhão é com o Pai e com seu Filho Jesus Cristo. Estas cousas, pois, vos escrevemos para que a vossa alegria seja completa". Quando consideramos quão pequena (ínfima) é a nossa comunhão com Deus, quão superficial é ela, não é para admirar que tantos crentes se sintam comparativamente destituídos de alegria. Algumas vezes cantamos: "Oh! Dia alegre, eu abracei Jesus e nEle a salvação; O gozo deste coração eu mais e mais publicarei". Sim, mas se porventura essa felicidade tiver de ser mantida continuamente, que a mente e o coração se ocupem de Cristo. Somente onde impera a fé, e o amor conseqüente, é que pode transbordar a alegria.
"Alegrai-vos sempre no Senhor" (Filipenses 4.4). Não há outro objeto no qual nos possamos regozijar "sempre". Tudo o mais varia e é inconstante. Aquilo que nos agrada no dia de hoje pode provocar-nos asco amanhã. Mas o Senhor é sempre o mesmo, podendo Ele ser motivo da nossa alegria nos períodos de adversidade, tanto quanto nos períodos de prosperidade. Como reforço desse pensamento, declara o versículo imediato: "Seja a vossa moderação conhecida de todos os homens. Perto está o Senhor" (Filipenses 4:5).
Que sejamos equilibrados em todas as coisas externas; não nos deixemos envolver arrebatadamente por elas, quando forem muito agradáveis, e nem nos perturbemos quando elas nos derem motivo de desgosto. Não nos deixemos exaltar quando o mundo nos sorri, e nem fiquemos descoroçoados quando parece que o mundo ralha conosco. Mantenhamos uma estóica indiferença para com os confortos externos – por que razão ficaríamos tão ocupados com essas coisas, quando o próprio Senhor está "próximo"?
Se porventura somos violentamente perseguidos, se as nossas perdas temporais são pesadas, consideremos que o Senhor é "socorro bem presente nas tribulações" (Salmos 46:1) – sempre pronto a dar-nos Seu apoio e socorro, contanto que nos abriguemos em Seus braços. Ele cuidará de nós de modo que não nos permitirá andar "ansiosos de cousa alguma" (Filipenses 4:6). Os indivíduos mundanos vivem sobrecarregados de cuidados os mais exigentes; mas essa não deveria ser jamais a atitude dos crentes.
"Tenho-vos dito estas cousas para que o meu gozo esteja em vós, e o vosso gozo seja completo" (João 15:11). Quando ponderamos sobre essas preciosas palavras de Cristo com a mente, e as entesouramos no coração, é impossível que não produzam em nós a alegria. O coração alegre se firma no conhecimento crescente da verdade e em amá-la, conforme a verdade se acha em Jesus. "Achadas as tuas palavras, logo as comi; as tuas palavras me foram gozo e alegria para o coração" (Jeremias 15:16). Sim, é quando nos alimentamos e banqueteamos com as palavras do Senhor que nossa alma se fortalece, e então somos impelidos a cantar e a fazer melodia em nossos corações, louvando ao Senhor.
"Então irei ao altar de Deus, de Deus que é a minha grande alegria" (Salmos 43:4). Conforme Spurgeon disse com grande aptidão: "Com que exultação os crentes devem aproximar-se de Cristo, o qual é o antítipo do altar! Uma luz mais clara deveria intensificar-nos o desejo. O salmista não se importava com o altar como tal, porquanto não cria no paganismo dos rituais – mas a sua alma desejava comunhão espiritual, comunhão com o próprio Deus, na verdade. De que valeriam todos os ritos de adoração, se Deus não estivesse neles? O que seriam, realmente, senão conchas vazias e ressequidas cascas? Notemos o santo arrebatamento com que Davi considera o seu Senhor! Deus não era apenas a sua alegria, mas também a sua grande alegria: não era apenas a fonte da alegria, o doador da alegria ou o mantenedor da alegria, mas antes, era a própria alegria. A margem das traduções inglesas diz: "o regozijo de minha alegria", isto é, a alma, a essência, as próprias entranhas da minha alegria.
"Ainda que a figueira não floresce, nem há fruto na vide; o produto da oliveira mente, e os campos não produzem mantimento; as ovelhas foram arrebatadas do aprisco e nos currais não há gado, todavia eu me alegro no SENHOR, exulto no Deus da minha salvação" (Habacuque 3:17,18). Ora, isso é algo acerca do que os indivíduos mundanos nada conhecem, em absoluto; mas, infelizmente, também é uma experiência desconhecida para muitos crentes professos! É em Deus que se origina a fonte da alegria espiritual e eterna; pois dEle é que tudo flui. Isso foi reconhecido pela antiga congregação judaica, quando foi dito: "Todas as minhas fontes são em Ti" (Salmos 87:7).
3. Tiramos real proveito da Palavra quando ali nos é ensinado qual o grande valor da alegria.
Para a alma, a alegria é o que as asas são para um passarinho, capacitando-nos a subir bem acima das coisas deste mundo. Isso fica claramente destacado em Neemias 8:10, onde se lê: "A alegria do Senhor é a vossa força". Os dias de Neemias assinalaram um ponto crucial na história do povo de Israel. Da Babilônia retornara um remanescente judeu para a Palestina. A lei, que desde há muito vinha sendo ignorada pelos cativos, agora estava sendo novamente estabelecida como a norma da comunidade recentemente fundada. Eles tinham se lembrado dos muitíssimos pecados cometidos no passado, e as lágrimas muito naturalmente se tinham misturado com as ações de graças, devido ao fato de que agora eles eram novamente uma nação, dotados da adoração divina e da lei divina entre eles. E o líder da nova nação, conhecendo perfeitamente bem que se o espírito do povo começasse a hesitar não poderia enfrentar e dominar as dificuldades de sua posição, disse-lhe: "Este dia é consagrado ao nosso Senhor; portanto não vos entristeçais, porque a alegria do Senhor é a vossa força" (Neemias 8: l0).
A confissão de pecado e a lamentação por ele têm o seu devido lugar; e a comunhão com Deus não pode ser mantida sem esses elementos. Não obstante, quando o verdadeiro arrependimento é exercido e as coisas são corrigidas defronte de Deus, precisamos olvidar as coisas que para trás ficam, "avançando para as que diante de mim estão" (Filipenses 3:13). E só podemos avançar com alacridade quando os nossos corações estão cheios de alegria. Quão pesados os passos daquele que se aproxima do lugar onde jaz, frio na morte, um ente amado! Quão enérgicos os seus movimentos, porém, quando ele vai ao encontro de sua noiva! A lamentação não basta para as batalhas desta vida. Sempre que surge o desespero, não há mais o poder da obediência. Sc não houver alegria, também não poderá haver adoração.
Meu prezado leitor, há tarefas que precisam ser realizadas, serviços ao próximo que precisam ser cumpridos, tentações a ser vencidas, batalhas a ser combatidas; e só estamos experimentalmente aptos para essas coisas quando os nossos corações se regozijam no Senhor. Se nossas almas estiverem descansando em Cristo, se nossos corações estiverem repletos de tranqüila alegria, então o nosso trabalho será fácil, nossos deveres nos parecerão agradáveis, as tristezas nos parecerão suportáveis e a constância será possível. Nem a memória contrita dos fracassos do passado e nem resoluções veementes nos farão avançar. Se o braço tiver de ferir com vigor, é preciso que fira sob as ordens de um coração leve. Acerca do próprio Salvador ficou registrado: "O qual, em troca da alegria que lhe estava proposta, suportou a cruz, não fazendo caso da ignomínia." (Hebreus 12:2).
4. Tiramos benefício da Palavra quando damos atenção à raiz da alegria.
O manancial da alegria é a fé: "E o Deus da esperança vos encha de todo o gozo e paz no vosso crer." (Romanos 15:13). Há uma admirável provisão no evangelho, tanto naquilo que exige de nós como naquilo que nos confere, outorgando aos corações crentes uma aura de calma e de tranqüilidade. O evangelho tira a carga da culpa falando de paz às consciências pesadas. Remove o temor de Deus e o terror da morte que calcam a alma, enquanto ela está sob a condenação. Confere-nos o próprio Deus como porção dos nossos corações, como o grande objeto de nossa comunhão. O evangelho outorga alegria, porque a alma descansa em Deus.
Porém, essas bênçãos se tornam nossas somente quando delas nos apropriarmos pessoalmente. É mister que a fé as receba; e quando isso ocorre, o coração é invadido de paz e alegria. E o segredo da alegria constante consiste de mantermos aberto o canal, continuando tal como começáramos. É a incredulidade que entope o canal. Se houver apenas ínfimo calor em torno da ponta de um termômetro, não nos poderemos admirar que o mercúrio assinale um grau tão baixo. Assim também, se houver uma fé fraca, a alegria não poderá ser intensa. Por isso, precisamos orar diariamente para recebermos nova percepção sobre a preciosidade do evangelho, nova apropriação de seu bendito conteúdo – e então haverá a renovação do nosso regozijo.
5. Beneficiamo-nos realmente da Palavra quando temos o cuidado de conservar a nossa alegria.
A "alegria no Espírito Santo" é algo inteiramente diferente da leveza natural de espírito. É produto do fato de que o Consolador habita em nossos corações e em nossos corpos, revelando-nos a Pessoa de Cristo, respondendo a todas as nossas necessidades de perdão e de purificação, assim fazendo-nos gozar de paz com Deus; e formando em nós a Pessoa de Cristo, para que Ele reine em nossas almas, subjugando-nos ao Seu controle. Não existe circunstância de prova ou de tentação que nos obrigue a interromper a nossa alegria, porquanto a nós foi determinado: "Regozijai-vos sempre" (I Tessalonicenses 5:16). Aquele que baixou essa ordem conhece tudo sobre o lado negro de nossas vidas, os pecados e as tristezas que nos cercam, a "muita tribulação" mediante a qual nos convém entrar no reino de Deus.
A hilaridade natural não leva em conta os "ais" de nossa sorte terrena. Logo se afrouxa, na presença das durezas próprias da vida: não pode sobreviver à perda de parentes, amigos ou da saúde. Porém, a alegria à qual somos exortados, não se limita a quaisquer séries de circunstâncias ou tipos de temperamento; e nem flutua de acordo com nossos sentimentos e com nossa sorte.
A natureza poderá impor-se aos que estão sujeitos a ela, conforme o próprio Jesus chorou diante do sepulcro de Lázaro. No entanto, os crentes podem exclamar juntamente com Paulo: "... entristecidos, mas sempre alegres..." (II Coríntios 6:10). O crente pode ser sobrecarregado de responsabilidades e a sua vida pode sofrer uma série de reveses; seus planos podem ser frustrados e suas esperanças podem ser arruinadas; o sepulcro pode fechar-se sobre entes amados que emprestaram ânimo e doçura à sua vida, e contudo, a despeito de todos os seus desapontamentos e tristezas, o seu Senhor lhe ordena: "Regozija-te!"
Eis os apóstolos, no cárcere de Filipos, na masmorra interior, com os pés atados ao tronco, com as costas sangrando e ardendo devido aos terríveis açoites que tinham recebido. E em que estavam ocupados? Em queixumes e ais? Indagando o que tinham feito para merecer tal tratamento? Não! À meia-noite, Paulo e Silas oravam e entoavam louvores a Deus (Atos 16:25). Não havia qualquer pecado em suas vidas, porque estavam andando na obediência, pelo que também o Espírito Santo sentia-se em liberdade para tomar aquilo que era de Cristo, mostrando-o aos seus corações, de tal modo que transbordavam de alegria. Sim, se tivermos de conservar nosso regozijo, precisamos evitar entristecer ao Espírito Santo.
Quando Cristo ocupa posição suprema, no nosso coração, a alegria o domina. Quando Ele é o Senhor de cada desejo, a fonte de cada motivo, o subjugador de cada paixão, então é que a alegria toma conta dos nossos corações e o louvor nos ascende dos lábios. A possessão de tal alegria envolve a necessidade de tomarmos a cruz a cada hora do dia; Deus ordenou as coisas de tal modo que não podemos ter uma coisa sem a outra. O auto-sacrifício, o decepar da mão direita (espiritualmente falando), o arrancar do olho direito, são as avenidas através das quais o Espírito de Deus entra em nossas almas, trazendo juntamente com Ele a alegria do sorriso aprovador de Deus e a certeza de Seu amor e de Sua presença.
Também muito depende da atitude com que iniciamos cada dia, em nossa vida neste mundo. Se esperamos que as pessoas nos agradem ou nos elogiem, os desapontamentos nos deixarão aborrecidos. Se queremos que os outros nos alimentem o orgulho, nos sentiremos desprezados quando assim não acontecer. O segredo da felicidade consiste em nos esquecermos de nós mesmos e em buscarmos a felicidade alheia. Assim como "Mais bem-aventurado é dar que receber" (Atos 20:25), assim também sentimos maior felicidade em servir aos outros do que em sermos servidos.
6. Tiramos real proveito da Palavra quando nos mostramos constantes em evitar os empecilhos que entravam a alegria.
Por que razão um tão grande número de crentes goza de tão pouca alegria? Porventura não nasceram todos eles filhos da luz e filhos do dia? Esse termo, "luz", que é tão freqüentemente utilizado nas Escrituras para descrever-nos a natureza de Deus e as nossas relações com Ele, e nosso destino futuro, é extremamente sugestivo acerca da alegria e do regozijo. Que outra coisa, existente na natureza, seria tão benéfico e belo como a luz? "Deus é luz, e não há nEle treva nenhuma" (I João 1:5).
É somente quando andamos com Deus, na luz, que nossos corações podem ser realmente jubilosos. É quando permitimos deliberadamente a intervenção de coisas que atrapalham nossa comunhão com Ele que a nossa alma se torna gélida e obscurecida. É a indulgência da carne, a fraternização com o mundo e o enveredar por sendas proibidas que arruinam a nossa vida espiritual, tirando-nos toda a alegria.
Davi precisou clamar: "Restitui-me a alegria da tua salvação, e sustenta-me com um espírito voluntário" (Salmo 51:12). Davi se tornara lascivo e auto-indulgente. Quando as tentações o assaltavam, ele não tinha qualquer poder para resistir. Por isso ele cedia às tentações, e um pecado o conduzia a outro. Estava desviado, fora do contato com Deus. O pecado não confessado pesava sobre a sua consciência.
Oh, meu irmão e minha irmã em Cristo, se tivermos de ser resguardados de tal queda, se não quisermos perder nossa alegria espiritual, então precisamos negar ao próprio "eu", precisamos crucificar os afetos e as concupiscências da carne. Precisamos estar perenemente vigilantes contra a tentação. Devemos passar muito tempo de joelhos. Precisamos beber com freqüência da Fonte de águas vivas. Precisamos estar cem por cento dedicados ao Senhor.
7. Beneficiamo-nos da Palavra quando preservamos diligentemente o equilíbrio entre a tristeza e a alegria.
Se a fé cristã se adapta admiravelmente bem à produção da alegria, também tem uma tendência e um desígnio quase idênticos para produzir a tristeza – uma tristeza que é solene, máscula e nobre: "Entristecidos, mas sempre alegres..." (II Coríntios 6:10). Essa é a grande regra da vida cristã. Se a fé lançar a sua luz sobre as nossas condições, sobre a nossa natureza, sobre os nossos pecados, então a tristeza será um dos efeitos desse fato. Não existe algo mais desprezível em si mesmo, nem sinal mais certo de um caráter superficial e de ocupações triviais do que uma alegria sem variação, que não repouse nos alicerces profundos de uma tristeza calma e paciente – tristeza, porque sei o que sou e o que deveria ser; tristeza, porque contemplo o mundo e vejo as chamas do inferno a rebrilhar por detrás do júbilo e das gargalhadas, sabendo bem na direção do que os homens se precipitam rapidamente.
Aquele que foi ungido com o óleo da alegria, mais do que os seus companheiros (Salmos 45:7), também era "Homem de dores e que sabe o que é padecer." (Isaías 53:3). E ambos esses itens (até certo ponto) se repetem nas operações do Seu evangelho, em cada coração daqueles que verdadeiramente O acolhem.
Por um lado, pois – devido aos temores que assim são removidos de nós e às esperanças que são insufladas em nós, e ao companheirismo a que assim somos introduzidos, somos ungidos com o óleo da alegria. Por outro lado – devido ao senso de nossa própria vileza, que o evangelho nos ensina, devido ao conflito entre a carne e o Espírito, também nos assoberba uma tristeza que encontra expressão na exclamação: "Desventurado homem que sou!" (Romanos 7:24). Esses dois aspectos não se contradizem um ao outro, mas se complementam. O Cordeiro precisava ser consumido juntamente com "ervas amargas" (Êxodo 12:8).
AS ESCRITURAS E O AMOR
Nos primeiros capítulos, procuramos salientar alguns dos meios pelos quais podemos verificar se a nossa leitura e pesquisa das Escrituras realmente estão servindo de bênção para as nossas almas. Muitas pessoas andam equivocadas quanto a esse particular, confundindo o desejo intenso de adquirir conhecimento com o amor espiritual à verdade (II Tessalonicenses 2:10), na suposição de que a adição a seu cabedal de conhecimentos é a mesma coisa que o desenvolvimento na graça. Entretanto, muito depende da finalidade ou alvo que temos, quando examinamos a Palavra de Deus. Se se trata da simples questão de nos familiarizarmos com o seu conteúdo, de nos tornarmos melhor versados quanto a seus detalhes, é bem provável que o canteiro de nossas almas permanecerá na esterilidade; porém, se com desejo regado por oração a examinamos para ser corrigidos, para sermos sondados pelo Espírito Santo, para amoldarmos os nossos corações a Seus santos requisitos, então podemos esperar a bênção divina.
Nos capítulos precedentes temo-nos esforçado por salientar os itens vitais por meio dos quais podemos aquilatar o progresso que estamos fazendo no campo da piedade pessoal. Vários critérios foram ventilados, mediante os quais tanto o pregador como o ouvinte podem medir-se honestamente. Temos frisado testes tais como: Estou adquirindo ódio maior contra o pecado, e estou sendo praticamente libertado de seu poder e de sua poluição? Estou obtendo maior intimidade com Deus e com o Seu Cristo? Minha vida de oração está se tornando mais saudável? Minhas boas obras se têm tornado mais abundantes? Minha obediência é mais completa e mais jubilosa? Tenho-me separado mais do mundo, em meus afetos e em minha conduta? Estou aprendendo a fazer uso correto e proveitoso das promessas de Deus, deleitando-me dessa maneira em Sua pessoa, para que a sua alegria seja a minha força diária?
A menos que eu possa dizer, verdadeiramente, que essas coisas correspondem à minha experiência (pelo menos até certo ponto), então é de temer grandemente que os meus estudos bíblicos de pouco ou nada me estão aproveitando.
Mas, dificilmente poderíamos julgar próprio que estes capítulos chegassem à sua conclusão sem nos devotarmos à consideração do amor cristão. A extensão em que essa graça espiritual está sendo cultivada e regulada ou não, fornece outro índice para a medida em que minhas buscas, na Palavra de Deus, me estão ajudando espiritualmente. Ninguém poderá ler as Escrituras, com qualquer medida de atenção, sem descobrir o quanto elas têm a dizer sobre o amor; portanto, compete, a cada um de nós, averiguar, cuidadosamente e sob oração, se essa virtude se encontra em nós em estado rígido e se está sendo corretamente exercida.
O tema do amor cristão é amplo demais para considerarmos todas as suas variadas facetas dentro dos limites de um único capítulo. Na realidade, deveríamos começar o exame contemplando o exercício do amor que temos para com Deus e para com o seu Cristo; porém, visto que isso já foi abordado pelo menos superficialmente nos capítulos anteriores, deixaremos esse aspecto de lado. Por igual modo, muito poderia ser dito acerca do amor natural que devemos ter para com os nossos semelhantes, os quais pertencem à mesma família que nós; porém, há menor necessidade de escrevermos sobre esse tema do que sobre aquele que no momento sobe à nossa mente. Neste ponto propomo-nos a focalizar a nossa atenção sobre o amor espiritual aos irmãos, aos nossos irmãos em Cristo.
1. Estamos tirando proveito das Escrituras quando percebemos a grande importância do amor cristão.
Em parte alguma isso é ressaltado mais enfaticamente do que na epístola de I Coríntios 13. Ali, o Espírito Santo diz-nos que embora um crente professo possa falar fluente e eloqüentemente sobre as realidades divinas, se não tiver amor, será como o metal, o qual, embora faça ruído ao ser tangido, não tem vida alguma. Que embora um crente profetize e compreenda todos os mistérios e possua todo o conhecimento, e ainda que a sua fé seja tão potente ao ponto de realizar milagres, contudo, se lhe faltar o amor, espiritualmente será sem valor. Sim, que embora um crente seja benévolo e dê todas as suas possessões materiais para sustento dos pobres, e ainda que entregue seu corpo ao martírio, todavia, se lhe faltar o amor, isso não lhe será de qualquer proveito. Quão imenso é o valor aqui conferido ao amor; e quão essencial para mim é certificar-me de que o possuo!
Disse nosso Senhor: "Nisto conhecerão todos que sois meus discípulos, se tiverdes amor uns aos outros" (João 13:35). Visto que Cristo fez do amor o grande sinal do discipulado cristão, isso nos permite ver, uma vez mais, a grande importância do amor. Trata-se de um teste essencial acerca da genuinidade de nossa profissão cristã: não podemos amar a Cristo a menos que amemos a Seus irmãos, porquanto estão todos ligados no mesmo "feixe dos que vivem com o SENHOR" (I Samuel 25:29). O amor por aqueles a quem o Senhor remiu é uma evidência segura de que possuímos o amor espiritual e sobrenatural do próprio Senhor Jesus. Sempre que o Espírito Santo realiza um nascimento sobrenatural, fará igualmente que essa nova vida entre em exercício, e também produzirá nos corações, nas vidas e na conduta dos santos as suas graças sobrenaturais, uma das quais consiste em amarmos a todos quantos pertencem a Cristo, por amor a Cristo.
2. Estamos nos beneficiando com a Palavra quando aprendemos a perceber as lamentáveis perversões do amor cristão.
Assim como a água não se eleva acima do seu próprio nível, assim também o homem natural é incapaz de compreender, e, menos ainda, de apreciar, qualquer realidade espiritual (I Coríntios 2:14). Portanto, não nos deveríamos surpreender quando cristãos professos, não regenerados, confundem o sentimentalismo humano e aquilo que agrada à carne com o amor espiritual. O mais entristecedor ainda é ver alguns, dentre o próprio povo de Deus, que vivem em plano tão inferior que confundem a amabilidade e a afabilidade humanas com a rainha de todas as graças cristãs. Pois, apesar de ser verdade que o amor se caracteriza pela mansidão e pela gentileza, contudo, é algo muito diferente das cortesias e gentilezas carnais, e muito superior a elas.
Quantos pais hesitantes têm evitado usar a vara com seus filhos, presas à errônea noção de que o real afeto por eles e o castigo são incompatíveis! Quantas mães insensatas se jactam de que o "amor" reina em seus lares, ao mesmo tempo que desdenham de toda a disciplina corporal! Uma das experiências mais tristes, é passar algum tempo hospedado em lares onde as crianças são completamente estragadas pelos mimos. Isso é uma ímpia perversão do vocábulo "amor" – aplicá-lo à frouxidão moral e à negligência dos deveres paternos. Porém, essa mesma idéia perniciosa governa as mentes de muitas pessoas, em outras conexões e relações.
Se um servo de Deus repreende os métodos carnais e mundanos dessas pessoas, se ele faz pressão sobre a necessidade de atendermos às reivindicações intransigentes de Deus, imediatamente é acusado de ser alguém a quem "falta o amor". Oh, quão terrivelmente as multidões andam enganadas por Satanás, quanto a esse mui importante assunto!
3. Tiramos real proveito da Palavra quando aprendemos a verdadeira natureza do amor cristão.
O amor cristão é uma graça espiritual que permanece nas almas dos santos, juntamente com a fé e a esperança (I Coríntios 13:13). Trata-se de santa disposição, insuflada neles, quando são regenerados (I João 5:1). Não é menos que o amor de Deus derramado em seus corações pelo Espírito Santo (Romanos 5:5). O amor é um princípio justo, que busca o mais alto bem do próximo. É o reverso mesmo do princípio do egoísmo e do interesse próprio, que se encontra em nós por natureza. Consiste não apenas de consideração afetuosa por todos quantos trazem a imagem de Cristo, mas também envolve o poderoso desejo de promover o bem estar dos mesmos.
E não é nenhum sentimento passageiro, que facilmente se sente ofendido, porque é antes uma força dinâmica permanente, que as "muitas águas" da fria indiferença ou que os "dilúvios" da desaprovação não podem apagar e nem afogar (Cantares 8:7). E embora fiquemos muito aquém do grande exemplo de amor, tem idêntica essência ao amor daquele sobre quem foi dito: "...tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até ao fim" (João 13:1).
Não há meio mais seguro e mais certo de obtermos a correta concepção da natureza do amor cristão do que fazermos um estudo completo dele, em sua perfeita exemplificação, que é o Senhor Jesus. E quando falamos em "estudo completo", indicamos a realização de uma pesquisa ampla de tudo quanto está registrado a seu respeito, nos quatro evangelhos, não nos limitando a algumas poucas passagens ou incidentes favoritos. Quando assim fazemos, então descobrimos que o amor de Cristo não somente era benévolo e magnânimo, refletido e gentil, altruísta e inclinado à abnegação, paciente e imutável, mas que também havia muitos outros elementos componentes. Assim é que o amor foi capaz de negar um pedido urgente (João 11:6), de repreender Sua mãe (João 2:4), de usar um açoite de cordas (João 2:15), de repreender severamente Seus discípulos que duvidavam (Lucas 24:25), e de denunciar a indivíduos hipócritas (Mateus 23:13-33).
Sim, o amor pode ser ríspido (Mateus 16:23), indignado (Marcos 3:5). O amor espiritual é uma realidade santa: é fiel a Deus, e não transige perante qualquer coisa má.
4. Tiramos verdadeiro proveito da Palavra quando descobrimos que o amor cristão é divinamente transmitido.
"Nós sabemos que já passamos da morte para a vida, porque amamos os irmãos; aquele que não ama permanece na morte" (I João 3: 14). "O amor aos irmãos é o fruto e o efeito de um novo e sobrenatural nascimento, operado em nossas almas pelo Espírito Santo, sendo uma bendita evidência do fato de que fomos escolhidos em Cristo pelo Pai divino, antes de haver mundo. Amar a Cristo e àqueles que Lhe pertencem, faz parte congênita da natureza divina de que Ele nos tornou participantes através do Seu Santo Espírito... Esse amor aos irmãos deve ser um amor peculiar, de modo que ninguém, senão os regenerados, pode possuir, e como ninguém, além deles, pode exercer; doutro modo, o apóstolo não o teria mencionado tão particularmente: é de sorte tal que aqueles que não o possuem também não são regenerados; por isso mesmo está escrito: 'aquele que não ama permanece na morte' ". (S. E. Pierce).
O amor aos irmãos envolve muito, muito mais do que simpatizarmos com a companhia daqueles cujo temperamento é semelhante ao nosso, daqueles cujos pontos de vista concordam com os nossos. Não é algo que pertença apenas à natureza humana, mas é antes algo espiritual e sobrenatural. O amor nos liga de coração àqueles em quem percebemos algo de Cristo. Portanto, trata-se de muito mais do que de espírito fraterno: abrange a todos em quem podemos ver a imagem do Filho de Deus. Por conseguinte trata-se de amarmos aos homens por amor a Cristo, devido aquilo que vejo de Cristo na pessoa deles. E é o Espírito Santo quem me atrai e conquista para o Cristo que habita em meus irmãos e irmãs na fé.
Assim sendo, o verdadeiro amor cristão não é apenas um dom divino, mas é algo que depende inteiramente de Deus, para seu fortalecimento e exercício. Precisamos orar diariamente para que o Espírito Santo ponha o amor em ação e o manifeste, dirigindo-o tanto a Deus como ao Seu povo aquele amor que o Senhor derramou em nossos corações.
5. Tiramos proveito da Palavra quando exercemos corretamente o amor cristão.
Isso é feito não quando buscamos agradar aos nossos irmãos ou nos tornarmos simpáticos segundo a estima deles, mas quando buscamos verdadeiramente o bem deles. "Nisto conhecemos que amamos os filhos de Deus, quando amamos a Deus e praticamos os seus mandamentos" (I João 5:2). E qual será o teste que verifica o grau de meu amor pessoal ao próprio Deus? Esse teste é a minha observância dos Seus mandamentos (ver João 14:15, 21, 24; 15:10, 14). O caráter genuíno e a intensidade de meu amor a Deus não podem ser aquilatados pelas minhas palavras, nem pela beleza com que entôo os Seus louvores, e, sim, pela minha obediência à Sua Palavra. E o mesmo princípio opera no caso de minhas relações com os meus irmãos na fé.
Sim, "nisto conhecemos que amamos os filhos de Deus quando amamos a Deus e praticamos os Seus mandamentos". Se porventura exploro demoradamente as falhas de meus irmãos e irmãs, se estou andando em companhia deles mas procurando sempre a minha vontade própria e o que me agrada, então é que não os "amo". "Não aborrecerás a teu irmão no teu íntimo; mas repreenderás o teu próximo, e por causa dele não levarás sobre ti pecado" (Levítico l0:17). O amor deve ser exercido segundo os moldes divinos, e nunca às custas de deixar eu de amar a Deus; de fato, é somente quando Deus recebe o lugar que Lhe convém, em meu coração, é que o amor espiritual pode ser exercido por mim para com meus irmãos. O verdadeiro amor espiritual não consiste em procurar satisfazê-los, e, sim, de agradar a Deus e de ajudá-los. Mas só poderei ajudá-los na vereda ordenada por Deus.
Mimar e afagar uns aos outros não é demonstração de amor fraternal; exortarmo-nos uns aos outros, para que prossigamos avante na carreira que nos está proposta, proferindo palavras (reforçadas pelo exemplo do nossa vida diária) que encorajem a outros a "olhar fixamente para Jesus", é atitude muito mais útil do que aquela outra. O amor fraternal é algo santo, e não algum sentimento carnal ou alguma indiferença frouxa acerca da senda que nos convém palmilhar. Os "mandamentos" de Deus são expressões do seu amor, bem como de sua autoridade; por isso mesmo, se os ignoramos, apesar de buscarmos ser gentilmente afeiçoados uns aos outros, isso não será "amar", sob hipótese alguma. O exercício do amor deve estar em perfeita conformidade com a verdade revelada de Deus. Cumpre-nos amar "na verdade" (III João 1).
6. Beneficiamo-nos realmente da Palavra quando aprendemos sobre as variadas manifestações do amor cristão.
Amar aos irmãos e manifestar o amor de todas as maneiras possíveis é nosso dever inequívoco. Porém, em ponto algum podemos fazer isso mais verdadeira e eficazmente, e com menos afetação e ostentação, do que em termos comunhão com os irmãos na fé, diante do trono da graça. Existem irmãos e irmãs em Cristo, nos quatro cantos da terra, acerca de quem nada sei, no tocante aos detalhes de suas provações e conflitos, de suas tentações e tristezas; a despeito disso, posso mostrar-lhes o meu amor, derramando o meu coração diante de Deus em favor deles, mediante a súplica e a intercessão intensas. Não há outra maneira do crente manifestar melhor sua afetuosa consideração para com seus companheiros de peregrinação senão utilizar-se de toda a sua participação no Senhor Jesus em favor deles, implorando-lhe a misericórdia e a graça em prol dos mesmos.
"Ora, aquele que possuir recursos deste mundo e vir a seu irmão padecer necessidade e fechar-lhe o seu coração, como pode permanecer nele o amor de Deus? Filhinhos, não amemos de palavra, nem de língua, mas de fato e de verdade" (I João 1:17,18). Muitos dentre o povo de Deus são extremamente pobres quanto a bens deste mundo. E chegam a indagar por que as coisas lhes correm assim; é tudo uma grande provação por que passam.
Uma das razões pelas quais o Senhor permite isso é dar oportunidade, a outros de Seus santos, para que se compadeçam daqueles e ministrem às suas necessidades temporais, dentre a abundância que Deus lhes propiciou. O verdadeiro amor é intensamente prático: não considera por demais vil a qualquer empreendimento, nem por demais humilhante a qualquer tarefa, sempre que os sofrimentos de algum irmão em Cristo possam ser aliviados. Quando o Senhor do amor Se encontrava na face da terra, os Seus pensamentos se voltaram para a fome física das multidões e para o conforto dos pés de Seus discípulos!
Mas existem alguns, dentre o povo do Senhor, que são tão pobres que pouquíssimos bens possuem para distribuí-los a outros. Nesse caso, que poderão fazer? Ora, que tornem suas as preocupações espirituais de todos os santos; que se interessem em favor deles diante do trono da graça! Com base em nossas próprias circunstâncias e em nossas vidas, sabemos quais devem ser os sentimentos, as tristezas e as queixas de outros santos. Com base em nossa triste experiência, sabemos quão fácil é nos deixarmos invadir pelo espírito de descontentamento e de murmuração. Mas também sabemos que, sempre que clamamos ao Senhor, para que a Sua mão aquietadora seja imposta em nós, ou quando Ele nos traz à memória alguma promessa preciosa, grande paz e consolo nos enche o coração.
Assim, pois, roguemos a Deus para que seja igualmente gracioso para com todas as aflições dos santos. Procuremos sentir e tornar nossas as cargas alheias, chorando com aqueles que choram, regozijando-nos com aqueles que se regozijam. Desse modo haveremos de expressar verdadeiro amor em Cristo, pelas suas pessoas, interessando o Senhor deles e nosso, para que use de sua bondade eterna para com eles.
É dessa maneira que o Senhor Jesus atualmente manifesta o Seu amor pelos Seus santos: "Por isso também pode salvar totalmente os que por eles se chegam a Deus, vivendo sempre para interceder por eles" (Hebreus 7:25). Cristo torna Suas a causas e as preocupações deles. Vive rogando em favor deles diante de Deus Pai. Ninguém é esquecido por Ele – cada ovelha solitária o Bom Pastor a leva no coração. Por conseguinte, quando expressamos nosso amor aos irmãos, em orações diárias, para que sejam supridas Suas variadas necessidades, somos levados a desfrutar de comunhão com o nosso grande Sumo Sacerdote.
E não somente isso, mas os santos, nesse processo, se nos tornarão mais caros – nossas próprias orações em favor daqueles que são amados por Deus, aumentará o nosso amor e a nossa estima por eles, como tais. Não poderíamos mesmo trazê-los no coração, até ao trono da graça, se em nossos corações não tivéssemos um verdadeiro afeto por eles. A melhor maneira de dominarmos qualquer sentimento de amargura contra algum irmão em Cristo que nos tenha ofendido, é dedicarmo-nos à oração em favor dele.
7. Derivamos proveito autêntico da Palavra quando ali somos ensinados como se deve cultivar apropriadamente o amor cristão.
Sugerimos aqui duas ou três regras a respeito da questão.
Em primeiro lugar, reconhecendo desde o começo que há muito no prezado leitor (como em mim também) que serve para testar severamente o amor dos irmãos, também muito haverá neles que sirva de teste ao nosso amor "suportando-nos uns aos outros em amor..." (Efésios 4:3). Essa é uma grande admoestação acerca desse problema, e que todos nós precisarmos entesourar no coração. Sem dúvida é impressionante o fato de que a primeira qualidade do amor espiritual é que "O amor é paciente" (I Cor. 13:4).
Em segundo lugar, a melhor maneira de cultivar qualquer virtude ou graça cristã consiste em exercê-la. Falar e traçar teorias a respeito de alguma virtude de nada vale, a não ser que a ponhamos em ação. Muitas são as queixas que se ouvem, em nossos dias, acerca das parcas manifestações do amor em tantos lugares – e isso é um motivo a mais pelo qual devo procurar dar melhor exemplo! Não permitamos que a frieza e a falta de gentileza dos outros venham a abafar o nosso amor, mas antes, façamos o que se lê em Romanos 12:12: "Vence o mal com o bem". Que você pondere, sob oração, pelo menos uma vez por semana, acerca do que se diz em I Coríntios 13.
Em terceiro lugar, que você verifique se o seu coração está se aquecendo na luz e no calor do amor de Deus. Cada ser gera o que lhe é semelhante. Quando mais nos ocuparmos, em verdade, com o amor invariável, infalível e insondável de Cristo para conosco, tanto mais o nosso coração se voltará amorosamente para com aqueles que lhe pertencem.
Uma belíssima ilustração a esse respeito se acha no fato de que o apóstolo que mais escreveu sobre o amor fraternal foi exatamente aquele que se recostou ao peito do Senhor Jesus.
Que o Senhor outorgue toda a graça necessária, tanto a você como a mim (que acima de todos precisa dar ouvidos à Palavra), para que possam observar essas regras, visando ao louvor da glória da graça divina e o bem de Seu povo amado.
Os ímpios vivem na busca incessante da alegria, mas sem nunca a encontrarem: ocupam-se e exaurem-se em sua procura, mas tudo em vão. Visto que os seus corações se afastaram decididamente do Senhor, olham para este mundo em busca de alegria, ainda que aqui ela não exista; rejeitando a substância, correm diligentemente após as suas sombras, somente para serem escarnecidos por elas.
Faz parte dos decretos soberanos dos céus que coisa alguma pode tornar felizes aos pecadores, senão Deus, na pessoa de Jesus Cristo. Mas é exatamente nisso que os incrédulos não crêem, pelo que também vão de criatura a criatura, de uma cisterna rota para outra, perguntando onde se pode encontrar a melhor alegria. Cada coisa terrena que os atrai, promete-lhes: "A alegria só pode ser achada em mim". Mas logo ficam desapontados. Não obstante, não cessam de procurar a alegria, hoje, naquilo que ontem os tinha enganado. Se, após muitas tentativas eles descobrem a futilidade de um conforto promissor, voltam-se para outro qualquer, dando-se com eles o que disse o Senhor Jesus: "Quem beber desta água tornará a ter sede" (João 4:13).
Voltando-nos agora para o outro extremo: Há certos crentes que imaginam que regozijar-se é um pecado. Não duvido que muitos de vocês se surpreenderão ao ouvir o que diremos agora; mas que esses se mostrem gratos ao Senhor por terem sido espiritualmente criados em um ambiente mais ensolarado, suportando tolerantemente aqueles que foram menos favorecidos. Alguns crentes têm sido ensinados – principalmente pela força do exemplo, ou como um subentendido, e não por ensinamento direto – que o seu dever é viverem na melancolia. Esses imaginam que os sentimentos de alegria são produzidos pelo diabo, que se disfarçada em anjo de luz. Concluem eles que a felicidade, em um mundo de pecado, como aquele em que vivemos, é praticamente uma espécie de iniqüidade. Julgam ser uma presunção se regozijarem no conhecimento do fato de que os seus pecados foram perdoados; e se porventura vêem novos convertidos se regozijando no Senhor, não se demoram a dizer-lhes que em breve estarão flutuando no Poço do Desânimo. A todos quantos concebem tais pensamentos, exortamos, sob oração, que ponderem sobre o assunto durante os minutos seguintes.
"Regozijai-vos sempre" (I Tessalonicenses 5:16). Sem dúvida não pode ser inseguro fazer aquilo que Deus nos ordenou. O Senhor nunca estabeleceu qualquer embargo contra a alegria. Não, mas é Satanás quem se esforça por fazer-nos dependurar as nossas harpas. Não existe qualquer preceito nas Escrituras que nos ordene: "Entristecei-vos no Senhor sempre: uma vez mais o digo, entristecei-vos". Pelo contrário, há uma exortação vazada nos seguintes termos: "Exultai, ó justos, no SENHOR! Aos retos fica bem louvá-Lo" (Salmos 33:1).
Prezado leitor, se você é um crente verdadeiro (e já é tempo de você submeter-se ao teste das Escrituras, certificando-se sobre esse particular), então Cristo lhe pertence, e tudo quanto se acha nEle também é seu. Ele lhe ordena: "Comei e bebei, amigos; bebei fartamente, ó amados" (Cantares 5:1). O único pecado que alguém pode cometer contra o banquete de amor do Senhor é ficar encolhido a um canto. "Ouvi-me atentamente, comei o que é bom, e vos deleitareis com finos manjares" (Isaías 55:2). E essas palavras não foram ditas para aqueles que já se encontram nos céus, e, sim, para os santos que ainda vivem à face da terra. E isso permite-nos dizer que:
1. Tiramos proveito real da Palavra quando percebemos que a alegria é um dever.
"Alegrai-vos sempre no Senhor; outra vez digo, alegrai-vos" (Filipenses 4:4). O Espírito Santo, neste ponto, fala acerca da alegria como um dever pessoal, presente e permanente, para todos quantos fazem parte do povo de Deus. O Senhor não deixou a nosso bel-prazer estar alegres ou estar tristes, mas antes, estabeleceu que a felicidade é um dever para nós. Não regozijar-se é um pecado de omissão. Da próxima vez que você se encontrar com um crente que transborda de alegria, não o repreenda; ao invés de pôr em dúvida a fonte divina de seu júbilo, julgue a si mesmo devido ao seu estado de desânimo.
Naturalmente que não devemos pensar aqui em alguma alegria carnal, isto é, uma alegria que tem origem em questões carnais. É inútil alguém buscar a alegria nas riquezas terrenas, porquanto, com freqüência, adquirem asas e se vão embora. Outros procuram desfrutar alegria em seu círculo familiar; mas este permanece completo apenas por alguns anos, quando muito. Por isso mesmo, se nos devemos alegrar "sempre", nossa alegria deverá estar firmada em objetos que perduram para sempre.
Por semelhante modo, não devemos pensar aqui em alguma alegria fanática. Existem certas pessoas, dotadas de natureza muito emotiva, que só se sentem felizes quando estão meio desvairadas; mas terrível é a reação. Não, aludimos aqui a um deleite inteligente, constante, proveniente do coração, firmado no próprio Deus. Cada atributo divino, quando é contemplado pelos olhos da fé, faz o coração remido entoar louvores. Cada doutrina do evangelho, quando é verdadeiramente apreendida, provoca satisfação e louvor.
A alegria é mesmo um dever cristão. Talvez você, por esta altura, esteja prestes a exclamar: "Mas minhas emoções de alegria e de tristeza não estão sob o meu controle; não posso evitar de ficar triste ou alegre, conforme o ditarem as circunstâncias". Porém, repetimos: Alegrar-se no Senhor é um mandamento divino; e a obediência a Ele depende em grande parte de nós mesmos. Tenho a responsabilidade de controlar as minhas próprias emoções. Naturalmente que não poderei evitar ficar triste na presença de pensamentos entristecedores, mas poderei recusar-me a permitir que minha mente se demore nos mesmos. Poderei derramar meu coração diante do Senhor, pedindo alívio, lançando sobre Ele os meus fardos. Posso buscar a graça para meditar acerca da Sua bondade, de Suas promessas e do glorioso futuro que me aguarda.
Preciso decidir se prosseguirei e me postarei de pé sob a luz, ou se me ocultarei entre as sombras. Não regozijar-se no Senhor é muito mais do que um infortúnio; é um pecado que precisa ser confessado e abandonado.
2. Tiramos proveito real da Palavra quando aprendemos o segredo da verdadeira alegria.
Esse segredo nos é revelado em 1 João 1:3,4; "Ora, a nossa comunhão é com o Pai e com seu Filho Jesus Cristo. Estas cousas, pois, vos escrevemos para que a vossa alegria seja completa". Quando consideramos quão pequena (ínfima) é a nossa comunhão com Deus, quão superficial é ela, não é para admirar que tantos crentes se sintam comparativamente destituídos de alegria. Algumas vezes cantamos: "Oh! Dia alegre, eu abracei Jesus e nEle a salvação; O gozo deste coração eu mais e mais publicarei". Sim, mas se porventura essa felicidade tiver de ser mantida continuamente, que a mente e o coração se ocupem de Cristo. Somente onde impera a fé, e o amor conseqüente, é que pode transbordar a alegria.
"Alegrai-vos sempre no Senhor" (Filipenses 4.4). Não há outro objeto no qual nos possamos regozijar "sempre". Tudo o mais varia e é inconstante. Aquilo que nos agrada no dia de hoje pode provocar-nos asco amanhã. Mas o Senhor é sempre o mesmo, podendo Ele ser motivo da nossa alegria nos períodos de adversidade, tanto quanto nos períodos de prosperidade. Como reforço desse pensamento, declara o versículo imediato: "Seja a vossa moderação conhecida de todos os homens. Perto está o Senhor" (Filipenses 4:5).
Que sejamos equilibrados em todas as coisas externas; não nos deixemos envolver arrebatadamente por elas, quando forem muito agradáveis, e nem nos perturbemos quando elas nos derem motivo de desgosto. Não nos deixemos exaltar quando o mundo nos sorri, e nem fiquemos descoroçoados quando parece que o mundo ralha conosco. Mantenhamos uma estóica indiferença para com os confortos externos – por que razão ficaríamos tão ocupados com essas coisas, quando o próprio Senhor está "próximo"?
Se porventura somos violentamente perseguidos, se as nossas perdas temporais são pesadas, consideremos que o Senhor é "socorro bem presente nas tribulações" (Salmos 46:1) – sempre pronto a dar-nos Seu apoio e socorro, contanto que nos abriguemos em Seus braços. Ele cuidará de nós de modo que não nos permitirá andar "ansiosos de cousa alguma" (Filipenses 4:6). Os indivíduos mundanos vivem sobrecarregados de cuidados os mais exigentes; mas essa não deveria ser jamais a atitude dos crentes.
"Tenho-vos dito estas cousas para que o meu gozo esteja em vós, e o vosso gozo seja completo" (João 15:11). Quando ponderamos sobre essas preciosas palavras de Cristo com a mente, e as entesouramos no coração, é impossível que não produzam em nós a alegria. O coração alegre se firma no conhecimento crescente da verdade e em amá-la, conforme a verdade se acha em Jesus. "Achadas as tuas palavras, logo as comi; as tuas palavras me foram gozo e alegria para o coração" (Jeremias 15:16). Sim, é quando nos alimentamos e banqueteamos com as palavras do Senhor que nossa alma se fortalece, e então somos impelidos a cantar e a fazer melodia em nossos corações, louvando ao Senhor.
"Então irei ao altar de Deus, de Deus que é a minha grande alegria" (Salmos 43:4). Conforme Spurgeon disse com grande aptidão: "Com que exultação os crentes devem aproximar-se de Cristo, o qual é o antítipo do altar! Uma luz mais clara deveria intensificar-nos o desejo. O salmista não se importava com o altar como tal, porquanto não cria no paganismo dos rituais – mas a sua alma desejava comunhão espiritual, comunhão com o próprio Deus, na verdade. De que valeriam todos os ritos de adoração, se Deus não estivesse neles? O que seriam, realmente, senão conchas vazias e ressequidas cascas? Notemos o santo arrebatamento com que Davi considera o seu Senhor! Deus não era apenas a sua alegria, mas também a sua grande alegria: não era apenas a fonte da alegria, o doador da alegria ou o mantenedor da alegria, mas antes, era a própria alegria. A margem das traduções inglesas diz: "o regozijo de minha alegria", isto é, a alma, a essência, as próprias entranhas da minha alegria.
"Ainda que a figueira não floresce, nem há fruto na vide; o produto da oliveira mente, e os campos não produzem mantimento; as ovelhas foram arrebatadas do aprisco e nos currais não há gado, todavia eu me alegro no SENHOR, exulto no Deus da minha salvação" (Habacuque 3:17,18). Ora, isso é algo acerca do que os indivíduos mundanos nada conhecem, em absoluto; mas, infelizmente, também é uma experiência desconhecida para muitos crentes professos! É em Deus que se origina a fonte da alegria espiritual e eterna; pois dEle é que tudo flui. Isso foi reconhecido pela antiga congregação judaica, quando foi dito: "Todas as minhas fontes são em Ti" (Salmos 87:7).
3. Tiramos real proveito da Palavra quando ali nos é ensinado qual o grande valor da alegria.
Para a alma, a alegria é o que as asas são para um passarinho, capacitando-nos a subir bem acima das coisas deste mundo. Isso fica claramente destacado em Neemias 8:10, onde se lê: "A alegria do Senhor é a vossa força". Os dias de Neemias assinalaram um ponto crucial na história do povo de Israel. Da Babilônia retornara um remanescente judeu para a Palestina. A lei, que desde há muito vinha sendo ignorada pelos cativos, agora estava sendo novamente estabelecida como a norma da comunidade recentemente fundada. Eles tinham se lembrado dos muitíssimos pecados cometidos no passado, e as lágrimas muito naturalmente se tinham misturado com as ações de graças, devido ao fato de que agora eles eram novamente uma nação, dotados da adoração divina e da lei divina entre eles. E o líder da nova nação, conhecendo perfeitamente bem que se o espírito do povo começasse a hesitar não poderia enfrentar e dominar as dificuldades de sua posição, disse-lhe: "Este dia é consagrado ao nosso Senhor; portanto não vos entristeçais, porque a alegria do Senhor é a vossa força" (Neemias 8: l0).
A confissão de pecado e a lamentação por ele têm o seu devido lugar; e a comunhão com Deus não pode ser mantida sem esses elementos. Não obstante, quando o verdadeiro arrependimento é exercido e as coisas são corrigidas defronte de Deus, precisamos olvidar as coisas que para trás ficam, "avançando para as que diante de mim estão" (Filipenses 3:13). E só podemos avançar com alacridade quando os nossos corações estão cheios de alegria. Quão pesados os passos daquele que se aproxima do lugar onde jaz, frio na morte, um ente amado! Quão enérgicos os seus movimentos, porém, quando ele vai ao encontro de sua noiva! A lamentação não basta para as batalhas desta vida. Sempre que surge o desespero, não há mais o poder da obediência. Sc não houver alegria, também não poderá haver adoração.
Meu prezado leitor, há tarefas que precisam ser realizadas, serviços ao próximo que precisam ser cumpridos, tentações a ser vencidas, batalhas a ser combatidas; e só estamos experimentalmente aptos para essas coisas quando os nossos corações se regozijam no Senhor. Se nossas almas estiverem descansando em Cristo, se nossos corações estiverem repletos de tranqüila alegria, então o nosso trabalho será fácil, nossos deveres nos parecerão agradáveis, as tristezas nos parecerão suportáveis e a constância será possível. Nem a memória contrita dos fracassos do passado e nem resoluções veementes nos farão avançar. Se o braço tiver de ferir com vigor, é preciso que fira sob as ordens de um coração leve. Acerca do próprio Salvador ficou registrado: "O qual, em troca da alegria que lhe estava proposta, suportou a cruz, não fazendo caso da ignomínia." (Hebreus 12:2).
4. Tiramos benefício da Palavra quando damos atenção à raiz da alegria.
O manancial da alegria é a fé: "E o Deus da esperança vos encha de todo o gozo e paz no vosso crer." (Romanos 15:13). Há uma admirável provisão no evangelho, tanto naquilo que exige de nós como naquilo que nos confere, outorgando aos corações crentes uma aura de calma e de tranqüilidade. O evangelho tira a carga da culpa falando de paz às consciências pesadas. Remove o temor de Deus e o terror da morte que calcam a alma, enquanto ela está sob a condenação. Confere-nos o próprio Deus como porção dos nossos corações, como o grande objeto de nossa comunhão. O evangelho outorga alegria, porque a alma descansa em Deus.
Porém, essas bênçãos se tornam nossas somente quando delas nos apropriarmos pessoalmente. É mister que a fé as receba; e quando isso ocorre, o coração é invadido de paz e alegria. E o segredo da alegria constante consiste de mantermos aberto o canal, continuando tal como começáramos. É a incredulidade que entope o canal. Se houver apenas ínfimo calor em torno da ponta de um termômetro, não nos poderemos admirar que o mercúrio assinale um grau tão baixo. Assim também, se houver uma fé fraca, a alegria não poderá ser intensa. Por isso, precisamos orar diariamente para recebermos nova percepção sobre a preciosidade do evangelho, nova apropriação de seu bendito conteúdo – e então haverá a renovação do nosso regozijo.
5. Beneficiamo-nos realmente da Palavra quando temos o cuidado de conservar a nossa alegria.
A "alegria no Espírito Santo" é algo inteiramente diferente da leveza natural de espírito. É produto do fato de que o Consolador habita em nossos corações e em nossos corpos, revelando-nos a Pessoa de Cristo, respondendo a todas as nossas necessidades de perdão e de purificação, assim fazendo-nos gozar de paz com Deus; e formando em nós a Pessoa de Cristo, para que Ele reine em nossas almas, subjugando-nos ao Seu controle. Não existe circunstância de prova ou de tentação que nos obrigue a interromper a nossa alegria, porquanto a nós foi determinado: "Regozijai-vos sempre" (I Tessalonicenses 5:16). Aquele que baixou essa ordem conhece tudo sobre o lado negro de nossas vidas, os pecados e as tristezas que nos cercam, a "muita tribulação" mediante a qual nos convém entrar no reino de Deus.
A hilaridade natural não leva em conta os "ais" de nossa sorte terrena. Logo se afrouxa, na presença das durezas próprias da vida: não pode sobreviver à perda de parentes, amigos ou da saúde. Porém, a alegria à qual somos exortados, não se limita a quaisquer séries de circunstâncias ou tipos de temperamento; e nem flutua de acordo com nossos sentimentos e com nossa sorte.
A natureza poderá impor-se aos que estão sujeitos a ela, conforme o próprio Jesus chorou diante do sepulcro de Lázaro. No entanto, os crentes podem exclamar juntamente com Paulo: "... entristecidos, mas sempre alegres..." (II Coríntios 6:10). O crente pode ser sobrecarregado de responsabilidades e a sua vida pode sofrer uma série de reveses; seus planos podem ser frustrados e suas esperanças podem ser arruinadas; o sepulcro pode fechar-se sobre entes amados que emprestaram ânimo e doçura à sua vida, e contudo, a despeito de todos os seus desapontamentos e tristezas, o seu Senhor lhe ordena: "Regozija-te!"
Eis os apóstolos, no cárcere de Filipos, na masmorra interior, com os pés atados ao tronco, com as costas sangrando e ardendo devido aos terríveis açoites que tinham recebido. E em que estavam ocupados? Em queixumes e ais? Indagando o que tinham feito para merecer tal tratamento? Não! À meia-noite, Paulo e Silas oravam e entoavam louvores a Deus (Atos 16:25). Não havia qualquer pecado em suas vidas, porque estavam andando na obediência, pelo que também o Espírito Santo sentia-se em liberdade para tomar aquilo que era de Cristo, mostrando-o aos seus corações, de tal modo que transbordavam de alegria. Sim, se tivermos de conservar nosso regozijo, precisamos evitar entristecer ao Espírito Santo.
Quando Cristo ocupa posição suprema, no nosso coração, a alegria o domina. Quando Ele é o Senhor de cada desejo, a fonte de cada motivo, o subjugador de cada paixão, então é que a alegria toma conta dos nossos corações e o louvor nos ascende dos lábios. A possessão de tal alegria envolve a necessidade de tomarmos a cruz a cada hora do dia; Deus ordenou as coisas de tal modo que não podemos ter uma coisa sem a outra. O auto-sacrifício, o decepar da mão direita (espiritualmente falando), o arrancar do olho direito, são as avenidas através das quais o Espírito de Deus entra em nossas almas, trazendo juntamente com Ele a alegria do sorriso aprovador de Deus e a certeza de Seu amor e de Sua presença.
Também muito depende da atitude com que iniciamos cada dia, em nossa vida neste mundo. Se esperamos que as pessoas nos agradem ou nos elogiem, os desapontamentos nos deixarão aborrecidos. Se queremos que os outros nos alimentem o orgulho, nos sentiremos desprezados quando assim não acontecer. O segredo da felicidade consiste em nos esquecermos de nós mesmos e em buscarmos a felicidade alheia. Assim como "Mais bem-aventurado é dar que receber" (Atos 20:25), assim também sentimos maior felicidade em servir aos outros do que em sermos servidos.
6. Tiramos real proveito da Palavra quando nos mostramos constantes em evitar os empecilhos que entravam a alegria.
Por que razão um tão grande número de crentes goza de tão pouca alegria? Porventura não nasceram todos eles filhos da luz e filhos do dia? Esse termo, "luz", que é tão freqüentemente utilizado nas Escrituras para descrever-nos a natureza de Deus e as nossas relações com Ele, e nosso destino futuro, é extremamente sugestivo acerca da alegria e do regozijo. Que outra coisa, existente na natureza, seria tão benéfico e belo como a luz? "Deus é luz, e não há nEle treva nenhuma" (I João 1:5).
É somente quando andamos com Deus, na luz, que nossos corações podem ser realmente jubilosos. É quando permitimos deliberadamente a intervenção de coisas que atrapalham nossa comunhão com Ele que a nossa alma se torna gélida e obscurecida. É a indulgência da carne, a fraternização com o mundo e o enveredar por sendas proibidas que arruinam a nossa vida espiritual, tirando-nos toda a alegria.
Davi precisou clamar: "Restitui-me a alegria da tua salvação, e sustenta-me com um espírito voluntário" (Salmo 51:12). Davi se tornara lascivo e auto-indulgente. Quando as tentações o assaltavam, ele não tinha qualquer poder para resistir. Por isso ele cedia às tentações, e um pecado o conduzia a outro. Estava desviado, fora do contato com Deus. O pecado não confessado pesava sobre a sua consciência.
Oh, meu irmão e minha irmã em Cristo, se tivermos de ser resguardados de tal queda, se não quisermos perder nossa alegria espiritual, então precisamos negar ao próprio "eu", precisamos crucificar os afetos e as concupiscências da carne. Precisamos estar perenemente vigilantes contra a tentação. Devemos passar muito tempo de joelhos. Precisamos beber com freqüência da Fonte de águas vivas. Precisamos estar cem por cento dedicados ao Senhor.
7. Beneficiamo-nos da Palavra quando preservamos diligentemente o equilíbrio entre a tristeza e a alegria.
Se a fé cristã se adapta admiravelmente bem à produção da alegria, também tem uma tendência e um desígnio quase idênticos para produzir a tristeza – uma tristeza que é solene, máscula e nobre: "Entristecidos, mas sempre alegres..." (II Coríntios 6:10). Essa é a grande regra da vida cristã. Se a fé lançar a sua luz sobre as nossas condições, sobre a nossa natureza, sobre os nossos pecados, então a tristeza será um dos efeitos desse fato. Não existe algo mais desprezível em si mesmo, nem sinal mais certo de um caráter superficial e de ocupações triviais do que uma alegria sem variação, que não repouse nos alicerces profundos de uma tristeza calma e paciente – tristeza, porque sei o que sou e o que deveria ser; tristeza, porque contemplo o mundo e vejo as chamas do inferno a rebrilhar por detrás do júbilo e das gargalhadas, sabendo bem na direção do que os homens se precipitam rapidamente.
Aquele que foi ungido com o óleo da alegria, mais do que os seus companheiros (Salmos 45:7), também era "Homem de dores e que sabe o que é padecer." (Isaías 53:3). E ambos esses itens (até certo ponto) se repetem nas operações do Seu evangelho, em cada coração daqueles que verdadeiramente O acolhem.
Por um lado, pois – devido aos temores que assim são removidos de nós e às esperanças que são insufladas em nós, e ao companheirismo a que assim somos introduzidos, somos ungidos com o óleo da alegria. Por outro lado – devido ao senso de nossa própria vileza, que o evangelho nos ensina, devido ao conflito entre a carne e o Espírito, também nos assoberba uma tristeza que encontra expressão na exclamação: "Desventurado homem que sou!" (Romanos 7:24). Esses dois aspectos não se contradizem um ao outro, mas se complementam. O Cordeiro precisava ser consumido juntamente com "ervas amargas" (Êxodo 12:8).
AS ESCRITURAS E O AMOR
Nos primeiros capítulos, procuramos salientar alguns dos meios pelos quais podemos verificar se a nossa leitura e pesquisa das Escrituras realmente estão servindo de bênção para as nossas almas. Muitas pessoas andam equivocadas quanto a esse particular, confundindo o desejo intenso de adquirir conhecimento com o amor espiritual à verdade (II Tessalonicenses 2:10), na suposição de que a adição a seu cabedal de conhecimentos é a mesma coisa que o desenvolvimento na graça. Entretanto, muito depende da finalidade ou alvo que temos, quando examinamos a Palavra de Deus. Se se trata da simples questão de nos familiarizarmos com o seu conteúdo, de nos tornarmos melhor versados quanto a seus detalhes, é bem provável que o canteiro de nossas almas permanecerá na esterilidade; porém, se com desejo regado por oração a examinamos para ser corrigidos, para sermos sondados pelo Espírito Santo, para amoldarmos os nossos corações a Seus santos requisitos, então podemos esperar a bênção divina.
Nos capítulos precedentes temo-nos esforçado por salientar os itens vitais por meio dos quais podemos aquilatar o progresso que estamos fazendo no campo da piedade pessoal. Vários critérios foram ventilados, mediante os quais tanto o pregador como o ouvinte podem medir-se honestamente. Temos frisado testes tais como: Estou adquirindo ódio maior contra o pecado, e estou sendo praticamente libertado de seu poder e de sua poluição? Estou obtendo maior intimidade com Deus e com o Seu Cristo? Minha vida de oração está se tornando mais saudável? Minhas boas obras se têm tornado mais abundantes? Minha obediência é mais completa e mais jubilosa? Tenho-me separado mais do mundo, em meus afetos e em minha conduta? Estou aprendendo a fazer uso correto e proveitoso das promessas de Deus, deleitando-me dessa maneira em Sua pessoa, para que a sua alegria seja a minha força diária?
A menos que eu possa dizer, verdadeiramente, que essas coisas correspondem à minha experiência (pelo menos até certo ponto), então é de temer grandemente que os meus estudos bíblicos de pouco ou nada me estão aproveitando.
Mas, dificilmente poderíamos julgar próprio que estes capítulos chegassem à sua conclusão sem nos devotarmos à consideração do amor cristão. A extensão em que essa graça espiritual está sendo cultivada e regulada ou não, fornece outro índice para a medida em que minhas buscas, na Palavra de Deus, me estão ajudando espiritualmente. Ninguém poderá ler as Escrituras, com qualquer medida de atenção, sem descobrir o quanto elas têm a dizer sobre o amor; portanto, compete, a cada um de nós, averiguar, cuidadosamente e sob oração, se essa virtude se encontra em nós em estado rígido e se está sendo corretamente exercida.
O tema do amor cristão é amplo demais para considerarmos todas as suas variadas facetas dentro dos limites de um único capítulo. Na realidade, deveríamos começar o exame contemplando o exercício do amor que temos para com Deus e para com o seu Cristo; porém, visto que isso já foi abordado pelo menos superficialmente nos capítulos anteriores, deixaremos esse aspecto de lado. Por igual modo, muito poderia ser dito acerca do amor natural que devemos ter para com os nossos semelhantes, os quais pertencem à mesma família que nós; porém, há menor necessidade de escrevermos sobre esse tema do que sobre aquele que no momento sobe à nossa mente. Neste ponto propomo-nos a focalizar a nossa atenção sobre o amor espiritual aos irmãos, aos nossos irmãos em Cristo.
1. Estamos tirando proveito das Escrituras quando percebemos a grande importância do amor cristão.
Em parte alguma isso é ressaltado mais enfaticamente do que na epístola de I Coríntios 13. Ali, o Espírito Santo diz-nos que embora um crente professo possa falar fluente e eloqüentemente sobre as realidades divinas, se não tiver amor, será como o metal, o qual, embora faça ruído ao ser tangido, não tem vida alguma. Que embora um crente profetize e compreenda todos os mistérios e possua todo o conhecimento, e ainda que a sua fé seja tão potente ao ponto de realizar milagres, contudo, se lhe faltar o amor, espiritualmente será sem valor. Sim, que embora um crente seja benévolo e dê todas as suas possessões materiais para sustento dos pobres, e ainda que entregue seu corpo ao martírio, todavia, se lhe faltar o amor, isso não lhe será de qualquer proveito. Quão imenso é o valor aqui conferido ao amor; e quão essencial para mim é certificar-me de que o possuo!
Disse nosso Senhor: "Nisto conhecerão todos que sois meus discípulos, se tiverdes amor uns aos outros" (João 13:35). Visto que Cristo fez do amor o grande sinal do discipulado cristão, isso nos permite ver, uma vez mais, a grande importância do amor. Trata-se de um teste essencial acerca da genuinidade de nossa profissão cristã: não podemos amar a Cristo a menos que amemos a Seus irmãos, porquanto estão todos ligados no mesmo "feixe dos que vivem com o SENHOR" (I Samuel 25:29). O amor por aqueles a quem o Senhor remiu é uma evidência segura de que possuímos o amor espiritual e sobrenatural do próprio Senhor Jesus. Sempre que o Espírito Santo realiza um nascimento sobrenatural, fará igualmente que essa nova vida entre em exercício, e também produzirá nos corações, nas vidas e na conduta dos santos as suas graças sobrenaturais, uma das quais consiste em amarmos a todos quantos pertencem a Cristo, por amor a Cristo.
2. Estamos nos beneficiando com a Palavra quando aprendemos a perceber as lamentáveis perversões do amor cristão.
Assim como a água não se eleva acima do seu próprio nível, assim também o homem natural é incapaz de compreender, e, menos ainda, de apreciar, qualquer realidade espiritual (I Coríntios 2:14). Portanto, não nos deveríamos surpreender quando cristãos professos, não regenerados, confundem o sentimentalismo humano e aquilo que agrada à carne com o amor espiritual. O mais entristecedor ainda é ver alguns, dentre o próprio povo de Deus, que vivem em plano tão inferior que confundem a amabilidade e a afabilidade humanas com a rainha de todas as graças cristãs. Pois, apesar de ser verdade que o amor se caracteriza pela mansidão e pela gentileza, contudo, é algo muito diferente das cortesias e gentilezas carnais, e muito superior a elas.
Quantos pais hesitantes têm evitado usar a vara com seus filhos, presas à errônea noção de que o real afeto por eles e o castigo são incompatíveis! Quantas mães insensatas se jactam de que o "amor" reina em seus lares, ao mesmo tempo que desdenham de toda a disciplina corporal! Uma das experiências mais tristes, é passar algum tempo hospedado em lares onde as crianças são completamente estragadas pelos mimos. Isso é uma ímpia perversão do vocábulo "amor" – aplicá-lo à frouxidão moral e à negligência dos deveres paternos. Porém, essa mesma idéia perniciosa governa as mentes de muitas pessoas, em outras conexões e relações.
Se um servo de Deus repreende os métodos carnais e mundanos dessas pessoas, se ele faz pressão sobre a necessidade de atendermos às reivindicações intransigentes de Deus, imediatamente é acusado de ser alguém a quem "falta o amor". Oh, quão terrivelmente as multidões andam enganadas por Satanás, quanto a esse mui importante assunto!
3. Tiramos real proveito da Palavra quando aprendemos a verdadeira natureza do amor cristão.
O amor cristão é uma graça espiritual que permanece nas almas dos santos, juntamente com a fé e a esperança (I Coríntios 13:13). Trata-se de santa disposição, insuflada neles, quando são regenerados (I João 5:1). Não é menos que o amor de Deus derramado em seus corações pelo Espírito Santo (Romanos 5:5). O amor é um princípio justo, que busca o mais alto bem do próximo. É o reverso mesmo do princípio do egoísmo e do interesse próprio, que se encontra em nós por natureza. Consiste não apenas de consideração afetuosa por todos quantos trazem a imagem de Cristo, mas também envolve o poderoso desejo de promover o bem estar dos mesmos.
E não é nenhum sentimento passageiro, que facilmente se sente ofendido, porque é antes uma força dinâmica permanente, que as "muitas águas" da fria indiferença ou que os "dilúvios" da desaprovação não podem apagar e nem afogar (Cantares 8:7). E embora fiquemos muito aquém do grande exemplo de amor, tem idêntica essência ao amor daquele sobre quem foi dito: "...tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até ao fim" (João 13:1).
Não há meio mais seguro e mais certo de obtermos a correta concepção da natureza do amor cristão do que fazermos um estudo completo dele, em sua perfeita exemplificação, que é o Senhor Jesus. E quando falamos em "estudo completo", indicamos a realização de uma pesquisa ampla de tudo quanto está registrado a seu respeito, nos quatro evangelhos, não nos limitando a algumas poucas passagens ou incidentes favoritos. Quando assim fazemos, então descobrimos que o amor de Cristo não somente era benévolo e magnânimo, refletido e gentil, altruísta e inclinado à abnegação, paciente e imutável, mas que também havia muitos outros elementos componentes. Assim é que o amor foi capaz de negar um pedido urgente (João 11:6), de repreender Sua mãe (João 2:4), de usar um açoite de cordas (João 2:15), de repreender severamente Seus discípulos que duvidavam (Lucas 24:25), e de denunciar a indivíduos hipócritas (Mateus 23:13-33).
Sim, o amor pode ser ríspido (Mateus 16:23), indignado (Marcos 3:5). O amor espiritual é uma realidade santa: é fiel a Deus, e não transige perante qualquer coisa má.
4. Tiramos verdadeiro proveito da Palavra quando descobrimos que o amor cristão é divinamente transmitido.
"Nós sabemos que já passamos da morte para a vida, porque amamos os irmãos; aquele que não ama permanece na morte" (I João 3: 14). "O amor aos irmãos é o fruto e o efeito de um novo e sobrenatural nascimento, operado em nossas almas pelo Espírito Santo, sendo uma bendita evidência do fato de que fomos escolhidos em Cristo pelo Pai divino, antes de haver mundo. Amar a Cristo e àqueles que Lhe pertencem, faz parte congênita da natureza divina de que Ele nos tornou participantes através do Seu Santo Espírito... Esse amor aos irmãos deve ser um amor peculiar, de modo que ninguém, senão os regenerados, pode possuir, e como ninguém, além deles, pode exercer; doutro modo, o apóstolo não o teria mencionado tão particularmente: é de sorte tal que aqueles que não o possuem também não são regenerados; por isso mesmo está escrito: 'aquele que não ama permanece na morte' ". (S. E. Pierce).
O amor aos irmãos envolve muito, muito mais do que simpatizarmos com a companhia daqueles cujo temperamento é semelhante ao nosso, daqueles cujos pontos de vista concordam com os nossos. Não é algo que pertença apenas à natureza humana, mas é antes algo espiritual e sobrenatural. O amor nos liga de coração àqueles em quem percebemos algo de Cristo. Portanto, trata-se de muito mais do que de espírito fraterno: abrange a todos em quem podemos ver a imagem do Filho de Deus. Por conseguinte trata-se de amarmos aos homens por amor a Cristo, devido aquilo que vejo de Cristo na pessoa deles. E é o Espírito Santo quem me atrai e conquista para o Cristo que habita em meus irmãos e irmãs na fé.
Assim sendo, o verdadeiro amor cristão não é apenas um dom divino, mas é algo que depende inteiramente de Deus, para seu fortalecimento e exercício. Precisamos orar diariamente para que o Espírito Santo ponha o amor em ação e o manifeste, dirigindo-o tanto a Deus como ao Seu povo aquele amor que o Senhor derramou em nossos corações.
5. Tiramos proveito da Palavra quando exercemos corretamente o amor cristão.
Isso é feito não quando buscamos agradar aos nossos irmãos ou nos tornarmos simpáticos segundo a estima deles, mas quando buscamos verdadeiramente o bem deles. "Nisto conhecemos que amamos os filhos de Deus, quando amamos a Deus e praticamos os seus mandamentos" (I João 5:2). E qual será o teste que verifica o grau de meu amor pessoal ao próprio Deus? Esse teste é a minha observância dos Seus mandamentos (ver João 14:15, 21, 24; 15:10, 14). O caráter genuíno e a intensidade de meu amor a Deus não podem ser aquilatados pelas minhas palavras, nem pela beleza com que entôo os Seus louvores, e, sim, pela minha obediência à Sua Palavra. E o mesmo princípio opera no caso de minhas relações com os meus irmãos na fé.
Sim, "nisto conhecemos que amamos os filhos de Deus quando amamos a Deus e praticamos os Seus mandamentos". Se porventura exploro demoradamente as falhas de meus irmãos e irmãs, se estou andando em companhia deles mas procurando sempre a minha vontade própria e o que me agrada, então é que não os "amo". "Não aborrecerás a teu irmão no teu íntimo; mas repreenderás o teu próximo, e por causa dele não levarás sobre ti pecado" (Levítico l0:17). O amor deve ser exercido segundo os moldes divinos, e nunca às custas de deixar eu de amar a Deus; de fato, é somente quando Deus recebe o lugar que Lhe convém, em meu coração, é que o amor espiritual pode ser exercido por mim para com meus irmãos. O verdadeiro amor espiritual não consiste em procurar satisfazê-los, e, sim, de agradar a Deus e de ajudá-los. Mas só poderei ajudá-los na vereda ordenada por Deus.
Mimar e afagar uns aos outros não é demonstração de amor fraternal; exortarmo-nos uns aos outros, para que prossigamos avante na carreira que nos está proposta, proferindo palavras (reforçadas pelo exemplo do nossa vida diária) que encorajem a outros a "olhar fixamente para Jesus", é atitude muito mais útil do que aquela outra. O amor fraternal é algo santo, e não algum sentimento carnal ou alguma indiferença frouxa acerca da senda que nos convém palmilhar. Os "mandamentos" de Deus são expressões do seu amor, bem como de sua autoridade; por isso mesmo, se os ignoramos, apesar de buscarmos ser gentilmente afeiçoados uns aos outros, isso não será "amar", sob hipótese alguma. O exercício do amor deve estar em perfeita conformidade com a verdade revelada de Deus. Cumpre-nos amar "na verdade" (III João 1).
6. Beneficiamo-nos realmente da Palavra quando aprendemos sobre as variadas manifestações do amor cristão.
Amar aos irmãos e manifestar o amor de todas as maneiras possíveis é nosso dever inequívoco. Porém, em ponto algum podemos fazer isso mais verdadeira e eficazmente, e com menos afetação e ostentação, do que em termos comunhão com os irmãos na fé, diante do trono da graça. Existem irmãos e irmãs em Cristo, nos quatro cantos da terra, acerca de quem nada sei, no tocante aos detalhes de suas provações e conflitos, de suas tentações e tristezas; a despeito disso, posso mostrar-lhes o meu amor, derramando o meu coração diante de Deus em favor deles, mediante a súplica e a intercessão intensas. Não há outra maneira do crente manifestar melhor sua afetuosa consideração para com seus companheiros de peregrinação senão utilizar-se de toda a sua participação no Senhor Jesus em favor deles, implorando-lhe a misericórdia e a graça em prol dos mesmos.
"Ora, aquele que possuir recursos deste mundo e vir a seu irmão padecer necessidade e fechar-lhe o seu coração, como pode permanecer nele o amor de Deus? Filhinhos, não amemos de palavra, nem de língua, mas de fato e de verdade" (I João 1:17,18). Muitos dentre o povo de Deus são extremamente pobres quanto a bens deste mundo. E chegam a indagar por que as coisas lhes correm assim; é tudo uma grande provação por que passam.
Uma das razões pelas quais o Senhor permite isso é dar oportunidade, a outros de Seus santos, para que se compadeçam daqueles e ministrem às suas necessidades temporais, dentre a abundância que Deus lhes propiciou. O verdadeiro amor é intensamente prático: não considera por demais vil a qualquer empreendimento, nem por demais humilhante a qualquer tarefa, sempre que os sofrimentos de algum irmão em Cristo possam ser aliviados. Quando o Senhor do amor Se encontrava na face da terra, os Seus pensamentos se voltaram para a fome física das multidões e para o conforto dos pés de Seus discípulos!
Mas existem alguns, dentre o povo do Senhor, que são tão pobres que pouquíssimos bens possuem para distribuí-los a outros. Nesse caso, que poderão fazer? Ora, que tornem suas as preocupações espirituais de todos os santos; que se interessem em favor deles diante do trono da graça! Com base em nossas próprias circunstâncias e em nossas vidas, sabemos quais devem ser os sentimentos, as tristezas e as queixas de outros santos. Com base em nossa triste experiência, sabemos quão fácil é nos deixarmos invadir pelo espírito de descontentamento e de murmuração. Mas também sabemos que, sempre que clamamos ao Senhor, para que a Sua mão aquietadora seja imposta em nós, ou quando Ele nos traz à memória alguma promessa preciosa, grande paz e consolo nos enche o coração.
Assim, pois, roguemos a Deus para que seja igualmente gracioso para com todas as aflições dos santos. Procuremos sentir e tornar nossas as cargas alheias, chorando com aqueles que choram, regozijando-nos com aqueles que se regozijam. Desse modo haveremos de expressar verdadeiro amor em Cristo, pelas suas pessoas, interessando o Senhor deles e nosso, para que use de sua bondade eterna para com eles.
É dessa maneira que o Senhor Jesus atualmente manifesta o Seu amor pelos Seus santos: "Por isso também pode salvar totalmente os que por eles se chegam a Deus, vivendo sempre para interceder por eles" (Hebreus 7:25). Cristo torna Suas a causas e as preocupações deles. Vive rogando em favor deles diante de Deus Pai. Ninguém é esquecido por Ele – cada ovelha solitária o Bom Pastor a leva no coração. Por conseguinte, quando expressamos nosso amor aos irmãos, em orações diárias, para que sejam supridas Suas variadas necessidades, somos levados a desfrutar de comunhão com o nosso grande Sumo Sacerdote.
E não somente isso, mas os santos, nesse processo, se nos tornarão mais caros – nossas próprias orações em favor daqueles que são amados por Deus, aumentará o nosso amor e a nossa estima por eles, como tais. Não poderíamos mesmo trazê-los no coração, até ao trono da graça, se em nossos corações não tivéssemos um verdadeiro afeto por eles. A melhor maneira de dominarmos qualquer sentimento de amargura contra algum irmão em Cristo que nos tenha ofendido, é dedicarmo-nos à oração em favor dele.
7. Derivamos proveito autêntico da Palavra quando ali somos ensinados como se deve cultivar apropriadamente o amor cristão.
Sugerimos aqui duas ou três regras a respeito da questão.
Em primeiro lugar, reconhecendo desde o começo que há muito no prezado leitor (como em mim também) que serve para testar severamente o amor dos irmãos, também muito haverá neles que sirva de teste ao nosso amor "suportando-nos uns aos outros em amor..." (Efésios 4:3). Essa é uma grande admoestação acerca desse problema, e que todos nós precisarmos entesourar no coração. Sem dúvida é impressionante o fato de que a primeira qualidade do amor espiritual é que "O amor é paciente" (I Cor. 13:4).
Em segundo lugar, a melhor maneira de cultivar qualquer virtude ou graça cristã consiste em exercê-la. Falar e traçar teorias a respeito de alguma virtude de nada vale, a não ser que a ponhamos em ação. Muitas são as queixas que se ouvem, em nossos dias, acerca das parcas manifestações do amor em tantos lugares – e isso é um motivo a mais pelo qual devo procurar dar melhor exemplo! Não permitamos que a frieza e a falta de gentileza dos outros venham a abafar o nosso amor, mas antes, façamos o que se lê em Romanos 12:12: "Vence o mal com o bem". Que você pondere, sob oração, pelo menos uma vez por semana, acerca do que se diz em I Coríntios 13.
Em terceiro lugar, que você verifique se o seu coração está se aquecendo na luz e no calor do amor de Deus. Cada ser gera o que lhe é semelhante. Quando mais nos ocuparmos, em verdade, com o amor invariável, infalível e insondável de Cristo para conosco, tanto mais o nosso coração se voltará amorosamente para com aqueles que lhe pertencem.
Uma belíssima ilustração a esse respeito se acha no fato de que o apóstolo que mais escreveu sobre o amor fraternal foi exatamente aquele que se recostou ao peito do Senhor Jesus.
Que o Senhor outorgue toda a graça necessária, tanto a você como a mim (que acima de todos precisa dar ouvidos à Palavra), para que possam observar essas regras, visando ao louvor da glória da graça divina e o bem de Seu povo amado.
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