segunda-feira, 27 de abril de 2009
Pode Alguém Perder a Salvação?
A Queda Dos Iluminados de Hebreus 6:4-6 Calvino e Matthew Poole* [!supportLineBreakNewLine]
Moisés C. Bezerril
Este trabalho consiste num estudo bíblico de Hb 6:4-6, baseado no pensamento de João Calvino e Matthew Poole, um teólogo puritano genebrino do século XVII.
Hb 6:4-6
"É impossível, pois, que aqueles que uma vez foram iluminados e provaram o dom celestial e se tornaram participantes do Espírito Santo, e provaram a boa palavra de Deus e os poderes do mundo vindouro, e caíram, sim, é impossível outra vez renová-los para arrependimento, visto que de novo estão crucificando para si mesmos o Filho de Deus, e expondo-o à ignomínia".
Até que ponto Jesus é suficiente para nossa salvação? Certa vez, sintonizei-me numa emissora de rádio que apresentava um programa considerado evangélico e o pregador dizia estas palavras: "Não troque sua salvação por qualquer ‘ninharia’. Há pessoas que perdem a salvação por coisas bobas; mocinhas, por qualquer vaidade, estão perdendo a salvação; por causa do orgulho perdem a salvação. Meus irmãos não percam sua salvação". Isso nos faz indagar: Até que ponto Jesus é suficiente para a salvação desse pregador? As palavras deste texto, à princípio, são palavras que parecem nos fazer pensar que Jesus não foi suficiente para a salvação daqueles hebreus que caíram. Muitos afirmam crer em Jesus para a salvação, mas para eles só Jesus não é suficiente para salvá-los.
Parece até haver um problema nesta epístola em relação ao ensinamento dos outros livros neo-testamentários, pois o autor parece estar ensinando uma perda de salvação ou uma insuficiência de Cristo. E, na verdade, muitos abandonam este texto e não pregam sermão algum nele. Isso, porque muitos, ao se depararem com o conteúdo, sentem dificuldade por dois sérios problemas encontrados aqui.
O primeiro problema de Hb 6:4-6 é a queda dos iluminados. O segundo problema é a total impossibilidade de uma restauração ou renovação para os que caíram. O texto diz que é "impossível renová-los para arrependimento". A palavra grega ADYNATON , "impossível", dá a idéia, no N.T., de uma total impossibilidade, aplicada à paralisia ou enfermidade que anula qualquer desempenho de força, e é uma expressão comum para fraqueza, (At 14:8; Rm 8:3; Rm 15:1). Isto indica que não há nenhuma possibilidade de que estes que caíram se levantem novamente e sejam restaurados. Parece-me que aqui também não há perdão para os que caíram. São duas dificuldades. A primeira parece ser um problema para os calvinistas, pois, fala da queda dos que outrora foram iluminados; a segunda parece ser um problema para os arminianos, pois se deparam com o problema da impossibilidade da renovação e do perdão. Não é tão fácil tomar uma postura arminiana em afirmar que o texto afirma a possibilidade da queda dos iluminados, sem levar em conta que esses, por si, não podem voltar ao arrependimento. Como resolver a questão? A igreja ocidental sentiu uma dificuldade com este texto porque aparentemente quem cai não tem mais possibilidade de perdão.
A resposta a estas duas questões está na expressão "cair". Há necessidade de um entendimento teológico desta queda. Que tipo de queda é esta? Se não entendermos a que tipo de queda o autor aos Hebreus se refere, não poderemos entender que negação da possibilidade de renovação e perdão é esta.
Se os iluminados caem por causa de pecado, será que há pecado para o qual não há restauração nem perdão? Qual pecado para o qual não há possibilidade de renovação e arrependimento? Apenas o pecado contra o Espírito. Dessa forma, os iluminados só podem cair de maneira que não haja renovação e perdão para eles se puderem cair num tipo de pecado para o qual não há possibilidade nenhuma de restauração. O autor está dizendo que não há perdão, que é impossível que eles sejam restaurados.
Em certo sentido, o crente pode ser acometido de algumas quedas. A queda do estado de cristão comungante nominal; a queda do vigor espiritual; a queda do crescimento espiritual; a queda no pecado que leva o homem a uma letargia espiritual, ao sono profundo de modo que ele vai se desviando da intimidade com o Senhor, da comunhão dos santos e se torna parcialmente privado da graça de Deus. Veja que privado da graça não significa perder a graça. Os que crêem que pode-se perder a salvação e acham que a queda destes iluminados se dá por causa de algum pecado comum, estão caindo num sério problema da afirmação da insuficiência de Cristo para nossa salvação . Jesus, ou é suficiente para minha salvação ou não o é. Se Ele é suficiente, estarei salvo, mas se Jesus não é suficiente para minha salvação, então eu tenho de cooperar com Ele para alcançar esta salvação e não posso ter certeza disso, nem mesmo um segundo sequer, pois não sei a que hora vou pecar. Portanto é muito sério dizer que estes iluminados caíram por causa do pecado. Ou seja, um pecado de roubo, prostituição, assassinato. O autor aos Hebreus não está tratando deste tipo de pecado aqui. A queda é muito mais séria porque a conseqüência é muito mais severa: é impossível a restauração. Na história bíblica, muitos que praticaram certos pecados foram restaurados pelo arrependimento. Um exemplo disto foi Davi. Mas, então, que queda é esta que não há restauração?
A queda não refere-se a qualquer tipo de pecado contra Deus. A palavra grega para "queda" (PARAPTÔMA), pode muito bem referir-se à "ofensas comuns" do dia a dia de um cristão (Mt 6:14; Mc 11:25; Gl 6:1), bem como ao estado de morte espiritual e condenação eterna, no qual se encontram todos aqueles que ainda não foram vivificados e ressuscitados por Deus em Cristo Jesus (Rm 4:25;5:15-18,20; Rm 11:11; II Co 5:19; Ef 1:7; 2:1,5; Cl 2:13). Destes dois significados, o que de fato deve fazer parte do texto de Hebreus 6 é exatamente o segundo, pelo fato do primeiro referir-se à pecados passíveis de restauração, enquanto o texto em estudo refere-se à algo que não tem restauração. O texto nos traz a revelação de um tipo de pecado tão tremendo que não pode ser restaurado em tempo algum. A queda dos hebreus, para os quais não há perdão, os quais são chamados de iluminados, é a mesma queda a que Paulo se refere em Gálatas 5.1-4:
"Para a liberdade foi que Cristo nos libertou. Permanecei, pois, firmes e não vos submetais, de novo, a jugo de escravidão. Eu, Paulo, vos digo que, se vos deixardes circuncidar, Cristo de nada vos aproveitará. De novo, testifico a todo homem que se deixa circuncidar que está obrigado a guardar toda a lei. De Cristo vos desligastes, vós que procurais justificar-vos na lei; da graça decaístes".
Este é o pecado para o qual não há perdão: a insuficiência de Cristo para a salvação. Eles estavam buscando justificação pela lei: "...procurais justificar-vos na lei...". Era o mesmo problema dos iluminados que caíram em Hebreus 6. Estavam negando toda a obra da redenção para sua salvação e agora queriam enfrentar a Lei "de peito aberto", para serem justificados. Paulo diz que se eles fizessem isso, estariam "obrigados a guardar toda a lei" (Gl 3:10). Só existem dois caminhos para a salvação: O caminho da Lei ou Cristo. Ou você escolhe Cristo pela fé para que a justiça dele seja considerada a sua, colocada entre você e Deus, de tal forma que Deus ao olhar para você não vê seu pecado, mas vê a justiça do Seu Filho Jesus Cristo e assim a Sua ira não lhe encontra; ou você busca cumprir a Lei para a salvação. A lei salva também. Como? Quando Deus propôs vida eterna a Adão, deu-lhe uma Lei e disse: "Adão você cumpre minha ordem e será recompensado". Eis a Lei para a vida eterna. Mas há uma problema: a quem quer salvar-se pela Lei hoje, Deus exige que ela seja cumprida totalmente e por alguém sem pecado; nem um ponto sequer pode ser quebrado, nem um simples tropeçar da Lei. Você quer ser salvo assim? Quer ser salvo pela Lei, então terá de cumprir toda a Lei(Gl 3:10).
O que Paulo estava dizendo era: a pessoa que escolhe ser salva pela Lei está perdida! Por que? Porque não há quem cumpra a Lei e vocês têm de, pela fé, reivindicar a justiça de Cristo para serem salvos. Enfrentar a Lei para a salvação é decair da graça. No estado de pecado a Lei não salva mais o homem, mas sim a graça. Quem quiser se aventurar pelo caminho da Lei tem de cumprir toda a Lei, diz Paulo. Mas, ainda assim, fomos salvos por causa do cumprimento da Lei. Como? Não porque nós a cumprimos, mas porque Jesus a cumpriu cabalmente por nós.
Enquanto o problema dos gálatas era a circuncisão, o problema dos hebreus era a volta ao judaísmo e ao sacrifício judaico. Ambos eram considerados por eles como caminhos de justificação. Dessa forma posso entender por quê os hebreus sofreram uma queda. Como se anula o sacrifício de Cristo? No versículo 2, Paulo diz: " Eu, Paulo, vos digo que, se vos deixardes circuncidar, Cristo de nada vos aproveitará" (Gl 1:2) Ainda em Romanos 4:14 ele diz: "Pois, se os da lei é que são os herdeiros, anula-se a fé e cancela-se a promessa". É como se ele dissesse: "Enfrentem a Lei e vocês estarão condenados porque se Cristo de nada aproveita, então, é porque vocês decairam da graça e estão tentando a justificação pela Lei".
Então, o problema dos iluminados, o terem caído da graça, não é um problema de pecado do dia a dia. O termo (ANAKAINIZEIN), "restaurar" é uma famosa palavra rara do N.T, encontrada apenas neste texto de Hb 6:6. Este verbo é um composto de (ANA),preposição que forma 26 compostos em todo o N.T. com o significado de "outra vez", "de volta", "para trás". A idéia desse termo único em Hebreus, primariamente, é de uma re-novação, uma volta ao estado anterior. Esta compreensão é reforçada pelo termo PALIN, "de novo", sintaticamente e imediatamente relacionado à "restaurar". Indicaria isto que o real estado anterior dos iluminados seria um estado de graça salvadora? Creio que não, pois é possível que o autor aos hebreus esteja considerando a congregação visível dos santos como um estado de graça , e que a presença e ausência nesta congregação represente um tipo de queda e restauração(o que neste contexto é impossível por causa do tipo de pecado deles). É muito comum esta visão no Novo Testamento, o que se pode perceber também com relação ao pensamento dos apóstolos em relação ao problema da apostasia.
O problema dos nossos pecados atuais Deus já resolveu, já deu a solução (Rm 8:33-39; I Jo 2:1-2). O problema dos hebreus aqui é a anulação da fé e da promessa (Rm.4:14). Isto acontece sempre com os que buscam a Lei para uma auto-justificação. Neste versículo, Paulo diz que "se os da lei é que são os herdeiros, anula-se a fé e cancela-se a promessa". O que significa isso? Ora, salvação é promessa; somos salvos porque somos herdeiros, porque herdamos e não porque conquistamos por esforço próprio. É herança! Você não pode conquistar porque terá de enfrentar a Lei e ela lhe condena. Por isso, alguém tem de conquistar por você. A justiça de Cristo nos é dada por intermédio da fé que é um dom de Deus (Rm 5:1; Fp 3:9). Paulo diz que salvação é promessa de Deus. Se nós vamos estipular as condições para dar um presente, este não é promessa e sim um salário (Rm. 4:4-5). Quando você promete algo para alguém, e você estipula as condições para ele cumprir, este presente deixa de ser presente e passa a ser salário, porque ele estaria ganhando em decorrência de ter cumprido o estipulado. Mas promessa é graça, pois Paulo contrasta promessa com Lei. Ele diz que, se os da lei é que são os herdeiros, eles não precisam de fé, nem de promessa. Cada um se vira sozinho para conquistar a sua própria salvação. Era como se o apóstolo Paulo estivesse dizendo assim: "Você acha que pode conquistar sua salvação? Então, terá de cumprir a Lei. Vamos retirar a promessa feita a você e vamos retirar a fé". Porque é a fé que chama a justiça de Cristo para nós (fé que Deus nos dá), e a promessa é a garantia da eleição graciosa e incondicional de Deus. Sem fé não temos justiça de fora, mas somente a nossa própria, e sem promessa não temos salvação de maneira graciosa da parte de Deus. Na justificação, convidamos o que está fora, o que não é nosso, a vir para nós. Nossa justiça é, como disse Lutero, "alienígena". Você quer ser salvo sem fé e sem promessa? Vire-se sozinho com a Lei (é isso que Paulo está dizendo aqui); depare-se e enfrente a Lei; tente salvar-se sozinho. Mas há um detalhe que você não deve esquecer: cumpra toda a Lei! Porque se errar num ponto apenas, a Lei o condenará eternamente, porque Deus não se relaciona com pecadores a não ser na base da justiça de Seu próprio Filho.
O apóstolo Paulo diz que a salvação é para pecadores. Nunca devemos pensar que estes iluminados aqui estão caindo (sem perdão) porque pecaram. Não é um problema tão simples de pecado "diário" a que o escritor aos Hebreus se refere, mas um problema muito mais sério porque repousa sobre estes iluminados a ira de Deus e a ausência do perdão.
O apóstolo Paulo diz em Romanos no cap. 7: 14 -25:
"Porque bem sabemos que a lei é espiritual; eu, todavia, sou carnal, vendido à escravidão do pecado. Porque nem mesmo compreendo o meu próprio modo de agir, pois não faço o que prefiro, e sim o que detesto. Ora, se faço o que não quero, consinto com a lei, que é boa. Neste caso, quem faz isto já não sou eu, mas o pecado que habita em mim. Porque eu sei que em mim, isto é, na minha carne, não habita bem nenhum, pois o querer o bem está em mim; não, porém, o efetuá-lo. Porque não faço o bem que prefiro, mas o mal que não quero, esse faço. Mas, se eu faço o que não quero, já não sou eu quem o faz, e sim o pecado que habita em mim. Então, ao querer fazer o bem, encontro a lei de que o mal reside em mim. Porque, no tocante ao homem interior, tenho prazer na lei de Deus; mas vejo, nos meus membros, outra lei que, guerreando contra a lei da minha mente, me faz prisioneiro da lei do pecado que está nos meus membros. Desventurado homem que sou! Quem me livrará do corpo desta morte? Graças a Deus por Jesus Cristo, nosso Senhor. De maneira que eu, de mim mesmo, com a mente, sou escravo da lei de Deus, mas, segundo a carne, da lei do pecado."
Aqui há o que os puritanos chamavam de gemitus sanctorum que é o gemido dos santos, dos regenerados. Há muitas interpretações em cima deste texto. Alguns autores dizem que aqui Paulo está tratando do gemido do não-regenerado. Mas o homem não-regenerado não luta com a Lei de Deus, pois a Lei não faz parte do seu cotidiano, ele está cego e morto, não tem tanta consciência da Lei de Deus a ponto de dizer: "Desventurado homem que sou!". A consciência que ele tem é uma impressão da Lei original no seu coração e mente, mas mesmo assim, afetada pelo pecado (Rm 2:13-16). Um não regenerado não diz isso a não ser que o Espírito o regenere e contraste sua condição de pecador com a Lei de Deus. Isso se dá na regeneração. Se diz também que Paulo estaria se referindo ao farisaísmo de sua época, pois eles eram amantes da Lei. A este argumento respondo que os fariseus eram observadores da Lei de forma exterior. Quanto ao homem interior eles não tinham prazer na Lei de Deus, tendo em vista que eram os maiores transgressores dessa Lei. Jesus afirmou que quanto ao homem interior eles só tinham podridão, eram os "sepulcros caiados", os maiores hipócritas daquela época.
Temos salvação mesmo em estado de pecado porque Jesus disse que Ele veio para os doentes e não para os bons. Mas o pecado ainda é uma realidade na vida do crente. O pecado não tem mais nenhum poder acusador e condenatório sobre os justificados, mas atrapalha a vida espiritual do crente e sua intimidade com Deus(Sl 32; Sl 51). Tanto é que no dia a dia da nossa salvação é necessário que haja um advogado, (I Jo 2:1). Que palavras extraordinárias! Eis a razão de não sermos consumidos por causa dos nossos pecados atuais!
Filhinhos meus, estas coisas vos escrevo para que não pequeis. Se, todavia, alguém pecar, temos Advogado junto ao Pai, Jesus Cristo, o Justo; e ele é a propiciação pelos nossos pecados e não somente pelos nossos próprios, mas ainda pelos do mundo inteiro.
Jesus é o nosso advogado e nossa propiciação; é a solução de Deus para que o pecado não nos condene, pois temos a justiça de Cristo. Por isso, toda vez que Deus olha para nós, mesmo que estejamos em pecado, Ele considera a justiça de Cristo como a nossa. Aqueles que afirmam que o crente perde a salvação por causa de um pecado cometido, estão, em outras palavras, dizendo que não têm um advogado, ou, se o têm, este é muito fraco porque o apóstolo João está dizendo exatamente isto: "Se todavia, alguém pecar, temos Advogado". Você já tentou chegar diante do juiz sem um advogado? A condenação é certa! Mas esta é a razão de não sermos consumidos em vista dos nossos pecados: temos um advogado!! E João ainda enfatiza mais: "Ele é a propiciação pelos nossos pecados...".
O que significa propiciação? Algumas versões famosas como RSV, NEB, NIV NRSV, traduzem erroneamente esta palavra por "expiação", mas esse não é o significado de HILASMOS, "propiciação", nem de HILASTERION, "propiciatório". Estas palavras, tanto no Velho Testamento como Novo Testamento significam o afastar a ira de Deus. Isso se relaciona sempre com o pecador, com a pessoa que praticou o delito, e não com o delito. Jesus é nossa propiciação porque quando pecamos, Ele é nosso advogado diante de Deus Pai. Jesus sempre diz ao Pai: "Este é justificado, não há condenação para ele". Jesus é o nosso Advogado, nossa propiciação porque, mesmo sendo salvos, quando pecamos diante de Deus, Cristo diz assim: "Pai, caia tua ira sobre mim (como já caiu) e não sobre aquele que foi justificado". Propiciação é afastar a ira de Deus de sobre aquele que merece a ira (Jo 3:36; Ef 2:3). Por isso nós permanecemos salvos mesmo pecando atualmente.
Para aqueles que acham que com o pecado do dia a dia perdem a salvação perguntamos: Quanto tempo podemos crêr que passamos salvos? Quanto tempo você passa salvo durante um dia? Cinco minutos? Um minuto? Um segundo? Quem pode garantir que agora mesmo não está pecando? Pode ser que agora mesmo você esteja condenado. Na verdade a coisa é muito mais séria porque a salvação é para pecadores. Seremos glorificados lá, no dia do juízo, mesmo que para Deus já somos considerados neste estado. Mas enquanto estivermos aqui, estamos naquele gemitus sanctorum. Paulo disse: "Desventurado homem que sou. Quem me livrará do corpo desta morte?". Por que? Porque na ressurreição o que é mortal será revestido de imortalidade e o que é corrupto será revestido pela incorruptibilidade (I Co 15:50-58). Por isso que essa glorificação e essa libertação total do poder do pecado será somente na eternidade. Mas o pecado não pode nos separar do amor de Deus que está em Cristo Jesus (Rm 8:33-39). Se o amor de Deus estivesse em nós, esse amor, do dia para a noite se perderia porque fazemos coisas terríveis que entristecem ao Seu coração. Se dependêssemos da nossa integridade para que Deus nos amasse, não haveria um só dia em que não fôssemos odiados e que, consequentemente, estivéssemos perdidos. Mas o amor de Deus está em Cristo Jesus, porque somente Jesus satisfaz à Lei para nossa santificação e salvação. É algo que não está em nós. Observe as várias repetições da expressão "em Cristo Jesus "(Rm 8:39; Ef 1:5,6; 2:6,7,10).
Aqueles que dizem que perdem a salvação com o pecado, terminam se envolvendo em seríssimas implicações teológicas: 1) Eles não crêem na suficiência de Jesus como nossa justiça, nossa propiciação e nosso advogado; 2) Esses também não crêem na perfeição da justiça de Cristo como suficiente para satisfazer a Lei de Deus em tudo o que ela exige do pecador. Segundo o ensinamento do Novo Testamento sobre a expiação e propiciação, se um pecador volta a ser condenado por causa de seus pecados, isso indicará falhas na obra expiatória de Cristo. O que nos levaria, consequentemente, a concluir que a obra vicária de Jesus foi muito fraca para nos salvar da condenação eterna do pecado. Como compreender a perfeição da obra expiatória de Cristo se o pecado ainda tem poder condenatório sobre os quais foi aplicada esta obra? Como entender a qualidade da obra de Cristo se mesmo depois da nossa expiação e propiciação em Jesus, ainda aissim podemos ser acusados de pecado condenador? Tudo isto seria possível se a obra de Cristo fosse defeituosa e não atendesse as exigências da lei de Deus quanto a nossa salvação eterna.
Qual era o estado desses iluminados antes da queda? Quando olhamos para as características da vida daqueles antigos hebreus percebemos aspectos semelhantes da vida espiritual dos crentes nos dias de hoje. Vejamos:
1.Foram iluminados. Saíram de uma cegueira e começaram a enxergar.
2.Provaram o dom celestial das bênçãos oferecidas no evangelho.
3.Foram participantes do Espírito. O Espírito deu conhecimento, entendimento.
4.Provaram da Palavra. Quando lhes foi pregado o evangelho naquele dia eles se maravilharam com a Palavra. Ouviram da vontade de Deus, e até fizeram votos de observá-la.
5.Provaram dos poderes do mundo vindouro. Eles tiveram um claro entendimento do juízo de Deus sobre o mundo, das promessas de Deus, o desvendar do mundo futuro; tiveram uma clara distinção do juízo, bem como provaram dos milagres da era apostólica.
O que se tem argumentado normalmente na exegese deste texto é o seguinte:
1. Que a idéia de iluminação encontrada em FOTISTHENTAS, "iluminados" não se refere de fato à iluminação trazida pela verdadeira regeneração, fazendo o pecador enxergar sua própria perdição e necessidade de um Salvador, mas apenas a uma chispa da luz do evangelho.
2. Que o verbo grego GEYSAMENOS, "provaram", significa apenas "provar", indicando assim que aqueles hebreus apenas tiveram um "gostinho da graça", e não se fartaram da comida celestial.
3. Que DOREAS, "Dom" é contrastado com CHARISMATA, "Dom", ou "graça salvadora", e que significa apenas "dom", como qualquer outra bênção dada por Deus a todos os pecadores.
4. Que o termo METOCHOS, sempre indica "participante", "companheiro", mas nunca de fato quer significar intimidade, ou no caso do Espírito, "habitação".
Essa exegese de tais palavras e consequentemente a teologia extraída desta análise não podem ser sustentadas em todo o Novo Testamento pelas seguintes razões:
1. O termo FOTISTHENTAS, pode muito bem indicar a iluminação salvadora, que como revelação, é trazida à mente e ao coração dos homens sem Cristo para que entendam a verdade de Deus sobre o pecado e sobre a salvação (Jo 1: 9; Ef 1:18). Ainda mais, o termo HAPAX, sintaticamente ligado à FOTISTHENTAS aponta para algo que acontece uma só vez, o que pode ser dito da regeneração.
2. O uso de GEYSAMENOS no Novo Testamento não indica que ele sempre refere-se à um "provar" superficial, ou apenas a um "gostinho" daquilo que se prova. Podemos ver seu uso para um total envolvimento com aquilo que se prova, que é o caso de Mc 9:1 e Jo 8:52 (provar a morte). Este termo também pode ser visto como o verbo "comer"(At 10:10). Nestes dois usos distintos deste termo, não há a idéia simplesmente de "provar", mas de envolver e digerir.
3. DOREAS ,(dom), não é necessariamente um contraste com as verdades salvadoras implícitas no termo CHARISMATA. Podemos encontrar DOREAS sendo usado como sinônimo de CHARISMATA em textos como João 4:10 referindo-se a Jesus; Atos 8:20, referindo-se ao Espírito; Romanos 5:15, 17 referindo-se à vida eterna. O autor da epístola poderia estar usando um destes significados sem problema.
4. A palavra grega METOCHOS também reflete a mesma natureza de abordagem que estamos fazendo. Dizer que o termo alí refere-se apenas a uma "participação" do Espírito em vez de uma" habitação" do Espírito, não é convincente, tendo em vista que este termo também é usado para descrever nossa participação da vocação celestial no mesmo autor (Hb 3:1), e participantes de Cristo (Hb 3:14). O que pesa mais nesse argumento é que as duas ocorrências do termo, que contrastam com a interpretação sugerida, acontecem exatamente no mesmo autor, indicando uma unidade em seu pensamento sobre o termo METOCHOS.
Nosso grande problema com a exegese deste texto é que ela não ajuda a afirmar que o autor aos Hebreus estava falando de uma fé temporal, ou de uma pseudo-regeneração e pseudo-conversão. Calvino refere-se à queda desses hebreus como "fé temporal", mas ele não se baseia na exegese do texto, e sim, como estamos fazendo aqui, no estado posterior deles. Não conseguiremos encontrar pistas para descobrir se eles eram de fato regenerados ou não estudando o estado anterior deles, e sim estudando o estado posterior daqueles hebreus.
Mas, perguntamos: que tão grande queda foi essa que invalidou esse estado de graça e vetou a possibilidade e volta ao antigo estado de graça? Que trágica queda foi essa dos iluminados? A verdade está no versículo 6: "... caíram, sim, é impossível outra vez renová-los para arrependimento, visto que, de novo, estão crucificando para si mesmos o Filho de Deus e expondo-o à ignomínia". Esse pecado é exatamente o problema que Paulo coloca em Gálatas 5:2-5, como já enunciamos anteriormente. Eles decaíram da graça porque procuraram a justificação por outro meio que não Cristo. Para isso não há perdão, não há como o homem ser salvo. Se a fé for anulada e cancelada a promessa, o que sobrará para o homem? A LEI! E sabe o que a Lei faz conosco nesta circunstância? Ela nos condenará friamente e nos levará ao inferno, pois o que ela exige para a nossa justificação não podemos cumprir. Estão condenados, diz o apóstolo Paulo. Você quer ser salvo Pela Lei? Cumpra toda a Lei. E por não podermos, estamos condenados, decaídos da graça, miseravelmente perdidos.
Esses Hebreus, diz o autor, estavam "crucificando para si mesmos o Filho de Deus". O que isso significa? Que esses "irmãos" estavam praticando obras da Lei, que era um caminho totalmente oposto ao caminho da graça. Por isso Paulo diz que os gálatas caíram da graça. Eles voltaram à prática desta Lei para sua justificação. Eles estavam negando o sacerdócio de Cristo, negando a nova aliança, toda a obra vicária do Senhor e voltando ao farisaísmo tão combatido por Jesus e pelo apóstolo Paulo. O uso da expressão "cair da graça" não quer dizer necessariamente "perda de um genuíno estado de salvação anterior", pois, geralmente encontramos essa expressão no Novo Testamento sempre que é feita referência à descristianização de algum membro da igreja ou relacionado à apostasia, e geralmente à pessoas que nunca tiveram salvação. Percebamos que nem Paulo, nem o autor aos Hebreus estão emitindo alguma forma de juízo revelacional, ou trazendo uma revelação sobre o estado espiritual daqueles que decaíram da graça. Não! Não é isto que está em vista aqui. Tanto Paulo quanto o autor aos Hebreus estão se dirigindo à igreja visível de Cristo, de maneira exortativa, e emitindo um parecer inspirado sobre a condição deles a partir de uma visível apostasia da graça. Ora, se alguém abandona o caminho da graça e abraça o caminho das obras, a conclusão inevitável é: ele decaiu da graça; voltou para o caminho das obras, para o caminho da Lei. Nesta condição, quem se salvará?
Quando os apóstolos chegaram em Éfeso (Atos 19), eles fizeram uma pergunta àqueles discípulos de João Batista. Quando lemos esta palavra "discípulos" aplicada a eles, parece que eram crentes, mas vamos saber se são, de fato, crentes, quando continuamos a leitura do texto e vemos o apóstolo perguntando: " Recebestes, porventura, o Espírito Santo quando crestes?". Então eles responderam: "Pelo contrário, nem mesmo ouvimos que existe o Espírito Santo". Para Paulo aquilo era uma anormalidade: "Não receberam quando creram? O que está havendo?" Paulo pergunta ainda para eles: "Em quem vocês foram batizados? ". Eles responderam: "No batismo de João Batista quando estava pregando" . Parece que estou ouvindo Paulo dizer: "Eis aí a causa. Por isso que vocês não conhecem a Jesus". Porque a expressão "batismo em nome de Jesus", em todo Novo Testamento, significa conversão, regeneração. Isso porque, durante muito tempo, na igreja apostólica, batismo era, não apenas um sinal, mas a própria conversão. Era uma evidência clara da conversão pois eles perguntavam logo: "Vocês foram batizados em nome de quem?". Se não fosse em nome de Jesus, eles concluíam logo que não estavam salvos, pois eles tinham credenciais apostólicas para perguntar e concluir que o batismo em nome de Jesus representava a conversão.
Mas, por que a pregação e batismo de João Batista não salvaram aqueles discípulos? A resposta é que eles não haviam crido, tanto é que Paulo afirmou que eles deveriam ter recebido o Espírito quando cressem. Isto era porque João Batista estava pregando a mensagem messiânica e não a mensagem evangélica. Depois da vinda de Jesus, nenhuma mensagem messiânica pode salvar o homem. Bruner diz algo muito importante em seu livro TEOLOGIA DO ESPÍRITO SANTO, pág 161 "Desde a vinda de Jesus, o caso de cristãos crerem no Messias e, porém, serem batizados no batismo de João é naturalmente uma anomalia. E este é o problema por detrás desta passagem. Somente quando a fé no Senhor Jesus Cristo é ligada com o batismo nEle é que o cristão, é lógico, recebeu a iniciação cristã autêntica. O elo que faltava na formação espiritual dos efésios, portanto, não era o ensino sobre como ser batizado no Espírito Santo, era a fé e o batismo em Jesus. E quando foram dados esta fé e este batismo, assim também, gratuitamente, o Espírito também foi dado." Por isso, ninguém da velha dispensação que entrou na nova pode deixar de ser batizado em nome de Jesus. Mas o importante é que a mensagem messiânica não leva o homem, na era do Messias que chegou e está presente, à salvação. Por isso, eles estavam perdidos, sem salvação. Ora, se aquela mensagem messiânica não salvou àqueles, o que dizer daqueles hebreus que voltaram aos sacrifícios do Judaísmo? Estão perdidos tentando a justificação pela Lei. Para eles não existe nenhuma "obra" da Nova Aliança - Cristo - e sim somente a Lei, suas próprias obras e a aventura de buscar a justificação por ela. Por isso que eles decaíram da graça. Por isso que eles ao abandonarem o cristianismo e ao se voltarem para o judaísmo ficaram sacrificando `a Jesus. O autor perguntava: "Será que vocês vão novamente para um sacrifício que já foi consumado? Se é assim, Cristo de nada vale para vocês". A pregação messiânica não serve mais, a pregação deve ser evangélica - as Boas Novas. O que são as Boas Novas? Cristo, Deus Emanuel, Deus presente.
Mas, não estou dizendo com isso, que os crentes fiéis do Velho Testamento foram salvos cumprindo a Lei. Não pensem nunca nisso. O judaísmo e os fariseus de todas as épocas, como o homem natural, pensam que a salvação é uma conquista dele mesmo. O homem natural diz em relação à salvação: "Devo fazer". O homem regenerado pelo evangelho diz: "Está feito". No VT os crentes eram salvos pela fé em Deus. A prova disto é a exigência do sangue no relacionamento entre Deus e o pecador. Esta exigência já era prova de que o caminho a ser trilhado pelo pecador deve ser sempre o da graça, e nunca o das obras. Por isso o sangue já pregava o Evangelho da graça. Mas não era fé no sangue do animal, como queriam os fariseus, mas fé em Deus. O sangue deveria dirigir os olhares dos israelitas para o caminho da graça, para a salvação que era promessa. Mas muitos entendiam erroneamente que era o próprio sacrifício que expiava. Paulo diz destes que eles decaíram da graça porque só conseguiam enxergar o caminho das obras.
Quem são estes do judaísmo que tentam justificação pela Lei? São exatamente aqueles que entenderam erroneamente o caminho da salvação. O próprio Deus havia providenciado sacrifícios que pregariam as Boas Novas, dizendo que o pecado seria expiado e a ira de Deus seria aplacada, mas através do sacrifício de Cristo que viria, mas que já era dado eficazmente como certo - as Boas Novas, Jesus, Deus Emanuel, Deus conosco. Esta é a pregação evangélica. Paulo falou sobre isso: "Bem que eu poderia confiar na carne (como muitos confiam). Se qualquer outro pensa que pode confiar na carne, eu ainda mais; circuncidado ao oitavo dia, da linhagem de Israel, da tribo de Benjamim, hebreu de hebreus; quanto à lei, fariseu, quanto ao zelo, perseguidor da Igreja; quanto à justiça que há na lei, irrepreensível (Fl.3:4-6) . Esta é a expressão máxima: "quanto à justiça que há na lei... ". Este é o pensamento farisaico quanto à salvação. Os homens queriam conquistar a sua salvação cumprindo a Lei por si mesmos. Os fariseus pensavam assim. Paulo era um exemplo disso, pois ele diz que quanto a isso ele era "irrepreensível" .
O texto diz que, se eles abandonaram o verdadeiro caminho para a justificação que é Cristo, se estes iluminados saíram deste caminho e foram para o caminho do judaísmo para buscar esta justificação pelas obras da Lei, então, podemos concluir que não eram justificados. Se estes iluminados foram buscar a justificação através da Lei, concluímos então, que eles não haviam sido verdadeiramente justificados. Anularam a fé, cancelaram a promessa e tornaram Cristo algo inútil. Deus não perdoa este pecado. Deus não perdoa esta anulação da obra redentora. Este é o pecado contra o Espírito. Só os não regenerados são passíveis de um pecado desta gravidade. Isto significa que nos tais nunca houve a regeneração, a obra da regeneração do Espírito, e a prova disso é que seu estado de suposta graça não foi suficiente para mantê-los no caminho da graça - abandonaram a Cristo. Mas que regeneração é esta que os faz abandonar as Boas Novas? Eles sempre estiveram em Adão e não em Cristo (I Co 15:22). Em Adão todos morrem e em Cristo todos são vivificados. Se o estado destes iluminados é estado de morte e sobre eles repousa a ira de Deus, não há propiciação para eles. Estão ainda em Adão naturalmente condenados. Não há perdão para estes iluminados porque eles resolveram caminhar nesta trilha da justiça pelas obras da Lei, pois é sempre esse o caminho da religião natural da humanidade.
É bem verdade que a exegese daqueles termos importantes não apontam para uma falsa fé naqueles hebreus, mas a falsa conversão daqueles "crentes temporários" pode ser facilmente constatada pelo autor da epístola por contemplá-los num caminho de obras.
Nada denuncia mais a nossa condenação do que tentarmos nos salvar a nós mesmos.
Como entender a iluminação destes que caíram da graça? A pergunta seria: Pode, então, um não eleito, um não salvo, um não regenerado, participar, de alguma forma, da graça de Deus? Será que o homem natural, pode, em algum sentido, ser iluminado? Será que aqueles que não foram eleitos, que não foram contemplados para a obra da justificação sobre suas vidas, podem participar, em algum sentido, da graça de Deus? Em Marcos 4:14-19 temos esta resposta. O versículo 16 diz que estes "ouvindo a palavra, logo a recebem com alegria". Percebamos o envolvimento da fé temporal com a Palavra de Deus! Mas como "não têm raiz em si mesmos, sendo, antes, de pouca duração, e lhe chegando a angústia ou a perseguição por causa da Palavra, logo se escandalizam. Os outros, os semeados entre espinhos, são os que ouvem a palavra, mas os cuidados do mundo, a fascinação da riqueza e as demais ambições, concorrendo, sufocam a Palavra, ficando ela infrutífera. Os que foram semeados em boa terra são aqueles que ouvem a palavra e a recebem, frutificando a trinta, a sessenta e a cem, por um". Por que a palavra frutificou? Porque a semente caiu em boa terra, criou raiz e essa raiz foi aprofundada. O v. 17 diz que os que se escandalizam ficam assim porque "não têm raiz em si mesmos ". Por isso não duram, são de pouca duração. Nestes não há regeneração. A obra do Espírito na regeneração tem a dimensão de uma raiz que é cravada no interior do homem, num coração preparado por Deus (Ez 36:24-27). Sem esta raiz profunda não há regeneração, nem fé, nem santificação, nem obediência(Ef 1:4,5,13,14). Observem que esses foram os elementos indiscutíveis pelos quais, tanto Paulo quanto o autor aos Hebreus procuraram naqueles crentes, e que naquele momento estavam ausentes na vida daqueles irmãos. Então ele conclui: "Da graça decaístes". Por isso dura tão pouco. Mas há um envolvimento com a Palavra. Há uma duração, mesmo que pequena, há uma caminhada, uma iluminação, há um partilhar desta graça, mesmo sem raiz. Foram iluminados, mas não receberam os olhos da verdadeira visão espiritual, porque não tinham raiz. Entenderam certos princípios da vontade de Deus e até mesmo aguçaram suas consciências com a verdade do evangelho. Apenas se afastaram temporariamente das trevas do paganismo, do judaísmo, do caminho das obras da Lei. Os verdadeiros filhos de Deus têm a luz da vida (Jo 8:12), enquanto que os perdidos têm apenas pequenas faíscas, centelhas de luz dessa graça. Os iluminados de Hebreus 6 provaram o dom celestial mas não digeriram verdadeiramente o corpo e sangue de Cristo que está em João 6:53. Não comeram a carne, nem beberam o sangue de Cristo.
Foram participantes das operações do Espírito mas nunca chegaram a ser batizados com o Espírito tornando-se assim habitação deste Espírito. Provaram da boa Palavra e até se alegraram, mas faltou-lhes raiz. Provaram a Palavra, viram e maravilharam-se com as coisas que estão nesta Palavra. Até guiaram-se pelos seus preceitos de vida e dirigiram suas famílias por eles, mas não durou muito, pois, não havia raiz, por isso abandonaram esta Palavra.
Em Romanos capítulo 8:9, Paulo diz que, se o Espírito de Deus não está no crente este tal não é dEle. Eles não poderiam ter o Espírito de Cristo porque seria uma contradição. Como poderiam eles terem o Espírito de Cristo e ainda assim não estarem em Cristo? Logo, eles não tinham essa habitação. Apenas provaram das manifestações do Espírito, mas, não da habitação do Espírito. Estes estão condenados, pois não têm o Espírito, mas sim o pendor da carne. Portanto, esse "provar do Espírito", esse ser "participante do Espírito" que mais tarde leva o crente à salvação por obras não corresponde à teologia paulina da habitação do Espírito, pois o resultado da habitação do Espírito é contrastante com a postura daqueles hebreus apóstatas da graça (Rm 8:4-27).
Provaram os poderes do mundo vindouro, mas, contentaram-se apenas com as centelhas da ira de Deus. Entenderam que haverá um grande juízo sobre o mundo mas se contentaram com o que Paulo diz em Romanos 2:14-15 - "Quando, pois, os gentios, que não têm lei, procedem, por natureza, de conformidade com a lei, não tendo lei, servem eles de lei para si mesmos. Estes mostram a norma da lei gravada no seu coração, testemunhando-lhes também a consciência e os seus pensamentos, mutuamente acusando-se ou defendendo-se". Esse era o tipo de lei, de poder do mundo vindouro com o qual esses iluminados que caíram se contentaram. Porque os não crentes também têm uma lei, só que não é aquela Lei que milita contra a carne, mas é uma lei que apenas provoca o remorso no coração do assassino. Que leva depressão ao espírito daquele que pratica o pecado, mas nunca o leva de volta à vontade de Deus. Nunca ele dirá: "no tocante ao homem interior, tenho prazer na Lei de Deus" (Rm 7:22). Mas, ao contrário, se contentam apenas com estas pequenas faíscas da luz de Deus, do Seu grande julgamento. Se contentaram apenas com esta concepção do julgamento de Deus. Uma outra concepção sobre os poderes do mundo vindouro é fundada no significado de DINAMEIS MELLONTOS AIÔNOS, "os poderes do mundo vindouro". O termo DYMANEIS pode ser entendido por milagres ou prodígios, indicando que aqueles hebreus poderiam ter provado dos poderes do reino dos céus, o que poderia ser exemplificado pela participação deles em uma época como a era apostólica, a qual foi confirmada com muitos poderes miraculosos.
Provaram do dom celestial. Certamente que eles até se esforçaram em conhecer melhor o Dom de Deus, Jesus. Até louvaram-no, fizeram-lhe orações e se alegraram com ele. Talvez tenham buscado socorro e amparo em Jesus. Quem sabe se eles, como muitos nos nossos dias, até foram curados, seus problemas solucionados, suas lágrimas estancadas nessa dimensão da presença de Cristo. Muitos deles até mesmo evangelizaram outros judeus e pregaram Jesus para eles. No entanto, abandonaram tudo isso, negaram tudo o que fizeram e voltaram para um caminho de obras. Então, o autor aos Hebreus diz: "Quão horrenda coisa é essa que vocês fizeram! Não há restauração para vocês!"
Tudo isso é a operação do Espírito na vida dos não regenerados como fruto da graça de Deus. E ainda assim, quando esses não regenerados caem deste estado, eles pecam contra o Espírito.
CONCLUSÃO DO NOSSO ESTUDO
• O Autor aos Hebreus não está querendo ensinar com aquelas qualidades dos iluminados que elas são superficiais. A exegese do texto não aponta para este caminho. As qualidades que estão ali (iluminação, dom celestial, provar a Palavra e os Poderes celestiais, ser participante do Espírito Santo) são as qualidades que devem ser encontradas em todos os que são verdadeiramente regenerados.
• Mesmo não tendo aqueles hebreus, de maneira profunda e eficaz, aquelas qualidades, a prova disto é que vieram a negá-las mais tarde, o autor da epístola estava dizendo que era impossível, depois da queda, para eles, o restaurar para o arrependimento. Neste ponto, o verbo ANAKAINIZEIN "restaurar ou renovar" está no infinitivo ativo, não trazendo nenhuma idéia passiva de "serem renovados ou restaurados por Deus". Tanto ADYNATON("impossível"), quanto ANAKAINIZEIN ("renovar") referem-se aos iluminados, tirando-lhes qualquer possibilidade deles mesmos chegarem à graça salvadora de Deus. Então a melhor tradução do texto seria: "É impossível a estes iluminados, por suas próprias obras, voltarem ao caminho da graça."
• O autor aos Hebreus olhando para a igreja de Cristo, contemplava a assembléia dos que foram iluminados, provaram o dom celestial, a Palavra de Deus e os poderes do Reino e eram participantes do Espírito, e entre estes estavam aqueles irmãos que mais tarde abandonaram esta assembléia dos santos. Para o autor da epístola, estes irmãos participaram de forma visível das bênçãos que cercam os eleitos de Deus. A prova deste meu argumento é o fato de não conter no texto nenhuma forma de avaliação revelacional ou profética sobre o interior de cada um daqueles hebreus desviados do evangelho de Cristo. O capítulo 6 inicia exatamente ao estilo de uma exortação (1-3), encaixa uma advertência em forma de lembrança, e continua com a exortação (9-12). O que quero dizer é que sua avaliação dos iluminados é do ponto de vista da assembléia visível dos santos. Se o julgamento que o autor faz sobre os iluminados é exortativo e em relação à assembléia dos santos, a qual ele podia contemplar, então, com o termo "queda", não devemos entender necessária e teologicamente "cair do estado de salvação eterna", nem a perda da justificação, pois eles nunca tiveram isso verdadeiramente. A idéia da queda corresponde a um abandono não somente da assembléia dos santos, mas também do caminho da fé e da graça salvadoras. Isto significa que o mero fato do autor dizer que caíram, quer dizer que eles deixaram a congregação dos santos e voltaram para o judaísmo. O participar das bênçãos dos regenerados quer dizer que tiveram um proveito de certa forma da atmosfera da graça. E o não serem restaurados para o arrependimento quer dizer que se isso depender das obras deles e do caminho que tomaram, jamais chegarão à graça salvadora e consequentemente nunca haverá perdão para eles.
• A queda dos iluminados de Hebreus 6 refere-se também a uma total renúncia de Deus, da Sua Palavra, do seu dom e do Seu Espírito. Esses iluminados alienaram-se do Evangelho de Cristo e da graça salvadora, e foram totalmente excluídos do perdão. Este tipo de pecado somente pode ser cometido pelos não eleitos, pois àqueles que violam a segunda tábua da Lei de Deus é-lhes dado o perdão, mas àqueles que caem da graça são deixados por Deus permanecer neste estado.
Qual a lição prática que estes iluminados que caíram trazem para nós?
1. Nós não podemos nos contentar apenas com esses sinais dessa iluminação para pensarmos em regeneração. Nunca confundamos esses sinais dos iluminados com a regeneração. Nem tudo que for chamado evangélico, nem toda movimentação no meio evangélico é o Evangelho. A prova está aqui. Iluminados participaram da graça, mas nunca foram salvos. Somos tendenciosos a considerar salvos, crentes, e evangélicos, aqueles que confessam uma iluminação deste tipo. Mas a Palavra de Deus ensina a perseverança na vontade de Deus e a suficiência de Cristo como evidências de nossa regeneração ( Mt 24:13; Jo 3:15,36; 5:24-25; 8:31; 10:26-29; 15:1-6; 15:10; I Jo 2:3-6,19,24,28,29; 3:7-10,24; 4:7,8,13,15,16; 5:4,5,18,19). O evangelho somente é verdadeiro quando Jesus é suficiente para a nossa salvação. Porém vemos tanto "marketing", tanta propaganda de um evangelho em que só Jesus não é suficiente.
2. O autor aos Hebreus se dirige a todos os crentes. Esta palavra não é dirigida apenas aos que caíram. Isso não está sendo escrito somente aos judaizantes da época do apóstolo; não se reduz apenas a uma época. Sua palavra é principalmente para os crentes fiéis que permanecem na congregação dos santos como um alerta para que ninguém venha a cair no mesmo delito da apostasia da graça. Decair da graça regeneradora só será possível se a pessoa nunca tiver sido alcançada por esta graça salvadora. Mas o "cair da graça" aqui é o participar visivelmente da graça e abandoná-la. É negar a graça, é anular a fé e cancelar a promessa. Sobre aqueles que decaem da graça o juízo é eterno. Mas sobre aqueles que decaem do estado de uma boa vida espiritual com Deus, Ele também tem juízo para eles. Ele também está dizendo que devemos nos sensibilizar de que os nossos pecados, a falta de sensibilidade para com o pecado, o cultivar o pecado na nossa vida, o achar que um pecado esporádico não faz mal a ninguém; o pensar que a mentira é menos pecado do que o adultério; e que a falta de compromisso, a insinceridade, a irresponsabilidade, a negligência, tudo isso são pecados menores do que o roubo ou assassinato é uma falta gravíssima nossa para com Deus.
Muitos pregam que perdem a salvação por caírem em adultério, ou num roubo ou qualquer pecado crasso, que chame atenção. Mas estão esquecidos de que João disse em Apocalipse que vão ficar de fora também os mentirosos(Ap 21:27; 22:15). Para os que têm tal concepção da salvação, um irmão mentiroso quase sempre nunca é visto como tão perdido quanto um "adúltero". Mas a Palavra de Deus diz que esse vai ficar de fora tanto quanto aquele que foi feiticeiro, que estava sob o paganismo ou judaísmo, que anularam a graça. Muitos mentirosos pensam que estão salvos, mas está escrito no livro: "MENTIROSO". Os que defendem a perda da salvação sempre estão pensando nos pecados graves e escandalosos, ao estilo da concepção do "pecado mortal" da Igreja Católica Romana. Nunca lhes vem à mente que se a estabilidade da salvação dependesse de nossa integridade ela seria perdida ao menor pecado, pois a Lei de Deus não admite qualquer forma de pecado, (Gl 3:22).
Com relação à vida espiritual da igreja o autor está dizendo: "Irmãos, fiquem em guarda contra a possibilidade de um sono em que um "pecadinho" se torne um pecado de estimação e vai vagarosa e sutilmente rastejando em vossas almas até tomar conta do coração e da mente. Tomem cuidado com este pecado que vai encontrando razões sociológicas, psicológicas, antropológicas e lógicas para um habitat em suas vidas, e quando vocês menos esperam estão na mais profunda letargia espiritual, distante da abundância da graça". Sobre estes Deus pesará a Sua mão. Estamos dizendo isso para que o povo de Deus se consagre cada dia mais.
* Esta exposição é baseada na obra puritana "A COMMENTARY ON THE HOLY BIBLE" de Matthew Poole, téologo puritano genebrino do século XVII.
BIBLIOGRAFIA
1. MATTHEW POOLE, A COMMENTARY ON THE HOLY BIBLE, Banner of Truth
2. GLEASON ARCHER, ENCICLOPEDIA OF BIBLE DIFICULTIES, Zondervan
3. MICHAEL HORTON, MODERN REFORMATION MAGAZINE, CURE
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7. FRITZ RIENECKER, CHAVE LINGUÍSTICA DO NOVO TESTAMENTO GREGO, Vida Nova
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9. GINGRICH, LÉXICO DO NOVO TESTAMENTO GREGO/PORTUGUÊS, Vida Nova
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11. MAURICE ROBINSON, THE NEW TESTAMENT IN THE ORIGINAL GREEK ACCORDING TO THE BYZANTINE/MAJORITY TEXTFORM
12. BIBLE WINDOWS SOFTWARE VERSION 4.5, SILVER SOFTWARE
Predestinação e Eleição O que a Biblia diz?
PREDESTINAÇÃO E ELEIÇÃO Segundo a Bíblia.
Poucas doutrinas das Escrituras são tão mal entendidas e conseqüentemente tão abusadas e pervertidas quanto essas duas doutrinas, mas a Escrituras as apresentam numa simplicidade relativa; se tal é o caso, por que então elas são tão mal entendidas e abusadas? A verdade é que essas doutrinas atacam a própria raiz do orgulho e vaidade do homem, e quando são entendidas e aceitas de modo correto, não deixam absolutamente nenhum espaço para o homem se regozijar ou se orgulhar em seus próprios feitos e realizações. Por esse motivo, o homem em seu orgulho e vaidade natural as rejeita, ou as modifica tanto a ponto de torná-las aceitáveis à sua mente orgulhosa.
Acerca da eleição, Abraham Booth disse:
Mas qual é a razão desse protesto contra a eleição? Se é que não estou muito enganado, dá para compreender esse protesto da seguinte forma. Essa doutrina põe o machado na raiz de toda excelência moral da qual nos gloriamos. Essa doutrina, em suas conseqüências naturais, demole todo subterfúgio do orgulho humano; já que não deixa nenhuma sombra de diferença entre um homem e outro, o motivo por que Deus deveria estimar e salvar esta pessoa, em vez daquela; mas ensina todos os que sabem e todos os que a adotam a descansar naquela máxima memorável; SIM, Ó PAI, PORQUE ASSIM TE APROUVE; reduzindo o assunto todo a graça divina e a soberania divina. — The Reign of Grace (O Reinado da Graça), p. 56. American Baptist Public¬ation Society, Philadelphia, sem data.
Um pregador idoso, amigo deste escritor, que desde então partiu para o Senhor, certa vez comentou que uma pessoa tinha de se converter para toda doutrina da Bíblia antes de realmente as aceitar, e em nenhuma doutrina é esse fato tão verdadeiro quanto no caso que estamos agora tratando. Este escritor passou por um longo período de conflito interno antes de chegar a aceitar essa doutrina; ele não tinha nenhuma pré-disposição para crer nela; aliás, ele estava inteiramente firme em sua oposição a ela, mas ele orava continuamente para que o Senhor lhe desse sabedoria e entendimento nas coisas espirituais, e o resultado foi esse. Até hoje, o orgulho carnal ainda se rebela contra essa doutrina, mas o espírito foi levado a se regozijar nela, achando nela grande consolo e segurança. É por causa desse grande conflito interno que o escritor não se envolve em argumentos e debates com aqueles que não crêem nessas doutrinas, pois ele crê que elas não são doutrinas que se pode aprender meramente com a sabedoria carnal, mas são doutrinas às quais devemos nos converter, e as quais só dá para aceitar pela graça. Tentar enfiar a Bíblia goela abaixo de outro crente raramente faz mais do que firmá-lo em sua oposição à doutrina proposta com tanto zelo. Isso não quer dizer que não podemos nos engajar em debate quieto e amistoso acerca dessas doutrinas ou outras da Palavra; isso podemos e devemos fazer, mas a qualquer momento que o debate vai além de amizade e tranqüilidade, é hora de terminá-lo, pois depois desse ponto não poderá haver proveito algum para nenhuma das duas pessoas.
Alguns rejeitam as doutrinas dos decretos de Deus completamente, dizendo que não seria justo no caráter de Deus oferecer decretos predeterminados quanto ao que virá a ocorrer no tempo. Contudo, Charles H. Spurgeon, num sermão sobre Efésios 1:5, respondeu bem a essa questão ao dizer:
É ao mesmo tempo uma doutrina das Escrituras e do bom senso, que tudo o que Deus faz no tempo ele predestinou fazer na eternidade. Alguns homens criticam a predestinação divina, e desafiam a justiça dos decretos eternos. Ora, se eles quiserem se lembrar de que a predestinação é o pano de fundo da história, como um plano de arquitetura, a execução do qual lemos nos fatos que acontecem, podem talvez obter uma leve pista para a irracionalidade de sua hostilidade. Nunca ouvi ninguém entre os mestres de forma maliciosa e deliberada criticar o modo como Deus trata suas criaturas humanas, mas ouvi alguns que nem mesmo ousariam colocar em dúvida a justiça de Seus conselhos. Se a coisa em si é certa, tem de ser certo que Deus tencionou fazer a coisa; se você não tem motivo para criticar os fatos, conforme você os vê na providência, você não tem base alguma para se queixar dos decretos, à medida que os acha na predestinação, pois os decretos e os fatos são apenas as semelhanças um do outro. Você tem algum motivo para criticar a Deus, que ele quis salvar você, e salvar a mim? Então por que você deveria criticar, pois as Escrituras dizem que ele predeterminou que ele nos salvaria? Não vejo, se o fato em si é compatível, o motivo por que o decreto deveria ser condenável. Não consigo ver razão alguma por que você deveria criticar a predestinação de Deus, se você não criticar o que realmente acontece como efeito dela. Que as pessoas apenas concordem em reconhecer um ato da providência, e quero saber como elas poderão, a não ser que se oponham descaradamente à providência, criticar a predestinação ou intenção que Deus fez com relação à providência. — Metropolitan Tabernacle Pulpit (Púlpito do Tabernáculo Metropolitano), p. 97. Pilgrim Publication, reimpressão, Pasadena, Texas, 1969.
De novo, de modo geral não é proveitoso pregar essa doutrina para pessoas perdidas, pois muitas delas estão procurando uma desculpa para continuar no pecado, e a perspectiva fatalista de “se vou ser salvo, serei não importa o que eu faça”, será rapidamente adotada, e a responsabilidade humana será removida imediatamente. Mas essa mesma coisa se aplica a muitas doutrinas amplamente diferentes das Escrituras, pois a pessoa perdida tem pouca compreensão espiritual, e muitas vezes usará os ensinos doutrinários como escudo ou defesa para continuar em sua maldade. Este escritor sabe de um exemplo em que a pregação do dever do dízimo para um homem não salvo foi utilizada como desculpa para não ser salvo, pois o homem perdido se isentava com a alegação de que “O pregador só estava interessado em conseguir mais dinheiro na igreja de modo que pudesse obter um aumento de salário”. Esse mesmo tipo de desculpa poderia ilustrar outros casos com relação a outras doutrinas também, de modo que quando dizemos que não é geralmente prudente pregar a predestinação e eleição para os perdidos, não queremos dizer isso com a exceção de outras doutrinas, mas só que a pessoa perdida tem necessidade de que apenas o evangelho lhe seja pregado. Tal indivíduo tem essa necessidade com quase qualquer outro assunto. J. M. Pendleton bem sabiamente diz que:
Deus começa com a eleição, mas o homem não pode. Ele deve começar com o chamado, e quando confirmado o seu chamado, confirma-se a eleição. O chamado é a única prova real da eleição. Portanto, veremos que o cerne da eleição é, nas mãos de um pecador, a mais difícil de todas as questões. A razão é que a eleição, não é da conta dele, e a nada que ele pode fazer com ela. — Christian Doctrines (Doutrinas Cristãs), p. 112. American Baptist Publication Society, Philadelphia, 1878.
Ao estudar essas doutrinas, deve-se reconhecer que essas doutrinas são bem profundas, quase impenetráveis, e por esse motivo, só podemos nos apegar aos ensinos das Escrituras, e não ousamos ir além deles, pois em nada a mente humana é menos preparada para raciocinar do que ao lidar com as doutrinas da predestinação e eleição. Alguns usam esse próprio fato como desculpa para rejeitar essas doutrinas, como se jamais devêssemos aceitar qualquer coisa que não estejamos em condições de compreender plenamente; outros, não encontrando um jeito de reconciliar a soberania de Deus com a responsabilidade humana nesse assunto, escolheram repudiar a eleição soberana de Deus. Mas isso é deixar de entender completamente o ponto; pois se entendemos, ou se podemos reconciliar esses dois fatos, de modo algum determina a verdade dos dois; mas, precisamos deixar Deus ser Deus, e Lhe dar crédito por saber algumas coisas que nem sabemos nem entendemos. Reconciliar as Escrituras não é algo que compete a nós; o que nos compete é simplesmente aprendê-las e crer nelas. Na verdade, a reconciliação é necessária apenas entre inimigos, e as Escrituras não estão em inimizade consigo. O Dr. Richard Fuller, ao falar da predestinação e livre agência, bem disse que:
Mostrei que é impossível rejeitarmos uma dessas duas grandes verdades, e é igualmente impossível nossas mentes as reconciliarem. Mas aí, como em toda parte, a fé tem de vir ao nosso auxílio, ensinando-nos a descansar, sem duvidar, na veracidade de Deus; fazendo-nos lembrar que “As coisas encobertas pertencem ao SENHOR nosso Deus”; e repreendendo a arrogância que exige que nosso intelecto penetre e reconcilie aqueles pensamentos da mente divina que estão tão acima de nossos pensamentos como os céus estão acima da terra. — Sermons, Second Series (Sermões, Segunda Série), p. 19. American Baptist Publication Society, Philadelphia, 1877.
Charles H. Spurgeon, num sermão sobre 2 Tessalonicenses 2:13 14, semelhantemente diz dessa doutrina:
Não está aqui nas Escrituras? E não é teu dever se prostrar diante delas, e humildemente reconhecer o que tu não entendes — recebendo-as como a verdade ainda que não entendas seu sentido? Não tentarei provar a justiça de Deus ao ter assim eleito uns e deixado outros. Não me cabe justificar meu Mestre. Ele falará por Si, ele assim o faz: — “Mas, ó homem, quem és tu, que a Deus replicas? Porventura a coisa formada dirá ao que a formou: Por que me fizeste assim? Ou não tem o oleiro poder sobre o barro, para da mesma massa fazer um vaso para honra e outro para desonra?” — The New Park Street Pulpit (O Púlpito da Nova Rua Parque), Vol. I, p. 316. Zondervan Publishing House, reimpressão, Grand Rapids, Michigan, 1963.
Como seria tolo esperarmos que numa xícara de chá caiba o oceano, assim também seria tolo esperarmos poder entender inteiramente as grandes obras e propósitos do Todo-poderoso, e é apenas jactância imensa que fará da nossa própria ignorância a base para rejeitar o que as Escrituras apresentam como a verdade.
Espero lidar com esse assunto de um modo que não seja exaustivo, quero apenas observar três coisas principais acerca dessa doutrina, e confiar que o Espírito de Deus guiará nosso entendimento na verdade à medida que estudarmos.
I. A DEFINIÇÃO DE ELEIÇÃO E PREDESTINAÇÃO.
Ambas dessas doutrinas serão consideradas juntas, pois muitas vezes se trata a eleição como um ramo da predestinação, e em outras vezes como equivalente à predestinação. O Dr. John Gill diz acerca dessas duas doutrinas:
Os decretos especiais de Deus com respeito às criaturas racionais comumente levam o nome de predestinação; embora se entenda isso num sentido amplo, para expressar toda coisa que Deus predeterminou…mas geralmente se considera a predestinação como consistindo de duas partes, e inclusive os dois ramos da eleição e reprovação, ambos com respeito a anjos e homens… Embora às vezes a predestinação tenha a ver apenas com esse ramo dela chamado eleição, e os predestinados significam apenas os eleitos. — Body of Divinity (Corpo da Divindade), Book II, capítulo 2, p. 176. Turner Lassetter, Atlanta, Georgia, 1950.
Considerando a partir desse ponto de vista negativo, deve-se observar que há muitas concepções erradas acerca dessa doutrina, e não será incorreto notar algumas delas de passagem.
(1) Alguns sustentam que a eleição é apenas para vocação, mas enquanto é verdade que às vezes se declare a eleição para a vocação ou um ofício, porém muitas vezes isso é uma conseqüência que se origina a partir de uma eleição para a vida eterna, em vez da própria eleição. “Não me escolhestes vós a mim, mas eu vos escolhi a vós, e vos nomeei, para que vades e deis fruto, e o vosso fruto permaneça” (João 15:16). Aqui, é óbvio que a ordenação para ser frutífero é algo separado da eleição, embora necessariamente a pressuponha, e se origine dela.
(2) Outros sustentam que a eleição é unicamente um ato do homem: que, nas palavras de alguém: “Deus lança um voto em favor de vida eterna para você, e Satanás lança um voto contra, e o homem deve lançar o voto de decisão, quebrando assim o empate, e se elegendo”. As Escrituras que acabamos de citar, bem como muitas outras, definitivamente negam essa teoria; aliás, no que se refere à salvação, nunca se diz que o homem faz a eleição ou escolha; é um ato que é sempre estabelecido pelo Senhor. Se, como sustenta essa teoria, fosse o homem que fizesse a escolha, o povo de Deus não seria chamado de “os eleitos” — os escolhidos —, mas seria chamado de “os eleitores”. É estranho o modo como muitas vezes o homem, por suas próprias interpretações das Escrituras, faça parecer que o Senhor não sabe como dizer o que Ele quer dizer, e como se não se pudesse assim aceitar as Escrituras em seu sentido mais óbvio.
(3) Uma terceira concepção errada acerca da eleição, que sempre se baseia numa opinião distorcida dela, é que se é verdade que os homens são eleitos para a salvação, então jamais devemos pregar o evangelho para ninguém, nem nos esforçarmos de forma alguma para ver almas salvas, já que só Deus faz a eleição. Muitos que não crêem na eleição a distorcerão desse jeito a fim de ter um bode-expiatório, e alguns até daqueles que afirmam crer nela a distorcerão a fim de desculpar sua negligência, mas o dever dos cristãos de apresentarem o evangelho aos perdidos é de modo algum afetado pela eleição, desde que não há como conhecer o eleito a não ser pela sua resposta ao evangelho. Nosso dever é ser testemunhas de Jesus Cristo — apresentar o evangelho; a eleição para a vida eterna foi tratada numa eternidade passada, e será manifesta pelo Espírito aplicando a verdade salvadora à alma eleita a fim de regenerá-la e fazer com que confie no Salvador. Ainda que o homem não pudesse saber que os decretos de eleição de Deus eram tais que impediriam qualquer pessoa de chegar a se salvar, ou, por outro lado, fizessem com que toda alma perdida fosse salva, não afetaria minimamente o mandamento do Senhor para Seu povo de ser testemunhas fiéis de Sua verdade salvadora. O que Deus faz ou não faz não tem efeito algum em nossa responsabilidade de dar testemunho fiel acerca dEle.
(4) Ainda outros sustentam que na medida que essa doutrina é misteriosa, que não deveria pois ser pregada nem ensinada de forma alguma. Mas não é bem assim, pois não se pode ignorar nenhuma doutrina das Escrituras sem incorrer culpa séria diante de Deus; é necessário que os santos sejam informados da fonte e causa de sua salvação, para que em seu orgulho e prepotência não tentem tomar para si essa glória que pertence somente ao Senhor.
O que então é a eleição? A palavra significa simplesmente “escolher” e se refere à escolha eterna de homens indignos de ser os objetos da obra salvadora do Senhor no tempo. “Como também nos elegeu nele antes da fundação do mundo, para que fôssemos santos e irrepreensíveis diante dele em amor” (Efésios 1:4). As definições seguintes poderão nos ajudar a entender as doutrinas da predestinação e eleição.
A eleição é o ato eterno de Deus, pelo qual em Sua vontade soberana, e por causa de nenhum mérito antevisto neles, ele escolhe certos homens pecadores para receber a graça especial de Seu Espírito, e assim se tornarem participantes voluntários da salvação de Cristo. — A. H. Strong, Systematic Theology (Teologia Sistemática) p. 779. Fleming H. Revell Company, 1954.
Falando de predestinação, o Dr. J. M. Pendleton diz:
A predestinação abrange o propósito da eleição, e também, conforme será mostrado, o propósito da “reprovação”, como tem sido chamada, que, como bem se disse: “nada mais é do que negar a alguns a graça que é transmitida a outros” (Hill’s Divinity [A Divindade do Hill], p. 561) Pode-se expressar esses dois propósitos assim: “Que Deus escolheu em Cristo certas pessoas da raça caída de Adão, antes da fundação do mundo, para a glória eterna, de acordo com Seu próprio propósito e graça, sem relação com a fé e obras antevistas deles, ou quaisquer condições que eles tenham cumprido”; e que Ele negou ao resto da humanidade Sua graça e os entregou à desonra, e o justo castigo de seus pecados. — Christian Doctrines (Doutrinas Cristãs), p. 105. Ameri¬can Baptist Publication Society, Philadelphia, 1878.
As Escrituras apresentam essa doutrina, não só com a terminologia de “eleição”, mas também sob os termos de “escolher”, “ordenar”, “designar”, “determinar”, “destinar” e “constituir”, pois essa doutrina envolve a determinação soberana de Deus de exercer tais dons e graças em homens caídos específicos a fim de fazer com que certamente venham a conhecer a salvação de Seu Filho. Por causa do caráter dos propósitos do Senhor, essa realização é sempre atribuída totalmente a Deus, e jamais ao homem. Nenhuma obra, mérito ou fé humana, ou real ou antevista, pode chegar a entrar na determinação desse assunto. Isso é óbvio a partir de Romanos 9:11: “Porque, não tendo eles ainda nascido, nem tendo feito bem ou mal (para que o propósito de Deus, segundo a eleição, ficasse firme, não por causa das obras, mas por aquele que chama)”. Ao se referir aos filhos que não haviam nascido, nem tinham feito nada de bom ou mau, e então ao se referir aos propósitos de Deus de acordo com a posição de eleição, mostra-se claramente que uma presciência de atos, mérito ou fé humana jamais entra no assunto, pois se entrasse, aí seria o lugar lógico para se fazer menção, mas o silêncio reina de modo supremo nesse exemplo.
Muitos sustentam uma eleição condicional — condicionada em alguma resposta humana, geralmente fé. Aliás, alguns pregadores mudaram a declaração das velhas confissões bíblicas de fé que quase todos os batistas costumavam sustentar de que “somos eleitos para Sua graça”, e deixaram seu texto assim: Somos “por condição eleitos para essa graça”. Isso soa bom para a mente orgulhosa e humanista do homem! Mas o fato das Escrituras é que, na gramática grega, existe apenas um tempo condicional, e a palavra “eleito” JAMAIS é nesse tempo.
E outro fato interessante que refuta a teoria acima acerca da eleição condicional é que em toda vez que aparece no Novo Testamento a palavra grega traduzida “eleito” ou “escolher”, quando Deus está fazendo a eleição, o verbo está na voz média. Isso é muito significativo, conforme mostra W. W. Goodwin.
Na voz média o sujeito é representado como agindo em si mesmo, ou de algum modo que tem a ver consigo. 1. Como agindo em si mesmo… 2. Como agindo por si mesmo ou com referência a si mesmo… 3. Como agindo num objeto que pertença a si mesmo. — A Greek Grammar (Gramática Grega), Section 1242, p. 267. Ginn & Company, Boston, 1892.
Por isso, NÃO DÁ para achar a causa da eleição no sujeito, assim escolhido, mas é devido totalmente por causa da determinação dAquele que faz a escolha. NÃO HÁ NADA NOS ELEITOS QUE MOVA DEUS A ESCOLHER ALGUM DELES, É TOTALMENTE DA GRAÇA.
A eleição, que se declara claramente ser eterna — isto é, antes que o tempo, o mundo, ou o homem tivessem vindo a existir. A única alternativa daqueles que determinaram não aceitar a soberania absoluta de Deus nesse assunto é baseá-la no mérito antevisto de algum tipo no homem, tal como fé, bondade ou utilidade; mas Romanos 9:11, citado acima, bem como o fato de que a fé, e aliás, “toda a boa dádiva”, se declara ser dádiva de Deus, anula essa teoria, e deixa a eleição ainda um ato soberano de Deus sem explicação a partir do lado humano do assunto. Será que Deus não tem o mesmo direito que nós temos, de exigir para si e escolher quem serão Seus amigos e parceiros a vida inteira? Se alguém tentar cobrar que Deus tem de lidar do mesmo jeito e grau com toda a humanidade, ele imediatamente se deparará com todos os tipos de dificuldades, pois Deus exige o direito soberano de fazer com quem é dEle conforme Ele quiser, como o dono da casa na parábola em Mateus 20:15: “Ou não me é lícito fazer o que quiser do que é meu? Ou é mau o teu olho porque eu sou bom?” Se alguém chega a ser salvo, é mais do que merecimento, e se ninguém chegar a ser salvo, não haveria base alguma para queixa, pois todos merecem apenas o inferno. Em nenhuma outra esfera o homem raciocina de modo tão incoerente como na questão da eleição. Por exemplo, se o governador de um estado perdoa um presidiário da prisão estadual, ninguém imediatamente começa a gritar que a fim de ser justo, ele tem de perdoar todos os outros presidiários igualmente culpados. Todos compreendem que perdoar um criminoso é um ato de graça e misericórdia, não de justiça, e que direitos e merecimento nada têm a ver com isso; mas os propósitos de eleição de Deus são exatamente paralelos a isso.
Temos de nos lembrar de que a eleição é totalmente de Deus, que foi realizada na eternidade passada, que é para a salvação, e que inclui todos os meios necessários para cumprir a salvação, como está escrito: “Mas devemos sempre dar graças a Deus por vós, irmãos amados do Senhor, por vos ter Deus elegido desde o princípio para a salvação, em santificação do Espírito, e fé da verdade; Para o que pelo nosso evangelho vos chamou, para alcançardes a glória de nosso Senhor Jesus Cristo” (2 Tessalonicenses 2:13 14). Não resta assim nenhum espaço para o louvor do homem e suas obras ou atitudes, mas toda a glória é devida a Deus.
II. A ELEIÇÃO EM DETALHES.
Conforme já dissemos, a eleição é um ato totalmente de Deus, e o homem não tem parte nesse ato, como declaram com clareza as seguintes passagens: “E, se o Senhor não abreviasse aqueles dias, nenhuma carne se salvaria; mas, por causa dos eleitos que escolheu, abreviou aqueles dias” (Marcos 13:20). Essa é a primeira vez em que aparece no Novo Testamento a palavra grega eklegomai (eklektous ous exelexato), e enfatiza o fato de que é a escolha de Deus que constitui certas pessoas como eleitas. Não importa que essa referência tenha a ver com o período da Grande Tribulação, nem (como as objeções de alguns) que essa referência tenha a ver só com os judeus (o que não é verdade, pois embora inclua os eleitos de Israel, não está limitada a eles, mas abrange todos os eleitos que estavam vivendo na terra naquela época). Prova que os homens são eleitos por causa da escolha de Deus, não do homem. “Como também nos elegeu nele antes da fundação do mundo, para que fôssemos santos e irrepreensíveis diante dele em amor” (Efésios 1:4). Outra vez é provada que Deus faz a escolha, mas se revela um fato adicional: não fomos escolhidos por causa de alguma santidade pessoal, mas em vez disso fomos escolhidos para essa condição, isto é, essa condição se origina da eleição de Deus. “Sabendo, amados irmãos, que a vossa eleição é de Deus” (1 Tessalonicenses 1:4). De novo, a eleição é ato de Deus.
A eleição é também atribuída a Cristo nas seguintes passagens: “Não falo de todos vós; eu bem sei os que tenho escolhido” (João 13:18). É óbvio que a referência não é à eleição para serviço, pois Judas Iscariotes havia sido escolhido para serviço, mas ele nunca foi salvo, e assim não poderia ter sido eleito para salvação. “Não me escolhestes vós a mim, mas eu vos escolhi a vós, e vos nomeei, para que vades e deis fruto, e o vosso fruto permaneça; a fim de que tudo quanto em meu nome pedirdes ao Pai ele vo-lo conceda… Se vós fôsseis do mundo, o mundo amaria o que era seu, mas porque não sois do mundo, antes eu vos escolhi do mundo, por isso é que o mundo vos odeia” (João 15:16,19). Observe nesses últimos versículos que: (1) Cristo expressamente nega que o homem fez a escolha. (2) Que essa escolha não foi “para serviço”, como muitos afirmam que a eleição é, pois o serviço é algo que é em acréscimo à, e se origina da, eleição. (3) Essa eleição coloca os santos numa classe diferente do mundo. (4) O mundo odeia os santos porque eles foram eleitos por Cristo.
É verdade que um homem pode escolher servir a Deus, (Josué 24:15), mas tal escolha jamais se chama eleição, pois a eleição é sempre um ato divino quando tem relação com a salvação, que é geralmente o caso no Novo Testamento. A escolha dos homens de servir a Deus não significa nada quanto à sua eleição para a salvação, pois Judas Iscariotes havia escolhido, por suas próprias razões, seguir Cristo e, até certo ponto, servir a Deus, mas somos expressamente informados de que ele nunca foi salvo. Portanto, ele não era um dos eleitos.
Não só é declarada que a eleição é de Deus, mas que é também “em Cristo”, conforme está escrito: “Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o qual nos abençoou com todas as bênçãos espirituais nos lugares celestiais em Cristo; Como também nos elegeu nele antes da fundação do mundo…” (Efésios 1:3-4). Com isso se quer dizer que todos os eleitos são englobados no Filho de Deus, e são aceitos diante do Pai apenas por causa dEle: “Para louvor e glória da sua graça, pela qual nos fez agradáveis a si no Amado” (Efésios 1:6). É inteiramente natural para os homens orgulhosos e egoístas buscarem, em algum lugar em si mesmo, a causa de sua aceitação diante de Deus — em suas obras, ou em sua fé, ou talvez em seu serviço potencial ao Senhor, mas tal não é a fonte da aceitação de homem algum diante do Senhor, pois se fosse, o homem só teria segurança na mesma medida da sua fidelidade contínua ao Senhor. Mas pelo fato de que “somos agradáveis no Amado”, e não por causa de qualquer coisa em nós mesmos, temos eterna segurança, e jamais poderemos nos perder; nossa aceitação se baseia nos méritos gloriosos de Jesus Cristo, e jamais poderão falhar enquanto Ele mantiver Seu caráter santo e imaculado. O próprio Jesus Cristo teria primeiro de pecar, antes que pudéssemos chegar a nos perder, e isso, é claro, é um assunto além das possibilidades. Portanto, a salvação de todo verdadeiro filho de Deus está eternamente resolvida e segura.
A eleição é pessoal, tratando com indivíduos; é verdade que Israel era uma nação escolhida, conforme está escrito: “Por amor de meu servo Jacó, e de Israel, meu eleito, eu te chamei pelo teu nome”, (Isaías 45:4), mas de longe a maioria das referências à eleição e aos eleitos trata não com a nação de Israel, mas em vez disso com os santos individuais de Deus. Alguns declararam que nunca se menciona eleição como tendo a ver com salvação, mas é sempre em referência a Israel como nação eleita, ou caso contrário é uma eleição para serviço. Só dá para explicar essa declaração por ignorância ou preconceito, pois as Escrituras declaram: “Mas devemos sempre dar graças a Deus por vós, irmãos amados do Senhor, por vos ter Deus elegido desde o princípio para a salvação, em santificação do Espírito, e fé da verdade” (2 Tessalonicenses 2:13). “Porque Deus não nos destinou para a ira, mas para a aquisição da salvação, por nosso Senhor Jesus Cristo” (1 Tessalonicenses 5:9). “E creram todos quantos estavam ordenados para a vida eterna” (Atos 13:48). E há numerosas outras passagens que, de forma explícita ou implícita, declaram que a salvação é o resultado direto da eleição.
Isso nos leva a observar outra coisa acerca da eleição, a qual os oponentes da doutrina bíblica da eleição ou não percebem ou então ignoram. A eleição não é a mesma coisa que a salvação. Os oponentes muitas vezes tentam fazer a doutrina parecer absurda dizendo: “Então você crê que os eleitos foram salvos desde a eternidade passada?” A eleição é para a salvação, pois a eleição ocorre na eternidade passada, mas um homem só é salvo depois de nascer de novo, e as primeiras evidências desse novo nascimento são arrependimento e fé. A eleição é aquela determinação de Deus conduzir o homem as circunstâncias e debaixo de influências que certamente farão com que ele seja salvo.
A eleição de Deus é um assunto individual, exatamente como o modo como Deus trata os homens é individual; os homens não são salvos em grupo, e nem são eleitos em grupo. Num versículo os santos de Deus são chamados “a geração eleita, o sacerdócio real, a nação santa, o povo adquirido”, (1 Pedro 2:9), mas eles são na maioria das vezes citados em termos que frisam a eleição individual que o Senhor faz de cada um.
A eleição também se baseia na presciência de Deus, pois está escrito: “Porque os que dantes conheceu também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos” (Romanos 8:29). Tragicamente, há uma profunda ignorância dessa palavra “presciência” e sua aplicação. Caso contrário, há muitas vezes uma perversão absoluta desse texto a fim de se evitar seu ensino óbvio. Antes de lidar com esse texto, talvez seja bom ler também 1 Pedro 1:2, e lidar com ambos de uma só vez: “Eleitos segundo a presciência de Deus Pai, em santificação do Espírito, para a obediência e aspersão do sangue de Jesus Cristo”.
Essa perversão de Romanos 8:29 e 1 Pedro 1:2 é feita por homens que declaram que essa é uma presciência da fé dos homens — que Deus elege os homens porque Ele antevê que eles crerão em Jesus Cristo. Mas por que Deus deveria elegê-los se Ele vê que eles vão crer de qualquer forma? Será que Ele é como muitos moderninhos que primeiro observam para ver de que jeito as coisas vão indo, então pulam na primeira tendência da moda que aparece de modo que pareça que eles estão de acordo com todo mundo? Dificilmente: É óbvio que essa não é uma interpretação que esses textos produzirão, a partir do fato de que essa presciência não é “o que” — isto é, sua fé, obras, atitude ou serviço potencial — mas é de “quem” — isto é, uma presciência de suas pessoas. De novo, não poderia ser de suas obras ou fé, pois isso faria com que Romanos 8:29 entrasse em conflito com 1 Pedro 1:2, onde se revela que a fé é conseqüência natural e resultado da eleição, pois Deus elege “para a obediência”, e 2 Tessalonicenses 2:13, onde os homens são escolhidos “para a salvação, em santificação do Espírito, e fé da verdade”. Em ambos os exemplos, revela-se que a obediência e a fé são conseqüência natural e resultado da escolha soberana de Deus, e não a causa dela. Veja também Atos 13:48, onde se apresenta a mesma coisa. Os homens dizem que Deus anteviu que os homens creriam, mas as Escrituras em parte alguma dizem isso; pelo contrário, o que Deus viu quando Ele olhou do céu foi descrença, desobediência e rebelião universal, conforme está escrito: “Deus olhou desde os céus para os filhos dos homens, para ver se havia algum que tivesse entendimento e buscasse a Deus. Desviaram-se todos, e juntamente se fizeram imundos; não há quem faça o bem, não, nem sequer um” (Salmo 53:2-3). Isso resolve esse assunto para todos os que estão sujeitos à Palavra de Deus. Deus não elegeu os homens porque Ele anteviu que eles creriam, mas Ele os elegeu porque Ele anteviu que a menos que Eles os elegesse, e oferecesse os meios para conduzi-los à salvação, ninguém chegaria a ser salvo.
Ora, se essa presciência não é da fé deles, então a que isso se refere? Em 1 Pedro 1:20, essa mesma palavra grega que é traduzida “presciência” em 1 Pedro 1:2, é traduzida em 1 Pedro 1:20 “em outro tempo foi conhecido”. Acerca disso o Dr. B. H. Carroll diz:
Conforme Pedro declara a eleição, perguntamos: o que é? Significa escolhidos para a salvação. Quem elege? Deus o Pai. Ele elege de acordo com quê? De acordo com sua presciência. O que Ele quer dizer com presciência? A palavra grega é “prognosis:” “nosis” significa conhecimento, e “pro” (o “g” significa eufonia) quer dizer antes, ou presciência, e essa palavra é um substantivo usado apenas por Pedro no Novo Testamento. Ele o usa três vezes, conforme o seguinte: Atos 2:23; a passagem aí, 1 Pedro 1:2, e em 1 Pedro 1:20. Esses são os únicos lugares no Novo Testamento em que temos a palavra “prognosis,” presciência, que significa conhecer de antemão. Mas tanto Pedro quanto Paulo usam o verbo “prognosco,” que significa conhecer de antemão… Paulo usa a palavra em referência ao conhecimento de antemão que Deus tem de seu povo, e todas as outras vezes que Pedro fala do conhecimento de antemão de Deus. Ora, então a pergunta é: O que significa conhecer de antemão?… O uso de presciência no Novo Testamento era exatamente equivalente à predestinação. Qualquer estudioso da língua grega lhe diria isso. A eleição não se baseava em alguma bondade antevista no homem ou em algum arrependimento ou fé no homem, mas o arrependimento e a fé procedem da eleição, e não vice-versa. De modo que o que Paulo quer dizer com presciência é praticamente a mesma coisa que a predestinação; que na eternidade Deus determinou e elegeu de acordo com essa predestinação. — An Interpretation of the English Bible (Uma Interpretação da Bíblia em Inglês), Vol. 16, pp. 188 189. Broadman Press, Nashville, Tennessee, 1947.
Obviamente “conhecer antes” envolve mais do que mera presciência nessas passagens, pois em Atos 2:23 a presciência de Deus fez mais do que meramente conhecer de antemão a crucificação de Cristo, mas era realmente parte da força de entrega nela: “A este que vos foi entregue pelo determinado conselho e presciência de Deus, prendestes, crucificastes e matastes pelas mãos de injustos”. O outro uso dessa palavra em 1 Pedro 1:20, onde se traduz “conhecido antes” revela essa mesma coisa, isto é, que essa palavra envolve não só presciência de um fato, mas também a execução de um fato. A presciência de Deus é pois equivalente ao ato de Ele decretar esse fato. Sua predestinação é o cumprimento de todos os eventos que têm a ver com as vidas de Seus eleitos. Portanto, como disse alguém, a eleição tem a ver com pessoas, enquanto a predestinação tem a ver com eventos.
Muitas vezes se usa a palavra “propósito” para denotar a firme decisão ou determinação da mente de buscar um objeto específico. Mas não seria sábio um Ser onisciente tornar qualquer coisa uma finalidade de ação, a menos que se saiba que dá para alcançá-la; e, se sabe que dá para alcançar, tem de se saber também os meios e o modo de obtenção. Assim, o propósito de Deus, abrangendo tanto finalidade quanto meios, tem de abranger tudo o que ele determinou fazer ou permitir. — Alvah Hovey, Manual of Systematic Theology (Manual de Teologia Sistemática), p. 96. Ameri¬can Baptist Publication Society, Philadelphia, 1880.
Não só isso, mas enquanto todos sabemos o que significa “antes” quando adicionado a “conhecer”, muitos não consideraram o uso bíblico da palavra “conhecer”, mas presumiram que só se refere à consciência mental de algo. O primeiro uso de “conhecer” nas Escrituras mostra que se refere a entrar numa íntima união de amor com outro (veja Gênesis 4:1). Esse é o mesmo uso no primeiro uso de “conhecer” no Novo Testamento em Mateus 1:25. Maria também usou essa palavra na mesma forma em Lucas 1:34. É verdade que essa palavra foi usada nessas passagens referindo-se a uma união física, mas ilustra o uso espiritual, como o físico faz em muitos exemplos. Assim, ao “conhecer antes” certas pessoas, Deus estava simplesmente entrando numa íntima relação espiritual de amor com elas em Cristo, o representante delas, como em Efésios 1:3 4. Essa presciência de Deus o Pai equivale em sentido quanto ao que se declara de Israel em Jeremias 31:3. “Há muito [ou na eternidade passada] que o SENHOR me apareceu, dizendo: Porquanto com amor eterno te amei [ou, te escolhi para mim mesmo], por isso com benignidade te atraí [ou, chamado eficaz]”. Deus tomou a iniciativa com relação à redenção do homem antes que o homem até viesse a existir, e assim, independente de alguma fé real ou possível, obras ou mérito de qualquer tipo. É graça, pura graça, SOBERANA GRAÇA.
A fim de interpretar corretamente a Palavra de Deus, precisamos considerar todas as vezes que uma palavra ou frase aparece, e interpretar cada uma em harmonia com todas as outras; mas se fizermos isso, então não podemos tomar qualquer um dos cognatos dessa palavra “conhecer [antes]”, isolá-la dos outros usos, e dar-lhe um sentido diferente dos outros. Assim, não dá para forçar o termo “dantes conhecer” em Romanos 8:29 a se referir a uma presciência passiva das ações do homem no tempo, quando as formas do substantivo e do verbo dessa palavra em outros lugares mostram que envolve uma força ativa que realiza o fato assim “dantes conhecido”. Parece óbvio para este escritor que a palavra grega traduzida “dantes conheceu” em Romanos 8:29 tem a força de “entregue pelo determinado conselho e presciência de Deus” como na verdade a mesma palavra é traduzida em Atos 2:23, e a maioria dos grandes teólogos batistas do passado tinha esse consenso.
A eleição não se baseia em alguma obra ou ato humano, real ou previsto, mas em vez disso é soberana, conforme está escrito: “Pois diz a Moisés: Compadecer-me-ei de quem me compadecer, e terei misericórdia de quem eu tiver misericórdia. Assim, pois, isto não depende do que quer, nem do que corre, mas de Deus, que se compadece” (Romanos 9:15-16). E de novo: “Assim, pois, também agora neste tempo ficou um remanescente, segundo a eleição da graça. Mas se é por graça, já não é pelas obras; de outra maneira, a graça já não é graça. Se, porém, é pelas obras, já não é mais graça; de outra maneira a obra já não é obra” (Romanos 11:5-6). E ainda de novo: “Porque, vede, irmãos, a vossa vocação, que não são muitos os sábios segundo a carne, nem muitos os poderosos, nem muitos os nobres que são chamados. Mas Deus escolheu as coisas loucas deste mundo para confundir as sábias; e Deus escolheu as coisas fracas deste mundo para confundir as fortes; E Deus escolheu as coisas vis deste mundo, e as desprezíveis, e as que não são, para aniquilar as que são; Para que nenhuma carne se glorie perante ele” (1 Coríntios 1:26-29).
O homem foi criado e existe para um propósito supremo — para que Deus seja nele glorificado, e Deus jamais tolera nada que vá além daquilo que contribui para Sua glória, pois está escrito: “Certamente a cólera do homem redundará em teu louvor; o restante da cólera tu o restringirás” (Salmos 76:10). Isso explica o motivo por que a eleição é soberana, e o motivo por que Deus lida com o homem em graça — é para que a glória possa ser toda dEle; e isso explica também o motivo por que a doutrina da eleição é tão desagradável ao paladar do homem — não lhe deixa espaço algum para se gloriar em si mesmo. Assim as Escrituras declaram que a vontade e os propósitos de Deus são os fatores determinantes de Sua relação com o homem: “E nos predestinou para filhos de adoção por Jesus Cristo, para si mesmo, segundo o beneplácito de sua vontade, Para louvor e glória da sua graça, pela qual nos fez agradáveis a si no Amado… Descobrindo-nos o mistério da sua vontade, segundo o seu beneplácito, que propusera em si mesmo, De tornar a congregar em Cristo todas as coisas, na dispensação da plenitude dos tempos, tanto as que estão nos céus como as que estão na terra; Nele, digo, em quem também fomos feitos herança, havendo sido predestinados, conforme o propósito daquele que faz todas as coisas, segundo o conselho da sua vontade” (Efésios 1:5-6, 9-11).
A rebeldia do homem em aceitar a doutrina da eleição resume-se a apenas uma coisa — ele está indisposto que Deus seja soberano nesse assunto. Ao reconhecer a soberania absoluta de Deus, não teremos problemas com a doutrina da eleição, nem com nenhum dos temas relacionados, pois se Deus tem o direito soberano de fazer com Sua criação conforme bem quiser, e se Ele não pode agir de modo injusto, então tudo o que Ele faz será certo, quer nós seres humanos mortais consigamos ou não entender as razões para Suas ações. Nem mesmo a doutrina da reprovação nos afligirá ao reconhecermos a justiça e soberania de Deus. No entanto, muitos inflam a reprovação (ou rejeição, como também é chamada) para proporções desnecessárias, não percebem sua conexão com o pecado do homem e tornam decreto arbitrário enviar alguns para o inferno sem relação com a descrença disposta do homem. J. M. Pendleton bem diz:
Se se diz que a eleição de alguns é a rejeição de outros, pode-se comentar: A Rejeição é um termo desnecessariamente forte, e é preferível dizer que Deus deixou outros como estavam. A doutrina da eleição os deixa onde eles estariam se não houvesse eleição alguma. Nenhuma injustiça lhes é feita. A verdade é, a eleição não é injustiça para ninguém, embora seja uma bênção inexpressável para alguns. É preciso uma multidão que nenhum homem pode contar do meio da raça caída de Adão, mas Deus pode contá-los e elevá-los à esperança e céu. — Christian Doctrines (Doutrinas Cristãs), pp. 106 107. American Baptist Publication Society, Philadelphia, 1878.
Alguns, em ignorância abjeta, afirmam às vezes que essa doutrina ensina que Deus arbitrariamente manda todos os não eleitos para o inferno “sem uma chance” e exclusivamente como um ato de soberania, mas tal idéia ignora os fatos (1) Que ninguém vai para o inferno exceto por pecado real e pessoal, e assim todo indivíduo no inferno estará ali por justiça. (2) Que nenhum homem vai para o inferno exceto depois de uma vida inteira de pecado, incredulidade e rejeição ao único remédio para o pecado. (3) Que nenhum incrédulo pode saber de sua eleição ou sua não eleição até o fim da vida, e enquanto há vida ele não só tem a oportunidade de se arrepender e se salvar, mas também convites nesses sentido lhe são oferecidos. Séculos atrás, João Bunyan escreveu sobre a Reprovação:
Tenho de lembrá-lo novamente acerca desses detalhes: 1. Que a reprovação eterna não torna um homem pecador. 2. Que a presciência de Deus, que os reprovados perecerão, não torna nenhum homem pecador. 3. Que a infalível determinação de Deus para a condenação daquele que perece não torna homem algum pecador. 4. A paciência, a longanimidade e a moderação, até que o reprovado se prepare para a destruição eterna, não tornam nenhum homem pecador. — The Doctrine of Election And Reprobation, in The Complete Works Of John Bunyan (A Doutrina da Eleição e Reprovação, nas Obras Completas de John Bunyan), Vol. II, p. 285. National Foundation For Christian Educat¬ion, reimpressão, Marshallton, Delaware, 1968.
Nenhum homem tem o direito de falar contra o modo como Deus se relaciona com o homem, qualquer que seja tal relação, e é somente mediante a presunção e prepotência blasfema que alguém ousa agir desse jeito. “Mas, ó homem, quem és tu, que a Deus replicas? Porventura a coisa formada dirá ao que a formou: Por que me fizeste assim? Ou não tem o oleiro poder sobre o barro, para da mesma massa fazer um vaso para honra e outro para desonra?” (Romanos 9:20-21). Portanto, que nenhum homem orgulhoso desafie o modo como Deus se relaciona com o homem, mas em vez disso que ele se regozije no fato de que Deus escolheu alguns do mundo para serem Seus escolhidos, e que o homem confie no Senhor Jesus para obter a salvação de sua alma para que ele possa ter a certeza de que está incluído entre os escolhidos, e agora humildemente se regozijar nessa eleição.
De novo, que se observe que a eleição inclui todos os meios necessários para a chamada dos eleitos entre o restante do mundo. Aqueles que não crêem nessa doutrina muitas vezes acusam aqueles que crêem de incoerência porque pregam o evangelho e se esforçam para obter a salvação das almas dos homens; ao agirem desse jeito, eles traem sua ignorância, ou então são culpados de propositalmente mal-representar a verdade, pois todos os que verdadeiramente entendem e crêem nessa doutrina também crêem que Deus não só escolheu certas pessoas para serem somente dEle na eternidade, mas que Ele também ordenou os meios para levá-las ao arrependimento e fé no tempo. Referindo-se a Romanos 8:30, o Dr. J. M. Pendleton diz:
Nesse versículo temos, se é que podemos assim chamar, uma corrente de ouro de quatro elos, e essa corrente alcança de eternidade a eternidade. O primeiro elo é a predestinação, e o último é a glorificação, enquanto os dois elos no meio são chamado e justificação. O primeiro elo não tem conexão alguma com o último, exceto mediante os elos intermediários. Isto é, não há jeito de o propósito de Deus na predestinação poder alcançar sua finalidade na glorificação, se o chamado e a justificação não ocorrerem. Mas o chamado e a justificação são inseparáveis de “a conversão a Deus, e a fé em nosso Senhor Jesus Cristo” (Atos 20:21). O arrependimento e a fé, então, sem mencionar outras coisas, são meios mediante os quais se realiza o propósito de Deus na eleição. Portanto, Deus, ao predestinar a salvação para seu povo, predestinou o arrependimento deles, e a fé e todos os outros meios necessários para a salvação deles. — Christian Doctrines (Doutrinas Cristãs), pp. 110 111. American Baptist Publication Society, Philadelphia, 1878.
Se nos perguntassem o motivo por que temos de pregar o evangelho se Deus escolheu os homens para a salvação, deixamos Paulo responder: “Mas devemos sempre dar graças a Deus por vós, irmãos amados do Senhor, por vos ter Deus elegido desde o princípio para a salvação, em santificação do Espírito, e fé da verdade; Para o que pelo nosso evangelho vos chamou, para alcançardes a glória de nosso Senhor Jesus Cristo” (2 Tessalonicenses 2:13-14). Se nos perguntassem de modo faccioso o motivo por que então não pregamos somente aos eleitos, respondemos primeiramente que não podemos saber antecipadamente quem são eles, a não ser pela reação deles ao evangelho, mas ainda que pudéssemos saber antecipadamente quem são eles, isso em nada nos aliviaria do dever de “Ide por todo o mundo, pregai o evangelho a toda criatura” (Marcos 16:15). Quantos eleitos há, e quem são, de modo algum afeta nossa responsabilidade de proclamar fielmente a todo o mundo o evangelho da graça salvadora de Deus; é responsabilidade de Deus chamá-los através do evangelho que pregamos. O evangelho tem um de dois resultados quando é pregado: justificação ou juízo; assim, Paulo diz: “Porque para Deus somos o bom perfume de Cristo, nos que se salvam e nos que se perdem. Para estes certamente cheiro de morte para morte; mas para aqueles cheiro de vida para vida. E para estas coisas quem é idôneo?” (2 Coríntios 2:15-16). A pregação do evangelho torna mais ainda os homens responsáveis de prestar contas a Deus por sua incredulidade e rejeição.
III. A DETERMINAÇÃO DA ELEIÇÃO.
Muitas vezes se faz a pergunta: “Como uma pessoa pode saber que ela pertence aos eleitos?” O que todos temos de compreender é que enquanto nosso Senhor disse: “Mas, não vos alegreis porque se vos sujeitem os espíritos; alegrai-vos antes por estarem os vossos nomes escritos nos céus”, Lucas 10:20, mas não temos jeito algum de subir até o céu e contemplar aquele maravilhoso e glorioso Livro da Vida do Cordeiro, em que estão inscritos todos os santos de todas as épocas. Mas se esse é o caso, como então se pode saber que ele pertence aos eleitos? Não simplesmente porque ele é membro de uma igreja, pois isso nada prova, como revela o caso de Judas Iscariotes; e um homem não pode saber que ele é dos eleitos porque ouviu a pregação do evangelho e sentiu a convicção da Palavra, pois Mateus 20:16 declara que “muitos são chamados, mas poucos escolhidos”. O chamado do evangelho mexe com muitos corações que nunca são transformados e nunca são vivificados pelo Espírito Santo, e assim o número dos eleitos é muito menor do que o número dos que sentiram a convicção e ouviram um chamado de receber o Salvador.
Quando consideramos as referências aos homens sendo chamados em Romanos 8:30: “E aos que predestinou a estes também chamou; e aos que chamou a estes também justificou; e aos que justificou a estes também glorificou”, e 1 Coríntios 1:23 24: “Mas nós pregamos a Cristo crucificado, que é escândalo para os judeus, e loucura para os gregos. Mas para os que são chamados, tanto judeus como gregos, lhes pregamos a Cristo, poder de Deus, e sabedoria de Deus”, e 2 Tessalonicenses 2:14: “Para o que pelo nosso evangelho vos chamou, para alcançardes a glória de nosso Senhor Jesus Cristo”, e outras passagens, então se torna óbvio que além do chamado normal, que vem mediante a pregação, e que muitas vezes é mais ineficaz do que não, há outro chamado que é sempre apenas para os eleitos, e sempre resulta em justificação, e finalmente se completará na glorificação. Esse último chamado é o que os teólogos do passado chamavam de chamado eficaz, enquanto o primeiro chamado é conhecido como o chamado geral; a menos que se faça essa distinção, o resultado será muita confusão, e parecerá que os propósitos de Deus muitas vezes falham na realização. O chamado eficaz, porém, não falha, sendo idêntico com regeneração, de modo que qualquer pessoa nasce de novo quando esse chamado lhe vem. Esse chamado é co-extensivo com o número daqueles que são justificados e glorificados, pois não há quebra entre eles, nem diminuição nem aumento no número de pessoas entre o chamado, a justificação e a glorificação em Romanos 8:30. Note a correlação entre “aos que” e “estes” aparecendo três vezes.
Ninguém tem a garantia de sua eleição, exceto ao se submeter ao chamado do evangelho e se arrepender de seus pecados e confiar na obra expiatória do Senhor Jesus Cristo, pois essas coisas são as primeiras evidências da eleição de alguém, como está escrito: “… e creram todos quantos estavam ordenados para a vida eterna” (Atos 13:48). Esse versículo sofre enorme violência por parte daqueles que não crêem na eleição soberana de Deus, alguns tentando tornar a ordenação para a vida subseqüente ao ato de crer, e outros desafiando o sentido da palavra traduzida “ordenado”.
Quanto à primeira dessas duas reações a esse versículo, temos só de citar as palavras do Dr. A. T. Robertson, cuja autoridade como estudioso grego é inquestionável, pois ele é conhecido e reconhecido como um dos grandes estudiosos gregos da geração passada. Ele diz:
Não há nenhum tipo de truque que possa fazer significar que aqueles que creram foram depois ordenados. Foi a fé salvadora que foi exercitada somente por aqueles que foram ordenados para a vida eterna, aqueles classificados para a vida eterna, que foram assim revelados como alvos da graça de Deus pela posição que tomaram para o Senhor neste dia. — Word Pictures In The New Testament (Retratos da Palavra no Novo Testamento), Vol. III, pp. 200 201. Broadman Press, Nashville, Tenn., 1930.
A única ordem correta dessa sentença é com ordenação à vida eterna indo antes, e sendo a causa da fé que se estava exercendo. Quanto à segunda reação a esse versículo — o desafio do sentido da palavra traduzida “ordenado” — alguns dizem que se deve lhe atribuir um sentido reflexivo: “se dispuseram para a vida eterna”. Não somos informados acerca do motivo por que essa palavra tem de receber tal atribuição, a menos que seja forçada a concordar com a idéia de antemão deles. É suficiente responder que essa palavra (grego tasso) jamais sustenta tal sentido no Novo Testamento conforme manifestará um estudo de todas as vezes que essa palavra aparece; (veja Mateus 28:16; Lucas 7:8; Atos 13:48; 15:2; 22:10; 28:23; Romanos 13:1; 1 Coríntios 16:15). Só no último exemplo a ação da sentença chega a ser reflexiva, e é reflexiva apenas porque o pronome reflexivo eatous a exige. O próprio verbo jamais é reflexivo, e tentar forçá-lo a ser mostra uma indisposição de se aceitar o sentido claro do verbo original.
Além dos mais, se torna ainda mais óbvio que a Versão do Rei James traduz essa palavra de modo correto quando consideramos que quase todos os tradutores do Novo Testamento reconhecem esse como o sentido verdadeiro dessa palavra, e assim a traduzem. É interessante notar que os homens muitas vezes lidam de modo bem negligente com as Escrituras quando fazem comentários sobre elas, muitas vezes tentando forçar suas próprias crenças nelas, mas quando eles as estão traduzindo, eles são mais prudentes, e parecem temer lidar com elas do mesmo modo sacrílego que lidam em seus comentários. Das mais de trinta versões que este escritor consultou, apenas duas traduziram essa palavra de modo diferente de “ordenar”, “nomear”, “destinado”, “escolhido”, e palavras de importância semelhante. Uma dessas duas é a Versão do Novo Mundo (das testemunhas-de-jeová), que é bem conhecida por sua falta de confiabilidade. A outra versão é a Bíblia Viva, que se reconhece como paráfrase, e não uma tradução, mas até mesmo essa versão, embora use a palavra “desejaram” no texto, dá, no rodapé, o sentido de “arranjados para” ou “ordenados para”. O sentido passivo mostra com clareza que a disposição não era do homem, e assim deve ter sido de Deus, pois Satanás certamente jamais tentaria determinar ninguém para a vida eterna. Cremos que esses fatos acerca de Atos 13:48 falam por si mesmos.
Que o homem não tenha o poder intrínseco de crer, e que ele tem de pertencer ao número dos eleitos antes que possa crer no evangelho, é óbvio a partir de João 10:26: “Mas vós não credes porque não sois das minhas ovelhas, como já vo-lo tenho dito”. Essa é uma declaração difícil, mas não temos a liberdade de rejeitá-la simplesmente porque não podemos entendê-la, pois não é o único versículo que ensina essa verdade profunda, pois João 6:44 45 também declara: “Ninguém pode vir a mim, se o Pai que me enviou o não trouxer; e eu o ressuscitarei no último dia. Está escrito nos profetas: E serão todos ensinados por Deus. Portanto, todo aquele que do Pai ouviu e aprendeu vem a mim”. Se o Pai não atrair uma pessoa, e lhe der o poder da fé, então esse indivíduo não pode se salvar; assim, toda a glória da salvação pertence ao Senhor e somente a Ele.
Do ponto de vista humano, determina-se a eleição pela vida que alguém vive, e por esse motivo só é possível sabermos com certeza nesta vida mediante o exemplo de uma vida de santidade. Paulo disse acerca dos tessalonicenses: “Sabendo, amados irmãos, que a vossa eleição é de Deus”, 1 Tessalonicenses 1:4, mas como ele sabia disso? Ele próprio dá a resposta no versículo precedente: “Lembrando-nos sem cessar da obra da vossa fé, do trabalho do amor, e da paciência da esperança em nosso Senhor Jesus Cristo, diante de nosso Deus e Pai” (versículo 3). Quando compreendemos que os homens são eleitos para a fé e obediência, e não por causa destas, (2 Tessalonicenses 2:13; Atos 13:48; 1 Pedro 1:2), então compreendemos que onde as vemos, há evidência de eleição. Na salvação somos criados “em Cristo Jesus para as boas obras, as quais Deus preparou para que andássemos nelas”, (Efésios 2:10), de modo que uma vida constante em boas obras é evidência de que alguém foi salvo, e conseqüentemente de que é uma pessoa eleita.
A eleição é uma doutrina misteriosa, mas maravilhosa; é uma doutrina que, embora não deixe espaço para o orgulho e vaidade, é porém uma grande bênção para o homem, pois garante a salvação de cada um dos eleitos de Deus. Alguns repudiam a doutrina da eleição, dizendo que mostra ser respeitadora de homens, mas deixa alguns sem esperança de salvação. A verdade é que ninguém pode saber se ele pertence aos eleitos ou não eleitos, exceto crendo ou então morrendo sem arrependimento, o que coloca a questão toda no nível da fé ou falta de fé do indivíduo. Observe o que Jesus diz acerca disso: “Todo o que o Pai me dá virá a mim; e o que vem a mim de maneira nenhuma o lançarei fora” (João 6:37). Aí aprendemos: (1) Que só aqueles que foram dados a Cristo no pacto da redenção virão a Ele. Isso se refere, é claro, à eleição. (2) Todos aqueles que foram assim dados virão a Cristo. A salvação de todos os eleitos é assegurada pelo chamado eficaz e a atração deles. Essa é graça eficaz ou irresistível. (3) Que embora essas coisas sejam gloriosamente assim, há porém também a esperança para todos os que se achegam a Cristo em fé serão por Ele recebidos. Assim, enfatiza-se a responsabilidade humana, de modo que ninguém pode culpar a Deus por qualquer homem que se perde. Já que ele não pode saber de antemão acerca de sua não eleição, e já que se oferece a promessa de aceitação a todos os que se achegam, o homem perdido se perde exclusivamente por causa de sua própria incredulidade da promessa de Deus.
Nosso chamado e eleição podem ser afirmados — afirmados para nós e para outros homens, pois Deus já os conhece, sendo obra dEle. Assim diz Pedro: “Portanto, irmãos, procurai fazer cada vez mais firme a vossa vocação e eleição; porque, fazendo isto, nunca jamais tropeçareis” (2 Pedro 1:10). As coisas às quais se refere Pedro, que tornam firmes o chamado e eleição de alguém, são aquelas boas obras que se esperam de toda pessoa que verdadeiramente nasceu de novo, e que manifestam que ele é verdadeiramente salvo. Elas são boas obras que se originam da fé (veja os versículos 5 9).
A eleição, sendo obra de Deus, e sem causa humana, glorifica a Deus enquanto ao mesmo tempo humilha o homem, e essa é a razão principal por que é tão desagradável ao paladar do homem. Quando nos lembramos da declaração de Paulo de que, “Porque eu sei que em mim, isto é, na minha carne, não habita bem algum; e com efeito o querer está em mim, mas não consigo realizar o bem”, (Romanos 7:18), então temos de reconhecer que quase qualquer coisa que humilhe o orgulho carnal, enquanto glorifica a Deus, pode ser presumida como verdadeira. Nada de bom jamais teve sua origem na carne, e nada de ruim (nada verdadeiramente ruim à luz dos propósitos de Deus) jamais procede de Deus.
Autor: Pr Davis W. Huckabee
Fonte: www.PalavraPrudente.com.br
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