terça-feira, 8 de julho de 2008

HISTÓRIA DO CRISTIANISMO. Dos apóstolos do Senhor Jesus ao século XX.



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E-books Evangélicos




A. Knight & W. Anglin


HISTÓRIA DO
Cristianismo

Dos apóstolos do Senhor Jesus
ao século XX



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CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.


Knight, A. E.
K77h História do cristianismo / A. E. Knight [e] W. Anglin. – 2ª ed. - Rio de Janeiro : Casa Publicadora das As­sembléias de Deus, 1983.

1. História eclesiástica I. Anglin, W., colab. II. Título
CDD - 270
83-0760 CDU - 27

Código para Pedidos: HT-905
Casa Publicadora das Assembléias de Deus
Caixa Postal, 331
20001 Rio de Janeiro, RJ, Brasil


11a Edição 2001


Índice

1. Primeiro século da Era Cristã
2. Segundo século da Era Cristã
3. Quinta e sexta perseguições gerais
4. Sétima e oitava perseguições gerais
5. Nona e décima perseguições gerais
6. Quarto século da Era Cristã
7. Período semelhante a Pérgamo
8. Período semelhante a Tiatira
9. Nestorianos, paulícios e maometanos
10. Idolatria romana e o poder papal
11. Período mais tenebroso da Idade Média
12. Depois do ano do terror
13. Primeira cruzada
14. Da segunda à quarta cruzada
15. Da quinta à oitava cruzada
16. Perseguição na Europa e a Inquisição
17. Influência papal sobre a Reforma
18. O princípio da Reforma
19. Os reformadores antes da Reforma
20. Lutero e a reforma alemã
21. Zwínglio e a reforma suíça
22. Zelo de Lutero na Reforma
23. 0 formalismo depois da Reforma
24. Período semelhante a Sardo
25. Reforma na França e Suíça francesa
26. Reforma na Itália e outros países europeus
27. Reforma inglesa, no reinado de Henrique VIII
28. Auxílios e obstáculos à reforma inglesa
29. Reforma nos reinados de Eduardo VI, Maria e Isabel
30. História da Igreja desde a Reforma





1Primeiro século da Era cristã

A história da Igreja de Deus tem sido sempre, desde a era apostólica até o presente, a história da graça divina no meio dos erros dos homens. Muitas vezes se tem dito isso, e qualquer pessoa que examine essa história com atenção não pode deixar de se convencer que assim é.
Lendo as Epístolas do Novo Testamento vemos que mesmo nos tempos apostólicos o erro se manifestou, e que a inimizade, as contendas, as iras, as brigas e as discór­dias, com outros males, tinham apagado o amor no coração de muitos crentes verdadeiros.
Deixaram as suas primeiras obras e o seu primeiro amor e alguns que tinham principiado pelo espírito, pro­curavam depois ser aperfeiçoados pela carne.
Mas havia muito mais do que isso. Não somente exis­tiam alguns verdadeiros crentes em cujas vidas se viam muitas irregularidades, e que procuravam, pelas suas pa­lavras, atrair discípulos a si, como também havia outros que não eram de modo algum cristãos, mas que entraram despercebidamente entre os irmãos, semeando ali a discór­dia. Isto descreve o estado de coisas a que se referem os primeiros versículos do capítulo dois de Apocalipse, na carta escrita ao anjo da igreja em Éfeso.


TEMPOS DE PERSEGUIÇÃO
Porém estava para chegar um tempo de perseguição para a Igreja, e isso foi permitido pelo Senhor, na sua gra­ça, a fim de que se pudessem distinguir os fiéis.
Esta perseguição, instigada pelo imperador romano Nero, foi a primeira das dez perseguições gerais que conti­nuaram, quase sem interrupção, durante três séculos.
"Por que razão permite Deus que o seu povo amado so­fra assim?"Muitas vezes se tem feito esta pergunta, e a resposta é simples: é porque Ele ama esse povo. Podia ha­ver, e sem dúvida há, outras razões, porém a principal é esta - Ele o ama. "Porque o Senhor corrige o que ama ' e se o coração se desviar, tornar-se-á necessária a disciplina.
Com que facilidade o mal se liga, mesmo ao melhor dos homens! Mas, na fornalha da aflição, a escória separa-se do metal precioso, sendo aquela consumida. Ainda mais, quando suportamos a correção de Deus, Ele nos trata como filhos; e se sofremos com paciência, cada provocação pela qual Ele nos faz passar dará em resultado mais uma bên­ção para a nossa alma. Tal experiência não nos é agradá­vel, nem seria uma provocação se o fosse, porém, à noite de tristeza sucede a manhã de alegria, e dizemos com o salmista Davi: "Foi bom para mim, ter sofrido aflição".


PORQUE E QUE DEUS PERMITE A
PERSEGUIÇÃO
Mas Deus permite, algumas vezes, que a malvadez leve o homem muito longe em perseguir os cristãos, a fim de fi­car manifestado o que está no seu coração, e por isso não é de estranhar que na alma do cristão que não tem apreciado esta verdade se levantem dúvidas e dificuldades, e que co­mece a queixar-se de o caminho ser custoso, e da mão do opressor ser pesada sobre ele. 8
O Senhor porém não nos deixa na Terra para nós nos queixarmos das dificuldades, nem para recuarmos diante da ira dos homens: temos de servir ao Mestre e resistir ao inimigo, porém é somente quando estamos fortalecidos no Senhor e na força do seu poder que podemos prestar esse serviço, ou resistir efetivamente a esse inimigo.
Esta história pretende indicar quão dignamente se fez isto nos tempos passados, porém se quisermos compreen­der a maneira como Deus tem tratado o seu povo, sempre nos devemos lembrar de que a milícia cristã é diferente de qualquer outra, e que uma parte da sua resistência é o so­frer.
As armas da nossa milícia não são carnais, mas sim es­pirituais, e o cristão que se serve de armas carnais mostra sem dúvida que não aprecia o caráter do verdadeiro crente. Não pode ter apreciado com inteligência espiritual o cami­nho do seu Senhor, ou compreendido o sentido das suas palavras: "O meu reino não é deste mundo; se o meu reino fosse deste mundo pelejariam os meus servos".
A igreja militante é uma igreja que sofre, mas se empre­gar as armas carnais, deixa na verdade de combater.
No ousado e santo Estêvão temos um exemplo do ver­dadeiro crente militante. Foi ele o primeiro mártir cristão. E que grande vitória ele ganhou para a causa de Cristo quando morreu pedindo ao Senhor pelos seus perseguido­res! Davi, séculos antes da era cristã, disse: "O justo se ale­grará quando vir a vingança : lavará os seus pés no sangue do ímpio", porém Estêvão, que viveu na época cristã, orou:"Senhor, não lhes imputes este pecado". Isto foi um exemplo da verdadeira milícia cristã.
A primeira onda da perseguição geral que veio sobre a igreja fez-se sentir no ano 64, no reinado do imperador Ne-ro, que tinha governado já com uma certa tolerância du­rante nove anos.
Neste tempo, o assassinato de sua mãe, e a sua indife­rença brutal depois de ter praticado aquele crime tão monstruoso, mostrou claramente a sua natural disposição, e indicou ao povo aquilo que havia de esperar dele. Desgra­çadamente, as tristes apreensões que muitos tinham a seu respeito tornaram-se em negra realidade.

ROMA INCENDIADA
Uma noite no mês de julho, no ano acima citado, os ha­bitantes de Roma foram despertados do sono pelo grito de "Fogo!" Esta terrível palavra fez-se ouvir simultaneamen­te em diversas partes da cidade, e dentro de poucas horas a majestosa capital ficou envolvida em chamas. A grande arena situada entre os montes Palatino e Aventino, onde cabiam 150.000 pessoas, em pouco tempo estava ardendo, assim como a maior parte dos edifícios públicos, os monu­mentos, e casas particulares.
O fogo continuou por espaço de nove dias, e Nero, por cujas ordens se tinha praticado este ato tão monstruoso, presenciou a cena da torre de Mecenas, onde manifestou o prazer que teve em ver a beleza do espetáculo, e, vestido como um ator, acompanhando-se com a música da sua li­ra, cantou o incêndio da antiga Tróia!
O grande ódio que lhe votaram em conseqüência deste ato, envergonhou-o e tornou-o receoso; e com a atividade que lhe deu a sua consciência desassossegada, logo achou o meio de se livrar dessa situação. O rápido desenvolvimento do cristianismo já tinha levantado muitos inimigos contra essa nova doutrina. Muita gente havia em Roma que esta­va interessada na sua supressão - por isso não podia haver nada mais oportuno, e ao mesmo tempo mais simples para Nero, do que lançar a culpa do crime sobre os inofensivos cristãos.
Tácito, um historiador pagão, que não era de modo al­gum favorável ao cristianismo, fala da conduta de Nero da seguinte maneira:
"Nem os seus esforços, nem a sua generosidade para com o povo, nem as suas ofertas aos deuses, podiam pagar a infame acusação que pesava sobre ele de ter ordenado que se lançasse fogo à cidade. Portanto, para pôr termo a este boato, culpou do crime, e infligiu os mais cruéis casti­gos, a uns homens... a quem o vulgo chamava cristãos", e acrescenta: "quem lhes deu esse nome foi Cristo, a quem Pôncio Pilatos, procurador do imperador Tibério, deu a morte durante o reinado deste.
"Esta superstição perniciosa, assim reprimida por al­gum tempo, rebentou de novo, e espalhou-se não só pela Judéia, onde o mal começara, mas também por Roma, para onde tudo quanto é mau na terra se encaminha e é praticado. Alguns que confessaram pertencer a essa seita foram os primeiros a ser presos; e em seguida, por informa­ções destes prenderam mais uma grande multidão de pes­soas, culpando-as, não tanto do crime de terem queimado Roma, mas de odiarem o gênero humano".
É quase escusado dizer que os cristãos não nutriam ó-dio algum pela humanidade, mas sim pela terrível idola­tria que prevalecia em todo o Império Romano; e só por este motivo eram considerados como inimigos da raça hu­mana.

CRUÉIS TORMENTOS DOS CRENTES
Não se sabe quantos sofreram por essa ocasião, mas de certo foram muitos, e eram-lhes aplicadas todas as tortu­ras que um espírito engenhoso e cruel podia imaginar, para satisfazer os depravados gostos do imperador.
"Alguns foram vestidos com peles de animais ferozes, e perseguidos pelos cães até serem mortos, outros foram cru­cificados; outros envolvidos em panos alcatroados, e de­pois incendiados ao pôr do sol, para que pudessem servir de luzes para iluminar a cidade durante a noite. Nero ce­dia os seus próprios jardins para essas execuções e apresen­tava, ao mesmo tempo, alguns jogos de circo, presenciando toda a cena vestido de carreiro, indo umas vezes a pé no meio da multidão, outras vendo o espetáculo do seu car­ro". Hegesipo, um escritor do II século, faz algumas refe­rências interessantes sobre o apóstolo Tiago, que acabou a sua carreira durante esse período, e fornece um detalhado relatório do seu martírio, que podemos inserir aqui.
"Consta que o apóstolo tinha o nome de Oblias, que significava justiça e proteção, devido à sua grande piedade e dedicação pelo povo. Também se refere aos seus costu­mes austeros, que sem dúvida contribuíram para aumen­tar a sua fama entre o povo. Ele não bebia bebidas alcoóli­cas de qualidade alguma, nem tampouco comia carne. Só ele teve licença de entrar no santuário. Nunca vestiu roupa escolhendo ele aquela posição por se achar indigno de so­frer na mesma posição em que sofreu o seu Senhor. Paulo que sofreu no mesmo dia foi poupado a uma morte tão do­lorosa e lenta, sendo degolado. "A estes santos apóstolos", acrescenta Clemente, "se ajuntaram muitos outros, que tendo da mesma maneira sofrido vários martírios e tormentos, motivados pela inveja dos outros, nos deixaram um glorioso exemplo.
"Pelos mesmos motivos, foram perseguidos, tanto mu­lheres como homens, e tendo sofrido castigos terríveis e cruéis, concluíram a carreira da sua fé com firmeza."

MORTE DE NERO
O miserável Nero morreu às suas próprias mãos, no ano 63, cheio de remorsos e de medo; depois da sua morte a igreja teve descanso por espaço de trinta anos. Contudo durante esse tempo Domiciano (que podia quase levar a palma a Nero, quanto à intolerância e crueldade) subiu ao trono; e depois de quatorze anos do seu reinado, rebentou a perseguição geral.
Tendo chegado aos ouvidos do imperador que alguém, descendente de Davi, e de quem se tinha dito: "Com vara de ferro regerá todas as nações", vivia na Judéia, fez com que se procedesse a investigação, e dois netos de Judas, o irmão do Senhor Jesus, foram presos e conduzidos à sua presença.
Quando ele, porém, olhou para as suas mãos, calosas e ásperas pelo trabalho, e viu que eram uns homens pobres, que esperavam por um reino celeste, e nada queriam saber do reino terrestre, despediu-os com desprezo. Diz-se que eles foram corajosos e fiéis em testemunhar a verdade pe­rante o imperador, e que, quando voltaram para sua terra natal, foram recebidos com amizade e honras pelos irmãos.

PERSEGUIÇÃO A JOÃO
Pouco se sabe a respeito desta perseguição; mas esse pouco é sem dúvida interessante. E entre os muitos márti­res que sofreram, encontra-se João, o discípulo amado de
Jesus, e Timóteo, a quem Paulo escreveu com tão afeiçoa-da solicitude. Diz a tradição que o primeiro foi lançado, por ordem do tirano, numa caldeira de azeite fervente mas, por um milagre, saiu de lá ileso. Incapaz de o ferir no corpo, o imperador desterrou-o para a ilha de Patmos, onde foi obrigado a trabalhar nas minas. Foi ali que ele es­creveu o livro de Apocalipse, e teria sem dúvida terminado ali mesmo a sua vida, se não fosse a inesperada morte do imperador, assassinado pelo próprio administrador da sua casa, no dia 18 de Setembro de 96 d.C. Sendo então o após­tolo João posto em liberdade, voltou para Éfeso, onde es­creveu a sua história do Evangelho e as três epístolas que têm o seu nome.
Parece que ali, como sempre, foi levado em toda a sua vida pelo amor, e quando morreu, na avançada idade de cem anos, deixou, como legado duradouro, este simples preceito: "Filhinhos, amai-vos uns aos outros". Frase sim­ples esta, e pronunciada há muitos anos, mas qual de nós tem verdadeiramente aprendido o seu sentido?

ASSASSINATO DE TIMÓTEO
Timóteo sustentou virilmente a verdade, na mesma ci­dade, até o ano 97, em que foi morto pela turba numa festa idolatra. Muitos homens do povo, mascarados e armados de paus, dirigiam-se para os seus templos para oferecer sa­crifícios aos deuses, quando este servo do Senhor os encon­trou. Com o coração cheio de amor, encaminhou-se para eles, e lembrando-se talvez do exemplo de Paulo, que pou­cos anos antes tinha pregado aos idolatras de Atenas, fa­lou-lhes também do Deus vivo e verdadeiro. Mas eles não fizeram caso do seu conselho, zangaram-se por serem re­provados e, caindo sobre ele com paus, bateram-lhe tão desapiedadamente, que expirou poucos dias depois.
E agora, lançando a vista por um momento para os tempos passados, encontram-se, de certo, na história destas primitivas perseguições, muitos exemplos para dar ânimo e coragem aos nossos corações. Em vista de tais sofrimen­tos, não se pode deixar de admirar o ânimo dos santos, e agradecer a Deus a graça pela qual eles puderam suportar tanto com tão sofredora paciência.
Nem a cruz, nem a espada nem os animais ferozes, nem a tortura, puderam prevalecer contra aqueles fiéis discípu­los de Jesus Cristo. Quem os poderia separar do seu amor? Seria a tribulação, ou a angústia, ou a perseguição, ou a fo­me, ou a nudez, ou o perigo, ou a espada? Não! Em todas essas coisas eles foram mais do que vencedores por meio daquele que os amou. Não lhes dissera o Senhor que de­viam esperar tudo isso? Não tinha Ele dito aos seus discí­pulos, quando ainda estava entre eles: "No mundo ter eis aflições"? e não era bastante compensação para os seus so­frimentos, que duraram poucos anos, a brilhante esperan­ça da glória eterna que Ele lhes tinha dado?
Depois de mais alguns anos, tanto perseguidores como perseguidos teriam deixado este mundo, e passado para a eternidade; então - que grande mudança! Para os primei­ros, a escuridão das trevas para sempre; para os últimos, aquele "peso eterno de glória muito excelente". Que con­traste!

HERESIAS E DISSENSOES
Estando para terminar este capítulo, devemos notar a impossibilidade que temos em vista, por causa do pequeno espaço de que dispomos, de enumerar todas as heresias e dissensões que têm entristecido e dividido a Igreja de Deus desde o seu princípio; portanto, apenas nos propomos a lançar a vista para os atos que nos apresentem maior inte­resse, tanto pela sua especial astúcia, como pela sua gran­de influência.
O gnosticismo era um desses males, e foi talvez a pri­meira heresia que depois dos tempos dos apóstolos se de­senvolveu mais. Era um amontoado de erros que tinham a sua origem na cabala dos judeus, uma ciência misteriosa dos rabinos, baseada na filosofia de Platão, e no misticis­mo dos orientais. Um judeu chamado Cerinto, mestre de filosofia em Alexandria, introduziu parte do Evangelho nesta massa heterogênea da ciência (falsamente assim chamada) e sob esta nova forma foram enganados muitos crentes verdadeiros, e se originou muita amargura e dissensão.
Mas havia muito tempo que não se ocupavam com esse erro, nem com muitos que se lhe seguiram, e a Palavra de Deus, que é a única que contém as doutrinas inabalá­veis da Igreja, já tinha predito que "os homens maus e en­ganadores irão de mal a pior, enganando e sendo engana­dos" (2 Tm 3.13). Já o apóstolo Paulo tinha aconselhado o seu filho Timóteo a opor-se aos clamores vãos e profanos que só poderiam produzir maior impiedade (2 Tm 2.16); e se tinha referido, em linguagem inspirada pelo Espírito Santo, às "perversas contendas de homens corruptos de entendimento e privados da verdade" (1 Tm 6.5): "Mas tu, ó homem de Deus", clamou ele, "foge destas coisas, e segue a justiça, a piedade, a fé, a caridade, a paciência, a mansidão. Milita a boa milícia da fé, lança mão da vida eterna, para a qual também foste chamado, tendo já feito boa confissão diante de muitas testemunhas" (1 Tm 4.11, 12).
O amado apóstolo já tinha combatido o bom combate e acabado a sua carreira e guardado a fé, e com a consciência que o esperava pronunciou palavras que deviam servir para animar a Igreja de Deus nos tempos futuros: "Pelo demais a coroa da justiça está-me guardada, a qual o Se­nhor, justo juiz, me dará naquele dia; e não somente a mim, mas também, a todos os que amarem a sua vinda" (2 Tm 4.7,8).

















2
Segundo século da Era cristã


REINADOS DE NERVA, TRAJANO E MARCO AURÉLIO
Havia apenas dezoito meses que Domiciano tinha mor­rido, quando a igreja, que ficara isenta de perseguição du­rante o curto reinado de Coccei Nerva, seu sucessor, come­çou novamente a sofrer. Nerva era um homem de caráter brando e generoso, e tratou bem os cristãos; e com uma benignidade digna de louvor restabeleceu todos que tinham sido expatriados pela perseguição de Domiciano. Porém, depois de um reinado de dezesseis meses, foi atacado por uma febre, da qual nunca se curou.
O seu sucessor, Trajano, deixou os cristãos tranqüilos por algum tempo, mas sendo levado a suspeitar deles, de­terminou que se renovasse a perseguição, e, sendo possível, que se exterminasse a nova religião, por meios decisivos e severos. Parecia ao seu espírito orgulhoso que o cristianis­mo era uma ofensa, um insulto para a natureza humana, e que o seu ensino era (como efetivamente o era) inteiramente oposto à filosofia dos seus tempos: uma filosofia que ele­vava os homens a deuses, e tornava a humildade e brandura dos cristãos efeminada e desprezível.
Mas Trajano não tinha a crueldade de Nero, nem de Domiciano; e podia-se notar nessa ocasião uma perplexi­dade e indecisão na sua conduta, que contrastava, de uma maneira notável, com a inflexibilidade de propósito que ordinariamente mostrava nos seus atos. Pela sua carta a Plínio, governador de Bitínia e Ponto, pode-se ver que ele não sentia prazer algum na tortura ou na execução dos seus súditos. Nessa carta diz ele claramente: "Não se deve andar a procura dessa gente" e acrescenta: "se alguém re­nunciar ao cristianismo, e mostrar a sua sinceridade supli­cando aos nossos deuses, alcançará o perdão pelo seu arre­pendimento". Em suma, era a religião, e não os seus adep­tos, que Trajano odiava,

UMA CARTA DE PLÍNIO
A carta de Plínio ao imperador e a resposta deste, são cheias de interesse. Um dos períodos dessa carta rezava assim:
"Todo o crime ou erro dos cristãos se resume nisto: têm por costume reunirem-se num certo dia, antes do romper da aurora, e cantarem juntos um hino a Cristo, como se fosse um deus, e se ligarem por um juramento de não co­meterem qualquer iniqüidade, de não serem culpados de roubo ou adultério, de nunca desmentirem a sua palavra, nem negarem qualquer penhor que lhes fosse confiado, quando fossem chamados a restituí-lo. Depois disto feito, costumam separar-se e em seguida reunirem-se de novo, para uma refeição simples da qual partilham em comum, sem a menor desordem, mas deixaram esta última prática após a publicação do edital em que eu proibia as reuniões, segundo as ordens que recebi. Depois destas informações julguei muito necessário examinar, mesmo por meio da tortura, duas mulheres que diziam ser diaconisas, mas nada descobri a não ser uma superstição má e excessiva". Isto era tudo o que Plínio podia dizer. Não é para admirar que um homem estranho à graça de Deus visse na religião de Jesus Cristo, desprezado e humilde, apenas uma su­perstição má e excessiva. Não é motivo de admiração que o urbano e instruído governador, cuja fama era conhecida no mundo inteiro, escrevesse com tal desdém a respeito de um povo cujas opiniões eram diferentes das suas. "O homem natural não compreende as coisas do Espírito de Deus, porque lhe parecem loucura; e não pode entendê-las, por­quanto se discernem espiritualmente" (1 Co 2.14).

MARTÍRIO DE INÁCIO
Inácio, que dizem ter conhecido os apóstolos Pedro e João, e ter sido ordenado bispo de Antioquia pelo apóstolo João, foi martirizado durante essa época. O zelo com que ambi­cionava sofrer o martírio o expôs a censuras de vários his­toriadores, e com certa razão. Conta-se que na ocasião em que Trajano visitou Antioquia, ele pediu para ser admitido a presença do imperador, e depois de explicar, por bastan­te tempo, as principais doutrinas da religião cristã, e mos­trar o caráter inofensivo daqueles que a professavam, pe­diu que se fizesse justiça. Contudo o imperador recebeu o seu pedido com desprezo, e depois de censurar aquilo que Trajano se aprazia de chamar a sua superstição incurável, ordenou que fosse levado para Roma e lançado às feras.
Enquanto atravessava a Síria, Inácio escreveu várias cartas às igrejas, exortando-as à fidelidade e paciência, e avisando-as seriamente dos erros que se ensinavam. Em uma das epístolas escreve: "Desde a Síria até Roma estou lu­tando com feras por terra e por mar, de noite e de dia sendo levado preso por dez soldados cuja ferocidade iguala a dos leopardos, e os quais, mesmo quando tratados com brandura, só mostram crueldade. Mas no meio destas iniqüidades, estou aprendendo... Coisa alguma, quer seja visível ou invisível, desperta a minha ambição, a não ser a esperança de ganhar Cristo. Se o ganhar, pouco me importarei que todas as torturas do Demônio me acometam, quer seja por meio do fogo ou da cruz, ou pelo assalto das feras ou que os meus ossos sejam separados uns dos outros e meus membros dilacerados, ou todo o meu corpo esmagado".
Quando Inácio chegou a Roma, foi conduzido à arena e, na presença da multidão que enchia o teatro, tranqüila­mente esperou a morte. Quando o guarda dos leões veio soltá-los da jaula o povo quase enlouqueceu, e batia as pal­mas e gritava com uma alegria brutal, mas o velho mártir conservou-se firme.
"Sou, disse ele, como o trigo debulhado de Cristo, que precisa de ser moído pelos dentes das feras antes de se tor­nar em pão". Não precisamos entrar nos detalhes dos pou­cos momentos que se seguiram.
O medonho espetáculo acabou-se depressa, e antes de aquela gente ter chegado a suas casas, tinha Inácio recebi­do a coroa que ambicionara, e estava já com o Senhor na Glória.

TRINTA ANOS DE SOSSEGO
No ano 117 morreu Trajano, e o seu sucessor, Adriano, continuou as perseguições. E foi só no ano 138, quando An­tônio Pio subiu ao trono, que os cristãos ficaram de alguma maneira aliviados dessa opressão. Com o seu reinado bran­do e pacífico começou um período de sossego que durou perto de trinta anos; e durante esse tempo a Palavra de Deus teve livre curso e Cristo foi glorificado. E certo que houve alguns casos isolados de opressão, mas a perseguição geral tinha desaparecido e o Evangelho depressa se espa­lhou por todas as províncias dos domínios romanos.
A gloriosa mensagem foi levada para o Ocidente até nas extremidades da Gália e para o Oriente até a Armênia e a Assíria; e milhares daqueles que em vão tinham procurado a paz de coração nas mitologias de Roma e do Egito, escu­taram avidamente as palavras da vida, e espontaneamente se tornaram discípulos de Cristo.

UMA NOVA PERSEGUIÇÃO
Contudo, com a subida ao trono de Marco Aurélio, co­meçou uma nova opressão, e no segundo ano do seu reina­do, as nuvens da perseguição começaram de novo a amon­toar-se.
As várias inquietações quase se seguiram uma após ou­tra com espantosa rapidez, e que pareciam, às vezes, per­turbar as próprias instituições do Império, forneceram um pretexto fácil para a renovação das perseguições; e logo em seguida o antigo ódio pelos cristãos que havia muito estava guardado nos corações dos ímpios, começou mais uma vez a manifestar-se pelo antigo grito "Lancem os cristãos aos leões!" tão terrivelmente familiar aos ouvidos de muitos, e que passou como um sopro pestilento pelo Império Orien­tal. Assim teve origem a quarta perseguição geral.

MARTÍRIO DE POLICARPO
A maior força da tempestade que se aproximava sen­tiu-se na Ásia Menor, onde saíram os novos editos, e o nome de Policarpo, bispo em Esmirna, apareceu brilhan­temente na lista dos mártires daquele tempo. Ao contrário de Inácio que se expunha desnecessariamente à vontade cega da populaça, Policarpo não recusou escutar os conse­lhos e pedidos dos seus amigos, e quando viu que estava sendo espiado em Esmirna retirou-se para uma aldeia pró­xima, e ali continuou o seu trabalho.
Sendo perseguido, foi para outra aldeia, exortando o povo que se encontrava no seu caminho; e assim foi viven­do dessa maneira errante até que os seus inimigos des­cobriram o lugar onde se refugiava. Então o velho bispo (avisado, segundo dizem, num sonho de que deveria glorificar a Deus, sofrendo morte de mártir) resignou-se com pa­ciência à vontade de Deus, e entregou o seu corpo às mãos dos oficiais encarregados de o prenderem. Antes de deixar a casa, deu ordem para que lhes dessem de comer; e, em se­guida, parecendo saber antecipadamente o que esperava, encomendou-se a Deus. Diz-se que o fervor de sua oração comoveu de tal maneira os oficiais que eles se arrepende­ram de ser os instrumentos da sua captura. Montaram-no num jumento, e trouxeram-no para Esmirna, onde estava reunida uma grande multidão para celebrar a festa dos pães asmos.
Por consideração pela sua idade avançada e pela sua sabedoria, Nicites, homem de grande influência, e seu filho Herodes, oficial da cidade, foram ao seu encontro e, fa­zendo-o entrar no seu carro, instaram com ele para que as­segurasse a sua liberdade, tributando honras a César e consentindo em oferecer sacrifícios aos deuses. Ele recu­sou-se a isto e, por esse motivo, foi empurrado do carro com tal violência abaixo que na queda torceu uma coxa. Mas o velho servo de Deus continuou pacificamente o seu caminho, sem se perturbar com a rudeza de Herodes, indi­ferente aos gritos da multidão que, no seu ódio, empurra­va-o de um lado para outro; e deste modo chegaram à are­na.

POLICARPO E O GOVERNADOR
Era este o sítio onde tinham chegado os jogos e exposi­ções sagradas; e conta-se que na ocasião de entrar na are­na, uma voz, como que vinda do céu, exclamou: "Sê forte Policarpo, e porta-te como um homem". Seja como for, um poder que não era humano susteve o servo de Deus, e quando o cônsul, comovido com o seu aspecto venerável, pediu-lhe que jurasse pela alma de César, e dissesse: "Fora com os ímpios!" O velho mártir, apontando para os bancos cheios de gente, repetiu com tristeza: "Fora com os ímpios!" "Jurai", disse o governador, compadecido, "e eu vos mandarei embora. Renegai a Cristo." Mas Policarpo respondeu com brandura: "Tenho-o servido durante oiten­ta e sete anos, e nunca Ele me fez mal. Como posso eu ago­ra blasfemar contra o meu Rei e Salvador?"
"Jurai pela alma de César", repetiu o governador ainda inclinado à compaixão, mas Policarpo respondeu: "Se julgais que hei de jurar pela alma de César como dizeis, e fingis não saber quem eu sou, ouvi a minha confissão livre: sou cristão; e se desejais conhecer a doutrina do cristianis­mo, concedei-me um dia para falar-vos e escutai-me". 0 governador, notando com inquietação o clamor da multi­dão, pediu ao ancião que abjurasse sua fé, mas Policarpo se negou a fazer isso. Tinham-lhe ensinado a honrar os poderes superiores, e sujeitar-se a eles porque eram ordena­dos por Deus, mas quanto ao povo, principalmente no es­tado atual de turbulência em que se encontrava, nada lhe apresentaria em sua defesa. "Tenho à mão animais fero­zes", disse o governador, "lançar-vos-ei a eles, se não mudardes de opinião" - "Mandai-os vir", disse Policarpo tranqüilamente.
O velho peregrino alegrava-se com a perspectiva de se ver prontamente livre de um mundo ímpio e cheio de per­seguições, e sua tranqüila intrepidez exasperou o governa­dor, que por esse motivo ameaçou queimá-lo, mas o intré­pido Policarpo respondeu: "Ameaçais-me com o fogo que arde por um momento, e depressa se apaga, mas nada sabeis da pena futura, e do fogo eterno reservado aos ímpios".
O governador perdeu completamente a paciência, mandou um arauto apregoar no meio da arena: "Policarpo é cristão". Esta proclamação foi repetida três vezes, como era de costume e a raiva da população chegou ao auge. Vi­ram no velho prisioneiro um homem que tinha desprezado os seus deuses, e cujo ensino tinha retirado o povo dos seus templos, e tornou-se geral o grito de: "Lancem Policarpo aos leões!"
Mas a hora do espetáculo já tinha passado, e o asiarca que tinha aos seus cuidados os espetáculos públicos recu­sou-se a fazer a vontade do povo. Se ainda estavam dispos­tos a dar-lhe a morte, tinham de escolher qualquer outro dia: assim pois, se ouviu imediatamente o grito para que Policarpo fosse queimado. A lenha e a palha estavam ali à mão, e a vítima depois de ser despojada da sua capa, foi le­vada às pressas para o poste. Queriam pregá-lo a ele, mas Policarpo pediu-lhes para ser simplesmente atado, e con­cederam-lhe isso.
Tendo em seguida recomendado a sua alma a Deus deu o sinal ao algoz, e este logo lançou fogo à palha. Mas, diz a tradição, os acontecimentos maravilhosos do dia ainda não tinham chegado ao seu fim. Por qualquer razão desconhe­cida, as chamas não tocaram no corpo de Policarpo, e os espectadores, vendo-se enganados, olhavam uns para os outros na maior admiração.
Contudo, o ódio venceu a superstição, e pediram ao al­goz que matasse a vítima a golpes de espada. Assim se fez, o golpe fatal foi imediatamente dado, e naquele momento de cruel martírio, o fiel servo do Senhor entregou a alma a Deus, e ficou para sempre longe do alcance dos seus perse­guidores.

OUTROS MARTÍRIOS
Muitos outros, em nada inferiores na fé e valor a Poli-carpo, ainda que menos distintos pelas suas aptidões, so­freram durante esta perseguição, e seria de muito interesse falar de alguns se o espaço permitisse. Seria, por exemplo, interessante falar de Germano, um jovem cristão cuja constância e coragem deram um testemunho tão brilhante da realidade de sua fé, mesmo na hora solene de sua morte, que muitos se converteram; ou de Justino de Nápoles, o qual, tendo estudado todos os sistemas filosóficos, e ocu­pando um lugar de destaque entre os professores do seu tempo, tomou-se com alegria um discípulo do meigo e sublime Jesus. E maravilhoso dizer que ele depois selou com o seu sangue o testemunho que tinha dado e alcançou no seu martírio um nome nobre - o de Justino, o filósofo, por que ainda é conhecido, e pelo qual será chamado para receber a sua coroa de mártir.

PERSEGUIÇÃO EM LIÃO E VIENA
Em Lião e Viena também a fé dos crentes foi duramen­te provada, porque o inimigo das almas andava muito ati­vo. Toda a espécie de tortura que o espírito humano podia imaginar era infligida aos cristãos daquelas cidades; mas o número aumentava sempre; e qualquer esforço que se fi­zesse para exterminar a nova religião não fazia senão espa­lhá-la cada vez mais, e com maior rapidez. Foi ali que Blandina, uma escrava de aparência fraca e franzina, de­pois de sofrer com exemplar paciência as mais extraordi­nárias torturas, durante as quais os próprios perseguidores se cansaram, ganhou a coroa do martírio, e morreu dando glórias a Deus.
Ali também Santos, diácono da igreja, e Mauro, que havia pouco se convertera ao cristianismo, sofreram nobremente pela verdade, bem como Attalo, de Pérgamo; Potimo, bispo de Lyon, e muitos outros.
E assim, da mesma maneira que o metal precioso passa pelo fogo do refinador que o torna puro, também a Igreja de Deus passou pelo fogo e aflição, e uma grande parte da escória que andava ligada a ela separou-se e consumiu-se, enquanto que as fagulhas que saem do lume, levadas para aqui e para ali pelo vento da perseguição, atearam no peito de muitos o desejo de compreenderem este extraordinário assunto e, por assim dizer, entenderem a natureza deste novo metal que de tal modo podia suportar a prova de fo­go.

UMA CARTA A JUSTINO
Parece que até este tempo, a igreja tinha conservado aque­la simplicidade de conduta e culto de que temos alguns be­los exemplos em Atos dos Apóstolos, e em outros livros. Conta o mártir Justino as práticas que se faziam no seu tempo, e que não deixam de ser interessantes: "Encontra­mo-nos no dia do Senhor", diz ele, "para adoração, nas ci­dades e vilas; lemos nos livros dos profetas e das memórias dos apóstolos tanto quanto o tempo nos permite. Acabada a leitura, o presidente ou bispo, num discurso ou sermão, exorta os fiéis a seguirem aqueles excelentes exemplos; em seguida todos se levantam e oram juntos. Depois disto tra­zem pão, vinho e água, e o presidente faz oração e dá gra­ças conforme a sua habilidade, e toda a gente diz "Amém". Faz-se então a distribuição dos elementos abençoa­dos a todos os presentes, e aos ausentes manda-se pelos diáconos.
"Aqueles que são ricos, e estão dispostos a contribuir dão o dinheiro que querem, cada qual conforme a sua von­tade; e o que se junta é entregue ao presidente, que o dis­tribui cuidadosamente para os órfãos e as viúvas, e para aqueles que por doença ou outro qualquer motivo estão ne­cessitados, e também aos que se acham presos, e aos es­trangeiros que residem conosco. Em suma, à todos aqueles que precisam de auxílio".
Que bela simplicidade de vida e de culto! Na verdade é isso em parte um exemplo da continuação "na doutrina dos apóstolos e no partir do pão e na oração", que se reco­menda no livro de Atos dos Apóstolos, e que constitui um distintivo da primitiva cristandade.









3
Quinta e sexta perseguições gerais
(200 - 238)


A CORAGEM DOS CRENTES
A grande coragem que notamos em Policarpo, Ignácio e outros, não se encontrava somente neles. Nem só os cris­tãos, de longa experiência, ou os homens fortes e valorosos por natureza, mostraram esta resistência no sofrimento; também os tímidos e fracos mostravam igual poder, que tanto se via nas mulheres como nos homens; nas crianças de tenra idade, como nos de idade madura. A força que os tornava vencedores não provinha deles, mas de Deus, por cujo poder eram guardados pela fé (1 Pe 1.5).
E certo que houve alguns que procuravam resistir ao inimigo na sua própria força, e um deles foi um frígio cha­mado Quinto, que andou por diversos pontos a persuadir os outros para que fossem ao encontro da perseguição, mas que no primeiro momento de verdadeiro perigo, voltou as costas ao Senhor e negou-o. Não queremos duvidar da rea­lidade do seu zelo, porém agiu sem fé. Confiou na sua pró­pria força, em lugar de a pedir a Deus, e não se lembrou que Paulo tinha dito: "O meu poder se aperfeiçoa na fra­queza". Deixou cair o escudo da fé, pelo qual podia ter apagado os dardos inflamados do Maligno, e valeu-se do escudo da sua própria força; e um escudo assim, como era de esperar, foi atravessado pela primeira seta do inimigo. Não aconteceu o mesmo a Perpétua, a mártir de Cartago, cujo nome deve sempre figurar em um dos primeiros lu­gares dos anais do martirológio, pois sofreu durante o tem­po da perseguição de que vamos falar, e que se levantou no princípio do terceiro século, quando o imperador Severo ocupava o trono dos Césares.

O IMPERADOR SEVERO
O imperador Severo, homem de grande sagacidade e sabedoria, era africano por nascimento, mas foi odiado pela sua perfídia e crueldade. A perseguição que teve princípio no seu reinado não foi excedida em barbaridade por nenhum dos seus antecessores, nem tampouco o foi, de certo, por nenhum dos seus sucessores.
Durante algum tempo, Severo pareceu estar disposto favoravelmente aos cristãos, e até se diz que atribuiu o res­tabelecimento duma grave doença que teve às orações de um cristão chamado Proculo. Mas a sua benevolência não durou muito, e no ano 202 a perseguição rebentou na Áfri­ca com desusada violência. Nem os esforços de Tertuliano que tão eloqüentemente apelou para a humanidade do po­vo, nem os solenes avisos que ele dirigiu ao prefeito da África, serviram para fazer parar a torrente da fúria popular que nesse movimento se desencadeava sobre os cristãos. Foram, um após outro, arrastados à tortura e executados, até que as palavras do grande apologista fossem realiza­das: "A vossa crueldade será a nossa glória. Milhares de pessoas de ambos os sexos, e de todas as classes, se hão de apressar a sofrer o martírio, hão de exaurir os vossos fogos, e cansar as vossas espadas. Cartago há de ser dizimada; as principais pessoas da cidade, talvez até mesmo os vossos amigos mais íntimos e os vossos parentes, hão de ser sacri­ficados. A vossa contenda contra Deus será em vão!"

HISTORIA DE PERPETUA
O nobre exército dos mártires foi, na verdade, reforçado por muitas pessoas vindas da famosa capital da África Romana, e Vivia Perpétua, que se convertera pouco tempo antes, foi uma dessas:
Era uma senhora casada, de 22 anos de idade, perten­cente a uma boa família, e bem educada, e era mãe de uma criança, que a esse tempo era ainda de colo. O seu pai era pagão, e amava-a ternamente; e quando a agarraram e le­varam para a prisão, ele procurou por todos os meios fazê-la voltar ao paganismo. Um dia em que ele tinha sido mais eloqüente do que costumava nas suas deligências, ela, mostrando-lhe um jarro que estava perto deles, disse: "Meu pai, veja este vaso; pode porventura dar-lhe um nome diferente daquele que tem?" "Não." - disse ele. "Pois bem", disse Perpétua, "também eu não posso usar outro nome que não seja o de cristã". A estas palavras, o pai voltou-se para ela colérico, esbofeteou-a, e então reti­rou-se: e durante alguns dias não lhe tornou a aparecer.
Durante esta ausência, batizou-se ela, juntamente com mais quatro jovens, um dos quais era seu irmão, e então começou a perseguição a pesar mais sobre ela, pois foi lan­çada com os seus companheiros na masmorra comum. Não havia luz, e quase se abafava por causa do calor, e aglome­ração de gente.

ROGOS DO PAI DE PERPETUA
Alguns dias depois, espalhou-se o boato de que os prisio­neiros iam ser interrogados, e o pai de Perpétua, minado de desgosto, veio da cidade, com o maior desejo de salvá-la. A maneira pela qual se aproximou dela era, desta vez, bem diferente, e as ameaças e violências deram lugar a sú­plicas e rogos. Pediu-lhe que tivesse dó dos seus cabelos brancos, e pensasse na honra do seu nome; que se lembras­se de toda a sua bondade para com ela, e da maneira como ele a tinha amado acima de todos os filhos. Instou com ela para que se apiedasse de sua mãe e irmãos, do seu querido filho, que não podia viver sem ela. "Não nos aniquiles a to­dos!" - exclamou ele. Em seguida deitou-se aos seus pés, chorando amargamente, e beijando-lhe as mãos com ter­nura; e, agarrando-se-lhe à roupa como um suplicante, disse-lhe que dali em diante, em vez de lhe chamar filha,
lhe chamaria "senhora", porque ela era agora senhora do destino de todos eles. Mas Perpétua, poderosamente sus­tentada por Deus. suportou a agonia daquele momento com inabalável coragem, apenas dizendo: "Neste momen­to de provação, há de acontecer o que for da vontade de Deus. Fique sabendo, meu pai, que nós não podemos dis­por de nós mesmos, mas que esse poder pertence a Deus".

O DIA DO JULGAMENTO
No dia do julgamento, foi conduzida ao tribunal, com os outros prisioneiros, e quando chegou a sua vez de ser in­terrogada, o pobre velho pai apareceu com a criança, e apresentando-lhe diante dos olhos, pediu-lhe mais uma vez que tivesse compaixão deles.
Valendo-se da situação, o procurador Hilariano sus­pendeu o seu severo interrogatório, e disse-lhe com os mo­dos mais brandos: "Poupa os cabelos brancos de teu pai! poupa o teu filhinho! oferece um sacrifício pela prosperida­de do imperador!" Mas ela respondeu: "Não oferecerei sa­crifício algum". Então o procurador perguntou-lhe: "És cristã?" A estas palavras o pai rompeu em altos gritos, tanto que o procurador ordenou que ele fosse lançado ao chão, e açoitado; tudo isto Perpétua presenciou com cora­gem, reprimindo a sua dor; em seguida leram-lhe a senten­ça de morte e conduziram-na de novo à prisão com os seus companheiros.
Enquanto se aproximava o dia dos jogos, mais uma vez o velho a visitou, e com rogos ainda mais veementes pediu-lhe que tivesse dó da sua aflição, e consentisse em oferecer um sacrifício pela prosperidade do imperador; mas apesar da mágoa de Perpétua ser muito grande a sua firmeza não se abalou, e não negou a fé. Foram estas, na verdade, as mais duras provas pelas quais ela teve de passar, mas aca­baram, por fim, e o dia do seu martírio bem depressa che­gou.

O DIA DA EXECUÇÃO
Nesse dia conduziram-na para fora com o irmão, e ou­tra mulher chamada Felicidade, e as duas foram atadas em redes, e lançadas a uma vaca brava. Os ferimentos de Perpétua não foram mortais, e a populaça farta, mas não saciada pela vista do sangue, disse ao algoz que aplicasse o golpe da morte.
Como que despertando de um sonho agradável, Perpé­tua chegou a túnica mais a si, levantou o cabelo que lhe caíra pelas costas abaixo, e depois de ter dirigido com voz fraca algumas palavras de animação a seu irmão, guiou ela mesma a espada do gladiador para o coração, e assim expi­rou. Corajosa Perpétua! O coração bate-nos apressado ao ler a tua maravilhosa história, mas ainda havemos, pela graça de Deus, de ver-te coroada e feliz na presença do teu Senhor!

UMA CARTA DE IRINEU
No mesmo ano (202 d.C.) morreu Irineu, bispo de Lyon, um amigo sincero das almas, e zeloso defensor da verdade. Resistiu a Vitor, que era então bispo de Roma, homem de muita arrogância e pouca piedade; e escreveu-lhe uma carta sinódica em nome das igrejas galicanas.
O seguinte extrato de outra carta que Irineu escreveu a um tal Horino, cismático de Roma, será sem dúvida lida com interesse:
"Vi-te", escreve ele, "na Ásia Menor, quando ainda eu era rapaz, com Policarpo, no meio do grande esplendor da corte, procurando por todos os meios ganhar a sua amiza­de. Lembro-me muito melhor dos acontecimentos desse tempo, do que daqueles dos tempos mais recentes. Os es­tudos da nossa mocidade, desenvolvendo-se a par da nossa inteligência, unem-se de tal modo que eu posso também indicar o próprio sítio onde o bendito Policarpo costumava sentar-se a discursar; e igualmente me lembro das suas en­tradas, passeios, maneira de viver, a sua forma, as suas conversas com o povo, as suas afáveis entrevistas com João, segundo ele costumava contar-nos, e a sua familiaridade com aqueles que tinham visto o Senhor Jesus.
"Também me recordo da maneira como costumava contar os discursos desses homens, e as coisas que eles ti­nham ouvido dizer sobre o Senhor. Tudo que dizia respeito aos seus milagres e doutrinas era repetido por Policarpo em conformidade com as Sagradas Escrituras, como o ti­nha ouvido das testemunhas oculares desses fatos".
Irineu teve muitas contendas com os falsos ensinadores do seu tempo cujo número ia, infelizmente, aumentando com grande rapidez; e o seu zelo em pouco tempo fez cair sobre ele o ressentimento do imperador. Foi conduzido ao cume de um monte, juntamente com mais alguns cristãos, e tendo se recusado a oferecer sacrifícios, foi degolado.

OS MÁRTIRES DA ALEXANDRIA
Assim morreu em Alexandria, Leônidas, homem de sa­bedoria, e alta posição, pai de Orígenes, de quem falare­mos mais tarde. Também dois cristãos chamados Sereno, com Heraclides, Heron, e Plutarco, sendo o último um discípulo de Orígenes. Podíamos aumentar a lista com muito mais nomes, mas falta-nos espaço; e sentimos uma bendita satisfação pela idéia de que virá o dia, em que não só havemos de conhecer os seus nomes, mas também os ve­remos coroados, e sem dúvida teremos doce comunhão com eles.

A SEXTA PERSEGUIÇÃO GERAL
A sexta perseguição geral começou quando o traciano Máximo subiu ao trono no ano 235 d.C. e durou três anos. Esta perseguição teve por causa imediata uma circunstân­cia muito extraordinária. Máximo tinha um ódio terrível ao seu antecessor Alexandre, e para mostrar o seu ódio, mudou quanto possível a política do reinado de Alexandre. Aquele governador tão humano tinha tratado os cristãos com bondade; foi isto o bastante para que esse malvado traciano os tratasse com severidade. O seu primeiro edito apenas ordenava que fossem mortos os homens principais da igreja, mas a sua natureza cruel excitou-se com este ato sanguinário, e bem depressa a este edito se seguiu outro com caráter mais cruel. Durante o seu reinado, os cristãos foram conduzidos ao lugar de suplício sem serem julgados, e muitas vezes os seus corpos eram atirados nas covas, uns para cima dos outros, como cães. Os magistrados não os podiam proteger contra a selvageria da plebe, nem contra a tirania dos opressores, de modo que os seus bens torna­ram-se a presa da população e as suas vidas estavam em perigo a todo o momento. Mas no meio de tudo isto, ainda se encontravam por toda a parte homens e mulheres fiéis à causa do cristianismo, e quanto mais editos o imperador mandava publicar, com mais resplendor brilhavam as lu­zes que ele em vão procurava apagar.

PERSEGUIDORES E PERSEGUIDOS
Duzentos anos se tinham passado depois da morte de Cristo; duzentos anos de ódio e sofrimento contra a sua amada Igreja, mas ainda assim o número de crentes ia sempre aumentando. Muitas e muitas vezes o poder do In­ferno trabalhou contra ela, mas sempre em vão. "Esta bigorna tinha gastado muitos martelos", e quando o selva­gem traciano subiu ao trono imperial, viu que tinha a ven­cer as mesmas dificuldades, e a subjugar o mesmo poder misterioso que iludira o mais astucioso e infatigável dos seus antecessores. Na verdade, a Igreja prosperou no meio da perseguição, e a semente do Evangelho foi espalhada por uma área cada vez maior, e regada com o sangue dos mártires; o fruto foi cento por um, apesar de os esforços que se empregaram para aniquilar o cristianismo serem terríveis e variados; atiraram-se contra uma comunidade pacífica, mas nem os editos do imperador, nem a popula­ção irada, nem os agoureiros descontentes, nem os filósofos escarnecedores, conseguiram deter o seu desenvolvimento, e ainda menos destruí-la.
Fundada sobre a Rocha, a Igreja ali ficou - como obra de Deus e a maravilha dos homens; com aquela eterna pro­messa que é a sua forte confiança: "As portas do Inferno não prevalecerão contra ela..."

























4
Sétima e oitava perseguições gerais
(238-274)


Ao contemplarmos a decadência do império romano, há muita coisa que nos faz lembrar a história contemporâ­nea da Igreja de Deus. Roma tinha já passado o auge da sua glória, e infelizmente também dava-se o mesmo com a igreja quanto ao seu testemunho público aqui no mundo.

O REINADO DE ALEXANDRE SEVERO
O reinado pacífico de Alexandre Severo fora motivo de maior mal para a causa cristã do que todas as perseguições juntas. No seu tempo, a igreja, por falta de zelo, começou a sentir-se cansada de estar em santa separação do mundo, e os bispos cristãos, ensoberbecidos pelo seu crescente poder e importância, aceitavam colocações na corte, e começa­ram a acumular riquezas colossais. Já haviam aparecido em diferentes partes do império alguns templos para o mais ostentoso desenvolvimento da nova religião, e as pa­lavras do Espírito Santo "o Altíssimo não habita em templos feitos pela mão do homem" pareciam estar em gran­de perigo de serem esquecidas. A bela simplicidade da igreja primitiva estava rapidamente desaparecendo, sendo prejudicialmente substituída pela mão do homem que em tudo se intromete. Paulo, como hábil mestre de obras, pu­sera o fundamento, mas outros construíram sobre ele edifí­cios que não prestavam para nada; e o ouro, a prata e as pedras misturaram-se com a madeira, o feno e a palha de uma organização sem vida. (Veja-se 1 Co 3.)
Foi então que os cristãos começaram a concordar com as filosofias da Grécia e de Roma, e encontraram estímulos para a sua fé declinante no misticismo ousado do Egito e da Arábia: e, portanto, ninguém se deve admirar de que, quando uma nova perseguição rebentou, muitos dos cren­tes verdadeiros desanimaram e manifestaram receios de que Deus os estava tratando conforme os seus pecados.
Impelidos por estes receios, e esquecendo a suficiência que se pode encontrar em Cristo, alguns deles negaram a fé ou se tornaram culpados de dissimulação, para assim evi­tar maior perseguição. Por isso tornaram-se notados pelos irmãos mais fiéis, e quando voltaram, como muitos fize­ram, para serem readmitidos à comunhão da igreja, levan­tou-se um grande debate e houve muitas opiniões diferen­tes. Alguns queriam readmitir os irmãos culpados, depois da simples confissão do seu erro; outros queriam um proce­dimento mais severo, e instavam para que a readmissão não lhe fosse concedida tão depressa; enquanto outros (e estes não poucos) declaravam que o ato não tinha descul­pas, e recusaram receber os culpados, fosse de que maneira fosse. A esta última opinião deu-se o nome de heresia de Novaciano por ser ele o seu autor; quando ele e os seus amigos fizeram prevalecer as suas opiniões seguiram-se os mais tristes resultados, por isso que muitos dos verdadei­ros filhos de Deus, impossibilitados de desfrutar mais co­munhão com seus irmãos, foram invadidos por uma triste­za terrível, morrendo de remorsos.

REINADO DE DECIO
Décio ocupava o trono nesta ocasião, e a maneira implacável como perseguiu os cristãos deu-lhe um lugar pou­co invejável ao lado do grande exemplar da crueldade im­perial - Nero. Décio observava com inveja o poder crescen­te dos cristãos, e determinou reprimi-lo. Via as igrejas cheias de prosélitos enquanto os templos pagãos estavam desertos; e isto, na sua opinião, era um insulto à religião nacional, que não podia passar despercebido. Por conse­qüência, mandou publicar editos por toda a parte, e atiçou mais uma vez o fogo quase apagado da perseguição.
Fabiano, bispo de Roma, foi o primeiro alvo do seu res­sentimento, e foi tal a força da perseguição, que depois da sua morte ninguém teve coragem de ir ocupar o seu lugar. Orígenes no Oriente, e Cipriano no Ocidente muito fize­ram pelo seu exemplo e ensino para dar vigor a mãos can­sadas, e fortalecer os joelhos trêmulos, mas apenas tiveram superintendência de distritos muitos limitados, e outros bispos e pastores não foram tão fiéis.

OS EDITOS DO IMPERADOR DÉCIO
O imperador mandou publicar editos após editos indi­cando aos cristãos certos dias para comparecerem perante os magistrados, e aqueles que recusavam renunciar à sua religião eram lançados em prisões e sujeitos às mais horro­rosas torturas para os obrigar a abandonar a nova fé. Al­guns cediam, e outros, entre os quais o infatigável Oríge­nes, foram fiéis até o fim. Muitos desterravam-se volunta­riamente, e no seu desterro continuavam a fazer as suas reuniões em bosques e em cavernas, sentindo-se muito mais seguros e felizes na companhia dos animais ferozes do que na sociedade de homens tão brutais como os seus per­seguidores. Ainda assim nem sempre conseguiram desta maneira estar em segurança. Sabemos de sete soldados ro­manos que morreram à fome numa caverna em que se ti­nham refugiado; pois o imperador ordenara que a entrada fosse fechada.
Mas, nem todos eram tão fracos, e a intrepidez de al­guns deles durante o interrogatório foi um contraste notá­vel com a timidez dos que já falamos. "Admiro-me", disse um deles a quem ordenavam que oferecesse sacrifício a Vênus, "que me mandeis prestar culto a uma mulher infame cujos deboches até os vossos próprios historiadores recor­dam, e cuja vida foi toda de atos que as vossas próprias leis haviam de punir". A censura era justa, mas a verdade dita por aquela forma poucas vezes se suporta, e o orador foi condenado, pela sua ousadia, ao suplício da roda e a ser decapitado. Também uma mulher que um homem obrigou a oferecer incenso, agarrando-lhe a mão para este fim, ex­clamou: "Não fui eu que fiz isto, mas sim o senhor", e por isto foi condenada ao exílio.

UMA CARTA A CIPRIANO
Um outro, que estava prisioneiro em Roma, escreveu a Cipriano:
"Que mais gloriosa e bendita sorte pode ter o homem, do que no meio das torturas e com a perspectiva da própria morte, apresentar-se, pela graça divina, a Deus, o Senhor, e confessar Cristo como Filho de Deus, tendo o corpo lacerado, porém o espírito sempre livre por que se torna com­panheiro de Cristo no sofrimento? Se não temos derrama­do o nosso sangue, estamos prontos para fazê-lo. Portanto, querido Cipriano, ora ao Senhor para que diariamente nos confirme e fortaleça cada vez mais com a força do seu po­der; e para que Ele, como o melhor dos comandantes, con­duza os seus soldados, a quem tem disciplinado e experi­mentado no perigo, ao campo de batalha que está diante de nós, armados com aquelas armas divinas que nunca po­dem ser vencidas".
Na verdade, o Senhor nunca se tinha esquecido do seu povo querido, e o tempo de aflição dos seus escolhidos fora fixado por Ele. Talvez Ele visse a fraqueza deles e, por isso, encurtasse o tempo da sua provação. Assim parecia mes­mo, porque depois de um curto reinado de dois anos e seis meses, foi Décio morto numa batalha com os godos; e as­sim terminou a sétima perseguição geral do império.

OITAVA PERSEGUIÇÃO GERAL
Galo, que sucedeu a Décio, apenas reinou dois anos, e, depois da sua morte, subiu ao trono Valeriano, que começou uma nova perseguição. A princípio, estava bem disposto a favor dos cristãos, e diz-se que examinou a in­fluência que o cristianismo exercia na moral pública, mas a sua paixão pela magia oriental dispôs o seu espírito para o ensino insidioso de um mágico egípcio, chamado Macriono, o qual se opunha ativa e amargamente à verdade; e pode-se atribuir à sua especial influência a oitava perse­guição geral do império.

O MÁRTIR CIPRIANO
Logo que ocorreram os primeiros boatos da persegui­ção, Cipriano tornou-se notável. Algumas referências à sua prévia história não deixam de ter lugar aqui. Nasceu no ano 200, descendia de uma família nobre, e recebeu uma educação adequada à sua posição. Mais tarde ensinou re­tórica publicamente e com grande sucesso em Cartago, onde vivia de uma maneira principesca. Dizem que se ves­tia com magnificência, tinha uma comitiva suntuosa, e le­vava uma multidão de pessoas às sua ordens, quando ia para fora. Sendo convertido do paganismo aos quarenta e cinco anos de idade, vendeu imediatamente os seus bens e deu a maior parte do produto da venda aos pobres. Progre­dia admiravelmente no estudo da verdade, e depois de três anos; durante os quais se aplicou muito de perto à leitura das Escrituras Sagradas, fizeram-no bispo de Cartago.
No reinado de Décio, foi publicada uma ordem de pri­são contra ele, mas Cipriano retirou-se para um lugar se­guro até passar a tempestade, e ali empregou as suas horas de descanso a escrever cartas consoladoras aos cristãos que sofriam. Não foi, contudo, o medo que o fez dar este passo, como o prova a evidência da sua conduta numa ocasião posterior. Acabara de voltar para Cartago no princípio do reinado de Valeriano, quando rebentou a peste naquela ci­dade, e nessa ocasião pôde ele prestar valioso auxílio aos que sofriam.
Exortava os cristãos a que esquecessem as injúrias que tinham sofrido, e manifestassem as graças do Evangelho, tratando, não só dos seus próprios irmãos, como também dos seus inimigos que se achassem atacados da peste. Responderam à exortação com a melhor boa vontade, e foram tratar das doentes alegremente.
Quando no reinado de Valeriano a perseguição reben­tou, Cipriano não tornou a fugir. Foi, por isso, preso por or­dem do procônsul, e desterrado; mas tornou depois a ser chamado por mandado de um novo procônsul. Contudo, este chamamento foi simplesmente para que fosse julgado mais uma vez; e surdo aos rogos sinceros dos seus irmãos, que instavam com ele para que se escondesse até a perse­guição ter passado, consentiu que o prendessem de novo. No dia seguinte à sua prisão, teve lugar o julgamento, e o primeiro senador de Cartago foi conduzido, por uma gran­de guarda, ao palácio do procônsul. Foi uma cena digna de se ver, e todos os habitantes da cidade saíram para a rua para presenciar. O interrogatório foi curto, e de ambos os lados se trocaram poucas mas decisivas palavras.
"És tu Tácio Cipriano, o bispo de tantos homens ímpios?" "Sou eu mesmo". "Pois bem, o mais sagrado dos imperadores ordena-te que ofereças sacrifício". "Não ofe­reço sacrifício algum". "Pensa bem", disse o procônsul. "Executai as vossas ordens; o caso não admite considera­ções", respondeu Cipriano. O procônsul então proferiu a sentença, concluindo com estas palavras: "Deves expiar o teu crime com o teu sangue". Cipriano exclamou: "Louva­do seja Deus!" E nesta alegre disposição de espírito foi pouco depois conduzido a um campo vizinho, e ali decapi­tado.

CIRILO, UM JOVEM MÁRTIR
Até as próprias crianças não foram isentas dessa perse­guição, e muitas, pela graça divina, testemunharam uma boa confissão. Cirilo de Alexandria, um rapaz de tenros anos, foi um destes; e a realidade da sua fé era tal, que nem ameaças nem bofetadas foram capazes de o abalar, nem mesmo a perspectiva de uma morte lenta e dolorosa. Foi insultado por crianças de sua idade, e até o pai o expulsou de casa por ele não querer renunciar à sua fé e reconhecer o imperador como Deus. A sua conduta na presença do ma­gistrado foi igualmente interessante e conscienciosa: "Rapaz", disse-lhe o bondoso pagão, "estou pronto a perdoar-te, e a consentir que teu pai te leve outra vez para casa, e podes mais tarde herdar os seus bens; para isso basta que tenhas juízo e olhes pelos teus próprios interesses". Mas ele recusou com firmeza: "Estou pronto a sofrer", disse ele, "e Deus há de levar-me para o Céu. Não me importo de ter sido expulso de casa: hei de ter um lar melhor. Não tenho medo de morrer; a morte vai apenas conduzir-me a uma vida melhor".
Como o governador não pudesse persuadi-lo a que se re­tratasse, disse aos oficiais que o levassem para o poste e lhe mostrassem a palha e o feixe de lenha, esperando que isso o intimidasse, mas o rapaz resistiu à prova, e não manifes­tou sintoma algum de medo. O bom Pastor conservou-se muito próximo da sua ovelha atribulada, e não consentiu que o temor entrasse no seu coração; e o povo só pôde cho­rar e maravilhar-se. Quando voltou à presença do governa­dor e este lhe perguntou: "Estás agora resolvido a mudar de idéia?" - ele respondeu com intrepidez: "O vosso fogo e a vossa espada não me podem molestar: vou para um lar mais feliz; queimai-me depressa, para que eu chegue lá mais cedo"; e vendo lágrimas nos olhos de muitos especta­dores, disse: "Deveis estar contentes, e decerto estaríeis, se conhecesseis a cidade para onde vou". Depois disto foi no­vamente conduzido ao poste e ali amarrado; e puseram os cavacos e a palha em volta dele, e acenderam-nos. Mas os sofrimentos da criança bem depressa cessaram, e antes de o fumo da fogueira se dissipar completamente, já ele esta­va além do alcance do martírio e daquela terrível prova, e tinha entrado no "lar melhor" de que ele falara.

MARTÍRIO DE LOURENÇO
Um diácono da igreja em Roma, chamado Lourenço, foi outro mártir desta perseguição. Sendo chamado para dar contas ao imperador dos tesouros da igreja, reuniu al­guns dos pobres mais velhos e desamparados, e apresen­tou-os ao magistrado, dizendo: "Eis aqui os tesouros da igreja!" Zangado e contrariado com estas palavras, o ma­gistrado entregou-o aos algozes, que lhe bateram com varões de ferro, deslocando-lhe os membros, e por fim esten­deram-no numas grelhas e o assaram lentamente.

MORTE DO IMPERADOR VALERIANO
Valeriano, contudo, foi feito prisioneiro por Sapor, rei dos persas, depois de ter administrado os negócios do im­pério por espaço de quatro anos, e isto pôs fim a esta perseguição. A igreja teve sossego durante perto de quinze anos, findos os quais se tornou a manifestar o incansável ódio dos homens pelo Evangelho, e uma nova perseguição geral rebentou.

NO REINADO DE AURELIANO
A perseguição que começou no reinado de Aureliano, durou apenas alguns meses; porque os atos sanguinários que ele praticara não tinham ainda alcançado os limites do seu domínio quando a mão do assassino o prostrou. A tem­pestade parecia realmente aproximar-se com rapidez e o horizonte tornou-se negro e carregado por algum tempo, mas depois de alguns trovões que anunciavam um tempo­ral, as nuvens espalharam-se sem descarregarem, e os cris­tãos puderam outra vez respirar livremente.
Mas se há pouco que dizer a respeito de perseguição, as memórias daquele tempo referentes à Igreja estão cheias de tristes interesses. Foi durante o reinado de Aureliano que os cristãos pediram o arbítrio do poder civil para os ne­gócios da igreja; e isto, de mais a mais, num caso de disci­plina importante. No tempo dos apóstolos tinham eles pe­dido o auxilio de magistrados para regularem algumas questões particulares, e por esse motivo foram asperamen­te censurados por Paulo (1 Co 6), mas que teria este dito agora, vendo que se apelava para o poder civil para decidir uma questão que afetava de uma maneira tão solene as verdades fundamentais da religião cristã?

PAULO DE SAMOSATA
Paulo de Samosata, um pagão ímpio e vão, o qual por meios incompreensíveis alcançou o título de Bispo de Antioquia, espalhou uma heresia abominável a respeito da pessoa do Senhor Jesus. O seu ensinamento excitou, nessa ocasião, a atenção dos cristãos em toda a parte oriental do império e foi convocado um conselho para averiguar o caso. Reuniram-se em Antioquia pastores e bispos que vi­nham de toda a parte, e depois de investigarem com o má­ximo cuidado, decidiram unanimemente expulsar dentre eles aquele homem ímpio. Teria sido uma felicidade para a igreja se o caso terminasse aqui, mas não sucedeu assim. Esse homem recusou-se a ceder à autoridade da igreja, e o conselho apelou para o imperador, que enviou a questão para os bispos de Itália e Roma; e como eles confirmassem a decisão dos seus irmãos, o altivo bispo nada mais teve de fazer senão retirar-se em silêncio, sob o peso de uma dupla censura.

MUDANÇA DA POLÍTICA DE AURELIANO
Foi só depois deste acontecimento que Aureliano mu­dou a sua atitude para com os cristãos; e nunca se pôde afirmar positivamente qual foi a causa da mudança dessa política. Eusébio atribui isso, de uma maneira vaga, à in­fluência de certos conselheiros, mas não explica quem eram. nem tampouco como foi que conseguiram ganhar o apoio do imperador. "Mas", disse ele, "quando Aureliano estava já quase, por assim dizer, no ato de assinar o decre­to, a vingança divina alcançou-o... provando, assim, a to­dos, que nenhum privilégio pode ser concedido aos gover­nadores do mundo contra a Igreja de Cristo, a não ser pela permissão da poderosa mão de Deus".

















5
Nono e décima perseguições gerais
(274-306)


DECADÊNCIA ESPIRITUAL DOS CRISTÃOS
Depois dum descanso de uns vinte e oito anos, tornou a mesquinha mão do homem a estender-se para continuar a perseguição, e o imperador fez o último e desesperado es­forço para exterminar a religião tão odiada. Historicamen­te, foi este o último e decisivo conflito entre o paganismo e o cristianismo. Durou dez anos, e foi sem dúvida a mais desoladora de todas as perseguições. A segurança tranqüi­la, que a Igreja desfrutara desde a morte de Aureliano ti­nha produzido uma tal inação nos cristãos, que a sua con­dição levantou um certo sentimento de vergonha no cora­ção de muitos, misturado com o receio de que o desagrado do Senhor estivesse pendente sobre as suas cabeças. Em conseqüência da sua infidelidade, a Igreja tinha diminuído muito em poder espiritual, mas tinha aumentado em so­berba e ambição mundana; e a simplicidade de seu culto quase se ofuscou por ritos mais judaicos que cristãos.
E isto ainda não era tudo. Muitos empregavam os seus dons espirituais em ostentação em vez de os empregarem em edificação; e aqueles que tinham o privilégio de poder alimentar o rebanho de Deus, descuravam o seu encargo sagrado e ocupavam-se na acumulação de riquezas. Os bis­pos, cujo verdadeiro dever era servir ao povo e trabalhar pessoalmente entre os pobres e os doentes, tornavam-se numa grande ordem sacerdotal, e procediam como "tendo domínio sobre a herança de Deus". Estes tinham emprega­dos às suas ordens e já não seguiam a hospitalidade de que Paulo falara como sendo uma qualidade indispensável aos bispos, mas recebiam um salário, tornando-se dependen­tes dos ganhos alheios.
Antes de ter passado um século, ouviu-se um pagão di­zer: "Façam-me bispo de Roma, que eu logo me tornarei cristão".
Na verdade, a distinção entre o clero e os leigos proce­dia deste sistema de tirania espiritual; e daqui provinham por sua vez, aqueles medonhos abusos da Idade Média, que mais tarde foram condenados em parte (se bem que por razões políticas) pelo arrogante e ousado Hildebrando, quando subiu à cadeira papal.
Além disso, a paz inteira das assembléias era constan­temente perturbada pelas discussões. Havia contínuas dis­putas entre os bispos e os presbíteros, por causa das altivas pretensões dos primeiros, que exigiam superioridade na igreja, superioridade esta que os últimos não queriam de modo algum conceder. Nos primeiros tempos do cristianis­mo aqueles dois títulos haviam sido considerados iguais, e só perto do fim do segundo século é que o costume conse­guiu colocar um acima do outro. A controvérsia foi longa e amarga, e enquanto os pastores assim lutavam uns com os outros, as ovelhas morriam de fome, e os lobos daninhos estavam-se introduzindo no meio delas, não poupando o rebanho.

PERSEGUIÇÃO NO REINADO DE DIOCLECIANO
No meio deste triste estado de coisas, começou a perse­guição no reinado de Diocleciano. Este tirano, soberbo e selvagem, ocupava o trono havia já dezenove anos, e du­rante esse tempo tinha associado ao seu governo três outros opressores como ele: Maximiliano, Galério, e Constantino Cloro, pai de Constantino, o Grande.
Galério, que odiava os cristãos, era genro do imperador, e exercia uma influência fatal sobre ele. Persuadiu-o de que o cristianismo se opunha aos melhores interesses do povo, e que o meio de fazer reviver as antigas glórias do im­pério era arrancar pela raiz aquela odiosa religião e des­truí-la completamente.
Para melhor atingir o seu fim, procurou o auxílio dos sacerdotes pagãos e dos mestres de filosofia que, pelas suas palavras e influências, bem depressa levaram o imperador a partilhar das idéias deles.
Publicaram-se então quatro editos ao todo; o primeiro, ordenando a destruição de todas as igrejas e dos escritos sagrados - edito este sem dúvida instigado pelos filósofos; o ! segundo, determinando que todos os que pertencessem às ordens, clericais fossem presos; o terceiro, declarando que nenhum seria solto a não ser que consentisse em oferecer sacrifício; e o quarto mandando que todos os cristãos em qualquer condição em toda parte do império, oferecessem sacrifício e voltassem a adorar os deuses, sob pena de mor­te em caso de recusa.
Logo que o primeiro edito apareceu em Nicomédia (a nova capital do império) foi rasgado por um cristão indig­nado. No lugar dele deixou estas palavras de desprezo: "São estas as vitórias dos imperadores sobre os godos". Este ato de zelo custou-lhe bastante caro, pois sofreu as torturas que lhe infligiram: Foi queimado vivo num fogo lento.
Tendo rebentado uma conflagração no palácio do im­perador, acusaram os cristãos do ato, e por isso aumentou a violência da perseguição. Em menos de quatorze dias, o palácio estava outra vez em chamas, e a cólera de Diocleciano que já então estava muito inquieto, tornou-se terrí­vel. Os oficiais da casa imperial, e todos quantos moravam no palácio, foram expostos às mais cruéis torturas. Diz-se que por ordem, e em presença de Diocleciano, Prisca e Va­léria, (mulher e filha do imperador) foram obrigadas a ofe­recer sacrifícios; os poderosos eunucos Doroteo, Jorgino e
Andrias sofreram a morte; Antino, bispo de Nicomédia, foi decapitado. Muitos foram executados, outros queimados, outros amarrados e com pedras atadas ao pescoço levados em botes para o meio do lago, e ali lançados à água.
Ao oriente e ocidente de Nicomédia as perseguições tor­naram-se violentas e furiosas, e a única província romana que escapou a esta medonha tempestade foi a Gália. Era ali que residia Constantino, o único governador que prote­gia os cristãos; os outros eram implacáveis e não tinham remorsos. Mas Diocleciano sentiu-se por fim cansado de tão medonho trabalho, e no ano seguinte entregou as ré­deas do governo. O seu colega Maximiano seguiu-lhe o exemplo imediatamente, e Galério reinou como único se­nhor do Oriente até que seu sobrinho, um monstro igual a ele, obteve o governo da Síria e do Egito sob o título de Maximiano II.
Ser-nos-á impossível falar de todos os mártires cujos nomes estão ligados a esta perseguição, pois devem ter sido contados por milhares durante estes tristes dez anos.
No Egito, os cristãos sofreram o martírio aos grupos, tendo havido dia de sessenta a oitenta mortes. Romano, o diácono de Antioquia, quando foi ameaçado com a tortura, exclamou: "Oh! imperador, recebo gostosamente a tua sentença; não me recuso a ser torturado a favor dos meus irmãos, ainda que seja pelos meios mais cruéis que possas inventar".
Quando o executor hesitava em continuar o seu terrível trabalho, em conseqüência de a vítima pertencer à nobre­za, Romano disse: "Não é o sangue dos meus antepassados que faz com que eu seja nobre, mas sim a minha profissão cristã". Depois de ter recebido muitas feridas no rosto, ex­clamou: "Agradeço-te capitão, por me teres aberto tantas bocas pelas quais eu possa pregar o meu Senhor e Salvador Jesus Cristo".

MAIS MÁRTIRES
Outro a quem perguntaram durante o seu interrogató­rio: "Por que é que conservas as Escrituras que são proibi­das pelo imperador?" Respondeu: "Porque sou cristão; nas
Escrituras está a vida eterna: e quem as despreza perde essa vida eterna".
Uma menina de treze anos, filha de um fidalgo de Emé­rita, dava louvores a Deus no meio das torturas, dizendo: "Oh! Senhor eu não te esquecerei! Que boa coisa é para aqueles que se lembram dos teus triunfos, oh! Cristo, e que atingem estas altas dignidades!" Outra também, uma senhora rica chamada Julieta, enquanto as chamas a en­volviam, exclamava: "Oh! minhas irmãs, abandonai a vida que gastais nas trevas, e amai a Cristo - o meu Deus, meu Redentor, meu Consolador, e que é a verdadeira Luz do mundo. Que o Espírito de Deus vos faça convencer de que há um outro mundo no qual os adoradores dos ídolos e demônios hão de ser eternamente atormentados, e os ser­vos do Deus verdadeiro serão eternamente coroados".
Foi este o seu fiel testemunho.

MORTE DOS PERSEGUIDORES
Façamos a comparação entre essas cenas triunfantes e o fim miserável dos grandes perseguidores do cristianismo.
Nero, Diocleciano, e Maximiano suicidaram-se. Domiciniano, Cômodo, Maximínio e Aureliano foram assassina­dos. Adriano morreu em agonia gritando: "Quão desgraça­do é procurar a morte e não a encontrar! "Décio, cuja reti­rada foi impedida durante uma emboscada, morreu mise­ravelmente, e o seu corpo foi presa de abutres e animais fe­rozes. Valeriano depois de ser preso por Sapor rei da Pér­sia, foi empregado como um banco onde esse rei punha os pés quando montava o seu cavalo; e depois de sofrer du­rante sete anos este e outros insultos, foram-lhe arrancados os olhos e esfolaram-no vivo. Maximínio teve uma morte lenta e horrorosa; e, finalmente, Galério, o príncipe dos perseguidores, foi atacado de uma doença terrível que o condenou a um contínuo martírio. Foram consultados os médicos, em vão, e assim como Antíoco Epifânio e Herodes, que foram tão cruéis quanto ele, foi o seu corpo comi­do de bichos.
Mas o período da história que está indicado na carta es­crita ao anjo da igreja em Esmirna (Ap 2.8-11) tinha chegado ao seu fim. Aquela mística intimação do cabeça da igreja: "Vós tereis tribulações por dez dias", tinha sido cumprida; e as dez perseguições do império romano pagão tinham passado à história. A décima durou dez anos, mas mesmo essa acabou, e então o período que corresponde ao tempo indicado na carta dirigida ao anjo da igreja em Pérgamo (Ap 2.12-17), quando o leão se tornou em serpente e os adversários de fora deram lugar aos sedutores de dentro, começou: Constantino, o Grande, de quem fala a história, tinha subido ao trono.





























6
Quarto século da Era cristã
(306-375)


CONSTANTINO O GRANDE

A subida ao trono de Constantino, o Grande, marca uma nova era na história da igreja e por isso é conveniente examinar rapidamente a sua carreira pública. Nasceu na Grã-Bretanha, e dize-se que a sua mãe era uma princesa britânica. Depois da morte de seu pai que foi muito esti­mado pela sua justiça e moderação, as legiões romanas es­tacionadas em York saudaram-no como César e vestiram-no com a púrpura imperial. Apesar de Galeriano se ofender com esta aclamação, ele não estava preparado para se ar­riscar numa guerra civil, opondo-se a ela; e portanto ratifi­cou o título que o exército dera a seu general, e concedeu-lhe o quarto lugar entre os governadores do Império. Du­rante os seis anos que se seguiram administrou Constanti­no a Prefeitura da Gália com uma perícia notável, e ao fim desse tempo tomou posse de todo o império romano, visto que Maximínio e Galério, no intervalo, tinham morrido. Apenas restava agora um competidor ao trono, Maxêncio, um forte defensor do paganismo, e logo que Constantino obteve conhecimento exato dos seus recursos, marchou contra ele com um grande exército, e venceu-o completa­mente.
A questão de Constantino ser ou não realmente cristão, sempre tem sido ponto de dúvida entre os escritores sagra­dos, e têm-se apresentado muitas e diferentes razões como prova de que adotou a religião cristã. Mas se efetivamente se converteu, podemos afirmar positivamente que não foi antes de marchar contra Maxêncio, tendo, segundo se diz, presenciado durante essa marcha, um fenômeno extraordi­nário no firmamento, e sido favorecido com uma visão no­tável. Até esse tempo estava ainda indeciso entre o paga­nismo e o cristianismo.

TEMPOS NOVOS PARA A IGREJA
Tinha agora chegado um tempo muito extraordinário para o povo de Deus... A religião de Cristo, saindo como do deserto e das prisões, tomou posse do mundo. Até nas es­tradas principais, nos íngremes cumes dos montes, nos fundos barrancos e nos vales distantes, nos tetos das casas, e nos mosaicos dos sobrados se via a cruz. A vitória era completa e decisiva. Até nas moedas de Constantino se via o lábaro com o monograma de Cristo levantando-se acima do Dragão vencido. Do mesmo modo o culto e o nome de Jesus se exaltaram acima dos deuses vencidos do paganis­mo. De fato começava uma ordem de coisas inteiramente nova, e o imperador romano tornou-se o principal da igre­ja.
A administração do estado e dos negócios civis foi reu­nida com o governo da igreja e podia-se presenciar o espe­táculo extraordinário de um imperador romano presidir os concílios da igreja e tomar parte nos debates.
Em geral os cristãos não se ressentiam desta intrusão, pelo contrário consideravam-na como um auspicioso e feliz presságio, e em lugar de censurar o imperador pelo seu intrometimento, receberam-no como bispo dos bispos. O povo de Deus aceitou a proteção de um estado semi-pagão, e o cristianismo sofreu a maior degradação possível com a proteção de um potentado do mundo.

EFEITOS DA UNIÃO ENTRE A IGREJA E O ESTADO
O efeito desastrado desta primeira união da igreja com o estado fez-se sentir imediatamente. Levantaram-se con­tendas, e o imperador foi nomeado árbitro pelas partes contendoras. Mas logo que dava a sua decisão sobre a ques­tão, esta continuava rejeitada com desprezo pela parte cu­jas razões eram desatendidas. Repetiu-se a mesma coisa uma vez e outra, até que o imperador se indignou, e recor­reu a meios violentos para reforçar o seu poder. Isso prova­va até a evidência e inutilidade e a inconveniência daquela proteção a que os cristãos de tão boa vontade, mas tão ce­gamente se submeteram.
Até então tinham os concílios da igreja sido compostos de bispos e presbíteros de uma província, mas durante o reinado de Constantino foram consagradas as assembléias, que o imperador podia reunir e dissolver à vontade! Cha­mavam-se concílios ecumênicos ou gerais, e tinham por fim a discussão das questões mais importantes da igreja.

O PRIMEIRO CONCILIO ECUMÊNICO
A primeira destas Assembléias reuniu-se em Nicéia, na Bitínia, para o julgamento de um tal Ário, que tinha esta­do a ensinar que nosso Senhor fora criado por Deus como qualquer outro ser, sujeito ao pecado e ao erro, e que, por conseqüência, não seria eterno como o Pai. Foi a isso que Constantino chamou uma ninharia, quando o informaram da heresia; o concilio porém, com poucas exceções, deu-lhe o nome de horrível blasfêmia. Os bispos sentiram tanto a indignidade que Ário fizera pesar sobre o bendito Senhor, que tapavam os ouvidos enquanto ele explicava as suas doutrinas, e declararam que, quem expunha tais ensina­mentos, era digno de anátema. Como repressão às heresias crescentes foi escrito a célebre confissão de fé, conhecida como o Credo de Nicéia, no qual está clara e inteiramente anunciada a doutrina das Escrituras Sagradas com refe­rência à divindade do Senhor. Ário e seus adeptos recebe­ram ao mesmo tempo sentença de desterro, e possuir ou fa­zer circular os seus escritos era considerado como grande ofensa.
A conduta posterior do soberano mostrou que o seu modo de proceder naquela ocasião não obedecia a nenhu­ma convicção profunda nem determinada. A pedido de sua irmã Constância, cujas simpatias pelo partido ariano eram bastante fortes, ordenou que o heresiarca voltasse do exí­lio, e revogou a interdição dos seus escritos. Ário foi, por­tanto, plenamente restituído ao favor do imperador, e tra­tado na corte com todas as distinções.

ATANÁSIO, BISPO DE ALEXANDRIA
Mas o triunfo de Ário não foi completo. Encontrou um adversário poderoso e infatigável em Atanásio, bispo de Alexandria, o qual já tinha derrotado durante as reuniões do concilio em Nicéia, e que apesar de ser apenas diácono naquele tempo, tomara parte notável na discussão, e desde então sempre continuara a ser acérrimo defensor da verda­de e um ativo antagonista das malévolas intenções dos arianos.
Um mandato imperial de Constantino para que os he-reges excomungados fossem admitidos à igreja, foi recebi­do pelo bispo com um desprezo deliberado e firme: não queria submeter-se a qualquer autoridade que procurasse pôr de parte a divindade do seu Senhor e Salvador. Contu­do, os seus inimigos estavam resolvidos a levar por diante os seus propósitos e aquilo que não puderam obter por bons meios tentaram alcançar por meios infames. Fizeram uma acusação horrível contra o bispo, no sentido de ter ele cau­sado a morte de um bispo miletino chamado Arsino, de cuja mão, diziam eles, se serviu para fins de feitiçaria. Foi, por conseqüência, intimado a responder perante um conci­lio em Cesaréia, pela dupla acusação de feitiçaria e assassínio: mas Atanásio recusou-se a comparecer ali por ser o tribunal composto de inimigos. Foi pois convocado outro concilio em Tiro, e a este assistiu o bispo. A mão que devia ter servido para prova do crime apareceu no tribunal, mas infelizmente para os acusadores o dono da mão, o bispo as­sassinado, também lá estava vivo e ileso!

DESTERRO DE ATANASIO
Ainda assim, esta farça não impôs aos seus adversários o silêncio que a vergonha devia produzir, e apressaram-se em preparar uma nova acusação. Afirmaram que Atanásio ameaçava reprimir a exportação do trigo de Alexandria para Constantinopla, o que traria a fome para esta cidade, pensando eles, e com razão, que bastava só atribuir-lhe este mau procedimento para levantar a inveja e desagrado do imperador, cujos maiores interesses estavam ali con­centrados. Os seus planos tiveram bom êxito. Com esta simples acusação, pois a verdade dela nunca foi provada, obtiveram uma sentença de desterro, e Atanásio foi man­dado para Treves, no Reno, onde se conservou dois anos e quatro meses.

MORTE DE ÁRIO
Mas o desterro do bispo fiel não assegurou os resultados pelos quais o partido de Ario estava a combater. Os Cris­tãos de Alexandria também tinham sido muito bem ins­truídos nas verdades das Escrituras Sagradas, e conserva­vam-nas com tal amor, que não as abandonaram depois do seu ensinador partir. Não queriam ligar-se a compromisso algum e até mesmo quando Ario subscreveu uma fé orto­doxa, o novo bispo, um velho servo de Deus chamado Ale­xandre, duvidou da sua sinceridade, e não quis aceitar a sua retratação. Constantino teve de intervir novamente neste caso, e mandando chamar o bispo, insistiu para que Ario fosse recebido em comunhão no dia seguinte. Muitos viram nisto uma crise nos negócios da igreja, e os cristãos de Alexandria esperavam pelo resultado com muita ansie­dade. Alexandre sentiu a sua fraqueza, e pensamentos in-quietadores lhe assaltaram o espírito; entrou na igreja e apresentou o seu caso diante do Senhor. A oração era o seu último recurso, mas não foi um recurso vão nem estéril.
Os arianos já exultavam, e enquanto o bispo estava de joelhos diante do altar levaram eles o seu chefe em triunfo pelas ruas. De repente cessaram as ovações. Ario entrara em uma casa particular e ninguém parecia saber para quê.
Todos esperavam, e se admiravam, mas esperavam em vão; o homem, cujo regresso aguardavam, tinha-se retira­do dos seus olhares para nunca mais aparecer. Teve a mes­ma sorte de Judas, e o grande herético estava morto. Atanásio disse mais tarde que a morte de Ário era uma refuta-ção suficiente da sua heresia.

MORTE DE CONSTANTINO, O GRANDE
Constantino não sobreviveu muito tempo a este acon­tecimento. Morreu em 337 d.C. com sessenta e quatro anos de idade, tendo reinado quase trinta e um anos. E sua le­gislação geral, diz um escritor moderno, manifesta a in­fluência dos princípios cristãos; e o efeito destas leis huma­nitárias havia de ser sentido muito além do círculo da co­munidade cristã.
Decretou leis para que se guardasse melhor o domingo e contra a venda de crianças como escravos; e também con­tra o roubo de crianças com o fim de se venderem e muitas outras leis de caráter tanto social como moral. Mas o fato mais importante e de maior influência do seu reinado, cheio de acontecimentos, foi a destruição dos ídolos e a exaltação de Cristo. Outro fato de importância, sob o pon­to de vista cristão, foi a conversão dos etíopes e ibérios, que, segundo se diz, receberam o Evangelho durante esse mesmo tempo.

DIVISÃO DO IMPÉRIO
O império estava agora dividido entre os três filhos de Constantino, o Grande, ficando Constantino com a Gália, Espanha e a Bretanha; Constâncio com as províncias asiá­ticas, e Constante, com a Itália e a África.
Constantino favoreceu o partido católico ou ortodoxo, e fez voltar Atanásio do exílio, mas foi morto no ano 340, quando invadia a Itália. Constante, que tomou posse dos seus domínios, também seguia a causa dos católicos e foi amigo de Atanásio, porém Constâncio e toda a sua corte tomaram o partido dos arianos.

UMA GUERRA RELIGIOSA
Começou então uma guerra religiosa entre os dois ir­mãos, e como geralmente acontece nas guerras religiosas, foi esta também notável pela crueldade e injustiça de ambos os lados.
Entretanto, Atanásio foi novamente degredado, pelos esforços de Constâncio e dos bispos arianos; e Gregório de Capadócia, homem de caráter violento, foi colocado à for­ça no seu lugar. Este procedimento iníquo deu ocasião a desordens e a cenas violentas, e tiveram de pedir auxílio à tropa para manter o bispo intruso na colocação que lhe ti­nham dado. Foram depois convocados muitos e vários concílios, e publicados cinco credos diferentes, em outros tantos anos, mas parece que com pouco resultado. Em to­dos estes concílios foi sempre confirmado a ortodoxia de Atanásio, porém não fizeram justiça ao velho bispo en­quanto Gregório viveu. Mas depois da morte deste foi rein­tegrado no seu lugar com grande alegria de todos aqueles que apreciavam a verdade e se agarravam à boa doutrina.

MORTE DE CONSTANTE
Constante, que desde o princípio se tinha mostrado um verdadeiro amigo de Atanásio, morreu no ano 359, e os arianos, com a proteção de Constâncio renovaram as suas perseguições. Tendo sido expulso pela terceira vez do seu lugar, Atanásio retirou-se voluntariamente para o exílio, e entrou, durante algum tempo, num refúgio dos desertos do Egito, onde pela meditação e oração se preparou para pos­terior conflito. E, aqueles que professavam as suas doutri­nas eram perseguidos com rigor devido à ascendência dos arianos. Por isso se dizia por toda a parte que os tempos de Nero e Diocleciano tinham voltado.

MORTE DE CONTÂNCIO
Constâncio morreu no ano de 361, e teve por sucessor Juliano, que tornou a chamar os bispos desterrados por Constâncio; mas não foi de certo por simpatia pelas suas doutrinas, porque ele pouco depois caiu no paganismo, e distingüiu-se tanto pelos seus esforços em restaurar a ido­latria, que mereceu o nome de Juliano, o Apóstata. Afir­mou que o julgamento de Deus sobre os judeus, como esta­vam preditos nos evangelhos e em outras partes, eram uma fábula, e fez uma ímpia tentativa de provar a sua afirmati­va, mandando uma expedição à Palestina para reconstruir o templo. Mas os seus planos frustraram-se de uma manei­ra milagrosa. Diz a tradição que saíam da terra línguas de fogo, fazendo ura barulho medonho, o que fez afastar os operários daquele lugar cheios de terror. Abandonaram portanto o trabalho; e as intenções ímpias de Juliano não vingaram.

O MÁRTIR BASÍLIO
Durante o reinado deste imperador, um cristão chama­do Basílio tornou-se notável pelas suas denúncias destemi­das do arianismo e da idolatria. O bispo ariano de Constantinopla ordenou-lhe que desistisse de pregar, mas Basí­lio continuou apesar da ordem recebida/Afirmava ele que recebia ordens do Senhor e não dos homens.
O bispo então denunciou-o como perturbador da ordem pública; mas o imperador (a quem a denúncia era dirigida se estava preparando nessa ocasião para uma expedição à Pérsia e não prestou a mínima atenção a esta acusação. Contudo, mais tarde, o zelo de Basílio contra o paganismo, fez cair sobre ele a indignação dos pagãos e foi levado à presença de Saturnino, governador de Ancira, que o man­dou para o cavalete. A sua firmeza e paciência durante a tortura foi a admiração de todos quantos o viram, e foram imediatamente contar isto ao imperador. O interesse deste não se excitou menos do que a admiração dos seus súditos, e deu ordem para que o prisioneiro fosse trazido à sua pre­sença. Basílio, que se interessava pelo bem do imperador, aproveitou essa ocasião para proclamar o Evangelho na sua presença e o avisou do perigo em que estava, devido ao seu desprezo pelo Filho de Deus. A censura, aplicada com tanta fidelidade, não deu, infelizmente, bom resultado; Juliano recebeu-o com desprezo, e mostrou o ódio que ti­nha à religião cristã pela maneira com que tratou o ministro dela. Ordenou que Basílio fosse novamente conduzido a sua prisão e que todos os dias lhe separassem a carne dos ossos, até que o seu corpo estivesse completamente despe­daçado. Esta sentença desumana foi cumprida, e o bravo mártir expirou na tortura no dia 28 de junho do ano 362 d.C.

MORTE DE JULIANO
Juliano não sobreviveu muito tempo a isso. No mesmo mês, quase no mesmo dia (26 de junho) do ano seguinte foi mortalmente ferido numa escaramuça com os asiáticos; e, quando jazia por terra, fraco e perdido, foi visto estender a mão para o Céu e murmurar estas palavras: "0 galileu, venceste!", e assim expirou.

UM IMPERADOR VERDADEIRAMENTE CRISTÃO
Joviano, que lhe sucedeu, foi talvez o primeiro governa­dor do império romano verdadeiramente cristão: mas o seu reinado foi curto. Quis que Atanásio, que voltara de Ale­xandria depois da morte de Juliano, fosse o seu mestre e conselheiro; e bem depressa ficou tão seguro da verdade que nem padres pagãos, nem arianos hereges, tinham po­der algum sobre ele. Mas usou de tolerância para com to­dos e, apesar de se ligar à verdade, sempre se viu rodeado de alguns que se opunham a ela. Na verdade, se podemos acreditar em Sócrates, que para autoridade cita o filósofo Temíscio, os adeptos do grande heresiarca Ário eram governados mais por conveniência do que por consciência, e re­gulavam as suas opiniões pelas do poder reinante. Depois de um feliz reinado de oito meses, Joviano morreu por asfi­xia, em 17 de fevereiro do ano 364.
Os seus sucessores, Valenciano e Valente, prometiam seguir os passos de seu pai mas Valente foi logo levado para o partido ariano por instigação de sua mulher, e foi batizado por um bispo ariano.

MORTE DE ATANÁSIO
Renovou em seguida os ataques a Atanásio e seus adeptos e o velho bispo depois de ter estado escondido por espa­ço de quatro meses no sepulcro de seu pai teve de fugir ou­tra vez de Alexandria. Contudo, a opinião popular não po­dia consentir que ele estivesse muito tempo no exílio, e foi quase imediatamente chamado de novo. Pouco depois, no ano 373. terminou pacificamente a sua longa e agitada car­reira. A sua morte foi considerada calamidade pública por todos os que velavam com solicitude os interesses do seu divino Mestre.
Foi por pugnar pela grande verdade da Trindade que o venerável bispo fora desterrado três vezes, e acusado de herege pelos falsos padres de Ário.









































7
Período semelhante a Pérgamo
(375-500)


O IMPERADOR GRACIANO
Foi ao ano de 375 que Graciano sucedeu a Saleciano como imperador do Ocidente; e tinha apenas dezesseis anos de idade quando subiu ao trono. Era um verdadeiro filho de Deus e, apesar de sua pouca idade, distinguiu-se por uma piedade e um zelo que fariam honra a muitos mais velhos do que ele. Um dos primeiros atos do seu rei­nado foi escrever uma carta a Ambrósio, bispo de Milão, na qual lhe pedia que o viesse visitar.
"Vinde", escreveu ele "para que possais ensinar a dou­trina da salvação a quem crê verdadeiramente; não para Que estudemos para questionar, mas que a revelação de Deus possa penetrar mais intimamente no nosso coração". Foi geralmente estimado, e há dúvidas sobre a indolência e luxúria de que o acusam alguns historiadores. Isso não tem Qualquer fundamento a não ser na malícia dos inimigos.

O IMPERADOR TEODÓCIO
Depois da morte do seu tio, o imperador Valente (um grande partidário de Ario), Graciano ficou como o único governador do império, mas, sentindo-se incapaz de supor­tar o peso de ansiedade inerente a esta nova responsabili­dade, determinou investir com a púrpura imperial Teodócio, um espanhol de nascimento nobre. Era este o filho do general Teodócio, que tinha prestado bons serviços na Bre­tanha, durante o reinado de Valenciano, reprimindo as in­cursões dos pictos e escosses; e Graciano tinha toda con­fiança na sua energia e habilidade. E tinha razão, porque Teodócio era homem de grande piedade e boas qualidades, e o seu reinado, que durou perto de dezesseis anos, foi no­tável pela sabedoria e moderação que mostrou, e que convinha a um governador cristão. Mas, assim como o Davi dos tempos antigos, também o seu caráter teve algumas manchas, e durante a sua vida praticaram-se atos negros e sangrentos. Os seguintes fatos falam por si.
Tinha havido um tumulto em Tessalônica, devido à prisão de um homem muito estimado. Durante esse tu­multo o general Botênio e vários oficiais perderam a vida. Teodócio, cheio de indignação por este ultraje, determinou vingá-lo; e para esse fim deu instruções secretas para se proceder a uma carnificina geral nos habitantes. Sob o pre­texto de que ia ter lugar uma exibição de jogos públicos, reuniu-se uma enorme multidão de gente no circo da cida­de, e seguiu-se uma cena medonha em que quinze mil pes­soas perderam a vida. Ambrósio, ao qual o imperador ti­nha prometido que não faria caso da ofensa, ficou cheio de pesar e admiração quando recebeu esta notícia e, retiran­do-se para um deserto próximo, escreveu ao imperador uma carta muito severa, repreendendo-o. O bispo era ho­mem de caráter bom e amável, e os mais pobres do seu re­banho podiam sempre chegar-se a ele; mas também sabia ser firme quando era preciso, e viu que era agora ocasião de o ser. Quaisquer que fossem os seus sentimentos íntimos para o imperador, nada se podia colocar no caminho do seu dever para com Deus. Na sua presença quaisquer senti­mentos ou distinções humanas haviam de desaparecer.
Tratava-se dos direitos da glória divina, e eles deviam ser sustentados a todo o custo. Ambrósio, compreendeu per­feitamente a sua posição, mas o seu desgosto não foi mais verdadeiro do que o de Teodócio. A consciência do impera­dor despertou verdadeiramente, e o seu coração sentiu o duplo peso da censura do bispo, e da sua própria culpabili­dade sanguinária. O seu primeiro pensamento foi recorrer à igreja, mas Ambrósio, que soube disso apressou-se em ir a Milão para o impedir de assim fazer. Os dois homens en­contraram-se no pórtico da igreja, e houve uma cena notá­vel entre eles. Quando o imperador avançava para entrar na igreja, o bispo agarrou-lhe o vestido e conjurou-o solene­mente a que recuasse. O imperador apresentou as suas ra­zões, mas Ambrósio conservou-se firme. As expressões par­ticulares de pesar foram inúteis: o fato tornara-se público, e o bispo nada queria admitir a não ser depois duma con­fissão pública. "Imperador", disse o inflexível bispo, "pa­rece que não conheces a enormidade do ato que praticaste; nem mesmo depois que cessou a tua raiva veio a razão fazer-te conhecer o crime cometido. Na verdade não convém que, enganado, pelo esplendor da púrpura, ignores a fra­queza do corpo que ela cobre. Imperador, tu governas cria­turas cuja natureza é igual à tua; e ainda mais, criaturas que são escravas como tu, porque Deus é o único Senhor e soberano de todos, sem exceção. Como pois hás de receber com as tuas mãos impuras o corpo supremamente santo do Senhor? E como hás tu, de, depois de derramares tanto sangue injustamente, aproximar da tua boca o cálice que fala do seu sangue? Afasta-te então deste lugar, e não ten­tes aumentar tuas transgressões passadas com novas cul­pas."
Teodócio aceitou esta censura e retirou-se. Passaram-se oito meses, e durante este tempo fechou-se no seu palá­cio, onde se dedicou à oração e à humilhação. Entretanto aproximava-se o Natal, e nesse dia apresentou-se nova­mente no pórtico da igreja. "Lamento profundamente", disse ele, "que o templo de Deus, e por conseqüência o Céu, esteja fechado para mim, ao passo que está aberto aos escravos e mendigos". Mas o bispo queria provas da since­ridade do seu arrependimento. "Que mudança de espírito tens apresentado?", perguntou-lhe, "depois de tão grande transgressão? E com que remédios tens curado as tuas feri­das?"
Então o imperador respondeu: "E vosso dever indicar os remédios, e o meu receber e fazer uso das vossas prescri­ções". "Nesse caso faz uma lei," replicou Ambrósio, "pela qual todos aqueles que têm a seu cargo fazer cumprir as or­dens imperiais, adiem por espaço de trinta dias o castigo dos que tenham sido condenados à morte, para que, este intervalo, dê tempo a que a cólera do imperador se abran­de, dando ocasião ao exercício da misericórdia, devido a qualquer mudança que tenha havido no seu espírito". Teodócio anuiu a isto, e deu ordens para que se publicasse imediatamente uma lei neste sentido. Ambrósio então dei­xou-o entrar na igreja. Despojando-se em seguida do seu manto imperial, Teodócio, com o rosto ao chão orou em voz alta as palavras do Salmo 119 versículo 25: "A minha alma está pegada ao pó: viuifica-me segundo a tua Pala­vra. " Esta cena foi enternecedora, e o povo, unindo-se à oração do imperador, misturou as suas lágrimas com as de­le.
Refletindo nesta notável ocorrência concordamos ple­namente com a seguinte opinião de um escritor moderno: "Livre das superstições e formalidades próprias dessa épo­ca, temos diante de nós um caso da mais genuína e salutar disciplina... O procedimento de Teodócio não foi o resulta­do de fraqueza ou de pusilanimidade, mas sim, de um sen­timento real do seu crime; duma consciência terna; dum conhecimento dos direitos de Deus, ao qual todas as gran­dezas do mundo estão sujeitas".

DISCIPLINA SEVERA DE TEODÓCIO
De um homem que procedia deste modo pode-se, com razão, esperar que fosse um disciplinador severo quando descobria erros ou crimes nos outros. De fato assim era, e vê-se um exemplo da sua severidade no zelo com que per­seguia os arianos, cujo número aumentava duma maneira assustadora. Este zelo foi mais ateado devido a uma censu­ra indireta de um bispo, já de idade, que o ofendeu por qualquer pequena falta de consideração para com um dos seus filhos: "Se estás zangado", disse o bispo, "porque fal­taram com o respeito ao teu filho, também o Pai celestial se há de zangar com aqueles que recusam ao seu Filho as honras que lhe dispensam a Ele (Deus)". O imperador fi­cou impressionado com esta observação, e resolveu que, daí por diante, havia de empregar o poder que Deus lhe dera na supressão dos arianos, e em desterrar todos os que seguissem as suas más doutrinas. Tendo tomado esta reso­lução, executou-a imediatamente. Foi publicado um man­dado imperial determinando que os arianos fossem dester­rados. Muitos deles refugiaram-se entre os godos e os vân­dalos e em outras hordas bárbaros da Prússia do Norte, on­de, em alguns casos, foram recebidos com muita benevo­lência; de modo que, em conseqüência deste ato errado, fo­ram as más doutrinas espalhadas mais largamente do que nunca.

A HERESIA DE PELÁGIO
Mas ainda havia outras heresias, além da de Ário, que os fiéis tinham de combater, e entre elas apareceu uma que se podia, talvez, classificar como igual à de Ário, de tal modo era ela perniciosa, os fin do século IV, houve um fra­de, chamado Pelágio, que negou a corrupção total da raça humana pela transgressão do primeiro homem, e ensinava que nós nascíamos em inocência. "O crime de Adão", dizia ele, "prejudicou a ele somente, e não ao gênero humano." Segundo a lógica desta doutrina, chegava-se à conclusão de que não havia necessidade da graça divina, e levava a consciência do homem e a Lei ao mesmo nível do Evange­lho; na verdade, segundo a teoria de Pelágio, um homem podia ser salvo tanto pela Lei como pelo Evangelho, e a queda do homem e a sua necessidade de um novo nasci­mento eram tidas como imaginações piedosas. Segundo a sua opinião, as virtudes dos filósofos e patriarcas eram o fruto da sua própria excelência intrínseca, e provaram quão grande era a bondade da natureza humana.

O BISPO AGOSTINHO
Mas Deus que vê o fim desde o princípio, já tinha preparado um homem para combater esse povo inimigo. Este homem foi Agostinho, bispo de Hipo; ele foi uma das luzes mais resplandecentes que jamais brilharam na igreja. Des­cendia de uma família nobre, e nasceu em Tegaste, uma pequena aldeia da Numídia, no ano 364. 0 pai era pagão, mas a mãe, que se chamava Mônica, era uma senhora muito piedosa, de cujos conselhos fiéis e carinhosos Agosti­nho sempre se recordava com ternura. Ambrósio conhecia-a bem e disse-lhe: '.'Tenha coragem; um filho de tanta ora­ção e lágrimas nunca se poderá perder". Agostinho recebeu uma boa educação e bem depressa ficou sendo o primeiro aluno na escola de retórica; mas mesmo na sua mocidade era notável pelo seu péssimo comportamento. Costumava enganar os seus professores e os seus pais com mentiras sem conta, e estava tão escravizado pela gula que chegava a praticar furtos na mesa e na adega de seus pais. A sua consciência estava adormecida.
O pai de Agostinho morreu enquanto o filho era ainda muito novo, mas morreu só depois de as orações de Mônica a favor de seu marido obterem resposta e ele ter achado paz para a sua alma no Salvador de sua esposa. Animada por este fato, a piedosa senhora continuou a orar por seu fi­lho, confiada em que a sua fé seria recompensada, apesar de a resposta à sua oração parecer que tardava. Desde os dezenove até aos vinte e oito anos foi Agostinho professor de retórica; e indo para Cartago durante este período foi imediatamente reconhecido como o melhor retórico da ci­dade. Mas apesar disso o seu mau comportamento conti­nuou, e ele confessou que o desejo de obter os louvores do povo era a paixão que dominava a sua vida. Mas isso não era ainda tudo. A sua sede de popularidade juntava-se uma grande concupiscência que o seduzia e que o conser­vou preso à maldade por muitos anos. Pouco mais ou me­nos por esse tempo chegou-lhe às mãos uma cópia do "Hortenses", de Cícero, que lhe fez uma certa impressão e obrigou-o a refletir, mas a filosofia humana não era ade­quada à profunda necessidade da sua alma, e o livro não lhe forneceu um bem permanente. Depois disto teve a des­graça de ler ainda outros livros de filosofia que o afastavam cada vez mais da verdade, e só no ano 384, quando visitou
Milão, é que foi capaz de se desembaraçar das malhas en­ganadoras da rede das mentiras. Foi ali que, sob o conselho de Ambrósio, ele começou a estudar as Escrituras Sagra­das com o mais feliz resultado. Ficou imensamente im­pressionado, e viu, pela primeira vez, a sua deformidade moral no espelho da verdade divina. Ficou admirado com a sua maldade e, desde então, procurou a Deus com toda a sinceridade. Ouvindo falar em certa ocasião, da conversão de alguns fidalgos romanos, exclamou: "Esta gente toma o reino do Céu à força, enquanto nós, com a nossa sabedoria, estamos vivendo no pecado". Por fim, depois de uma disci­plina de alguns meses e de uma espera penosa mas provei­tosa, foi convertido por meio de Ambrósio. Sua mãe, tendo visto satisfeito o seu último desejo na terra morreu no ano seguinte, exclamando na linguagem do velho Simão: "Agora, Senhor, despedes em paz a tua serva, pois já os meus olhos viram a tua salvação".
Depois da sua conversão, Agostinho esteve retirado pelo espaço de três anos, e durante esse tempo estudou as Escrituras Sagradas com muito aproveitamento.
Quando tornou a aparecer em público foi ordenado presbítero, e foi um pregador célebre em Fippo Rígio, onde alguns anos mais tarde foi elevado a bispo. Por todo o resto da sua vida continuou sempre a ser um fiel ministro da verdade, e distinguiu-se principalmente pela habilidade e energia com que combatia as doutrinas de um herege, Mani, e as de Pelágio. Afirmam muitos que o zelo de Agosti­nho contra Pelágio conduziu-o a crer no fatalismo, e talvez esta acusação seja justa.
Porém o seu tema favorito foi sempre a livre graça de Deus, porque, como Paulo, sabia de que tinha sido liberta­do, e podia gloriar-se nas palavras do apóstolo: "Pela graça somos salvos por meio da fé; e isto não vem de nós: é dom de Deus" (Ef 2.8).
Este bispo fiel morreu em Hipo, no ano 430, justamente quando os vândalos sitiavam a cidade.

TEMPOS TENEBROSOS DE ROMA
No entanto Arcádio e Honório sucederam no trono a seu pai Teodócio, e então principiou o tempo mais te­nebroso de Roma. O império, na verdade, declinava havia muito tempo; e estava-se aproximando a sua dissolução mesmo quando Teodócio estava no governo. Durante o seu reinado tinham-se tornado a unir, pela última vez, os im­périos Oriental e Ocidental, mas logo que a morte de Teo­dócio se tornou conhecida, as hordas bárbaras começaram a entrar por todos os lados. Os godos foram os primeiros a fazer uma incursão e, tendo conseguido passar o Danúbio, uma nação após outra seguiu o seu exemplo até que esse poderoso dilúvio de vidas humanas espalhou-se pela Euro­pa, e até se lançou nas costas da África.
No ano 400, Alarico, rei dos visigodos, invadiu a Itália, mas logo que este foi repelido, entrou pelas portas do Báltico uma nova horda de bárbaros sob o comando do seu che­fe Radagaíso. Correram toda a Alemanha, mas aconteceu que foram cercados pelo exército romano entre os Apeninos, onde muitos foram feitos prisioneiros e milhares mor­reram de frio. Mas Roma, mergulhada em luxúria e pre­guiça, não teve força nem energia para se aproveitar desta vantagem. Três vezes durante o reinado de Honório, que estabeleceu a sua residência em Ravena, ficou a antiga ci­dade de Roma à mercê dos bárbaros. A primeira vez (408) foi quando Alarico, rei dos godos, conduziu as suas tropas em triunfo até as portas da cidade, e então os cidadãos conseguiram que ele se retirasse, entregando-lhe todas as suas riquezas; a segunda vez (em 451), foi quando Átila, rei dos hunos, tendo devastado o país à proporção que avançava, só concordou em deixar a cidade depois dos grandes esforços que os romanos fizeram para persuadi-lo a isso; a terceira vez (em 455) foi quando Gersérico, rei dos vândalos, trouxe o seu exército até as muralhas e então in­vadiram a cidade como enxames de gafanhotos, deixando a ruína e a desolação por onde passaram. Tal foi o modo horrível como acabou a Roma antiga, e assim terminou Deus a corrupção daquela cidade, atribuindo-lhe o sangue do seu povo martirizado.
No ano 476, o Império Romano foi finalmente destruí­do, e Odoacer, rei dos herulis, assumiu o título de rei da Itália. Reinou quatorze anos, no fim dos quais entregou o reino a Teodorico, homem prudente e de sabedoria, em cujo reinado o país começou mais uma vez a gozar os be­nefícios da paz, depois de tantas lutas.

DESENVOLVIMENTO DO ESTADO ESPIRITUAL OBSERVADO EM "PERGAMO"
Durante muitos anos antes da queda de Roma, um bom número de pessoas abraçou o cristianismo, mas, como em muitos casos, era a forma falsa de cristianismo que os aria­nos tinham espalhado depois de serem expulsos por Teodócio, e não é para admitir que os cristãos ortodoxos fos­sem muito persegui-los quando os bárbaros ficaram senho­res do império. Ainda assim, devem notar-s três invasões da Itáia, desde o ano 403 até o ano 455, quando os soldados de Alarico, Átila, e Gersérico, iam de um lado para outro saqueando o país. Mas as igrejas ricas dos cristãos foram poupadas por eles, que mostraram sempre deferência pelos bispos. Na verdade, a retirada de Átila, que já se achava junto das muralhas de Roma, foi devida em grande parte à prontidão de Leão I, bispo de Roma, que o procurou no acampamento e de tal maneira o convenceu pelas suas ob­servações, que o impetuoso rei se retirou em marcha preci­pitada com o seu exército, abandonando, assim, a cidade.

DECADÊNCIA DOS CRISTÃOS
Mas não obstante o Senhor ter assim livrado o seu povo de muitos perigos, foram os próprios cristãos que prepara­ram para si bastante trabalho pelas suas loucuras. O pro­cedimento do clero (com algumas brilhantes exceções) tor­nara-se notavelmente irregular, e tinha decaído a tal ponto em Roma, que dois candidatos ao bispado, Lourenço e Si-maco, nos esforços que empregaram para obter o lugar, não temeram fazer as mais graves acusações um ao outro. O atrevimento do clero revela-se de um modo notável, no fato de que Martinho bispo de Tours, (que era um cristão fiel e dedicado), consentiu em ser servido à mesa pela mu­lher do imperador Máximo, vestida como uma criada! Também se conta deste bispo outra história da mesma espécie. Estando um dia a jantar com o imperador, este pas­sou-lhe a sua taça, pedindo que bebesse primeiro. Martinho assim fez com grande ostentação, mas antes de restituir a taça ao imperador, passou-a ao seu capelão, fazendo observações de que os príncipes e potentados estavam abaixo da dignidade de padres e bispos.
A ambição pela distinção na igreja estava também con­sumindo a energia de muitos cristãos menos talentosos, e por isso foram criados numerosos lugares novos: e assim começou-se a ouvir falar de subdiáconos, leitores, ajudan­tes, acólitos, exorcistas, e porteiros. Mas além de tudo isso também se tornara comum a adoração das imagens e a in­vocação dos santos; e a perseguição que sofreu Nestor por se recusar a empregar o termo "Mãe de Deus" referindo-se à virgem Maria, mostra muito claramente para onde a igreja estava resvalando.

O COMEÇO DO MONASTICISMO
Foi desta confusão e manifestação de decadência por toda a parte que nasceu o monasticismo. Foi Antônio, na­tural de Roma, que teve a duvidosa honra de ser o primeiro monge. Tinham já existido antes dele, mas foi ele o primei­ro que adotou a vida de claustro, retirando-se completa­mente do mundo. Diz-se que foi levado a dar este passo, quando ainda era muito novo, por ter ouvido estas pala­vras do Salvador: "Vende tudo quanto tens, reparte-o pe­los pobres, e terás um tesouro no Céu". Pouco depois dis­pôs de todos os seus bens, e retirou-se para um túmulo, onde permaneceu dez anos. Tornou-se notável pela sua piedade e ascetismo, e muita gente de todas as classes re­corria a ele. Depois, foi para um castelo em ruínas, próxi­mo ao mar Vermelho, onde se conservou durante vinte anos.
Um historiador antigo diz que "o seu sustento era ape­nas pão e sal. Só bebia água; e a hora da sua refeição era ao pôr do sol. Além disso jejuava muitas vezes dois dias segui­dos e mais. Conservava-se vigilante noites inteiras, pode-se dizer, e ficava absorto em oração até o dia clarear. Mas se por acaso era surpreendido pelo sono, dormia um curto instante só em uma esteira, ou a maior parte das vezes no chão, fazendo travesseiro do mesmo chão; além disso era muito amável, humano, discreto, corajoso e agradável para com todos que encontrava, e inofensivo para aqueles com quem disputava". Não há dúvida de que Antônio foi um verdadeiro cristão, e quando rebentou a perseguição no reinado de Máximo, ele provou a sua dedicação para com o Senhor, saindo do seu desterro e partilhando dos perigos com os seus irmãos; mas logo que a tempestade se apazi­guou, tornou a desaparecer, e procurou um novo abrigo em uma caverna num monte alto. A última vez que apareceu foi no ano 352, quando a propagação do arianismo o fez no­vamente abandonar o seu retiro. Tinha então cem anos de idade, e a notícia da sua reaparição atraiu milhares de pes­soas a Alexandria. A sua influência era imensa, de maneira que o arianismo recebeu um grande golpe e, da sua visita à cidade resultaram muitas conversões. Morreu no ano 356, na avançada idade de cento e cinco anos.
O monasticismo espalhou-se, devido à fama de Antô­nio, e antes de chegar o fim do século, em todas as terras incultas do mundo cristão, havia mosteiros. Pachômio reu­niu uma pequena colônia de monges na ilha Tabene que se distinguiam dos outros pelas suas túnicas de linho, e fatos pretos. Amom reuniu outra colônia maior no deserto mon­tanhoso de Nítria; e Macário outra nos vastos desertos de Secetis. Hilário estabeleceu várias colônias na Síria; Sabás estabeleceu o célebre mosteiro de Mar Sabe, na Palestina; e Basílio, de Capadócia, introduziu a profissão ascética na Ásia Menor. Jerônimo, enquanto era secretário do bispo de Roma, estabeleceu vários mosteiros no império ocidental; e S. Martinho abade bispo de Tours, levou os seus traba­lhos mais avante, fundando instituições da mesma nature­za na Gália.
Até o fim do VII século, estas instituições, espalhadas por toda parte, estavam debaixo das ordens dos bispos; e os monges, apesar da grande fama de que gozavam e de se estarem tornando muito ricos, eram apenas considerados como leigos pela igreja. Leão I proibiu-os expressamente de exercerem qualquer cargo sacerdotal, ou mesmo de se­rem ensinadores do povo; ainda que, de outro lado, os mosteiros eram considerados como escola para os que se dedi­cavam àquela carreira. Esta aparente contradição pode-se explicar pelo fato de que os monges, que tinham sido orde­nados, deixavam imediatamente o convento para se mete­rem nas atribuições do clero secular. Contudo, no fim do V século, apelaram para o papa e pediram licença para se co­locarem debaixo da sua proteção, o que ele satisfez pronta­mente, considerando o fato da grande riqueza que eles pos­suíam e da sua grande influência. Assim pois ficaram os mosteiros, abadias, e conventos de freiras sujeitos a Sé de Roma.
Mas nem mesmo as rigorosas penitências e os hábitos ascéticos foram suficientes em todos os casos; e quase cus­ta a acreditar as coisas absurdas que algumas das vítimas enganadas por Satanás eram levadas a praticar. Por exem­plo: Simão, monge da Síria, passando de um degrau do fa­natismo para outro, erigiu um pilar da altura de quase três metros, e viveu sobre ele durante quatro anos. Sobre outro de quase seis metros viveu três anos; sobre um terceiro de dez metros, esteve dez anos; e finalmente passou os últi­mos vinte anos de sua vida sobre um quarto pilar de apro­ximadamente dezoito metros de altura que o povo lhe edi-ficara.
E mesmo esta estupidez foi imitada, porque depois da morte de Simão estabeleceu-se uma seita que fez iguais construções para si, e gloriavam-se com o nome de "Ho­mens do pilar".














8
Período semelhante a Tiatira
(500-600)

Com o VI século começa o período da história da igreja correspondente ao estado espiritual notado na carta dirigi­da à igreja em Tiatira (Veja-se Ap 2.18) ou por outra, do papismo dos séculos das trevas, que nos leva ao da reforma da igreja no tempo de Lutero, ainda que seja claro que o romanismo há de continuar até a vinda de Cristo. Nessa épo­ca as trevas aumentaram sempre, mas também entre os verdadeiros crentes aumentou a devoção; foi uma época muito solene da história do cristianismo. Ao lançarmos a vista para o começo deste novo período, convém que retro­cedamos um pouco.

DOIS SÉCULOS ATRÁS
Foi no ano 313 que o primeiro edito a favor do cristianis­mo foi publicado. Constantino tinha feito uma aliança se­creta com Licínio, para derrubar o usurpador Máximo, e aproveitou essa ocasião para induzir Licínio a revogar os editos de perseguição de Diocleciano, e a delinear junta­mente com ele, um novo edito a favor do cristianismo. Licínio deu o seu consentimento, e quando os dois impera­dores se encontraram em Milão fizeram o notável edito de Milão. Era uma proclamação de tolerância universal, e continha, entre outros, os seguintes períodos:
"Pelo presente edito, é concedido aos cristãos uma completa e absoluta liberdade para exercerem a sua reli­gião. E não só esta liberdade lhes é absolutamente conce­dida, mas a todos os outros que desejem o mesmo privilé­gio de seguir a sua própria confissão religiosa. Igualmente determinamos quanto aos lugares de culto em que os cris­tãos se costumavam dantes reunir. Se foram comprados, quer pelo nosso tesouro, quer por outra qualquer pessoa, sejam restituídos aos ditos cristãos sem encargos ou exi­gência de indenização, e pelo preço por eles pago, e sem impedimentos ou subterfúgio". A igreja recebeu com ex­traordinária alegria esta forma que tomaram tão rapida­mente os seus negócios, e na cegueira de uma gratidão ex­cessiva, abrigou-se comodamente sob as asas da águia ro­mana. Apesar disso, nunca poderia haver uma completa fusão dos dois partidos. Um ou outro tinha de ter a prima­zia, e no entanto a igreja contentava-se em ficar no lugar mais obscuro.
Contudo, depois da morte de Constantino, começou o esforço pela supremacia; o primeiro passo dos bispos de Roma foi apresentarem ousadamente os seus direitos ao governo universal na igreja, como sucessores de Pedro. Pa­rece que muitos cristãos acreditavam realmente nesse tempo que Pedro fora o fundador da Sé romana; e quando Leão I asseverou que o apóstolo foi chamado Petra, isto é, a rocha, para significar que foi ele quem constituiu o alicerce da Igreja, e advertiu os irmãos a que reconhecessem que ele foi o primeiro de todos os bispos, e que Cristo, que não nega os seus dons a ninguém, também não os dá a ninguém senão por meio dele . Essa advertência encontrou milha­res que prontamente receberam a explicação, e escutaram-na com submissão.
Estas pretensões certamente teriam espantado os anti­gos bispos de Roma, porque a idéia de supremacia e sucessão apostólica nunca lhes entrou na cabeça. Na verdade, um fato digno de se notar é que, embora os seus nomes se­jam conhecidos na história, a ordem pela qual eles sucede­ram-se uns aos outros não é conhecida, e as suas histórias se alguma vez foram escritas - perderam-se na neblina dos tempos. É certo que tinham alguma preeminência, mas isso era só devido à importância política da cidade de Roma e a mesma preeminência se dava aos bispos de Antioquia e de Alexandria. Na verdade estas cidades eram respectivamente as capitais das divisões: européia, asiáti­ca e africana do império, e foi por esta razão que os bispos tinham a superioridade sobre os outros. Perto de século e meio mais tarde, Gregório, o Grande, reconheceu a igual­dade de classe nos três bispos.

O IMPERADOR JUSTINIANO
O VI século foi muito favorável ao desenvolvimento do poder papal, porque, à exceção de Justiniano, os impera­dores nem tinham habilidade nem energia, ainda que qui­sessem, para se oporem às pretensões dos papas. Quanto a Justiniano, apesar de gostar de se intrometer nos negócios eclesiásticos, a sua atenção estava concentrada no Ociden­te, e teve bastante em que ocupar o seu espírito nas inter­mináveis e tempestuosas controvérsias dos seus bispos. Era ortodoxo ao último ponto, e diligenciou por vários meios suprimir a heresia; e muitas vezes abandonou os ne­gócios do estado para prosseguir neste propósito. Por sua ordem, foram fechadas as escolas de filosofia que em Ate­nas tinham prosperado durante séculos, e os pagãos não ti­nham licença de ter cargos públicos; mas a vantagem des­ta proibição é mais que duvidosa, visto que levou muita gente a maior hipocrisia, e muitos foram os que adotaram a religião cristã para se engrandecerem mundanamente. Além disso, este ato do imperador combinado com o fato de Gregório, o Grande, procurar dissuadir o povo dos estu­dos profanos, levou o ensino àquele estado de decadência que teve tão lamentáveis resultados nos séculos das trevas.

GREGÓRIO, O GRANDE
Gregório foi o único papa digno de menção neste século; e o seu caráter pode-se apresentar como modelo da maior parte dos prelados piedosos do seu tempo. Apresen­ta uma mistura de brandura e arrogância; de piedade sim­ples e extraordinária superstição; de altruísmo e ambição; de doçura e intolerância clerical; de pureza pessoal e corru­ção eclesiástica. Considerado como homem, há nele muito para inspirar respeito e estima; considerado como papa, é o eclesiástico altivo, intolerante e iludido, como o são todos os que ocupam a cadeira papal.
Contudo é agradável acrescentar que não foi Gregório que procurou para si a distinção de ser elevado à Sé de Ro­ma. Impôs-lhe essa posição o ardente desejo do povo, que o estimava e respeitava pela sua fervorosa piedade e atenção para com os pobres. A sua história prévia mostra clara­mente que ele sempre evitava o reconhecimento e os aplausos mundanos.
Quando morreu seu pai, que era senador de Roma e neto do papa Félix, viu-se de posse de boa fortuna. Mas não era homem para se entregar a confortos e gozos egoís­tas. Recebeu as suas riquezas como se fosse um mordomo de Deus, e logo se edificaram seis mosteiros na Sicília, como testemunho da sua fiel mordomia. Também cedeu o seu palácio em Roma para fins semelhantes, e desde então ele próprio levou uma vida de monge. Desde a ordem mais baixa, cujos deveres servis, ele não considerava abaixo da sua dignidade, e foi-se gradualmente elevando à posição de abade no seu próprio mosteiro, onde passava o seu tempo em oração, no estudo das Escrituras e nos trabalhos mais altruísticos.

GREGÓRIO E OS INGLESES
Deve ter sido pouco mais ou menos por esse tempo que teve lugar um acontecimento interessante e notável. Referimo-nos à visita de Gregório a um mercado de escravos onde lhe prendeu a atenção a presença de dois rapazes in­gleses de fisionomia atraente, que ali estavam para serem vendidos. Sendo-lhe dito de onde as crianças vinham e que os habitantes daquela ilha eram todos pagãos, ele excla­mou: "Como é possível que o anjo das trevas possua crianças tão bonitas? pois uma tal beleza de fisionomia careça daquela beleza ainda maior da alma!" Quando lhe disse­ram que os rapazes eram anglos, acrescentou: "Chamai-os, antes, de anjos, pois têm rostos angélicos e é uma grande pena que eles não partilhem a glória que há de ser revelada perante os anjos de Deus". Então perguntou a que provín­cia pertenciam? E tendo-lhe sido dito que eram de Deira, acrescentou: "Sem dúvida devem ser salvos da ira de Deus e chamados para a misericórdia de Cristo". O zelo missio­nário que Gregório sentia foi despertado por este insignifi­cante incidente, e obteve licença do Papa para partir para a Inglaterra; mas antes de três dias de jornada foi manda­do voltar. A estima do povo por ele fora mais forte do que a sua abnegação e por isso pediram que ele voltasse.

GREGÓRIO ELEVADO A PAPA
Depois disto Gregório não teve mais licença para voltar para o seu mosteiro, e quando o papa Pelágio morreu, no ano 590, foi ainda, muito contra sua vontade, para a cadei­ra que vagara. Apesar dos muitos cuidados que o seu novo cargo exigia, Gregório não esqueceu as necessidades da In­glaterra; e um dos seus primeiros atos de pontífice foi orga­nizar uma campanha de monges missionários sob as or­dens de Agostinho, e mandá-los para ali. Desembarcaram na Inglaterra meses depois, mas quando chegaram viram que o Evangelho já era conhecido no país, e que já havia muita gente convertida. A rainha de Ethelbert (filha de Clotário I, rei da França) era uma delas; e devido à sua in­fluência poderosa foram os monges muito bem recebidos, e deu-se princípio a uma grande obra evangelizadora.

O EVANGELHO NA INGLATERRA
Quando e em que circunstâncias o Evangelho foi intro­duzido no país, não se sabe ao certo; mas é provável que mesmo ainda no tempo dos apóstolos a luz ali tinha entra­do; e há razões para crer que a "Cláudia", de quem fala Paulo na sua segunda Epístola a Timóteo, fosse filha de um rei britânico. Seja como for, é fora de dúvida que o
Evangelho foi pregado nas Ilhas Britânicas muito antes da chegada de Agostinho e dos monges.
Segundo alguns escritores cristãos do segundo século, sabemos ter havido professores de cristianismo em todos os países conhecidos dos romanos, e, além disso, somos infor­mados de que vários bispos da Inglaterra estiveram pre­sentes no concilio geral do século IV, a retirada porém das tropas romanas, pouco mais ou menos por esse tempo, quase neutralizou a sua primeira influência e importância. Mais tarde, o país foi invadido pelos saxônios e anglos, que eram pagãos cruéis e sem compaixão na guerra, e o seu ódio ao cristianismo pôs-se em evidência pelo zelo com que procuraram exterminá-lo. Alguns cristãos, contudo, pro­curaram salvar as suas vidas, e refugiaram-se entre as montanhas e as regiões de Gales e Cornwall, onde seus des­cendentes ficaram até a chegada de Agostinho e seus mon­ges.

O EVANGELHO NA IRLANDA E NA ESCÓCIA
A Irlanda e a Escócia também foram beneficiadas pelo Evangelho muito antes da pregação da missão de Gregório; a primeira pelos esforços de um escocês chamado Patrício, que tinha sido capturado pelos piratas e vendido como escravo na Irlanda; a última pelo trabalho do irlan­dês Columba perto de século e meio depois. Assim pois o apóstolo da Irlanda era um escocês, e o apóstolo da Escócia um irlandês. Ambos estes missionários parece terem sido homens excepcionalmente piedosos e esclarecidos, o que é digno de se notar, atendendo à época em que eles viveram. Nestas breves páginas apenas nos podemos referir a eles muito de leve.

PATRÍCIO
Patrício foi convertido durante os seis anos do seu cati­veiro, ao recordar-se de um certo trecho das Escrituras Sa­gradas que aprendera aos joelhos de sua mãe, na sua casa nas margens do rio Clyde. Alude ao caso do seguinte modo: "Eu tinha dezesseis anos e não conhecia o verdadeiro Deus, o qual considerou a minha miserável condição, teve piedade da minha juventude e ignorância e consolou-me como um pai consola seu filho". O verdadeiro nome de Patrício era Succat, mas quando partiu na sua viagem de missionário para a Irlanda, mudou-o para Patrício, para mostrar sua origem nobre; e, além disto, antes de partir foi também ordenado bispo da Irlanda, por seu tio, o célebre Martinho de Tours. O seu trabalho pelo Evangelho foi ad­mirável, e em breve a Irlanda tornou-se o país mais escla­recido do cristianismo no Ocidente; e só reconheceu a su­premacia de Roma pelos meados do século doze, assim como a Escócia.

COLUMBA
Columba, que partiu da Irlanda com doze monges no ano 565, chegou as Hébridas e desembarcou em Mull, um rochedo árido, ao sul das cavernas de Bassalto de Staffa. Estabeleceram residência na ilha de lona, e foi dali que, al­guns anos mais arde, o Evangelho foi introduzido na pró­pria Escócia. Dali, por alguns séculos, o humilde mosteiro de Ione era o mais notável entre todos os mosteiros do Oci­dente pela sabedoria e piedade dos seus monges. Ao sul dos montes Grampianos, parece que Palácio e Níman traba­lharam com bom resultado; o primeiro foi mandado pelo papa Celestino, no ano 431, aos cristãos da Escócia, para, dizem alguns, desfazer os erros de Pelágio. A respeito de Níman, pouco ou nada se sabe presentemente.

AGOSTINHO FEITO ARCEBISPO
A julgar pelo número de convertidos, a missão que Gregório enviou foi um verdadeiro sucesso, porque, segundo se diz, nada menos de dez mil pagãos foram batizados no dia de Natal do ano 597. Em conseqüência deste bom resulta­do, seguiram mais missionários, e com eles uma porção de ninharias e ornamentos romanos, incluindo o palio sob o Qual Agostinho devia ser investido como arcebispo de Cantuária. A altivez do monge missionário foi posta em evi­dência ao ser elevado a esta nova dignidade, e quando teve lugar uma conferência de eclesiásticos bretões e romanos, perto do rio Saverna, algumas semanas mais tarde, ele ou­sadamente pretendeu que os primeiros reconhecessem a supremacia do bispo de Roma, e se conformassem com o ritual da igreja latina. Mas os eclesiásticos bretões, que ti­nham recebido o cristianismo do Oriente e não de Roma, recusaram-se terminantemente a satisfazer este pedido. Agostinho discutiu o ponto, mas em vão. O povo, posto que pacífico, estava firme, e o seu tranqüilo modo de proceder irritava o monge. Por fim exclamou, encolerizado: "Se não quereis receber irmãos que vos trazem a paz, recebereis inimigos que vos trarão a guerra. Se não quereis reunir-vos a nós para mostrar aos saxônios o caminho da vida, recebe­reis deles golpes de morte". Esta profecia foi cumprida pouco depois da sua morte quando 1250 monges de Bangor foram assassinados a sangue frio pelo exército de Edelfredo. Alguns dizem que Agostinho foi conivente neste ato sanguinário, e estava-se preparando para ele nos últimos tempos da sua vida; mas este negócio ficou oculto no mis­tério, e esperamos que não fosse assim.

COLUMBANO E GALL
Esta rápida referência aos trabalhos dos missionários não ficaria completa se não fizéssemos menção de dois ou­tros evangelistas célebres, Columbano e Gall. Embarca­ram juntos na Irlanda, pouco mais ou menos no ano 590, com uma colônia de monges, dirigindo-se à Gália. Recusa­ram o convite de Gontrau, rei de Bergonha, para se estabe­lecerem nos seus domínios e obtiveram licença para acam­par nas montanhas áridas dos Vosges, onde, durante mui­tos meses, se contentaram com a alimentação mais agres­te, tal como as bagas e cascas das árvores e mel silvestre que os campos produziam e viveram em casas de madeira e choupanas com paredes de taipa. Mas a sua obra foi re­conhecida por Deus, e por meio deles foi o Evangelho espa­lhado pela Lorena Suiça e pelo Norte da Itália; muitas al­mas se converteram, e erigiram mosteiros por toda parte. Gall é agora considerado como o apóstolo da Suiça.

AS TREVAS AUMENTAM
Apesar do zelo dos missionários nessa época, as trevas aumentaram por todos os lados, e o poder corruptor de Roma aumentou também de uma maneira assustadora. A simplicidade do culto cristão estava sempre sofrendo contínuas inovações, e várias doutrinas de caráter duvido­so tinham invadido a igreja. Foi no tempo de Gregório que a abominável idéia do Purgatório foi primeiramente discu­tida. Ele próprio falou de "purificação por meio de fogo, como sendo um fato decidido", mal pensando que esta fic­ção paga havia de ser mais tarde o pretexto da venda de in­dulgências. Ainda assim as suas idéias sobre o assunto eram apenas vagas, quase tão vagas como, na verdade eram as especulações de Agostinho, que foi o primeiro a lembrar a doutrina de um estado médio. Mesmo presente­mente há muita incerteza entre os escritores romanos sobre este assunto; e as visões do Purgatório com que, como dizem, têm sido de tempos a tempos favorecidos os monges e padres, são extraordinariamente contraditórias. Contudo, só na Idade Média, nesse tempo tão supersticio­so, é que estas histórias absurdas espalharam-se entre os crédulos.
A maior parte da religião apelava mais para os sentidos carnais do que para a compreensão espiritual do homem. Aqueles que quisessem satisfazer o seu amor pelos prazeres mundanos sob a capa da religião, podiam achar muita oca­sião nos dias de festas pagas; enquanto que os espíritos su­persticiosos podiam encontrar incitamento para a sua fatal credulidade nos milagres extraordinários, que diziam eles os ossos dos santos podiam fazer, ou nos reluzentes crucifi­xos e velas consagradas que adornavam os altares. A sim­plicidade do culto cristão tinha desaparecido debaixo da Pompa do ritual; e aqueles que iam adorar o Senhor vi­nham de lá, confessando que apenas tinham ficado des­lumbrados pelos padres. Na verdade, alguns se queixavam de que a celebração dos ofícios divinos nas igrejas era maior pecado do que o próprio cerimonial dos judeus.
Foi este, na verdade, um tempo bem triste para a pobre igreja, porque "Jezabel" estava apresentando as suas se­duções, e parecia que ninguém podia ou queria resistir-lhe.







9
Nestorianos, paulícios e maometanos
(600-700)


A IGNORÂNCIA DO CLERO
As trevas que se amontoavam sobre o cristianismo, iam-se tornando cada vez mais espessas à proporção que os anos iam passando, e no princípio do VII século a ignorân­cia do clero e a superstição do povo eram extraordinárias. 0 decreto de Gregório, o Grande, pelo qual se impedia a continuação dos estudos profanos, produziu este resultado deplorável, cuja importância se pode avaliar pelo fato de que muitos dos padres não sabiam escrever os seus pró­prios nomes. A língua grega estava quase esquecida. Até a Bíblia pouco se lia; e os bispos que não tinham aptidão para compor os seus próprios discursos aproveitavam-se vergonhosamente das homílias dos antigos anciões da igre­ja para encobrirem a sua falta de sabedoria. Contudo ha­via nisto alguma coisa, pois as suas vidas, a maior parte das vezes, eram tão dissolutas que um sermão feito por eles devia ser um palavreado, ou então uma contradição de lei moral e uma negação do Evangelho. Quase toda a literatu­ra que circulava entre o povo consistia nas mais extraordi­nárias lendas dos mártires e das vidas fictícias dos santos. Isto era lido com avidez, e em toda a parte se encontrava gente bastante supersticiosa e ignorante para acreditar. O orgulho e a avareza do clero, que até então eram próprios só daquela ordem de gente, também se introduziu nos mosteiros, instituições estas que realmente deviam a sua existência aos esforços de homens piedosos e que deviam, por isso, escapar a estes males; e nada se exagera dizendo-se que muitas dessas casas estavam literalmente cheias de vícios. Havia também freqüentemente questões entre os monges e os padres por causa da usurpação que estes últi­mos faziam de grande e férteis pedaços de terreno perten­centes aos mosteiros. Estes campos eram incontestável-, mente dos monges. Essas terras haviam sido estéreis, e eles com o seu trabalho as transformaram em plantações fér­teis; e não se sabe como foi que os padres puderam susten­tar as suas reclamações. Contudo, as contendas nunca fo­ram decididas, porque os padres eram muito ambiciosos e os monges não pareciam dispostos a sofrer de boa vontade que os despojassem dos seus bens.
Não deve contudo admirar-nos esta deplorável deca­dência que se observa de todos os lados, atendendo aos exemplos que davam os papas, cuja arrogância e impiedade pareciam aumentar dia a dia. A sua ambição era insa­ciável e não conhecia limites, e para conseguirem os seus fins, empregavam todos os meios, mesmos os mais vis.

O PRIMEIRO BISPO UNIVERSAL
Durante a primeira metade do VII século o usurpador Focas, que assassinara o imperador Maurício e se colocara no trono, teve um grande aumento de poder. Alguns anos antes, houvera entre os bispos rivais de Roma e Constantinopla, uma luta desesperada pela supremacia, e Focas para agradar aos italianos, que é claro, defendiam o seu próprio bispo, decidiu-se a favor do primeiro. Assim, pois, obteve, este, o título de "Bispo Universal", por ordem do imperador; e o alicerce, sobre o qual todas as suas posteriores pretensões se acumularam, ficou firmemente estabele­cido. Isto aconteceu quase no fim do século anterior, du­rante o pontificado de Gregório I; e a grande mancha que enegrece o seu caráter é, sem dúvida, ele ter sancionado o ato sanguinário de Focas, é ter-se regozijado publicamente com a notícia do seu êxito.

AS PRETENSÕES DOS PAPAS
Com a supremacia eclesiástica assim estabelecida, co­meçaram os papas subseqüentes a voltarem a sua atenção para o alargamento temporal da Sé papal e a intriga políti­ca começou a ser um elemento familiar dos concílios do Vaticano. Até ali o papa de Roma, embora fosse chamado Bispo Universal e, portanto, o ditador supremo da igreja, estava ainda sujeito ao poder civil, e a vontade arbitrária dos imperadores criava necessariamente muitos obstácu­los aos seus atos. Estavam sujeitos, assim como os mais humildes dos cidadãos, a serem levados perante as cortes civis de Roma, acontecimento que realmente teve lugar no ano 653, quando o papa Martinho não só foi levado perante um tribunal de justiça, mas também encarcerado pela sua culpa, e depois condenado a exílio perpétuo.
Não faltavam argumentos àqueles que patrocinavam os direitos temporais de Roma, contudo ainda não era che­gado o momento oportuno de proclamar a jurisdição tem­poral da Sé de Roma, e ela bem sabia que a primeira coisa a fazer era estender e consolidar o seu império espiritual. Mas isto só podia fazer pelos esforços dos seus filhos mis­sionários; por isso dava todas as facilidades possíveis aos monges e outros para prosseguirem nos seus árduos traba­lhos missionários. Pouco importava à Sé de Roma se o Evangelho estava sendo pregado ou pervertido, ou se as al­mas estavam nascendo de novo para a eternidade ou sendo levadas para o Inferno de olhos vedados, contanto que fos­se reconhecida a sua supremacia, e obedecessem cegamen­te aos seus desejos.
Mais tarde, quando também estivesse estabelecido o seu poder temporal e o Evangelho fosse talvez um elemen­to incômodo para o seu sistema, podia o papa então dar os passos precisos para proibir a sua leitura, mas não agora. Os missionários, uma vez que advogassem os interesses da Sé, podiam pregar o que lhes aprouvesse; o que Roma que­ria somente era prosélitos para estender o seu poder espiri­tual. Por isso não deve causar admiração que a semente do Evangelho fosse profusamente espalhada em alguns sítios mesmo durante este período de trevas, e que a própria Sé de Roma sancionasse os trabalhos dos seus filhos missioná­rios.

KILIANO
Um destes foi o escocês Kiliano. Estabeleceu-se nos anos 685 em Wurburgo onde levou por diante o seu traba­lho com muito êxito. A sua pregação foi abençoada em muitas partes entre os francos, e o Duque da Turíngia foi um dos primeiros que se submeteu a ser batizado por ele. Mas o aguardava uma morte de mártir. Foi sacrificado com todos os seus monges pela traição de Geiana, cunhada do duque, que tinha vivido em concubinagem com ele. 0 duque tinha empreendido dissolver aqueles laços crimino­sos, mas durante a sua ausência essa mulher ciumenta or­denou que todo o bando de missionários fosse preso, e ten­do-os encerrado numa cocheira, mandou decapitá-los na sua presença.

WILLIBRORD E WINIFRED
Willibrord, que era natural de Nortumbria também foi pregar aos pagãos sob a proteção de Roma. Partiu da In­glaterra no ano 690, com mais doze, e fez de Friesland o campo dos seus trabalhos missionários. No ano 696 Willibrord enviou a Roma uma exposição dos seus êxitos, e foi consagrado bispo de Utrecht como recompensa dos seus serviços.
Winifred, o apóstolo da Alemanha, canonizado sob o nome de S. Bonifácio, pertence mais ao século VIII e sua história representa um importante papel.
Apesar de Kiliano, Willibrord e Winifred serem os prin­cipais pregadores mandados por Roma durante o século VII, a lista de missionários daquele período está longe de ficar completa com os nomes desses homens. É um fato no­tável que o Evangelho foi pregado na sua maior pureza por homens fora dos grêmios da igreja de Roma; homens que foram estigmatizados e amaldiçoados como hereges por di­versos papas. Tais foram os nestorianos e os paulícios, para os quais nos voltamos agora com um sentimento de prazer e alívio, apesar do pouco que deles sabemos vir principal­mente dos seus inimigos.

TRABALHOS DOS NESTORIANOS
No ano 626, os nestorianos, discípulos de Nestor, pa­triarca de Constantinopla, chegaram até a China, pregan­do o Evangelho com grande êxito. No século dezessete al­guns jesuítas descobriram, próximo de Singapura, um mo­numento de mármore muito interessante, medindo sessen­ta pés de comprido por cinco de largura. Vêem-se nele al­guns caracteres em língua siríaca e outros em língua chine­sa, e estão colocados em vinte e oito colunas paralelas, cada uma de sessenta e duas palavras. Juntamente com os nomes de alguns missionários nestorianos; encontra-se no monumento uma exposição da introdução do cristianismo no país, e uma confissão de fé a que poucos cristãos se ha­viam de opor. Os nestorianos trabalharam na China até quase o fim do século VIII, mas por esse tempo o governo tornou-se invejoso da sua influência no país, e parece que, ou foram exterminados ou expulsos do território. Outros dos seus missionários chegaram até a Pérsia, e Síria e a costa de Malabar, mas supõe-se que não penetraram mui­to pelo interior da índia.

OS PAULÍCIOS
A origem dos cristãos chamados paulícios é notável, e leva-nos a mencionar pela primeira vez o maometismo, re­ligião cujo fundador começou a apresentar as suas extraor­dinárias doutrinas no século VII. Tendo um certo diácono sido aprisionado pelos maometanos, conseguiu fugir, e foi recebido com muita hospitalidade por um tal Constantino de Samosata. Ao despedir-se do seu bondoso hospedeiro, o diácono presenteou-o com um manuscrito, contendo os quatro Evangelhos e as treze epístolas de Paulo; o estudo destes escritos, feito com oração, bem depressa afastou do espírito de Constantino qualquer idéia falsa que pudesse ter tido, e deu-lhe um sincero desejo de novamente ver a igreja naquele estado de simplicidade que a distinguia no tempo dos apóstolos.
Animado deste desejo foi por vários sítios pregando o Evangelho e censurando as práticas corruptas e as supers­tições de Roma. Bem depressa reuniu um conjunto de adeptos, cujos chefes foram denominados por ele pelos no­mes dos discípulos mencionados nas epístolas de Paulo, como por exemplo Timóteo, Ti to, Tíquico etc. Tomou para si o nome de Silvano, e quando escreveu aos cristãos de Ci-bossa, na Armênia, chamou-os macedônios - uma bela e inofensiva alegria de certo, mas que despertou a inveja do partido católico, e serviu de desculpa a um edito de perse­guição contra eles. Constantino e alguns dos seus adeptos foram feitos prisioneiros, e o oficial encarregado de dar cumprimento a este decreto ordenou a estes últimos que matassem o seu pastor a pedradas. Eles deitaram ao chão as pedras que lhes tinham sido dadas para esse fim, mas só um deles foi bastante vil para obedecer a esta ordem. Foi este um mancebo chamado Justo, filho adotivo de Cons­tantino; Justo lançou a pedra com uma precisão tão fatal que o mártir caiu ali logo morto. O oficial, chamado Simão, foi depois convertido, e tornou-se o sucessor de Silva no, sob o nome de Tito, e isto faz-nos lembrar de Saulo de Tarso, que se achava presente quando mataram Estêvão a pedradas, e que depois pregou a verdade pela qual morrera aquele bendito mártir. Depois disto, as doutrinas que ti­nham revivido por meio de Constantino espalharam-se ra­pidamente, e no princípio do século seguinte, os paulícios contavam-se aos milhares. Imagina-se que alguns deles re­fugiaram-se nos vales afastados do país de Vaud, onde, abrigados pelos Alpes da opressão e falso culto e supersti­ção de Roma, formaram uma alegre e feliz comunidade, e o núcleo de uma igreja de onde anos depois saíram os valdenses,cujos martírios têm fama.
Que contraste entre este conjunto de simples adorado­res, e aquele grande sistema de idolatria e corrução que ti­nha o seu centro na Roma papal! Mas saíra contra a igreja culpada uma ordem de julgamento, estava preparando um grande flagelo, com que Deus havia de brevemente afligir os milhares do cristianismo, e que havia de pôr em evidên­cia, perante as nações, a sua justa cólera.

MAOMÉ, O FALSO PROFETA
No ano 612, apareceu Maomé, o falso profeta da Ará­bia. Nascera em Meca, cidade da Arábia, no ano 569 da era cristã, e pertencia à poderosa tribo dos horraieitas. De­vido à morte de seu pai, que teve lugar quando Maomé era ainda muito criança, a responsabilidade da sua educação recaiu sobre seu tio Abu Teleb, negociante de Meca, com quem ele foi em várias expedições a Damasco e outros pon­tos. Quando a caravana descansava, Maomé escutava ex­tasiado os contos extraordinários dos seus companheiros que se deleitavam em contar aquelas lendas maravilhosas que o povo tinha conservado no decorrer dos anos de jorna­das solitárias por meio dos vales silenciosos e desertos, e assim ficou o seu espírito, desde a mais tenra idade, cheio de fantasias legendárias que ele mais tarde apresentou na composição do Alcorão. Tinha um espírito contemplativo, e, à proporção que os anos iam passando, ele olhava com um certo desprezo para as diferentes seitas inimigas que o rodeavam e para a prevalecência da idolatria e do politeísmo. Apoderou-se dele então um desejo de fazer uma nova seita, que se distinguisse pela ausência de idolatria, que re­conhecesse apenas um Deus supremo.
Cheio desta idéia, retirou-se Maomé para uma caverna perto de Meca, acompanhado de um judeu persa muito versado na história e leis da sua crença, e de dois cristãos professos; e ali começou a compor aquela mistura de ver­dade e lenda chamada o Alcorão, ou livro. Saindo do seu retiro alguns meses mais tarde, anunciou a sua nova obra ao mundo, e fez correr, entre os amigos, a notícia de que ti­nha recebido o Alcorão pouco a pouco do anjo Gabriel.
Aos quarenta anos de idade apresentou-se publicamente como apóstolo de Deus, e começou a ensinar as novas doutrinas: mas conseguia poucos adeptos, e foi muito per­seguido durante algum tempo pelos parentes e irmãos. Contudo, ao fim de três anos, o seu partido tinha aumen­tando consideravelmente; e este novo aspecto que toma­ram as coisas animou-o a mudar a sua tática pacífica, e a empregar a espada, mas ainda não tinha chegado a ocasião oportuna para efetuar aquela mudança, e viu-se obrigado a fugir de Meca para salvar a vida.
A Era Maometana data deste acontecimento a que se deu o nome de Hégira, ou Fuga. Diz-se que, sendo cercado em sua casa, lançou um punhado de pó entre os seus perse­guidores, cegando-os, conseguindo, assim, escapar no meio da confusão. Os fiéis ainda indicam esta passagem do Al­corão - "Lançamos a cegueira sobre eles, para que não vis­sem", a fim de sustentarem esta fábula; mas é seguro acre­ditar na opinião do escritor moderno, Irving, que na sua "vida de Maomé" diz: "A versão mais provável é que ele trepou pelo muro atrás da casa com a ajuda de um criado, de cujas costas se serviu para isso". No entanto, desde esse tempo aquela religião espalhou-se rapidamente, e quando Maomé voltou a Meca uns dez anos mais tarde, encontrou 157.000 adeptos, e entrou na cidade com pompa e magnifi­cência real. Tendo-se tornado Senhor da Arábia, retirou-se para Medina, onde morreu em 632 d.C, com sessenta e três anos de idade. A doutrina fundamental do maometismo se resume no bem conhecido dogma do seu autor, "Não há outro Deus senão Alá, e Maomé é o seu profeta". "Segui­mos", diz o Alcorão, "a religião de Abraão, o ortodoxo, que não era idolatra. Cremos em Deus, e naquilo que nos tem sido mandado a nós, e a Abraão, Ismael, Isaque e Jacó, e as tribos". O culto dos santos, e o uso de estampas e imagens foram declarados idolatras, e são expressamente proibidos no Alcorão; enquanto que se insiste nos jejuns, orações, pe­regrinações; nas oblações freqüentes, e nas esmolas.
Mas o maior pecado do grande impostor foi negar a di­vindade de Cristo. Por este pecado tem destruído as espe­ranças eternas de milhões de almas, e por ele há de ser jul­gado no dia do juízo final. Tudo o mais que ele disse de Cristo é de pouca importância para o cristão.
Um dos seus últimos atos foi pôr a sua bandeira nas mãos de um jovem general, chamado Ornar, filho de Zeid, que fora um dos mais ardentes partidários do profeta, encarregando-o de batalhar com ardor, até acabar com todos os que negassem a unidade de Deus. Para se ficar sabendo como esta ordem foi cumprida, basta lembrar que pelos fins do século VII os seus discípulos tinham tomado posse militarmente da Pérsia, Síria; da maior parte da Ásia Cen­tral e do Ocidente do Egito, e ainda da costa do Norte da África e Espanha. Mais alguma coisa da sua história com relação à do cristianismo, encontra-se em capítulos mais adiante, mas antes de falarmos nisso precisamos lançar os olhos para outro lado e descrever a carreira progressiva de um outro mal muito grande.






























10
Idolatria romana e o poder papal
(700-800)

Enquanto os sarracenos ou árabes conquistavam a Ásia e o Norte da África, e arvoravam o estandarte de Maomé nos pontos onde a cruz tinha até ali sido vista, os verdadei­ros servos de Cristo, embora ligados a Roma, não estavam ociosos no Ocidente. Winifredo, um inglês de nobre estir­pe, que pertencia à ordem de monges beneditinos, homem cristão, ainda que supersticioso, trabalhou com ardor em Hesse e Turíngia, e mais tarde o papa consagrou-o bispo sob o nome de Bonifácio. Os bárbaros de Turíngia adora­vam os deuses germânicos: Thor, Wodim, Friga, Seator, Tuisco e outros, além dos que eram próprios das suas províncias. Mostravam a maior fé na sua religião e os seus sacerdotes eram muito respeitados. Estes ministros da ido­latria pretendiam fazer toda a espécie de milagres, e, pela habilidade das suas imposturas, inspiravam medo ao po­vo. Vê-se um exemplo disso na construção do deus Pusterrich, uma imagem oca de bronze, de três pés de altura que às escondidas enchiam de água, depois de lhe terem tapado a boca; acendiam, em seguida, o lume por baixo dela e, a água fervendo, fazia saltar a tampa da boca da imagem, e caía em jorros sobre os adoradores transidos de medo.

WINIFREDO NA TURÍNGIA E HESSE
Winifredo foi, com uma coragem indomável, pelo meio do povo, mostrando as imposturas dos seus sacerdotes e a falsidade da sua religião; e não teve escrúpulo de deitar o machado às raízes do carvalho sagrado onde se dizia que habitava a suprema deidade, apesar de os sacerdotes pro­testarem com veemência, e de a multidão iludida esperar que ele caísse ali mesmo, morto pela sua impiedade. Quando a árvore gigantesca caiu por terra, e Winifredo continuou tranqüilamente a serrá-la para fazer pranchas para edificações, muitos se convenceram do erro, e em muito curto espaço de tempo toda a Turíngia e Hesse pro­fessaram a fé cristã.
Apesar disso, a luz do Evangelho estava ali infelizmen­te encoberta pelos erros e superstições do papismo; e é pro­vável que o zelo de Bonifácio fosse mais o resultado da sua devoção por Roma do que a sua devoção por Cristo. As igrejas construídas por sua ordem e sob a sua direção eram mais notáveis pelas suas imagens do que pelos seus evan­gelistas e ensinadores; e o sinal da cruz era mais familiar à vista do que a pregação da Cruz ao ouvido. Distribuiam-se mais livremente as relíquias dos santos do que as cópias das Sagradas Escrituras; e não será demais afirmar que em muitos casos os assim chamados convertidos do paganismo apenas tinham mudado a forma da sua idolatria. Sem dú­vida houve casos de verdadeira conversão, mas é certo que muitos dos cristãos professos eram apenas cristãos feitos à força, e Alcuino, o historiador saxônio, conta-nos que "ten­do o rei Carlos Martel, avô de Carlos Magno, insistido com os antigos saxônios e com todos os habitantes de Friesland, constrangeu uns com recompensas e outros com ameaças, e eles se 'converteram' à fé cristã".

A IDOLATRIA NA CRISTANDADE
Mas a idolatria de que temos estado a falar não existia só em Hesse e na Turíngia. Aumentara de uma maneira assustadora por toda a cristandade, que se entregava aos maiores excessos de superstição. Colocavam velas acesas defronte das imagens em muitas igrejas; o povo beijava-as e adorava-as de joelhos, e os padres queimavam-lhe incen­so, dando força ao erro popular de que elas faziam mila­gres. Na verdade, esta mania imperava de tal modo no espírito de todos, que até vestiam as imagens femininas e faziam delas madrinhas de seus filhos. (Isto ainda hoje se dá.) Durante o pontificado de Gregório I, Sereno, o bispo de Marselha, teve a coragem de proibir estes abomináveis usos, e destruiu bastantes imagens, mas Gregório reprovou a sua fidelidade. "Constou-nos", escreveu ele, "que ani­mado por um zelo irrefletido, quebrastes em pedaços as imagens dos santos, dando por desculpa que não deviam ser adoradas. Na verdade teríamos inteiramente aprovado o vosso procedimento, se tivésseis proibido que elas fossem adoradas, mas censuramo-vos por as terdes quebrado. Por­que uma coisa é adorar um quadro e outra aprender por ele a apreciar o próprio objeto de adoração". Assim, por esse meio insidioso se permitiu que o mal progredisse.

CRUZADA DE LEÃO III CONTRA A IDOLATRIA
No ano 726, Leão III, imperador do Oriente, assustado com o progresso dos maometanos, cujo fim conhecido era exterminar a idolatria e afirmar a unidade de Deus, come­çou, por interesse próprio, uma cruzada animada contra a adoração das imagens, e o zelo que mostrou nessa nova empresa logo lhe criou o nome de Iconoclasta, que significa quebrador de imagens.
A maneira como o seu primeiro edito foi recebido mos­trou de que modo o povo se opunha formalmente a esta obra de reformação; e o resultado foi logo uma guerra civil. Quando apareceu um segundo edito de maior alcance, um oficial a quem Leão determinara que destruísse uma ima­gem notável do Salvador, foi, na ocasião em que ia cumprir essa ordem, rodeado por uma multidão de mulheres que lhe pediram que poupasse a imagem; ele, contudo, subiu a escada e ia proceder à obra de destruição, mas foi logo deitado da escada a baixo e feito em pedaços. Não se intimi­dando com isto, Leão puniu imediatamente os autores do crime, e mandando ali outros oficiais para o mesmo fim, a imagem foi deitada a baixo e demolida.

SEPARAÇÃO DAS IGREJAS LATINA E GREGA
A rebelião que se seguiu foi prontamente abafada no império oriental pelas medidas rápidas e sanguinárias do imperador, que autorizou uma perseguição. Mas os italia­nos olharam para aquele ato com horror e indignação, e quando receberam ordem para pôr o edito em prática no seu país levantaram-se todos, e declararam que a sua aliança com o imperador estava acabada. Assim teve lugar a separação final entre as igrejas latina e grega. O poder papal estava há muito a espera disto, e Gregório II viu que era agora chegada a ocasião e aproveitou o quanto pôde a excitação popular. A sua resposta ao edito, é cheia de ameaças e blasfêmias, e abunda em ditos, os mais absur­dos, e mostra uma ignorância das Escrituras Sagradas que faria vergonha a uma criança cristã. Por uma confusão ex­traordinária de nomes, confundiu o ímpio Uzias com o pie­doso Ezequias, dizendo que "o ímpio Uzias sacrilegamente tinha removido a serpente de metal que Moisés fizera, e a despedaçara!" A sua carta não deixa, contudo, de ser inte­ressante como prova do espírito sedicioso e ar de desafio com que o bispo respondeu ao seu amo imperial, assim como do sentimento do poder político que enchia o peito do altivo eclesiástico. No final de sua carta chega a atre­ver-se a fazer a falsa afirmação de que a conduta do impe­rador em abolir a adoração das imagens estava "em con­tradição imediata com o testemunho unânime dos anciãos e doutores da igreja, e repugna principalmente a autorida­de dos seis concílios gerais. Esta afirmação provocou a se­guinte observação de um historiador católico-romano: "Em nenhum dos concílios gerais se diz uma palavra a res­peito de imagens ou de adoração a elas, enquanto ao teste­munho unânime dos anciãos é igualmente falso o que na­quela carta se diz".
Há outro dito de um papa igualmente absurdo, pois ele afirma que logo que os discípulos viram a Cristo, "apressa­ram-se a fazer retratos dele, expondo-os por toda a parte, para que, à vista deles, os homens se pudessem converter do culto de Satanás ao serviço de Cristo".
Gregório morreu pouco depois, mas sucedeu-lhe um ou­tro Gregório, homem de igual zelo e maldade, que convo­cou um concilio de bispos, no qual foram confirmadas as pretensões arrogantes do seu antecessor.
Excitado pela insolência do papa Gregório III, o Impe­rador Leão armou uma esquadra e mandou-a para a costa da Itália, mas uma tempestade reduziu-a a tal estado que teve de voltar para o porto. Tanto o papa como o impera­dor morreram pouco depois, no ano 741, e podia-se esperar que tudo sossegasse. Mas não foi assim. As idéias icono­clastas de Leão, passaram, assim como a sua coroa, para seu filho Constantino V, e a cruzada contra o culto das imagens continuou com o mesmo vigor durante o seu rei­nado de trinta e quatro anos. O imperador que lhe sucedeu no ano 775 também seguiu os mesmos princípios e política, mas o seu reinado foi de pouca duração. Este imperador, Leão IV, foi assassinado por sua mulher, a imperatriz Ire­ne, que tomou as rédeas do governo no ano 780, em nome do seu filho Constantino VI, que era então uma criança de dez anos. Foi este o sinal para uma mudança na política, e a imperatriz, ligando-se com o papa, tomou logo as suas medidas para a restauração do culto às imagens, sendo este passo muito bem recebido tanto pelos padres como pelo povo.


O CONCILIO DE NICÉIA
Em 787 foi convocado um concilio em Nicéia (o sétimo e último concilio geral segundo a igreja grega), e foi resolvi­do que "como a venerável e vivificante cruz, fossem levan­tadas as veneráveis e santas imagens... Quer dizer, as ima­gens do nosso Deus e Salvador Jesus Cristo, da imaculada mãe de Deus, dos anjos principais, e de todos os santos e homens bons. Que essas imagens seriam tratadas como memórias santas, adoradas, beijadas, mas sem especial adoração que é reservada ao Eterno. Qualquer que violar esta provada tradição imemorial da igreja, e procurar re­mover qualquer imagem à força, ou por astúcia, será de­posto e excomungado se for eclesiástico; se for monge ou leigo será excomungado". Foi depois votada uma maldição sobre todos os que recusassem obedecer a este decreto blasfemo, e o clero reunido exclamou ao mesmo tempo: "Anátema sobre todos que se comunicam com aqueles que não adoram imagens! Glória sempre e eterna aos romanos ortodoxos, a João de Damasco! Glória sempre e eterna a Gregório de Roma!" Este sétimo e último concilio, diz Dean Waddington, "estabeleceu a idolatria como lei da igreja cristã, e assim se concluiu o edifício da ortodoxia oriental".

ROMA AMEAÇADA PELOS LOMBARDOS
Mas a atividade dos iconoclastas não foi a única coisa que perturbou a igreja de Roma, durante este século. Ha­via inimigos de outra espécie e mais perto dos muros de Roma que lhe causaram muitas contrariedades e muita ansiedade. Estes inimigos eram os lombardos, que tinham aproveitado os últimos distúrbios para tomar posse do ter­ritório do exarca de Revena, e ameaçavam agora a própria Roma.
Nesta dificuldade, o papa apelou para Pepino, rei dos francos, que devia bastantes favores à Sé papal. Exercera ele anteriormente o cargo de mordomo-mor do palácio de Childerico III, rei de França, o último monarca da linha merivingiana, e, na verdade, governou o reino em lugar de­le. Achando porém que as responsabilidades do governo, sem a compensação do título de rei, eram desagradáveis e aborrecidas, mas receando usurpar o trono sem a sanção de uma autoridade superior, apelou para o papa. O papa era então Zacarias, e o pesado e delicado encargo das nego­ciações entre as duas partes coube a Bonifácio, que estava nessa ocasião na corte dos francos, e que se achava ansioso por servir o poderoso Pepino, e também não menos ansioso por servir o papa, cujos interesses temporais ele bem com­preendeu aumentariam grandemente se sancionasse aque­le ato criminoso.
Zacarias, que tinha sido previamente avisado por Boni­fácio do que se esperava dele, foi então visitado por embai­xadores da corte de Pepino, que lhe perguntaram se a lei divina não permitia a um povo valente e guerreiro destro­nar um monarca pusilâmine, indolente e incapaz de de­sempenhar qualquer das funções da realeza, e o substituir por outro mais digno de governar, e que já tinha prestado importantes serviços ao estado.
A esta ingênua pergunta, Zacarias, que não desejava comprometer-se muito, deu a seguinte resposta, que, ape­sar de ambígua, era suficiente: "Quem legalmente tem o poder real também pode legalmente assumir o,título real."
Era isso apenas o que Pepino esperava, e agora o cami­nho que tinha a seguir estava claro. Childerico foi encerra­do em um mosteiro, e o usurpador foi ungido rei por Boni­fácio. Foi coroado com grande pompa em Soissons, no ano 752.

ORIGEM DOS DOMÍNIOS TEMPORAIS DO PAPADO
Este procedimento, da parte do papa, era um golpe de verdadeira diplomacia, porque agora que Roma estava sendo ameaçada pelos bárbaros, sob as ordens de Astolfo, rei dos lombardos, o seu sucessor Estêvão II tinha na pes­soa do monarca dos francos um poderoso aliado com quem podia contar. Pepino respondeu prontamente ao seu pri­meiro pedido de auxílio e atravessou os Alpes com o seu exército, derrotando os lombardos, e entregando ao papa o território do exarca. Este território pertencia por direito ao trono de Constantinopla, mas Pepino declarou que não ti­nha ido batalhar a causa de nenhum homem, mas sim ape­nas a favor de S. Pedro para obter perdão dos seus peca­dos.
A doação assim feita formou o núcleo dos domínios temporais do papado, e foi a origem do seu poder tempo­ral.
Contudo, tornou-se logo evidente que a doação de Pepi­no precisava ser confirmada, porque apenas chegou à França, os bárbaros se precipitaram de novo sobre o terri­tório e arrancaram-no aos seus novos possuidores. Ensoberbecidos pelo bom êxito, e encontrando pouca ou nenhu­ma resistência, aproximaram-se outra vez da cidade de Roma, exultantes e cheios de confiança.

O PAPA PEDE SOCORRO DE NOVO
Então o papa dirigiu urgentemente suas cartas a Pepi­no, de que este não fez caso, e as coisas começaram a se tornarem sérias. Que havia a fazer? Pondo as suas espe­ranças num último esforço, o papa escreveu uma terceira carta, redigindo-a como se fosse redigida pelo próprio apóstolo Pedro.
Em resposta a esta terceira carta, Pepino partiu com o seu exército e bem depressa conseguiu expulsar dali os bár­baros. Morreu pouco depois, no ano 768, sucedendo-lhe o seu filho Carlos Magno.

CARLOS E ROMA
Os lombardos deram começo pela terceira vez a uma invasão ao território papal; e o papa, vendo o seu trono em perigo mais uma vez, apelou de novo para a corte dos fran­cos. Carlos Magno correspondeu a este apelo da melhor vontade e na véspera do domingo de Páscoa entrou com o seu exército em Roma, onde lhe foi feita uma brilhante re­cepção. As ruas estavam apinhadas de povo que o aplau­dia. Õ clero também ali se achava com cruzes e bandeiras, e as crianças das escolas foram ao seu encontro com ramos de palmeira e de oliveira. Ao aproximar-se da igreja de S. Pedro, logo que ouviu os hinos de boas-vindas, apeou do seu cavalo e fez o resto da jornada a pé. Quando foi levado à presença do papa, subiu os degraus do trono muito deva­gar, beijando cada degrau à proporção que ia subindo. De­pois beijou também o papa, findando assim a cerimônia da recepção. Durante a sua estada na cidade, confirmou a doação de Pepino, aumentando-a com os ducados de Spoleto e Benevento, Veneza, Istria e um outro território ao norte da Itália, juntamente com a ilha de Córsega. Carlos Magno ficou em Roma durante as festividades da Páscoa indo em seguida reunir-se ao seu exército. E quase escusado acrescentar que o bom êxito acompanhou sempre as suas armas, vencendo por onde quer que andasse, e que não tardou muito a dispersar completamente as forças dos bárbaros, e livrar o trono papal do receio das suas incur­sões. No fim da campanha proclamou-se a si próprio rei da Itália, e voltou para seus domínios coberto de honras.
Falou-se da submissão de Carlos Magno à igreja de Ro­ma, mas essa submissão não era completa. Ele decidia, de vez em quando, independentemente da Sé católica nas suas opiniões, como por exemplo na oposição que fez no se­gundo concilio geral de Nicéia, que decidira a favor do cul­to às imagens. Nessa ocasião foi provavelmente bastante influenciado pelos conselhos piedosos de Alcuino, diácono de York, a quem mandara uma cópia do decreto.

CONCILIO DE FRANCFORT
Não se sabe muito bem quais os passos que a igreja na Inglaterra deu a este respeito, mas presume-se que Alcuino foi o seu intérprete no concilio de Francfort que se reuniu para discutir este importante assunto no ano 794.
Por recomendação de Carlos Magno, que tinha reunido o concilio, foi dispensado uma atenção especial ao diácono inglês, e certamente ele não abusou da honra que lhe foi conferida.
A decisão do concilio, que parece ter sido redigido por Alcuino, era absolutamente contrária ao culto às imagens, e as suas razões foram expostas enfaticamente, e eram o mais convincente possível. Nem homens nem anjos de­viam de modo algum ser adorados, e o uso das imagens foi declarado como "não somente não tendo a confirmação das Escrituras Sagradas, mas até como sendo diretamente contrário aos escritos do Velho e do Novo Testamento". Esta declaração com a sua referência à Palavra de Deus, podia bem ter sido feita por Alcuino, porque era um ho­mem que estudava a Bíblia com um coração intrépido, e considerava-a como o único cânon e regra da sua vida. "A leitura das Escrituras Sagradas", dizia ele, "é o conheci­mento da bem-aventurança eterna.. Nelas pode qualquer homem ver, como se fosse num espelho, que espécie de ser moral ele é. A leitura das Escrituras Sagradas purifica a alma do leitor, traz ao seu espírito o receio dos tormentos do Inferno e eleva o seu coração às alegrias celestiais. O ho­mem que deseja estar sempre com Deus, deve amiudadas vezes orar, e estudar a sua santa Palavra, porque quando oramos, falamos com Deus, e quando lemos o santo livro é Deus que fala conosco. A leitura do livro santo dá uma du­pla alegria aos seus leitores; instrui de tal modo o seu espí­rito que os torna mais penetrantes, e ao mesmo tempo des­via-os das vaidades mundanas e guia-os para o amor de Deus; assim como o corpo se sustenta do alimento ingeri­do, assim a alma se sustenta da comunhão divina, como diz o Salmista: 'Oh! quão doce são as tuas palavras ao meu paladar, mais doces do que o mel à minha boca!'
Um outro eclesiástico que também se distinguiu no concilio de Francfort foi Paulino, bispo de Aquiléia. Negou com ousadia, o valor de qualquer intercessão, ou medita­ção, que não fosse por meio de Cristo.
Os testemunhos de homens como estes tornam bastan­te evidente a vida espiritual que ainda havia naquele de­serto de erros e superstições em que a igreja de Roma se en­contrava então, mas infelizmente quão poucos são esses testemunhos!

DECADÊNCIA ESPIRITUAL
A maior parte do clero, sem exceção dos bispos, vivia num estado de letargia espiritual e fraqueza viciosa; na verdade, o bispo supremo, o papa de Roma, era quem pra­ticava mais iniqüidades. Desde o século IV para diante, os sucessores da cadeira de "S. Pedro" eram os próprios que punham mais em evidência o desenvolvimento da deca­dência da igreja e das suas vidas, como os seus próprios historiadores as contam, e mostram como, infelizmente, eles iam descendo para a grande apostasia. No ano 358, o papa Libério foi acusado de prevaricação e heresia por Hi­lário, bispo de Poitiers, e oito anos mais tarde, outro papa, de nome Damaso, incorreu no crime de assassínio, pois teve de passar por cima dos cadáveres de 160 dos seus ad­versários para chegar até a cadeira papal. Em 385 o papa
Siríaco impôs o celibato ao clero, e estabeleceu este péssi­mo dogma por meio de um decreto, e daí proveio a princi­pal causa da imoralidade da Idade Média. Mais tarde ain­da, o pontificado de Zózimo tornou-se notável por causa do seu grande orgulho e presunção; e os bispos da África refe­rem-se a isso numa carta ao seu sucessor Bonifácio em que dizem: "Esperamos, visto que foi do agrado de Deus ele­var-vos ao trono da igreja de Roma, não continuar a sentir os efeitos daquele orgulho e arrogância mundanas que nunca se deviam encontrar na igreja de Cristo". A eleição do próprio Bonifácio deu lugar a desordens tais que o poder civil teve de intervir para manter a paz; e a sua conduta posterior prova bem que a carta dos piedosos bispos foi bem depressa olvidada ou completamente desprezada.
Mas indicar a qüinquagésima parte das irregularidades e monstruosidades que provinham do trono papal, seria impossível. Podíamos encher páginas a descrever o caráter de homens que foram colocados no trono sem eleição; de diáconos que foram elevados àquela dignidade, preterindo-se assim piedosos presbíteros; de um papa que se dis­tinguiu pela sua avareza e pelo seu zelo em oprimir os pobres; de um leigo que, aspirando aquele elevado cargo, foi feito diácono, prior e bispo em poucas horas, para lhe permitir satisfazer a sua ambição, sendo, contudo, expulso do seu lugar por um monge lombardo, o qual, por sua vez, foi logo suplantado por um rival mais forte.
Os bispos em muitos casos não eram em nada melhores do que os papas. Em lugar de olharem pelo rebanho de Deus, eram notáveis pela sua avareza, que muitas vezes os levava a cometer os maiores excessos de crueldade e extor­são. Os padres eram muito culpados a este respeito, e Gregório, o Grande, acusa-os de se apoderarem dos bens dos outros, e de ridicularizarem aqueles que procediam de um modo humilde e casto. Mesmo quando entre eles existia al­gum zelo religioso, era geralmente numa causa inútil; e freqüentemente se levantavam questões fúteis, até que o espírito de polêmica ficava bastante irritado. Assim a questão da tonsura clerical foi, por algum tempo, motivo de con­tenda em muitos pontos, e especialmente os missionários célticos e italianos divergiam a esse respeito. Um dos par­tidos, seguindo as igrejas do Oriente, rapava a frente da cabeça em forma de crescente; o outro, o italiano, rapava a coroa redonda. Este último modo prevaleceu, e no princí­pio do século VIII os monges de lona consentiram em rece­ber a tonsura latina, e por esta submissão tornaram-se es­cravos voluntários de Roma.
Este estado de coisas era na verdade triste, mas ainda havia de se tornar mais triste: e apenas estamos agora no princípio da época das trevas, ou Idade Média.





























11
Período mais tenebroso do Idade Médio
(800-1000)

Não podemos deixar de sentir uma certa tristeza ao pensarmos num período da história da igreja tão tenebroso como aquele que temos estado a tratar; contudo, alegra-nos podermos recordar que, apesar do desenvolvimento por toda a parte das trevas, o Evangelho nunca deixou in­teiramente de brilhar. É um princípio incontestável que pode sempre ser notado em toda a história sagrada: Deus nunca se deixa a si mesmo sem um testemunho no mundo. Vê-se isso: no caso de Noé e sua família, que foram salvos do Dilúvio (Gn 6.9); e também nos quatro solitários que re­cusaram tocar na comida de Nabucodonosor ou adorar a imagem dourada (Dn 3), e, bendito seja Deus, isso tam­bém se vê na história daquela época degenerada de trevas e vícios de que temos falado.

O IMPERADOR LUÍS, O PIEDOSO
No Ocidente, onde as trevas eram mais densas, estava-se levando por diante um verdadeiro trabalho por Cristo, devido em grande parte ao zelo cristão do sucessor de Car­los Magno, seu filho, Luís, o piedoso.
Luís era um verdadeiro cristão, porém brando demais para os seus soldados, e piedoso demais para os seus pa­dres. As reformas que ele projetava tiveram por isso a opo­sição tanto dos padres como dos militares e dos eclesiásti­cos. A sua situação por muitas razões não era feliz. Todas as tentativas feitas para purificar a corte se frustraram pe­los maus exemplos e conduta rebelde de seus filhos, dos soldados que viviam de pilhagem, e de violência. Eles não gostavam que o rei os reprimisse nos seus roubos e hábitos de devassidão. Os bispos orgulhosos das suas espadas e es­poras, ressentiram-se com ele por os ter privado destes acessórios guerreiros, e ao mesmo tempo a piedade pessoal do rei bondoso tornava-o alvo do escárnio de toda a gente. Quando seus filhos Pepino, Luís e Lutero se levantaram em rebelião aberta contra ele, o papa, Gregório IV, não deixou de animar este mau ato, indigno de filhos; e o clero, cujo verdadeiro dever teria sido aconselhá-lo e consolá-lo, juntou os seus esforços aos dos outros para o destronarem.
Fizeram-lhe as mais graves acusações, embora falsas, e tendo sido intimado a comparecer perante uma assembléia em Compeigne, foi ali sujeito aos mais dolorosos e humi­lhantes insultos. Foi-lhe colocado nas mãos um papel con­tendo a lista dos seus pretendidos crimes, e tendo-se-lhe exigido uma espécie de confissão, foi obrigado a fazer peni­tência da seguinte maneira: puseram um capacho áspero defronte do altar, no qual o fizeram ajoelhar e desposar-se do seu boldrié,da sua espada e das suas vestes reais, ves­tindo em lugar de tudo isso o hábito de um penitente. Se­guiu-se uma cerimônia religiosa para dar ao ato dos padres uma aparência de santidade, e depois disso foi o monarca aviltado conduzido à prisão na qual estava determinado que acabasse os seus dias. Mas os nobres e o povo desgosta­ram-se com este ato dos padres, e permitiram que o rei fos­se de novo colocado no trono. 0 clamor popular elevou-se de tal maneira que ele foi posto em liberdade e reintegrado nos seus direitos. No ano 840 veio-lhe a morte, e o fim ao seu benigno mas infeliz reinado, e o cansado espírito do piedoso rei encontrou descanso num país muito diferente do que aquele em que teve de governar.

INTRODUÇÃO DO EVANGELHO NA DINAMARCA E SUÉCIA
Ainda assim os esforços cristãos de Luís deram bons re­sultados. No seu próprio país, produziram frutos e em ou­tras localidades, com a introdução na Dinamarca e na Sué­cia do Evangelho, o que foi, sem dúvida, devido a ele. Numa disputa pelo trono da Dinamarca, entre o rei legíti­mo Heriold, e Godefredo, refugiou-se o primeiro na corte de Luís, cuja bondosa recepção animou-o a pedir auxílio ao seu hospedeiro real. Mas Luís só consentiu nisso com a condição de Heriold abraçar o cristianismo e permitir a pregação do Evangelho nos seus domínios.
O rei acedeu, e foi portanto batizado em Mentz, junta­mente com sua esposa e muitos da corte, no ano 826. Quando voltou para a Dinamarca levou consigo dois mon­ges missionários, Ansgarius e Auberto; este faleceu poucos meses depois da sua chegada, mas não sem ter visto alguns resultados da sua pregação. Ansgarius continuou traba­lhando ali por algum tempo, passando depois à Suécia, onde a Palavra de Deus foi muito abençoada e muitos se converteram. Foi mais tarde feito arcebispo de Hamburgo e de todo o Norte por Gregório IV, e foi gozar o descanso eterno, cheio de honras, no ano 865. A esfera dos seus tra­balhos abrangeu os territórios dos dinamarqueses, dos címbricos e dos suecos; mas é triste termos de acrescentar que o trabalho que ele começara, já bastante misturado com coisas supersticiosas, ficou quase enterrado nas asnei­ras do romanismo, durante o século seguinte.

MAIS TRIUNFOS DO EVANGELHO NA RÚSSIA, PO­LÔNIA, ETC.
O Evangelho foi levado também, com mais ou menos êxito, aos russos, poloneses e húngaros, devido em grande parte à conversão dos seus respectivos príncipes que, em alguns casos, parece ter sido real e acompanhada da fé que salva. E muito interessante notar os diferentes meios de que Deus se serviu para introduzir a mensagem do Evan­gelho nos territórios bárbaros. Umas vezes foi por meio de zelosos monges. Tais como Ansgarius e Auberto; outras pela união de um príncipe pagão com uma princesa cristã, como Valdemiro, príncipe russo, com Ana, irmã do impe­rador grego; outras ainda por meio da peste ou da fome, pois foi por este meio que o Evangelho chegou à Bulgária.

O EVANGELHO NA GRÃ-BRETANHA
Na Grã-Bretanha, por estar tão afastada de Roma, pouca oposição havia à pregação do Evangelho, apesar da luz estar muito escurecida pelos monges e pela supersti­ção. A história do glorioso reinado de Alfredo é muito inte­ressante, e a piedade deste rei, verdadeiramente cristão, foi tão notável como a sua bravura, e entre os cuidados do es­tado e os que lhe causaram as invasões dos dinamarqueses, a sua pena conservou-se ativa a favor de uma causa me­lhor. Além de compor alguns poemas de caráter moral e re­ligioso, traduziu os evangelhos na língua saxônia e pode-se, com justiça, considerar esta como a sua obra-prima.

O MONGE CLEMENTE NA ESCÓCIA
Na Escócia também o povo, pela bondade de Deus, lu­crou muito com o trabalho fiel de um monge chamado Cle­mente, que pregou o Evangelho de uma maneira notável pela sua clareza e pureza; mas a sua fidelidade trouxe-lhe a inimizade de Bonifácio, arcebispo das igrejas germâni­cas, o qual conseguiu que Clemente fosse a Roma, onde de­sapareceu repentinamente.
A Irlanda gaba-se da honra de ser berço de Duns Scotus Erigena, filósofo cristão daquela época, que é considerado pelo escritor Hallam como um dos homens mais notáveis da Idade Média; contudo, diz ainda Hallam que os excer­tos dos seus escritos contêm misturas de misticismos in­compreensíveis. Não podemos, porém, dizer se ele incluía nesta condenação o seguinte excerto, citado por D'Aubigné, e que diz: "Oh! Senhor Jesus, não te peço outra felicidade senão que faças compreender, sem a mistura de teo­rias enganosas, a Palavra que Tu tens inspirado pelo teu Santo Espírito. Mostra-te a todos aqueles que te procu­ram, a ti somente".
Se isto é misticismo, prouvera a Deus que houvesse ain­da mais, dele mesmo atualmente na igreja!

ARNULFO DE ORLEANS
Arnulfo, bispo de Orleans, parece ter sido um tanto pie­doso, mas pouco se sabe dele. Um dos seus discursos lança uma luz horrível sobre a condição de Roma no seu tempo. "Oh! deplorável Roma!" - exclama ele - "tu que no tempo dos nossos antepassados produziste luzes tão ardentes e brilhantes, só produzes agora trevas lúgubres, dignas do ó-dio da posteridade!" Do papa diz o seguinte: "Que pensais vós, reverendos, deste homem colocado num trono eleva­do, brilhante de púrpura e ouro? Por quem o tomais, se é destituído de amor, e apenas está enfatuado com o orgulho dos seus conhecimentos e como um anticristo sentado no templo de Deus?"

CLÁUDIO, BISPO DE TURIM
Mas o homem mais notável desta época foi, talvez, Cláudio, bispo de Turim, que foi elevado a essa dignidade (o"fardo de um bispo" como ele lhe chamava) por Luís, o Piedoso, pouco mais ou menos no ano 816. Tem sido consi­derado como "o protestante do século IX" e, bem merece o título. Diferia em muitos pontos da igreja de Roma, e ao manifestar seus pensamentos falava sem rodeios. Quando foi elevado ao bispado, disse que "encontrou todas as igre­jas de Turim completamente cheias de imagens vis e mal­ditas" e por isso começou a destruí-las, segundo ele mesmo diz, "aquilo que todos estavam adorando estultamente". 'Portanto", acrescentou, "aconteceu que todos começa­ram a injuriar-me, e, se não fosse o Senhor ajudar-me, ter-me-iam engolido". Falou de um modo fortíssimo contra a adoração da cruz dizendo: "Deus ordenou aos homens que a levassem, mas não que a adorassem" e lamentou que muitos, que não seriam capazes de levar a própria cruz, nem corporal nem espiritualmente, se curvavam em ado­ração a ela. "Se nós devemos adorar a cruz pelo fato de Cristo ter sido pendurado nela, por que não adoramos tam­bém a manjedoura e os cueiros, visto ter Ele estado numa manjedoura e ter sido envolto em cueiros? Por que não adoramos botes de pesca e burros, visto ter Ele dormido naqueles e montado nestes?" Mas isto era responder aos loucos conforme a sua própria loucura, e o bispo diz mais: "todas essas coisas são ridículas; mais para serem lamen­tadas do que apresentadas por escrito, mas somos forçados a escrever".
Os que se haviam afastado da verdade tinham caído no amor à vaidade, e ele avisa-os sinceramente, dizendo-lhes: "Por que crucificais novamente o Filho de Deus, expondo-o à vergonha clara, e tornando, por este meio, milhares de almas companheiras dos demônios, apartando-se do seu criador pelo horrível sacrilégio das vossas imagens e retra­tos, precipitando-as na condenação eterna?"
Passando deste assunto para as peregrinações a Roma, que muitos estavam ensinando serem equivalentes ao arre­pendimento, perguntou ele maliciosamente por que era que eles conservavam tantas pobres almas nos mosteiros para os servir, em lugar de mandá-las a Roma buscar o perdão dos seus pecados.
Ele então continuou a explicar que estas peregrinações a Roma eram inteiramente inúteis, e mostravam da parte de quem as empreendia uma falta de espiritualidade que só podia ser própria dos verdadeiramente ignorantes. Ou­tros estavam pondo a sua confiança no merecimento da intercessão dos santos, mas isso mostrava apenas que anda­vam em trevas, porque, ainda que os santos que eles invo­cavam fossem tão justos como Noé, Daniel e Jó, nunca daí poderia vir esperança nem salvação alguma. Até o próprio papa era um homem falível, e apesar de seu título de se­nhor apostólico, só era apostólico, até onde se mostrava ser o guarda das doutrinas dos apóstolos. O simples fato de es­tar sentado na "cadeira do apóstolo" nada prova. Também os escribas e os fariseus se sentaram na "cadeira de Moi­sés".
Mas não se deve deduzir disto que Cláudio fosse um simples polêmico. Era, por natureza, mais inclinado a aprender do que a ensinar ou a corrigir os outros, e os seus escritos estão cheios de um verdadeiro espírito de humil­dade e amor cristão.
Contudo, a influência de Cláudio foi sentida apenas numa área muito limitada; e no meio de tantas trevas não se pode esperar que seus adeptos fossem muitos. Ainda as­sim foram suficientes para atrair a atenção e para chamar sobre suas cabeças a maldição do papa. Este incitou os príncipes leigos contra eles, e assim vemos que foram ex­pulsos do país e obrigados a se refugiarem nas montanhas próximas, onde, fora da influência papal, progrediram como nunca.
Feliz condição a deste pequeno grupo, quando tudo em volta estava negro e desanimado! Felizes os que estavam assim com Deus entre as montanhas cujos cumes nevados estavam sempre apontando para o Céu, enquanto as planícieis se achavam envolvidas em névoas mundanas! Eram estes os cristãos de Piemonte.

TEMPOS TENEBROSOS
Mas como tudo era negro em volta! Eram trevas tão es­pessas que facilmente se podiam sentir, mas quem havia ali que as sentisse? Aquela condição era natural à maior parte deles, e preferiram-na à luz, porque seus atos eram maus. Quanto eles eram maus podemos ver pelos testemu­nhos contemporâneos, e pelas decisões dos seus concílios. No concilio de Paiva, no ano 850, foi necessário ordenar sobriedade aos bispos, e proibi-los de conservar ''cães e fal­cões para a caça, e de terem vestimentas ricas, simples­mente para fazerem vista".
Em dois concílios separados levantou-se a queixa de que "o clero inferior tinha mulheres em casa, com grande escândalo do ministério; "e dizia-se que os presbíteros se tornavam em meirinhos e freqüentavam as tabernas; eram usurarios... e não se envergonhavam de se entregarem ao vício e à embriaguez".
O cartuxo Seácrio falou deste período como sendo o pior de todos, lamentando que a caridade tivesse arrefeci­do, que abundasse a iniqüidade e que a verdade se fosse tornando rara entre os filhos dos homens.
Outro, que era bispo, afirmou: "Quase que se não en­contra um homem capaz de ser ordenado bispo, nem um bispo capaz de ordenar outros". Quanto aos papas, basta dizer-se que um deles, Estêvão VII, foi estrangulado, oca­sionando a sua morte a seguinte observação: "Ele entrou no aprisco como um ladrão, e foi justo que morresse pelo cabresto". Outro, Sérgio III, segundo o testemunho de um cardeal, era "um escravo de todos os vícios, e o pior dos ho­mens." Outro, João X, subiu ao trono pelo interesse da prostituta Teodora, sendo depois assassinado por influên­cia da filha dela; e, finalmente, um mancebo de dezoito anos, que abriu caminho à força para o trono papal e to­mou o nome de João VII, mandou tirar os olhos do padri­nho; bebia à saúde do Demônio; jurava pelos deuses pagãos, enquanto jogava os dados, e foi morto numa rixa da meia-noite, no ano 964.

NOVOS MALES
Outro fato que se salientou naquela época foi a exposi­ção em muitas igrejas de várias coisas vãs que, falsamente, diziam ter grande valor. Havia, por exemplo, uma pena da asa do anjo Gabriel, um bocado da arca de Noé, a camisa da bendita virgem, os dentes de Santa Apolônia (que dizia ser uma cura infalível para as dores de dentes e muitas ou­tras relíquias, que eram tão numerosas que pesavam mais de uma tonelada!
Também foi notável esta época por se ter cometido uma grande fraude, que, ao mesmo tempo que fazia au­mentar o poder de Roma, aumentava também o desenvol­vimento das trevas: Foi publicada uma coleção de decretos falsos intitulados "Decretos de Isidoro", com que se pre­tendia fazer crer serem decretos sobre importantes ques­tões eclesiásticas feitos pelos bispos romanos de tempos anteriores a Clemente. Nesta coleção os erros são tantos que saltam aos olhos: citaremos apenas um: as pretendidas citações dos papas foram tiradas da tradução latina da Bíblia escrita por S. Jerônimo, que viveu uns dois ou três séculos depois deles.
Por bastante tempo, prestou-se crédito a estes decre­tos, que fizeram muito mal à igreja, apesar das asneiras que continham e das provas que havia de sua falsidade. O papa, é claro, adotou-os e não teve escrúpulos de afirmar aos bispos da França (que duvidavam) que os decretos ti­nham estado muitos anos em Roma. Assim, pois, mais uma vez se nota no papismo a existência do espírito de mentira.

MAIS INVENÇÕES
Mas o clero ainda explorava a credulidade do povo por outros meios; e a este período pertence a instituição do ro­sário e da coroa da virgem Maria. Além disto, era generali­zada a crença absurda de que o arcanjo Miguel celebrava missa na corte do Céu todas as segundas-feiras; e o clero aproveitava a ignorância do povo, que enchia as igrejas de­dicadas a S. Miguel, a fim de obter a sua intercessão.
Outra invenção dessa época foi a doutrina da transubstanciação. Procedeu de um monge chamado Pascásio Radbert, mas só perto de três séculos mais tarde é que foi colo­cada entre as doutrinas adotadas por Roma. Pascásio asse­verou que o pão e o vinho da eucaristia eram convertidos no corpo e sangue de Cristo, e fundou sua nova doutrina numa interpretação muito literal das palavras do Senhor: "Tomai! comei! isto é o meu corpo". Ora, dar a essa pala­vra um tal sentido é um absurdo, e faz cair qualquer pes­soa num labirinto de absurdos. Um escritor moderno tem dito: "Cristo podia dizer: 'Este é o meu corpo que está quebrado', quando não estava de modo nenhum quebra­do, pois quando Ele segurou o pão na sua própria mão, es­tava vivo; 'Eu sou a porta' ; 'Eu sou a videira verdadei­ra' ; e outras mil coisas parecidas. Em todas as línguas se fala assim. Digo por exemplo de um retrato. Esta é a mi­nha mãe! Ninguém é enganado senão quem o quiser ser". Estamos sepultados com Cristo pelo batismo na morte", e apesar disto não estamos enterrados, nem morremos, e isso é certo. Assim a linguagem da Escritura quanto à ceia não apresenta dúvida alguma. Contudo em Roma há (e sempre houve) muitos que se deixam enganar, e é, portan­to, fácil de se compreender que o dogma da transubstanciação fosse logo recebido como uma doutrina principal e essencial.

TEMPO DE PÂNICO
Mas vamos adiante. "Seria possível", pode alguém perguntar: "que as coisas se tornassem tão negras e tristes, que os espíritos dos homens, repletos de preguiça e cegos pela superstição, se afundassem ainda mais em morbidez e miséria?" Infelizmente era isso mais que possível. Ao apro­ximar-se o ano 1000 da igreja, juntou-se o terror. Pela su­perstição do povo, apoderou-se de todos um tal pânico como de certo não se tinha visto até então. Não tinha, por­ventura, o Senhor dito que depois de mil anos Satanás sai­ria da sua prisão, e andaria por toda parte enganando as nações nos quatro cantos da terra? (Ap 20). E, em vista disto, muitos pensavam que o fim do mundo estava verda­deiramente próximo.
Houve um ermitão de Turíngia chamado Bernhard, que, mal compreendendo estas palavras da Bíblia, tomou-as para seu tema, e saiu no ano 960 a pregar a aproximação do julgamento. Havia alguma aparência da verdade nesta doutrina, e a ilusão influiu no ânimo dos supersticiosos de todas as classes. Monges e ermitões pregavam a doutrina e, muito antes do ano começar, soava este grito terrível por toda a Europa. O povo encaminhava-se para a Palestina, deixando as suas terras e as suas casas, ou legando-as, como expiação dos seus pecados, às igrejas ou aos mostei­ros. Os nobres vendiam os seus domínios, e até os príncipes e os bispos iam em peregrinação, preparando-se para o aparecimento do Cordeiro no monte Sião. Um eclipse do Sol e outros fenômenos no céu contribuíram para aumen­tar o terror geral, e milhares de pessoas fugiram das cida­des para se refugiar nas covas e cavernas da terra.
Os terríveis vaticínios, que se hão de realizar no dia do julgamento, pareciam ter-se já cumprido; havia "sinais no sol, e na lua e nas estrelas, e na terra aperto das nações em perplexidade, pelo bramido do mar e das ondas, homens desmaiando de terror, na expectação das coisas que sobre­virão ao mundo" (Lc 2.25,26). Naquele ano nem as casas dos ricos, nem as dos pobres foram reparadas, e as terras e vinhas ficaram incultas. Não se recolheram searas, porque não se tinham feito sementeiras! Não se erigiam novas igrejas ou mosteiros, porque em poucos meses esperavam não haver sequer seres humanos para freqüentá-los.
Por fim começou o último dia do terrível ano. Quando chegou a noite, poucos eram os que estavam em condições de procurar as suas camas: os vestíbulos e pórticos das igrejas estavam apinhados de gente que esperavam ansio­samente e com medo esse julgamento tremendo. Foi uma noite sem sono para toda a Europa. Mas despontou o outro dia: o sol ergueu-se no firmamento como de costume e lan­çou o seu brilho sobre um mundo que não tinha acabado mas que estava cheio de fome; não havia sinais sinistros no céu, nem temores na terra: tudo continuava como dantes. De todos os corações saiu um suspiro de alívio. A multidão iludida voltou para as suas casas e todos se entregaram às suas ocupações habituais. O ano do terror tinha passado e o século onze da Era Cristã havia começado!






12
Depois do ano do terror
(1000-1100)

A reação que se seguiu ao Ano do Terror deu em resul­tado uma mania de construir templos, que logo se apode­rou de toda a igreja. A imensa riqueza que a pregação ter­rorista dos monges extorquira do povo foi em grande parte empregada para esse fim; e é um ponto de dúvida se as igrejas daquele tempo foram jamais ultrapassadas em ta­manho e beleza de arquitetura.
Aliviados dos horrores do medonho pesadelo que mar­cou os últimos dias daquele século, notou-se um certo me­lhoramento no ensino; e os esforços do papa Silvestre II, que estudara nas escolas da Arábia - então o grande centro de instrução - foram muito proveitosos neste ponto. Ainda assim, quando ele publicou um tratado de geometria, a sua ciência favorita, as curvas e ângulos aterraram de tal modo os monges supersticiosos, que o acusaram de se meter em ciências proibidas, e fugiram dele como se foge de uma ne-cromante. Se o seu zelo tivesse sido tão real na causa de re­ligião como fora na causa de ciência, teria a cristandade podido purificar-se de muitas das suas manchas, mas não o foi, e nos últimos tempos do seu pontificado, ainda as trevas enegreciam a malfadada Igreja Romana. A impor­tância cada vez maior que andava ligada ao poder eclesiás­tico, para o que contribuiu bastante a magnificência dos nobres durante o Ano de Terror, pode-se avaliar pelo fato de que os bispos e abades tinham na Germânia direitos de barões e até de duques, não só dentro dos seus territórios, como também fora deles, e que os estados eclesiásticos não eram já descritos como situados em certos condados, mas estes condados como situados nos bispados. 0 progresso no trabalho missionário entre os pagãos parecia ter quase pa­rado, embora tivesse continuado na Rússia, Suécia, e Di­namarca, e o Evangelho fosse espalhado na Polônia, Rús­sia e Hungria. Os cristãos nestorianos merecem, contudo, algum louvor por terem levado o Evangelho à Tartária e à Mongólia, tendo bom êxito principalmente nas províncias de Turkestão, Cosgar, Genda e Tangut. Provavelmente a falta de êxito entre os missionários do Ocidente é devida à falta de verdadeira piedade, e aos muitos erros com que o caminho do Evangelho tinha sido obstruído. Ao percorrer as memórias desse século, em vão procuraremos provas do Evangelho ter sido ensinado com toda sua pureza, ou de qualquer assembléias de crentes se ter reunido em bases verdadeiras, conforme as Escrituras Sagradas.

A RAINHA MARGARIDA, E BERENGER
Até mesmo os exemplos pessoais de piedade são raros, e além da rainha Margarida da Escócia, e de Berenger, não ouvimos de muitos cristãos notáveis cuja sabedoria fosse acompanhada de qualquer prova evidente de piedade. O próprio cristianismo de Margarida tinha muito de romano, e quem lê a sua história fica perplexo a seu respeito. A mo­notonia de sua vida religiosa faz-nos sentir mais dó do que satisfação, e não podemos deixar de notar que havia muita ostentação nos seus atos de benevolência, e muito aparato na sua humildade. Em todo o caso, era uma verdadeira cristã, e não podemos deixar de ser gratos por qualquer raio de luz, por fraco que fosse, que brilhasse naquela épo­ca tenebrosa.
Berenger é digno de menção por ter feito reviver a con­trovérsia sobre a presença do corpo e sangue de Cristo na eucaristia. Era arcediago de Angers, e ensinou com zelo que o pão e o vinho eram simplesmente emblemas da mor­te do Senhor, e não eram convertidos no corpo e sangue de Cristo, como se dizia. Por isso foi intimado a comparecer em Roma, onde a força de ser ameaçado com a tortura e a morte, foi obrigado a assinar uma retratação, mas depois de muita tristeza de coração pela sua infidelidade voltou às suas primeiras opiniões, e morreu em sossego no ano de 1088.

TRABALHO DOS PAULÍCIOS
Mas na verdade devem ser concedidas palmas, quanto à devoção cristã, a uns crentes que estavam fora do grêmio de Roma. Durante esse século os paulícios dirigiram-se da Europa Ocidental para a França, onde encontraram muita perseguição da parte dos romanos; estes, para se verem li­vres deles, acusaram-nos de serem hereges e eles foram queimados vivos. Diz-se muito mal destes homens eviden­temente devotos, mas como essa maledicência parte dos seus inimigos, cuja honestidade e veracidade já mostramos ser pouca, é melhor tomá-la no sentido oposto, ou repeli-la completamente. Imaginam alguns que a semente da igreja Vaudois foi semeada pelos missionários paulícios.

NOVOS PLANOS DE ROMA
Mas Roma estava empreendida numa obra mais im­portante do que ocupar-se com a teimosia de alguns here­ges inofensivos. O papa ainda não tinha sido investido de toda a autoridade a que aspirava: uma monarquia uni­versal. E os soberanos da Europa estavam ainda livres do seu poder. A sua grande ambição de se elevar à alta digni­dade de autocrata do mundo inteiro, posto que há muito tempo tivesse sido pensada, estava para ser agora publica­mente anunciada, e o pontificado de Hildebrando era a ocasião propícia para a formação e cumprimento parcial deste projeto ousado.

O PAPA HILDEBRANDO
Nasceu em Soana, uma cidade situada nos baixos pantanosos de La Marema. Diz-se que seu pai fora carpinteiro, mas descendia de uma família nobre, e gozava a proteção, se não da amizade, dos condes de Tusculum. 0 jovem Hildebrando foi educado, contra o seu desejo, no mosteiro de Calvelo, próximo à sua cidade natal, e depois no mosteiro de S. Marcos, no monte Avenida, onde a sua aplicação e amor ao estudo chamaram a atenção de seu tio, o abade do mosteiro. Ligou-se, ainda muito novo, à ordem os monges beneditinos, mas aos dezesseis anos, desgostoso com a muita brandura de S. Marcos, passou para o famoso mos­teiro de Clugny, onde se observava uma austeridade muito maior. Aqui, de mais a mais, havia maior facilidade em adquirir conhecimentos seculares, sempre tão necessários às maquinações da igreja de Roma. Mesmo neste período da sua história parece ter já dado prova de uma grande in­teligência, que junto com astúcia e ambição, haviam de fa­zer dele o déspota espiritual do seu tempo.
Parecia, à primeira vista, que Hildebrando ganhara uma grande influência no Vaticano quando ainda não ti­nha vinte e cinco anos de idade, por que o encontramos muito ocupado numa intriga com Benedito IV, um papa destronado em Roma, e combinando com ele a mudança dos seus direitos para um tal Graciano, pela quantia de 1.500 libras em ouro. Mas parece que ele não foi a Roma até a eleição de Bruno, bispo de Toul, à Sé papal, por no­meação de Henrique III da Germânia. O bispo estava em Clugny na ocasião da sua eleição, e Hildebrando conseguiu persuadi-lo de que a nominação de pontífice feita por um potentado mundano era uma vergonha para a igreja.
O poder eclesiástico, dizia ele, não se deve sujeitar ao poder secular; e aconselhou-o a empreender uma viagem a Roma, com o hábito de peregrino, e a que recusasse a dig­nidade de papa até lhe ser conferida pela vontade do povo e pelo ato dos cardeais. Bruno percebeu a sabedoria e a sagacidade deste conselho, e propôs a Hildebrando que o acompanhasse na sua jornada, proposta que o monge ime­diatamente aceitou. Este plano excedeu toda a espectativa, e o povo recebeu o peregrino candidato ao trono papal com aclamações. Hildebrando cobriu-se de honras e fize­ram-no subdiácono de S. Paulo, cardeal, abade, e cônego da "santa" Igreja Romana, e guarda do altar de S. Pedro. Não se pode calcular a influência que lhe deu este sim­ples ato. Tornou-se logo o administrador dos negócios pa­pais e chegou a governar até o próprio papa. Realmente, sua santidade era um simples brinquedo nas suas mãos, como se provou quando Hildebrando provocou a sua depo­sição, empregando para isso o suborno e a intriga. Depois disto, Hildebrando ficou durante vinte anos trabalhando ocultamente, depondo e elegendo papas conforme deseja­va.
Enquanto os papas estavam satisfeitos com as comodi­dades e gozos que desfrutavam, Hildebrando, que não apreciava nada disso, andava ocupado com os seus proje­tos.
Incitava e originava contendas, usurpações e conquis­tas por toda parte, pondo tudo em confusão, para poder realizar os seus projetos quando tratasse de restabelecer a ordem. Não fez segredo nenhum da sua força e provou-a pelo seu procedimento para com o Papa Alexandre II, que o ofendeu por se ter oferecido para suspender o exercício das suas próprias funções eclesiásticas enquanto não fosse devidamente nomeado pelo poder temporal. Hildebrando subiu ao trono papal e, com o punho fechado, atingiu a cara do pontífice, na presença de cardeais, embaixadores e outros. Em outra ocasião, em pleno concilio de bispos, acu­sou a todos da assembléia de serem discípulos de Simão, e depôs um que se atreveu a repelir a acusação.
Durante todo este tempo seus planos foram amadure­cendo, devagar, é verdade, mas com toda a segurança; e pouco a pouco, com a precaução que era a metade do seu poder, foi subindo até chegar à cadeira papal, e no mês de março de 1073 foi unanimemente eleito papa pelo concilio de cardeais, tomando o nome de Gregório VIII.

AMBIÇÃO DE HILDEBRANDO
Mas até isso era simplesmente um meio para alcançar um fim. A carreira que Hildebrando estava prosseguindo havia vinte anos não devia acabar aqui; não era este o fim principal pelo qual ele se tinha esforçado. Os seus planos eram mais vastos, e, num sentido, menos egoístas; só a ins­tituição de uma permanente hierarquia, com autoridade ilimitada sobre todos os povos e reinos na face da terra, po­deria satisfazer a sua ambição. Sim, ele queria organizar um poderoso estado eclesiástico, que governasse os desti­nos dos homens, uma poderosa teocracia ou oligarquia es­piritual com o poder de instruir o povo nos seus dogmas in­falíveis, para obrigar as suas consciências e dar forças à sua obediência; um estado cujo governador fosse supremo sobre todos os governadores do mundo, elegendo e depondo reis à sua vontade, pondo interdição a províncias e reinos inteiros, e sem que ninguém ousasse opor-se a isso, em su­ma, um vice regente de Deus na terra, que não pudesse er­rar, de quem se não pudesse apelar!
Mas era preciso fazer algumas reformas importantes antes de chegar a realizar estes planos ambiciosos. Devia suprimir-se imediatamente a venda de benefícios eclesiás­ticos, ou o pecado de simonia.
Havia por toda parte muitos que imaginavam que o dom de Deus podia adquirir-se por dinheiro. Mas ainda havia outra coisa que o espírito de Gregório odiava mais do que a simonia, era o casamento do clero. Ele bem via que enquanto isso fosse permitido, todos os seus esforços se­riam baldados. 0 casamento era um laço que unia os pa­dres ao povo, e enquanto não se despedaçasse esse laço, não poderia haver a verdadeira unidade que desejava. O clero devia ser uma classe completamente separada, livre dos laços de parentesco, tendo um único fim, a manuten­ção e a glória da igreja. Não devia reconhecer parentesco algum senão o espiritual: fora disto todos os interesses e ambições, sentimentos e desejos eram traidores e indignos. Estas eram as idéias de Gregório, e neste sentido deu as suas ordens.
A ordem que Gregório deu a respeito do casamento do clero teve resultados terríveis. Dissolveu os mais respeitá­veis matrimônios, separou os que Deus tinha unido: mari­dos, mulheres e crianças; deu lugar às mais lamentáveis discórdias e espalhou por toda a parte as negras calamida­des; especialmente as esposas eram levadas ao desespero, e expostas a mais amarga dor e vergonha. Mas quanto mais forte era a oposição, mais alto se proclamavam as maldi­ções contra qualquer demora na plena execução das ordens do pontífice. Os desobedientes eram entregues aos magis­trados civis, para serem perseguidos, privados dos seus bens, e sujeitos a indignidades e sofrimentos de muitas es­pécies.

CONTENDA ENTRE GREGÓRIO E HENRIQUE IV
Outro decreto de Gregório foi atacar o ato de sagração de bispos pelos leigos, e isto envolveu-o em questão com Henrique IV da Germânia. Já desde muito antes do tempo de Carlos Magno, era costume os bispos e abades serem sa­grados pelos reis e imperadores, e Henrique não estava dis­posto a perder aquele privilégio tão antigo, pela simples imposição de um padre de Roma.
Esta recusa irritou o papa, e levou-o a ser conivente na ruína de Henrique.
E não foi esta a única causa das suas dissensões. Quan­do comunicaram a Henrique as ordens de Gregório a res­peito do pecado de simonia, o imperador, embora recebes­se bem a idéia do papa, e tivesse aprovado as reformas pro­postas, não deu um único passo para pô-las em prática; e isto ainda mais fez irritar o papa. Ele queria obras e não palavras: queria que o imperador fizesse executar os seus decretos e não simplesmente que lhe fizesse cumprimentos evasivos, e por isso tornou-se mais exigente nas suas or­dens. Que se convocasse um concilio na Germânia, e que se fizessem imediatamente investigações sobre as repetidas acusações de simonia que pesavam sobre os bispos de Hen­rique; mas o imperador não consentiu nisto, e os bispos, muitos dos quais eram na verdade culpados, apoiaram, é claro, esta resolução. Mas Gregório não era homem para ser contrariado nos seus propósitos, nem para desanimar com a oposição. Impossibilitado de conseguir seu fim de uma maneira, recorreu a outra, e, tendo reunido um conci­lio em Roma, ali se fizeram as acusações. Como conse­qüência, muitos dos favoritos de Henrique, alguns dos mais elevados eclesiásticos da terra, foram depostos, e, como se quisesse acrescentar o insulto à injúria, o próprio imperador recebeu ordens peremptórias para comparecer a Roma, a fim de responder a iguais acusações, sendo ao mesmo tempo ameaçado de excomunhão, se recu­sasse aparecer. Ele recusou, e indignado por tão vil insulto contra a sua pessoa, reuniu-se em concilio dos seus pró­prios bispos e depôs o papa.

EXCOMUNHÃO DE HENRIQUE
A luva fora lançada, e Gregório vingou-se logo, publi­cando a bula de excomunhão com que o tinha ameaçado. Numa assembléia de bispos cujo número era de 110, pro­nunciou a excomunhão do imperador, e declarou ao mes­mo tempo o país confiscado, e os súditos livres do juramen­to de fidelidade. A linguagem de Gregório, naquela ocasião foi bastante blasfema: "Portanto agora, irmãos", disse ele, "é preciso desembainharmos a espada da vingança: agora devemos ferir o inimigo de Deus e da igreja, agora a cabeça do imperador que se ergue na sua altivez contra as funda­ções da fé, e de todas as igrejas, deve cair por terra, confor­me a sentença pronunciada contra a sua soberba, para ali se rojar pelo chão e comer o pó. 'Não temas, ó pequeno re­banho [disse o Senhor] porque a vosso Pai agradou dar-vos o reino'. Há muito tempo que vós o tendes suportado; ele já tem sido admoestado bastantes vezes; façamos com que a sua consciência endurecida possa sentir".

EFEITOS DA INTERDIÇÃO DE HENRIQUE
'Gregório sabia o estado de desordem em que estava o império germânico, e viu que era boa a ocasião para reali­zar os seus intentos. Os receios supersticiosos do povo fo­ram despertados pela interdição do papa e as cópias dessa interdição circulavam por toda a parte. A cobiça dos fidal­gos saxônios excitou-se pelo fato de se poderem livrar da obediência ao imperador, e por isso as ameaças que a inter­dição continha tornaram-se rapidamente efetivas. Uns por medo, outros por sentimentos pessoais contra o imperador, e outros ainda pela esperança de recompensa, foram leva­dos a pegar em armas contra o seu soberano, até que por fim Henrique viu-se completamente abandonado pelos seus próprios súditos. E à proporção que ele ia perdendo terreno, ia aumentando a autoridade do papa. Era uma luta desigual, porque o papa tinha todo o poder do seu la­do, e Henrique estava quase só. Ele era um príncipe de alto critério e o maior monarca da Europa, mas a resistência em circunstâncias tão desiguais era sem esperança. Esma­gado por fim resolveu obedecer às ordens do papa, confes­sar seus pecados, e alcançar que se levantasse a excomu­nhão. Talvez o animasse a dar esse passo uma mensagem que um dos nobres rebeldes recebeu do papa: "Trate Hen­rique com brandura", mandou Gregório dizer, "e mostre-lhe aquela caridade que cobre uma multidão de pecados". Henrique mais tarde teve ocasião de experimentar a cari­dade do papa!

HENRIQUE BUSCANDO PERDÃO
Foi mesmo no meio do inverno que ele partiu. Foi acompanhado da sua mulher e filho, e de uma pequena co­mitiva, e tiveram de atravessar montanhas cobertas de ne­ve. Depois de uma jornada penosa de algumas semanas, chegaram defronte do castelo de Canosa em Apulia, onde Gregório se achava com a condessa Matilde. 0 papa fora avisado da vinda de Henrique, e logo que avistaram o peni­tente, abriram-se imediatamente as portas exteriores da fortaleza. As segundas portas também se abriram, mas quando tentou entrar no castelo viu que as portas interio­res estavam trancadas, não lhe permitindo que entrasse. Esperou; mas esperou em vão. Era janeiro e tinha caído um nevão muito forte, e ele começou a sentir-se enfraque­cido pelo cansaço e pela fome, mas quando chegou a noite ainda estava no pátio do castelo, sem obter licença para entrar. Henrique estava experimentando a caridade do pa­pa! Na manhã seguinte, quando se apresentou para entrar, repetiu-se a mesma cena; o papa era inexorável e o avilta­do imperador não pôde alcançar a misericórdia pela qual anelava. Durante três dias horríveis conservou-se assim es­perando no frio, até que todos, exceto o papa de coração de pedra, se enterneceram até as lágrimas. Afinal os pedidos do Abade Clugny e da condessa Matilde, cujos corações se comoveram profundamente pelos apelos angustiados do imperador, tiveram bom resultado, e Gregório consentiu, ainda que de má vontade, em receber o imperador.

VINGANÇA DE HENRIQUE
Mas o papa tinha ido longe demais. O príncipe que era inteligente, fora tão insultado que não podia perdoar nem esquecer as injúrias sofridas, e o fato de ter de se submeter a muita degradação e ainda mais insultos, enquanto esti­vesse em poder do papa, fez com que o desejo de se vingar fosse maior quando se viu livre. Em nada podia pensar se­não em sua vingança; e logo que terminou aquele ato de aparente reconciliação e a excomunhão foi levantada, co­meçou ele a formar planos de uma invasão a Itália. Ti­nham-se reunido a ele bastantes partidários, de modo que ele não achou dificuldade alguma em organizar um exérci­to; e quando tudo estava preparado pôs-se à frente dos sol­dados e marchou para Roma. O papa havia profetizado que Henrique morreria ou seria destronado dentro de um ano, e essa profecia mostrou que ele era igualmente um pa­dre mentiroso, por isso que ao cabo de três anos o impera­dor estava vivo e em perfeita saúde, e o que mortificava mais o papa era que Henrique estava de posse da cidade papal. Depois, Gregório, que se tinha encerrado no retiro de Santo Ângelo, colocou o papa eleito, Guilberto, arcebis­po de Havena, no trono papal sob o nome de Clemente III.

TEMPO TRISTE PARA ROMA
Mas a aproximação do guerreiro Normando Roberto Guiscard, que trazia um grande exército, obrigou o imperador a retirar-se, e Gregório conseguiu obter a sua liberda­de. Contudo, estava reservada uma triste sorte para a anti­ga cidade. Os soldados que Gregório convidara eram, a maior parte, sarracenos, e apenas Roberto recebeu a bên­ção pontificai deixou logo a cidade entregue à vontade des­te exército meio bárbaro. Durante três dias foi a cidade de Roma testemunha da pilhagem e confusão, até que os sol­dados ficaram inteiramente extenuados em conseqüência de repetidas rixas, e embrutecidos pelo efeito da bebida. Então os habitantes da cidade não puderam reprimir a sua indignação por mais tempo, e precipitaram-se sobre os sol­dados com a energia do desespero. Guiscard, vendo que a onda se estava virando contra ele, deu ordem para lançar v fogo às casas, e este ato desumano fez mais uma vez com que a balança pesasse mais para o seu lado. Os habitantes na ânsia de salvarem as suas mulheres e filhos das chamas, esqueceram-se dos inimigos, e enquanto se ocupavam nis­so foram massacrados aos centos pelos cruéis sarracenos.

MORTE DE GREGÓRIO VIII
No meio deste conflito e confusão, Gregório retirou-se da cidade, e partiu às pressas para Salerno, onde, como se nada tivesse aprendido pelas terríveis cenas que acabara de presenciar e de que era autor, continuou a proclamar novas maldições contra Henrique. Mas pouco depois sen­tiu-se agarrado por uma mão de cujo poder não pôde fugir: uma mão a que nenhum papa pode jamais resistir, a mão da morte.
O decreto solene contra ele fora lavrado, e no dia 25 de maio do ano 1085 foi chamado à presença de Deus. Nessa ocasião se estava desencadeando uma medonha tempes­tade, e ele morreu miseravelmente, com estas palavras nos lábios: "Amei a justiça, e odiei a iniqüidade, mas morro no exílio".
E é este o homem, leitor, que é elevado às nuvens pelos partidários de Roma, e cujo nome tem sido escrito no seu catálogo de "santos"! De que servem estas honras póstu­mas e inúteis, se o seu nome não está escrito no Livro da -..Vida?






































13
Primeira cruzada
(1094-1100)

URBANO II PROMOVE UMA CRUZADA
O papismo pouco ganhou com a luta de Gregório contra o imperador, e antes do fim do século o papa reinante achou conveniente recorrer a um novo expediente para promover os interesses temporais do papismo. De tempos em tempos chegavam da Terra Santa queixas de insultos e ultrajes feitos a peregrinos que se dirigiam ao santo sepulcro, e Urbano II, que então ocupava a "cadeira de São Pe­dro" lembrou-se de promover uma grande guerra religiosa. Imaginou que, se pudesse envolver a Europa toda neste projeto e privar a diferentes países dos seus melhores sol­dados, ser-lhe-ia fácil dar um impulso às suas pretensões temporais, como até então nenhum papa conseguira dar, visto que os barões turbulentos e os príncipes poderosos es­tariam ausentes dos seus países e não haveria ninguém que lhe pudesse fazer oposição.

PEDRO, O ERMITAO, PREGANDO A CRUZADA
Em vista disto prestou toda a atenção às queixas de um dos principais instigadores da nova agitação, um tal Pe­dro, ermitão de Amiens, e animou-o muito a pregar uma cruzada. Este homem notável tinha visitado Jerusalém no ano 1093. E viu com indignação a maneira como os seus companheiros de peregrinação eram tratados pelos turcos que estavam de posse da cidade, e nessa ocasião fez um voto solene de levantar as nações da Europa contra os in­fiéis - voto que se propunha agora a cumprir. Montado numa mula, vestido com um hábito muito comprido, aper­tado na cintura com um cinto de cânhamo, foi de cidade em cidade incitando o povo a armar-se em defesa do santo sepulcro. Os seus apelos calorosos causaram ora medo, ora indignação aos seus ouvintes, e produziram rapidamente o efeito desejado.
"Por que se há de permitir aos infiéis", exclama ele, "que conservem por mais tempo a guarda de territórios cristãos, tais como o monte das Oliveiras e o jardim de Getsêmani? Por que hão de os adeptos de Maomé, os filhos da perdição, manchar com seus pés hostis a terra sagrada que foi testemunha de tantos milagres, e que ainda hoje, fornece tantas relíquias com manifesto poder sobre-humano? Estão ali prontos para ser ajuntados e guardados pelo fiel sacerdote que fosse à testa da expedição, ossos de mártires, vestimentas de santos, pregos da cruz, e espinhos da coroa. Que o chão de Sião seja purificado pelo sangue dos infiéis massacrados".
Tal era o caráter da pregação do monge; e quando tinha conseguido levar o povo a um certo grau de delírio, e viu que todos estavam prontos a receber quaisquer ordens que se lhes dessem, o próprio Urbano veio confirmar com pala­vras de aprovação a pregação de Pedro: fez o seu discurso no mercado, e foi freqüentemente interrompido pelo grito de "Deus assim o quer!", "Deus assim o quer!", pois teve o cuidado de apelar para as paixões do povo, e não deixou de oferecer a absolvição dos mais negros pecados a todos que se juntassem ao exército santo.

PARTIDA DA PRIMEIRA CRUZADA
Em conseqüência destes apelos, uma grande multidão, em número de 60.000 homens, partiu para a Palestina na primavera do ano 1096, tendo Pedro à sua frente. Eram principalmente camponeses, segundo parece, e tão igno­rantes, que dizem que perguntavam em todas as cidades por onde passavam: "Já estamos em Jerusalém?" Mal pensando que estavam destinados a nunca chegarem à ci­dade santa. Depois de imensos revezes chegaram a Constantinopla e atravessaram o Bósforo, mas tendo seguido até a capital turca, encontraram com um exército coman­dado por Solimão, o sultão de Icónium, que os derrotou quase completamente. Dos 60.000 que tinham partido, só voltou um terço para contar a derrota.

A SEGUNDA EXPEDIÇÃO
No ano seguinte organizou-se outro exército, e puse­ram-se em marcha outra vez 60.000 cruzados, de todas as classes e condições, acompanhados de muitas mulheres, criados e trabalhadores de toda a espécie. Este imenso exército dividiu-se em quatro campos com o fim de facili­tar o arranjo de mantimentos, e seguiram para Constantinopla por caminhos diferentes. Reuniram-se ali e prosse­guiram juntos o seu caminho, morrendo milhares deles na jornada em conseqüência do grande calor e da falta de água.
A perda de todos os cavalos e as invejas e questões fre­qüentes entre os soldados, foram outras dificuldades que se levantaram, mas, apesar de todos estes obstáculos, o exército foi seguindo seu caminho e avançando pouco a pouco para Antioquia. Tiveram lugar algumas escaramu­ças antes de ali chegarem, tornando-se mais notáveis a ba­talha de Dorylinum em que os cruzados saíram vencedo­res, e o cerco de Edessa, de que resultou a tomada dessa ci­dade, depois de pouca resistência da parte dos maometanos. Antioquia, contudo, não se rendeu tão facilmente. A fertilidade da região verdejante ao redor da cidade foi tão Perigosa para a causa da cruzada como o tinham sido as planícies ardentes e estéreis da Frígia alguns meses antes, e os sitiantes logo que se viram nas margens férteis do Orontes, e entre os bosques do Defene entregaram-se aos mais loucos excessos. A aproximação do inverno veio en­contrá-los desprevenidos; tinham o acampamento alaga­do, as tendas estavam estragadas pelo vento, e os horrores da fome tornavam-se novamente inevitáveis, chegando os soldados a devorar os cadáveres dos seus inimigos para se alimentarem, até que a traição de um dos sitiados lhes deu a imediata e inesperada posse da cidade. Na escuridão da noite e na ocasião em que se desencadeava uma tempesta­de medonha, os cruzados escalaram os muros ao som do seu excitante grito de guerra: "Deus assim o quer!" E en­traram na cidade.

OS CRUZADOS EM ANTIOQUIA
A tomada de Antioquia pelos cruzados não ficou por muito tempo sem contestação. A guarnição não se tinha rendido completamente, e o seu espírito guerreiro animou-se quando tiveram conhecimento de que vinha em seu auxílio um exército de 200.000 turcos sob o comando de Keboga, príncipe de Mosul. À proporção que a perspectiva dos maometanos ia melhorando, a dos cruzados ia-se tor­nando pior, e mais uma vez estavam ameaçados de derro­ta. Veio porém, ajudá-los a superstição, e tendo sido, como diziam, repentinamente descoberta a lança que atravessou o lado ao Salvador, e cujo esconderijo foi revelado a um monge astucioso, chamado Bartolomeu, deu isso lugar a uma reação maravilhosa no ânimo dos cruzados. Podemos aqui dizer que foi o monge que "achou" a lança. Tinha-lhe sido "revelado" em sonhos, segundo dizia ele, que a lança estava debaixo do grande altar da igreja de São Pedro, mas só depois de outros terem procurado numa profundidade de doze pés, foi que ele ofereceu a sua ajuda. A hora que ele escolheu para isso era muito própria - o crepúsculo; e o há­bito com que ele desceu era igualmente muito próprio -um grande capote. Havia debaixo desse, lugar para os fer­ros de muitas lanças. Bartolomeu teve bom êxito na sua busca, e saiu da cova com o ferro de uma lança na mão, que mostrou em triunfo ao exército desanimado. O efeito foi maravilhoso. Com o grito animador de "Que Deus se le­vante, e que os seus inimigos sejam desbaratados!", as portas da cidade foram logo abertas e o exército precipi­tou-se sobre o inimigo descuidoso. A vitória foi certa e os sarracenos foram expulsos do campo como palha adiante do vento. O resultado foi decisivo, e os grandes despojos do inimigo caíram nas mãos dos cruzados. Voltaram para a cidade com grandes demonstrações de alegria, e depois de proclamarem um dos seus chefes chamado Bohemond, como príncipe de Antioquia, entregaram-se durante dez meses a toda espécie de vício e preguiça; completamente esquecidos, ao que parece, das tristes experiências -que ti­nham sofrido.

OS CRUZADOS AVISTAM JERUSALÉM
Só depois de maio do ano seguinte é que o exército se pôs outra vez em marcha, e ao aproximar-se de Jerusalém o seu fanatismo passou todos os limites. Passaram por Tiro e Sidom, Cesaréia e Lídia, Emaús e Belém, e por fim che­garam a uma elevação donde enxergaram a cidade santa, estendendo-se como um mapa diante deles. Foi então que o entusiasmo de todos chegou ao seu auge: levantou-se o grande grito de "Jerusalém! Jerusalém! Deus assim o quer! Deus assim o quer!" e os cruzados prostraram-se no chão e beijaram a terra consagrada.
Mas havia ainda muito que fazer. Jerusalém pertencia-lhes antecipadamente, mas não de fato. O governador sarraceno ofereceu-se para receber os cruzados na qualidade de peregrinos, mas esta oferta foi rejeitada; os cristãos não queriam chegar a nenhuns termos, nem concordar com qualquer compromisso. A sua missão era livrar a Terra Santa da tirania e opressão dos incrédulos, e só isto lhes daria descanso. O cerco durou quarenta dias, e durante este tempo os sitiantes foram reduzidos outra vez à última extremidade. Um sol abrasador, que tornava a sede ainda mais intolerável secou a água do ribeiro de Cedron e as cis­ternas tinham sido envenenadas ou destruídas pelos inimigos, e desesperados por esta desagradável circunstância, preparavam-se para um assalto final.

TOMADA DE JERUSALÉM
Mais uma vez a superstição auxiliou-os. Correram boa­tos de que um dos seus bravos chefes, Godofredo de Bouliion, tivera uma visão de que estavam continuando o cerco debaixo da direção de anjos. Vira uma forma bri­lhante com armadura celestial pairando sobre o monte das Oliveiras, brandindo uma espada desembainhada e dando sinal para esse último assalto. Os 40.000 guerreiros deses­perados levantaram o antigo grito de "Deus assim o quer"! e em breve todo o exército trepava pelos muros que rodea­vam Jerusalém. O esforço foi grande e custou muito san­gue, mas a vitória pertenceu aos sitiantes, e o próprio Go­dofredo foi o primeiro que ganhou uma posição firme e in­contestável sobre os muros. Logo em seguida saltou para dentro da cidade consagrada, seguido de milhares de seus soldados, que se lançaram sobre seus inimigos com uma fúria incansável. O morticínio que se seguiu não se pode descrever. Não pouparam nem idades nem sexos, e a carni­ficina de 70.000 maometanos foi considerada pelos cruza­dos como uma obra dos cristãos muito digna de elogios. Durante três dias houve na cidade um dilúvio de sangue, e dizem os historiadores que merece todo o crédito a afirma­ção de que no templo e no pórtico de Salomão o sangue chegava às cilhas das selas dos cavalos.
Por fim chegou a bonança; e no oitavo dia depois do ataque reuniram-se os chefes vitoriosos, e ofereceram o rei­no de Jerusalém a Godofredo de Bouliion. Era ele, incontestavelmente, o herói do dia, mas com uma modéstia que se igualava ao seu heroísmo, recusou a dignidade real, e aceitou o título mais humilde de Defensor e Barão do San­to Sepulcro. Outra vitória, em Ascalom, pouco depois, as­segurou a posição dos cruzados; e uma vez que tinham sido vingados seus irmãos peregrinos do mal que lhe fizeram os maometanos, entenderam que a sua missão estava termi­nada, e muitos deles prepararam-se para voltar à sua terra natal.
Os maometanos tinham estado de posse da cidade des­de a conquista de Omar no ano 637, um período de 462 anos: a data certa da sua tomada foi o dia 15 de julho do ano 1099. Era uma sexta-feira; e eram justamente três ho­ras da tarde quando Godofredo saiu vitorioso sobre os mu­ros da cidade.







14
Do segunda à quarta cruzada
(1100-1200)


As memórias a respeito do século que vamos tratar, são realmente desanimadoras; apenas uns pequenos raios de luz brilhavam nas trevas que predominavam.

TRABALHOS MISSIONÁRIOS
É verdade que se faziam várias tentativas de caráter missionário nas partes da Europa que ainda se conserva­vam pagas, mas os resultados eram parciais e incertos. Otho, bispo de Banberg, levou o Evangelho a Pomerânia, país conquistado pelo duque da Polônia. Quando o povo dali viu que as idéias do bispo eram pacíficas, e que vinha oferecer-lhes a salvação, e não roubar e oprimir, escutaram as suas palavras e foram batizados. Os naturais da ilha de Rugen, que tinham recebido o Evangelho no século ante­rior, mas que tinham outra vez caído na adoração às ima­gens, e até ofereciam sacrifícios humanos ao mártir S. vítor, também se converteram em parte, por meio de Absalão, arcediago de Lunden. Mas parece que nesse traba­lho mais se empregavam as armas carnais do que a espada do Espírito, e podemos portanto com razão duvidar da sin­ceridade de muitas conversões. Finalmente, depois de mencionarmos Vicelin, bispo de Oldenberg, que parece ter feito um verdadeiro trabalho evangélico entre as nações es­lavas, pouco ou nada resta a dizer dos trabalhos daquela época.

UM NOVO TESTEMUNHO
Mas este século tornou-se notável pela existência de um testemunho de novo caráter - testemunho que parecia mais um preparativo para uma coisa futura, do que a con­tinuação do passado. As necessidades dos pagãos tinham produzido este, mas as necessidades da própria igreja esta­vam produzindo aquele. Um era a proclamação do Evan­gelho aos pobres e ignorantes; e outro era um protesto con­tra a corrupção de uma hierarquia rica, que professava sa­ber tudo. A igreja professa tornar-se agora completamente corrupta, e não é portanto de admirar que houvesse orado­res ousados, que se tivessem levantado para gritar contra ela.

PEDRO DE BRUYS
Desses oradores, um dos primeiros foi Pedro de Bruys, natural do Sul de França, e considerado como um homem de espírito indomável. Foi ao princípio presbítero, mas pelo modo pessoal e picante das suas pregações despertou a animosidade do clero, necessitou de andar fugindo para escapar à perseguição. Eram muitos e importantes os pon­tos em que ele diferia da igreja professa desse tempo, e ele não deixou de os tornar bastante conhecidos. Protestou contra as inovações de Roma; contra a construção de igre­jas ricas; contra a adoração de crucifixos; contra a doutri­na da transubstanciação; contra a celebração da missa, e contra a eficácia das esmolas e das orações pelos defuntos. O fervor da sua eloqüência ganhou-lhe muitos ouvintes e não poucos adeptos; mas a sua missão parece ter sido mais de destruição do que de reforma, a ponto do reformador pupin, do século dezessete, contar que em Provença não se viam senão cristãos batizados de novo, igrejas profanadas, altares deitados abaixo e cruzes queimadas. Depois de tra­balhar no meio de muita perseguição durante mais de vin­te anos, foi queimado em vida em S. Gilles, no ano de 1130.

O ITALIANO HENRIQUE
A influência do ensino de De Bruys, não pôde, porém, ser destruída, e a sua obra foi levada por diante por um ita­liano chamado Henrique, que pelo seu extraordinário zele e eloqüência convincente levou tudo adiante de si. Andava por toda a parte descalço, mesmo no inverno; tinha pouca roupa e de pior qualidade. As cabanas dos camponeses eram onde freqüentemente descansava; mas, assim como seu divino Mestre, muitas vezes não tinha onde reclinar a cabeça. Passou muitas horas amargas debaixo dos pórti­cos, ou em montes sombrios, exposto à chuva e ao vento frio da noite; mas os sofrimentos não lhe faziam perder a coragem, nem as ameaças dos seus inimigos lhe causaram medo. Ensinou, como fizera Pedro de Bruys: que era um erro construir igrejas ricas, visto que a igreja de Deus não consistia numa porção de pedras, mas na união dos fiéis; também que a cruz não devia ser adorada; que a transubs-tanciação era uma doutrina infernal; que as orações pelos defuntos eram vãs e inúteis. Um homem tão ousado não podia ter licença para gozar a sua liberdade por muito tempo, e por isso Henrique foi por fim agarrado e preso em Rheims, e depois removido para Tolosa, onde foi morto por ordem de Alberico, o legado papal, no ano 1.147.

MAIS MÁRTIRES
Vários outros, a quem também chamavam hereges -provavelmente adeptos de Henrique e de Pedro de Bruys -sofreram o martírio em Colônia, no mesmo ano; e Evervinus, de Steinfeld, próximo daquela cidade, fez uma narra­tiva desses martírios em uma carta a Bernardo, abade de Clairvaux. Depois de falar da sua firmeza e resolução: "E o Que é mais extraordinário é que forem para o poste, e sofreram o tormento do fogo, não só com paciência mas até com prazer e alegria". Este mesmo Bernardo que aprovou o zelo que perseguia os fiéis cristãos até o ponto de lhes dar a morte, também disse deles: "Se os interrogam a respeito da sua fé, não pode haver nada de mais cristão; se investi­gam sobre as suas conversas, nada há mais irrepreensível; e o que dizem confirmam-no pelos atos. Quanto ao que diz respeito à sua vida e às suas maneiras, não atacam nin­guém, não abusam de ninguém. Os seus rostos estão páli­dos devido a jejuns; não comem o pão da preguiça, mas sustentam-se pelo suor dos seus rostos".
É, contudo, caso para nos alegrarmos ver que, apesar da perseguição, aumentava o número dos dissidentes de Roma. O abade, a quem acima nos referimos, descreve-os como sendo "uma multidão de hereges" e outro escritor, Eckbert, afirma que "aumentavam extraordinariamente em todos os países", enquanto Guilherme de Newbury diz que eles pareciam tornar-se mais numerosos que a areia do mar. Eckbert ainda diz mais: que os "hereges" tinham diferentes nomes segundo os países onde se encontravam.

PEDRO WALDO
Mas a luz mais brilhante desse século foi talvez Pedro Waldo, o piedoso negociante de Lyon. A morte súbita de um amigo despertou-lhe pensamentos sérios, e ele tornou-se um atento leitor das Escrituras Sagradas. Distribuiu seus bens pelos pobres, dedicou o resto de sua vida a prati­car atos piedosos. Um conhecimento mais amplo da Bíblia fez-lhe perceber a corrupção no sistema religioso que então predominava e levou-o por fim a repeli-lo como cristão. Entretanto estava também ansioso por livrar outros do es­tado tenebroso em que ele também se encontrara havia ainda tão pouco tempo, e começou a andar por um lado e outro, a fim de pregar as riquezas insondáveis de Cristo. Um dos seus adversários, Stephanus de Borbonne, infor­ma-nos que Waldo era aplicado ao estudo dos primeiros ensinadores da igreja e prestava muita atenção à leitura da Bíblia, e por isso tornou-se tão familiar com este livro, que tinha tudo gravado na memória, e determinou procurar aquela perfeição evangélica que distinguiu os apóstolos. Stephanus informa-nos mais que, tendo vendido todos os seus bens, e distribuído aos pobres o dinheiro resultante dessa venda, o piedoso negociante foi por diversos sítios pregando o evangelho e as coisas que sabia de cor, nas ruas e praças públicas. Entre outras coisas contadas pelo mes­mo escritor, lemos que reunia à roda de si homens e mulhe­res de todas as classes, mesmo das mais humildes, e confirmando-os no conhecimento do Evangelho mandava-os pe­los países vizinhos para pregarem. Mas os passos que Waldo deu para a tradução dos Evangelhos em língua vulgar serão sempre considerados como a sua maior obra. Sem isto nunca poderia ter mandado para fora do país, com pa­lavras de vida, os seus discípulos, porque eram ignorantes e as Sagradas Escrituras só se podia obter na língua latina.
A sua fidelidade, porém não podia deixar de ter oposi­ção, e a notícia deste grande fato provocou logo a oposição do Vaticano. Enquanto Waldo se contentou com a insigni­ficante tarefa de reformar a vida do clero, não sofreu gran­de oposição, mas logo que tirou da bainha aquela terrível arma, a Palavra de Deus, e a colocou nas mãos do povo, declarou-se inimigo de Roma. Colocar uma Bíblia aberta nas mãos dos leigos era, nem mais nem menos que pertur­bar os próprios fundamentos do papismo, porque a Palavra de Deus era o maior adversário de Roma. O papa foi por isso muito pronto e decisivo, e mandou publicar uma exco­munhão contra o honrado negociante. Ainda assim, a des­peito da bula de Alexandre, Waldo ficou em Lyon mais três anos, muito ocupado a pregar e distribuir as Sagradas Escrituras, e por este tempo, vendo o papa que as medidas que tinha adotado não produziam efeito, estendeu as suas ameaças a todos os que estivessem em contato com o herege. Foi então que Waldo, por causa dos seus inimigos, dei­xou a cidade e durante os quatro anos que ainda viveu foi como peregrino na face da terra, tendo, contudo, sido sem­pre guardado pela providência de Deus de ser vítima da Perseguição de Roma, e morreu de morte natural no ano 1179.
A dispersão dos adeptos de Waldo (os "Homens pobres de Sião") depois da morte dele contribuiu muito para que o Evangelho se espalhasse, e muitos deles encaminharam-se para os Alpes, entre os quais estão situados os vales dos Vaudois. Ali, com grande alegria sua, encontraram uma colônia de cristãos que professava idéias muito semelhan­tes às deles e que davam, pelo seu modo de vida e conver­sa, um belo exemplo, tanto de fraternidade cristã como de felicidade doméstica. Foram recebidos por esses crentes simples, de braços abertos, e até lhes permitiam morar na sua colônia, e deste modo participar da felicidade deles e, dentre pouco tempo, partilharam também dos seus sofri­mentos. Deixemo-los ali por enquanto e lancemos a vista a outros que estavam dentro do grêmio da igreja de Roma, cujos nomes têm alguma importância nas memórias ecle­siásticas do século.
Nomearemos quatro entre eles: Bernardo de Clairvaux, Abelard, Arnaldo de Brescia e Tomaz A. Becket. Apesar de estes não serem tão ortodoxos como muitos partidários de Roma poderiam ter desejado.
De Bernardo de Clairvaux já falamos, e de um modo bastante desfavorável; mas, apesar do seu zelo contra os adeptos de Henrique e Pedro de Bruys, parece ter sido um homem de alguma piedade, pois censurou sem receio os abusos e os crimes do clero, a vida luxuriosa dos bispos, e sua embriaguez; as suas carruagens ricas, as suas baixelas de alto preço, as suas esporas de ouro. Tudo isso caiu sobre a censura da sua pena! Também não teve escrúpulo de fa­lar dos padres como servos do Anticristo; dos abades como sendo mais senhores de castelos do que padres de mostei­ros, mais príncipes de províncias do que dirigentes de al­mas. Na verdade a influência de Bernardo era enorme e, talvez, não tivesse igual.
Abelardo era francês, e tornou-se notável por ser o pri­meiro homem que ensinou teologia publicamente sem ter ordens de padre. Da parte romântica da sua história não estamos dispostos a tratar, mas, ainda assim, há nela o bastante para nos comover e excitar uma certa admiração pelo homem. Contudo, foram os poetas e não os teólogos que disseram as melhores coisas a seu respeito. Podemos considerá-lo, porém, como um sábio eclesiástico, e como tal ele leva a palma a todos os seus contemporâneos. Vinha gente de grandes distâncias, pronta a atravessar mares e montanhas e a se sujeitar a muitos inconvenientes con­quanto tivesse o privilégio de o ouvirem. Mas nas suas pre­gações o raciocínio, em grande parte, tomava o lugar da fé, a ponto de afastar do bom caminho, até no que diz respeito a alguns princípios fundamentais do cristianismo. Por fim a sua grande popularidade despertou a animosidade de Roma, e o grande sábio retirou-se mais tarde para o mos­teiro de Clugny onde foi muito bem recebido pelo respecti­vo abade. Morreu no ano 1142.

ARNALDO DE BRESCIA
Arnaldo de Brescia fora segundo se diz discípulo de Abelard, mas evidentemente não estava corrompido desse homem tão brilhante, mas tão infeliz. Parece que, apesar de nunca se ter desligado da sua obediência ao papa, desa­fiava publicamente o poder; e o caráter destruidor e revo­lucionário da sua pregação faz-nos lembrar um dos seus contemporâneos: Pedro de Bruys.
Servindo-se para texto das palavras do Senhor: "O meu reino não é deste mundo", começou uma série de ata­ques à vida do clero em Roma, que era onde a sua iniqüida­de mais se salientava.
"Se Cristo era pobre", dizia ele, "se os apóstolos eram pobres, se os monges eram mal vestidos, fazendo seus tra­balhos e jejuns, com as faces emagrecidas pela fome, e os olhos fitos no chão, sendo a imagem da vida real dos após­tolos e de Cristo, quão longe dos apóstolos e de Cristo então estavam esses bispos e abades vivendo como príncipes e grandes senhores, com os seus mantos forrados de pele e de escarlata e púrpura; esses bispos e abades que montam nos seus cavalos fogosos com freios de ouro, que usam esporas de prata e que levantam a cabeça como se fossem reis". A hierarquia de Roma, picada por essas censuras, pediu a sua expulsão e, em conseqüência disso, ele foi banido pelo concilio Lateranense nó ano 1139. Mas tornou a vir no ano 1154 e começou novamente as suas pregações poderosas e apaixonadas, até fazer com que o povo se tornasse baru­lhento e questionasse com os padres em diferentes oca­siões.
Numa dessas rixas ficou ferido um cardeal, e Adriano fez publicar uma interdição contra a cidade e não a levan­tou enquanto Arnaldo não fosse expulso dali. As ameaças produziram o efeito desejado, e por algum tempo os movi­mentos do reformador parece terem sido incertos. Depois de andar de um lado para outro, achou asilo em Zurich, onde foi bondosamente recebido pelo bispo da diocese. Bernardo, porém não o deixou descansar. Tinha-o vigiado com impaciência cheia de cólera, e agora instou com o papa para que tomasse medidas severas a seu respeito. Nada se fez, porém, até o pontificado de Adriano II (um in­glês, cujo verdadeiro nome era Nicolau Breakspear), em cujas mãos o ousado pregador foi entregue pelo imperador Barbarosa. O papa, com medo de que o povo tentasse li­vrá-lo, condenou-o apressadamente num concilio secreto, e antes de romper o dia Arnaldo tinha deixado de existir e as suas cinzas foram lançadas nas margens do Tibre.

TOMAZ A BECKET
Do nascimento e da família deste homem extraordiná­rio nada se sabe, ainda que haja quem afirme que ele era filho de um negociante de Londres. Começou os estudos em Oxford, e acabou-os em Bolonha; então entrou ao ser­viço da igreja e elevou-se, a passos rápidos, à dignidade de arcediago de Cantuária.
O rei Henrique II, que então ocupava o trono da Ingla­terra, tinha apenas vinte e cinco anos de idade, mas já ha­via começado a mostrar um espírito independente, e pro­metia, como o pai, reprimir em grande parte o poder pa­pal. Isto levantou graves receios no espírito de Teobaldo, arcebispo de Cantuária, que procurou colocar próximo do rei um homem enérgico e de habilidade, que fosse dedica­do à igreja e capaz de resistir esta oposição, e que, em caso de necessidade, vencesse a vontade, do rei.
Pareceu-lhe que esse homem era Becket, e quando o lu­gar de chanceler do reino vagou-se, recomendou o arcedia­go como pessoa muito competente para o desempenhar. A sua recomendação foi bem recebida, e em breve Becket tornou-se um favorito do rei. Caiu nas boas graças do seu soberano, entrou em todos os seus projetos, e até (pois isso fazia parte de sua astúcia política) acompanhou-o nos seus esforços para reprimir a invasão do poder papal na Ingla­terra. Tornou-se notável, nesta época, pela sua natureza mundana e pela maneira principesca em que vivia. Na ca­ça, nos banquetes, nos torneios a sua presença era sempre precisa; e quando saía tornava-se mais notável do que os outros nobres pela magnificência da sua equipagem e pelo esplendor da sua comitiva, que geralmente se compunha de seiscentos a setecentos cavaleiros.
Henrique parecia sempre felicíssimo quando estava com seu favorito; e enquanto esteve com Becket a amizade foi recíproca; mas logo que o monarca confiante o elevou ao arcebispado de Cantuária, vago pela morte de Teobaldo, ele mudou completamente de tática e mostrou bem ser in­flexível vassalo de Roma. Os seus pedidos então tornaram-se arrogantes e urgentes; e pouco depois o rei sentia amar­gamente ter dado tais honras ao seu favorito.
Durante algum tempo tinha o clero da Inglaterra esta­do a diligenciar para obter a imunidade das leis civis; e, na verdade, tinha conseguido em tudo seus fins. Entre os anos de 1154 a 1163 nada menos de cem assassinatos e grande número de orgias tinham sido cometidos por homens com ordens sacerdotais, e nem um só dos criminosos tinha sido chamado a responder pelo seu crime. Isto só por si é con­clusivo. Becket favorecia agora a causa dos padres, e ofere­cia a sua proteção ao assassinato e ao incesto. Viu-se quan­to ele os protegia quando tomou debaixo da sua proteção um padre acusado de sedução, e de ter, mais tarde, assas­sinado o pai da sua infeliz vítima. O rei exigiu que o crimi­noso fosse entregue, mas não se fez caso da sua ordem. O prelado altivo respondeu que a degradação do delinqüente era castigo suficiente, e firmou-se resolutamente nesta res­posta.
Para remediar estes abusos, e definir mais claramente a sua prerrogativa, o rei reuniu os seus barões e consultou-os sobre o que havia a fazer; e, como eles partilhassem das idéias do seu soberano e reconheciam a necessidade de adotar medidas enérgicas para proteger o povo dos ataques do clero, trataram de redigir o notável código de leis, conhecido por "Constituições de Clarendon". Foi ali de do, entre outras coisas, que se algum processo se levantas­se entre qualquer eclesiástico e um leigo, seria decidido nos tribunais do rei, e não em Roma.
Becket assinou estas constituições de muito má vonta­de, e logo violou o seu compromisso apelando para Roma. Em seguida, como estivesse forte com a promessa da in­dulgência do papa, recusou em absoluto reconhecê-las. Ti­nha, é verdade, assinado essas leis novas, mas declarou que não se tinha comprometido a confirmá-las, pondo-lhes o seu selo, e por meio deste subterfúgio limitou as conse­qüências do seu ato.
A igreja e a coroa tinham-se agora declarado uma con­tra a outra, e era evidente que o conflito entre o rei e o cle­ro, que Hildebrando tinha começado havia um século, es­tava agora para ser continuado na Inglaterra. O primeiro ato de Becket bem mostrou como ele compreendia o espíri­to da época. Abandonou o seu lugar; despediu a sua nume­rosa comitiva e trocou as suas vestimentas ricas por uma camisa de crina e um hábito de monge, e entregou-se a to­das as austeridades de uma vida monarcal. A sua falsa santidade foi a sua arma, e depressa atraiu a si a simpatia do povo supersticioso. Henrique, porém, apesar de estar desgostoso com o procedimento do seu arcebispo, não se rendeu tão facilmente, e, depois de empregar algumas vãs tentativas para trazer de novo à submissão o bispo rebelde, mandou proceder contra ele como traidor. Becket, entre­tanto, tinha pedido licença para sair do reino; mas, conhe­cendo o gênio de Henrique, e receando pela sua vida, tra­tou de se pôr a salvo por meio da fuga, logo que soube das idéias do rei. Saiu às escondidas de noite de Northanston e, dando muitas voltas para iludir seus perseguidores, fu­giu para o continente onde foi recebido com honras e sinais de afeto pelo rei da França, e, por conselho do papa, reti­rou-se para a abadia de Pontigny, onde tomou hábito de monge da ordem de Cister, e aguardou com inquietação o resultado dos acontecimentos.
Fora declarado traidor, e os seus parentes e amigos fo­ram expulsos do reino; mas Becket vingou-se excomungan­do todos os seus adversários. A cerimônia da excomunhão realizou-se na igreja de Vizelay, e pareceu que foi excepcio­nalmente terrível e imponente. No meio do badalar dos si­nos, e da lúgubre entonação dos padres, foi lida a fórmula impiedosa, e umas vinte ou mais pessoas, cujo único crime era obedecer às ordens do seu soberano, foram votadas pela maldição do arcebispo, a uma vida de horrível sofri­mento na terra e de inextinguíveis chamas no inferno. As cruzes dos altares foram invertidas; apagaram as tochas; deixaram os sinos de tocar; os padres e o povo afastaram-se vagarosamente do edifício, e a igreja ficou silenciosa, soli­tária e em trevas.
A luta entre Henrique e Becket durou sete anos, e mais tempo teria durado provavelmente se os pedidos simultâ­neos de Luís XII e do papa não tivesse conseguido que Bec­ket voltasse a ocupar seu antigo lugar. Quando voltou para o seu país mostrou-se tão altivo e intransigente como quando de lá tinha saído. Nada diremos, porém, acerca das questões que se deram com o rei, e da péssima conduta do arcebispo para com ele. A narrativa seria interessante, mas não entra nos limites da nossa história. A sua insolên-cia e orgulho por fim tornaram-se insuportáveis, e a impru­dente observação que fez um dos bispos a Henrique de que não haveria paz para ele, nem para o seu reino, enquanto Becket fosse vivo, avivou o grande ressentimento do rei e obrigou-o a exclamar: "Não haverá ninguém que me livre deste padre turbulento?" Quatro cavaleiros que ouviram estas palavras dirigiram-se logo a Cantuária e, não poden­do conseguir do altivo prelado uma promessa de obediên­cia ao seu soberano, assassinaram-no perto do altar da ca­tedral.

SEGUNDA CRUZADA
As nossas referências ao século XII ficariam incomple­tas se deixássemos de falar das outras cruzadas. O ano de 1147 é notável por ser o ano em que teve lugar a segunda cruzada contra os maometanos. Durante bastantes anos o poder dos cruzados na Síria e Palestina vinha diminuindo cada vez mais, e os soldados da cruz, como lhes chama­vam, tinham-se entregado a uma vida de luxúria e ociosidade - tentações próprias dos países do Oriente. Os maometanos, aproveitando-se destas circunstâncias, reuniram as suas forças, e depois de embaraçarem os cristãos e de os enfraquecerem consideravelmente com várias escaramu­ças, conseguiram tomar posse novamente de Edessa e esta­vam concentrando a sua atenção sobre Antioquia.
Os cruzados, tendo a consciência da sua fraqueza, fica­ram deveras alarmados, e enviaram mensagem a Roma implorando socorro; e foi esta a origem da segunda cruza­da. O papa Eugênio III satisfez o pedido, e confiou pruden­temente a pregação da cruzada a Bernardo de Clairvaux. Além da muita eloqüência do ilustrado abade, tudo quan­to ele dizia tinha um grande peso moral que o devia fazer ganhar qualquer causa que advogasse; e a confiança que o papa depositou nele foi bem cabida. O rei da França e o imperador da Alemanha responderam ambos à chamada. Depois de reunirem 900.000 homens em volta da bandeira da cruz, este grande exército dividiu-se em duas partes e marchou para a Palestina. Mas a infelicidade acompa­nhou-os em todos os seus passos, e o resultado da empresa foi miserável e humilhante. Só uma pequena parte do exército francês chegou à Terra Santa, e os seus chefes nada puderam fazer devido às invejas e dissensões entre os soldados. No ano de 1149 o resto do exército desbaratado voltou para a Europa, tendo morrido muitos milhares de homens na empresa.

A TERCEIRA E QUARTA CRUZADAS
A terceira e quarta cruzadas também tiveram lugar neste século e foram um pouco mais bem sucedidas. Ricar­do I da Inglaterra que comandava a última, ganhou algu­mas vitórias brilhantes, mas com enormes perdas de vidas. Os seus feitos terminaram com a trégua com Saladino, o emir sarraceno, depois disso voltou Ricardo para a Ingla­terra. Diz-se que pereceram 120.000 cristãos durante o cer­co de Acre, onde estava o rei presente, e se juntarmos a es­tes os 180.000 maometanos que morreram na mesma oca­sião, temos um total de 300.000 guerreiros como preço de um só combate em que nada se ganhou senão algumas honras vãs e algum renome!
E quem foi responsável por toda esta perda de vidas? Só podemos dizer que foi o cabeça da Roma papal, e ao próprio papa era evidente que, por causa destas longas ex­pedições à Palestina, a Europa havia de perder muito san­gue, gastar sua força e estragar seu tesouro. Não havia a mais pequena idéia de converter os infiéis à fé de Cristo -que é a verdadeira missão do cristianismo - o único fim era enfraquecer o poder dos monarcas temporais para que os pontífices pudessem reinar sobre eles. O papismo é essen­cialmente infiel. Pregar o Evangelho a toda a criatura, é o que o Senhor ordenou a todos os que o reconhecem como Salvador e Senhor. Mas o papa aconselhava: "Matai os in­fiéis sem piedade! arrancai o joio pela raiz e jogai-o ao fogo para que se queime: é esta a obra que Deus quer que façais!
As três ordens de monges militares, os Cavaleiros de S. João de Jerusalém, os Cavaleiros Templários, e os Cavalei­ros Teotônicos podem considerar-se como o rebento das cruzadas, mas o seu caráter era mais político do que reli­gioso, e basta-nos mencioná-lo apenas. Os Cavaleiros Templários chegaram a ser os mais poderosos, e para al­guém chegar a ser reconhecido naquela ordem empregava-se o maior mistério. Anos depois, quando eles se estabele­ceram na Ilha de Malta, com a sua riqueza aumentada, le­vantou-se uma grande inveja contra eles, e espalharam-se as mais medonhas histórias a respeito dos seus ritos secre­tos e cerimônias extraordinárias. A sua atitude soberba, fria e antipática, deu causa à sua queda, e no ano 1314.foi a ordem abolida por decreto do papa.
























15
Da quinta à oitava cruzada
(1200-1300)


0 século XIII, apesar de ter sido, a muitos respeitos, um período de importância, pouco notável se tornou pelo lado do trabalho missionário.
Os nestorianos continuaram na sua missão de conver­ter gente na Tartária, Pérsia e China; e os dinamarqueses também fizeram pequenas tentativas nesse sentido neste último país. Também na Espanha se fizeram alguns esfor­ços para converter ao cristianismo a população árabe do país, mas sem resultado. O papa Clemente IV aconselhou então que fossem expulsos do reino, e, tendo-se dado ouvi­dos ao seu conselho, seguiu-se uma carnificina cruel. Tam­bém se fizeram tentativas para levar o Evangelho às locali­dades pagas de Prússia, a ponta da espada, e Conrado, du­que de Massora, fez com que os cavaleiros teotônicos to­massem parte nessa bárbara empresa. Os habitantes, ao princípio ressentiram-se destas medidas forçadas, mas o poder das armas obrigou-os por fim à submissão, e acaba­ram por se curvarem, de má vontade, ao jugo papal. Animados por este bom êxito, os cavaleiros mais tarde esten­deram a sua missão a Lituânia onde, roubando, matando e incendiando, depressa reduziram o povo a um estado de servilismo, e obrigaram todos a serem batizados.

TRISTE CONDIÇÃO DA CRISTANDADE
Estes atos de injustiça e opressão, cometidos dentro dos limites da cristandade, não devem causar muita admira­ção, se considerarmos a condição em que se achava a igreja professa nessa época. Eclesiásticos de todas as categorias, desde o próprio papa, esforçavam-se por alcançar riquezas e poder, e os mestres e outros teólogos estavam gastando a sua sabedoria e eloqüência em controvérsias inúteis e espe­culações sem proveito sobre questões que não estavam ao alcance dos espíritos pouco talentosos.
"Nunca", diz Rogério Bacon (o mais erudito inglês da­quele tempo), "nunca houve uma aparência tão grande de sabedoria, nem um tão grande ardor pelo estudo, em tan­tas faculdades e em tantos países, como nestes últimos quarenta anos. Os doutores estão espalhados por todas as cidades, por todos os castelos, por todas as vilas, e, não obstante, nunca houve tanta ignorância e tanto erro! Grande parte dos estudantes gastam seu tempo com más traduções de Aristóteles, e perdem assim o trabalho e a despesa que fazem. A única coisa que atrai a sua atenção são as aparências; não se importam de saber o que é que aprendem, pois desejam apenas mostrar-se muito sábios à sociedade estúpida".
A maioria das pessoas eram realmente tão ignorantes quanto possível e quase que inteiramente destituídas de es­piritualidade. Desprezavam o estudo, e assim ficavam à mercê dos padres, que lhes conheciam o valor, e procura­vam todos os meios de evitar o desenvolvimento dos seus conhecimentos. A política do clero era usurpar quanto lhe fosse possível o poder dos tribunais civis; de modo que quase todos os casos de perjúrio, blasfêmia, usura, bigamia, incesto, fornicação etc, eram julgados nos tribunais eclesiásticos. Ainda assim tinham a astúcia de fazer com que a sanção das suas decisões e a execução das suas sentenças fossem entregues ao poder temporal, livrando-se, assim, segundo pensavam, da responsabilidade de qual­quer engano da justiça.

LUXÚRIA DO CLERO
Não há dúvida de que a Europa era, no século treze, go­vernada pelos padres, que tinham a seu favor a riqueza e a sabedoria. Os mosteiros tinham-se tornado em palácios, onde os abades podiam dar as suas festas suntuosas, e sus­tentar os seus amores criminosos, protegidos pelo forte braço de Roma. Os bispos eram príncipes que em muitos casos eram donos das terras para as quais tinham sido no­meados governadores espirituais. Os frades tinham suas belas moradas nos subúrbios de todas as cidades impor­tantes, e passeavam diariamente pelas ruas, com os seus hábitos negros, para receberem as saudações do povo. As cabanas dos pobres e os castelos dos ricos tinham as portas sempre abertas àquelas visitas, e, ou com vontade ou sem ela, tinham forçosamente de recebê-los. Ainda vagueavam tristemente pelo meio dos túmulos e nas montanhas al­guns ermitões e outros reclusos que com as suas severidades ascéticas fortaleciam muito o poder do papa. Muitos verdadeiros cristãos, desgostosos com a conduta desregra­da dos padres, teriam sem dúvida abandonado o aprisco se não fossem esses ermitões que, com a sua suposta santida­de, enchiam de medo os supersticiosos e anulavam as objeções dos descontentes.
Pode-se bem imaginar qual teria sido a força deste po­der que obrigava um homem, por qualquer ofensa venal que lhe tinha sido arrancada no confessionário, a jejuar, ou a andar descalço, ou a deixar de usar roupa branca, ou a ir em peregrinação; ou mesmo, quando desejavam ver-se li­vre do ofensor, obrigavam-nos a tomar o hábito e entrar num mosteiro! Era este o poder que tinham os padres; e es­tamos certos de que eles usavam desse poder sempre que pudessem por esse meio ganhar alguma coisa.
Mas, se os padres governavam o povo, eram eles gover­nados pelo papa. Todos lhe estavam sujeitos; e tanto mais que foi durante este século que o dogma da infalibilidade do papa se salientou. O dominicano Tomás de Aquino, to­mando por verdadeiros os escritos de Beneditino Graciano, do século anterior, acrescentou-lhes ainda bastantes coisas falsas e tradicionais, e desta mistura de erros e supersti­ções surgiu a perigosa doutrina da infalibilidade papal.

INOCÊNCIO III E O REI FELIPE DE FRANÇA
Dos papas deste século o maior foi, talvez, Inocêncio III, que subiu a essa "dignidade" no ano de 1198. Com cer­teza não teve quem o excedesse em maldade. O seu verda­deiro nome era Lotário de Conti, mas os seus cardeais de­ram-lhe o nome de Inocêncio em testemunho da sua "vida irrepreensível!"
Ura dos primeiros atos de Inocêncio, ao subir à cadeira papal, foi destruir a felicidade doméstica do rei da França. Filipe Augusto atraído pela fama da beleza da princesa Isemburge da Dinamarca, prometeu a sua mão àquela se­nhora, realizando-se em seguida o casamento. Ora, o mo­narca, que tinha procedido muito precipitadamente, mos­trou desde o princípio uma aversão invencível pela sua jo­vem esposa, e, recusando-se a viver com ela como sua mu­lher, repudiou-a para casar com a jovem e linda Agnes, fi­lha do duque de Merânia, por quem sentiu um profundo e verdadeiro amor.
Contudo, o papa tomou partido da princesa repudiada e ameaçou pôr o país inteiro sob interdição se o rei não abandonasse a filha do duque e recebesse a princesa Isem­burge com afeto conjugai. Esta não era, de modo algum, uma ameaça vã, e as conseqüências de tal interdição iriam recair fortemente sobre os súditos inocentes de rei da Fran­ça. Suspender os atos públicos de religião era, aos olhos de todos, uma coisa terrível, visto que quase todo o seu culto era realizado por meio dos padres, e, em geral, não tinham o recurso da oração particular.
Mas Filipe não quis ceder. Disse que o seu divórcio da princesa dinamarquesa era legal, pois tinha sido ratificado pelo papa anterior, Celestino III. Além disso, estava legal­mente casado com Agnes que já lhe tinha dado dois filhos. O papa, porém, não quis ouvir nada disso, e como Filipe continuou a teimar, deu a necessária autorização ao seu le­gado, então em Dijon, para proclamar a interdição. À meia noite teve lugar, a toque dos sinos, uma execrável cerimô­nia. Queimaram a hóstia consagrada, cobriram as imagens de preto, e puseram as relíquias nos túmulos. Em seguida o clero saiu da igreja em procissão solene, tendo à frente o cardeal com a sua estola roxa de luto; e quando ele pronun­ciou a interdição, os padres apanharam as tochas, fecha­ram as portas das igrejas, e todas as orações, todos os servi­ços religiosos, ficaram indefinidamente suspensos. Só os sacramentos de batismo, confissão e extrema unção eram permitidos pela igreja, e andavam todos com a barba por fazer; era proibido o uso de carne, e os cadáveres sem te­rem lugar de sepultura eram lançados aos cães, que infes­tavam as cidades, e aos bandos de aves de rapina.
Filipe protestou em vão contra este procedimento ex­tremo; mas o papa foi inexorável e as suas ordens tinham de ser obedecidas. Agnes teve de ser abandonada, Isemburge reintegrada nos seus direitos. Enquanto isto não acontecesse tinha de durar a interdição. Mas o afeto de Fi­lipe concentrava-se na sua linda esposa, e não se poderia convencer a submeter-se a uma ordem tão áspera. A pró­pria Agnes não tinha ambições de rainha, mas não podia suportar o pensamento de se separar do seu marido: ela apenas queria ser o que o papa e o parlamento a tinham feito, sua legítima esposa. Desesperado pela dor da esposa e pela sua própria impossibilidade de acalmar-se, o rei ex­clamou: "Vou-me tornar maometano. Feliz Saladino que não tem papa que o governe!" Mas a tudo isto respondia a ordem cruel: "Obedece ao papa, abandona Agnes e torna a receber Isemburge".
Por fim o rei cedeu. O papa venceu aquela luta e retirou a interdição. As igrejas tornaram-se a abrir ao povo, as imagens foram destampadas as relíquias novamente ex­postas e os sacramentos ministrados como antes. A prince­sa foi reconhecida como esposa de Filipe, mas a sua aver­são por ela tinha aumentado em conseqüência de tudo quanto tinha sucedido e continuou a recusar-se a viver com ela como sua mulher. A linda e amável Agnes, separada a força do seu marido, morreu pouco depois, com o cora­ção despedaçado.

INOCÊNCIO III E O REI JOÃO DA INGLATERRA
Mas não foi a França o único país que sofreu os horrores de uma interdição durante o pontificado de Inocêncio III. O rei João da Inglaterra, pelas suas ameaças grosseiras ao papa, fez com que o seu país fosse também visitado por uma interdição. Porém esta não produziu efeito algum no ânimo de João, e quando, no ano seguinte, foi excomunga­do, recebeu a bula do papa com desprezo. A bula foi segui­da no ano 1211 por um ato de deposição, e a coroa de João foi-lhe confiscada - os seus súditos foram desligados dos seus juramentos de obediência, e foi-lhes dada liberdade de prestarem a sua obediência a uma pessoa mais digna de ocupar o trono que estava vago. Por fim Filipe Augusto de França foi convidado a tomar as armas contra o rei contu­maz. Foram-lhe também prometidos os territórios ingleses para aumentar o seu próprio reino. Esta última medida do papa venceu por completo o covarde João, e a sua antiga altivez e independência deram imediatamente lugar a uma baixeza e a um servilismo que quase não há igual na história.
Numa casa dos templários, próximo a Dover, o rei da Inglaterra, de joelhos, colocou a sua coroa aos pés de Pendulfe, o legado papal, e cedeu a Inglaterra e a Irlanda ao papa; jurou-lhe homenagem como seu senhor soberano e prestou juramento de fidelidade aos seus sucessores. Fo­ram esses os vergonhosos e humilhantes termos ditados pelo suposto pastor do rebanho de Cristo, e suportados por um rei inglês!
Filipe Augusto, que tinha nesse meio tempo feito imen­sas despesas para organizar um exército, foi em seguida in­formado, sem mais explicações que devia desistir das hos­tilidades e que qualquer tentativa contra o rei da Inglater­ra seria altamente ofensiva para a santa Sé.
Mas o triunfo do papa transformou-se em alarme quan­do, dois anos mais tarde, os barões da Inglaterra com o ar­cebispo Langton à sua frente, reuniram-se em Runnymede e forçaram o tirano João a renovar e ratificar a carta das suas liberdades, que lhes tinha sido conferida por Henri­que I.
"Pois quê?", exclamou Inocêncio, "os barões da Ingla­terra atrevem-se a transferir para outros o patrimônio da igreja de Roma? Por S. Pedro, não podemos deixar um tal crime impune". Mas os barões tinham um ânimo muito diferente do seu soberano; e quando o papa anulou a gran­de carta e ameaçou os que a defendiam, eles receberam a excomunhão com um silêncio de desprezo.

A DOUTRINA DA TRANSUBSTANCIAÇÃO
O pontificado de Inocêncio adquiriu maior importância por ser ele quem estabeleceu por decreto o dogma fatal da transubstanciação, decidindo, assim, uma questão que, havia tanto tempo, se agitava no espírito de muitos. No quarto concilio Laterano (1215) foi afirmado canonicamente que, depois de o padre pronunciar as palavras de consagração os elementos sacramentais do pão e do vinho ficam convertidos na substância do corpo e do sangue de Cristo. Assim, foram decretadas honras divinas aos ele­mentos consagrados, que se tornaram objeto de culto e adoração. Foram feitos cofres ricos, lindamente cinzelados, para os receberem e, desse modo, segundo esta doutri­na falsa, o Deus vivo era encerrado num cofre, e podia ser transportado de um para outro lado!

ESTABELECIMENTO DO JUBILEU
Mas a atividade do papismo ainda se mostrou de outra maneira durante este século. A decadência em que tinham caído as cruzadas, que enriqueceram os cofres da Igreja Romana ao mesmo tempo em que empobreceram o resto da Europa, fez com que o papa começasse a procurar nova fonte de receita, e, para isso, a idéia que um engenhoso ca­tólico apresentou foi que o lugar de peregrinação para os cristãos devia ser mudado de Jerusalém para Roma. Isso veio em auxílio do desejo papal. Rios de dinheiro correram então para o Vaticano, e quando, no fim do século, o papa
Bonifácio VII instituiu o que chamam o jubileu, o êxito foi completo. De cem em cem anos havia de ter lugar uma pe­regrinação a Roma; e esta instituição tornou-se tão rendo­sa que a perspectiva de esperar cem anos por essa fonte de riqueza era um esforço grande demais para a paciência dos papas, e por isso mudaram o intervalo para cinqüenta anos. Mas mesmo esse espaço de tempo foi considerado muito longe, e, logo depois, foi determinado e estabelecido que o prazo fosse de vinte e cinco anos.

A QUINTA CRUZADA
Já demos a entender que o entusiasmo pelas cruzadas estava declinando, mas a História conta que em diversas ocasiões se organizaram nada menos de outros cinco exér­citos para aquela causa sem esperança. O primeiro desses (a quinta cruzada) foi proclamado por Inocêncio III, mas ele não encontrou muitos que o ajudassem. Apenas alguns fidalgos franceses, auxiliados pela república Veneziana, conseguiram reunir um pequeno exército que tomou de as­salto a cidade de Constantinopla. Reintegraram Isac Ân­gelo no trono, como imperador dos gregos, e estavam para se retirar quando o novo imperador foi assassinado e levan­tou-se repentinamente um grande tumulto e insurreição na cidade. Depois de restabelecida a ordem, os cruzados elegeram um novo imperador, Balduíno, conde de Flandres, e em seguida voltaram para seu país. Durante cin­qüenta e sete anos sucessivos o império grego foi governado por esta dinastia dos francos.

A SEXTA, SÉTIMA E OITAVA CRUZADAS
A sexta cruzada foi proclamada por Honório III, e os guerreiros eram principalmente alemães e italianos. Mar­charam para o Egito e apoderaram-se de Dalmieta, tendo morrido no cerco 70.000 habitantes. Foi uma perda de vi­das humanas inútil, como se provou mais tarde, porque a cidade foi retomada pelos sarracenos no decurso de alguns anos.
Pode-se dizer que a sétima e oitava cruzadas foram o resultado de um voto que Luís IX de França fez quando es­tava doente. Pareceu-lhe ver no fato do seu restabeleci­mento a expressão da vontade do Céu, que ele livrasse o santo sepulcro do poder dos infiéis, e as longas demoras que houve não puderam dissipar esta convicção. A sua pri­meira expedição foi empreendida no ano de 1249 e deu em resultado a retomada de Dalmieta, mas no ano seguinte o rei e quase todo o seu exército foram feitos prisioneiros. Quatro anos depois foi pago o seu resgate por uma grande soma, e combinaram uma trégua com os sarracenos por dez anos. Tendo o rei feito várias peregrinações aos lugares santos, voltou então para a França.
Mas ele não tinha esquecido seu voto, e, dezesseis anos mais tarde envolveu-se numa outra cruzada. Cansado no corpo, mas com o espírito muito vigoroso e cheio de espe­ranças, partiu com o seu exército a 14 de março de 1270. Antes de ter passado o ano, o restante daquele triste exér­cito estava a caminho da Europa, tendo deixado seu rei na Tunísia. Sem ter cumprido seu voto nem realizado suas es­peranças, o rei morreu de peste no mês de agosto, deixando a conquista da Terra Santa tão longe de se realizar como sempre.
Assim terminou a oitava cruzada, a última que os pa­pas proclamaram durante muitos anos com uma ou outra exceção, a última em que tomou parte qualquer soberano da Europa. Tanto os reis como os imperadores tinham vis­to todos os males que as "guerras santas" originaram, e os papas estavam muito preocupados com cruzadas de outra espécie, e mais perto de casa para cuidarem dessas empre­sas tão incertas.
Mas os papas foram os únicos que ganharam com as cruzadas, e o aumento do seu poder temporal foi conside­rável durante aqueles quatorze anos de lutas e derrama­mento de sangue. Na verdade, o clero em geral não tinha deixado de aproveitar a ocasião e, enquanto os nobres da Europa estavam sacrificando suas vidas na Palestina, os bispos e os abades tinham estado a usurpar os estados des­ses reis, e a encher de tesouros roubados os cofres da igreja de Roma.










16
Perseguição na Europa e a Inquisição
(1200-1300)


No ano em que Inocêncio III foi eleito papa, a obra de Pedro de Bruys, Henrique e Pedro Waldo produziu muito fruto, de modo que se podiam encontrar adeptos em quase todos os países da Europa. Na Alemanha e Itália homens e mulheres de todas as classes tinham seguido os seus ensi­nos e doutrinas evangélicas, desde os fidalgos até os cam­poneses, desde o abade de mitra até o monge de capuz; en­quanto que na Lombárdia existiam em tal quantidade que um deles declarou que podia viajar de Colônia a Milão re­cebendo todas as noites hospitalidade em casa de irmãos. Podiam encontrar-se na Inglaterra, na Áustria, na Boêmia e na Bulgária e até mesmo entre os corajosos eslavos e nos montes Ourales. Mas em parte alguma se podiam encon­trar em tão grande número como nas férteis planícies da França Meridional e nos vales de Piemonte; e foram esses dois pontos privilegiados da terra, os atingidos pelos editos de extermínio. Protegidos pelas montanhas que os cercavam, os cristãos dos vales puderam por ainda mais dois sé­culos escapar dos horrores de uma perseguição geral, mas os das planícies, os albigenses como lhes chamavam, fo­ram logo vítimas de uma execução imediata.

INOCÊNCIO INICIA UMA CRUZADA DE PERSEGUIÇÃO
Inocêncio deu começo à perseguição pedindo a Rai­mundo VI, conde de Tolosa, e a outros príncipes da França Meridional que adotassem medidas rápidas para a supres­são dos hereges, mas o seu apelo não encontrava a resposta cordial que esperava. Raimundo e os outros fidalgos não podiam concordar com aquele pedido bárbaro. Muitos de­les tinham parentes entre os hereges proscritos, e expulsá-los das suas casas, ou assassiná-los a sangue frio, era mais do que se podia esperar, ainda mesmo dos obedientes fi­lhos de Roma. Além disso, que mal tinham feito esses albi­genses a quem os perseguira? Sempre se tinham mostrado súditos pacíficos, cumpridores da lei, e contentes; e, devi­do à sua indústria, a província de Languedoc se tinha tor­nado a mais rica do país. Portanto, não se podia esperar que os senhores feudais, que tanto deviam aos seus traba­lhos, pudessem corresponder a tão cruéis editos, que orde­navam a destruição desses súditos tão fiéis.
A presença de Pedro de Castelnau, legado do papa, na corte de Raimundo ainda mais complicou o caso. Era ele um insolente monge da Ordem de Cister, e mostrava-se muito arrogante no seu modo de tratar os negócios. Quan­do o papa por meio de repetidas ameaças de castigos tem­porais e das chamas eternas, obrigou o conde a assinar um edito de exterminação, o legado foi tão zeloso em apressar a execução, e se precipitou de uma tal maneira que deu em resultado a sua própria ruína, evitando também que o edi­to se cumprisse. Raimundo estava encolerizado o mais possível pelos seus modos arrogantes, e, infelizmente, pro­feriu ameaças inconsideradas e precipitadas, que foram ouvidas por um dos seus sequazes. No dia seguinte este ho­mem armou uma questão com o legado, e depois de uma troca de palavras azedas de ambos os lados, desembainhou 0 seu punhal e feriu-o mortalmente.
A notícia deste acontecimento foi recebida em Roma com alegria, visto dar uma desculpa plausível ao papa para excomungar Raimundo, e para pedir o auxílio do rei da França e dos seus fidalgos.
Foi no ano de 1209 que 300 mil soldados todos decora­dos com a santa cruz, e tendo por comandante em chefe Simão De Montfort, se encaminharam para Languedoc.
À frente da força via-se o espanhol Domingos, com o símbolo do cristianismo nas mãos, e um ódio diabólico no coração; e sobre seu hábito branco levava um manto preto . triste emblema de uma próxima desgraça. Ao seu lado cavalgava o legado papal, Almarico, com os olhos encova-dos a brilhar de alegria malvada, quando olhava de tempos a tempos na direção das férteis planícies de Languedoc e em seguida para o exército que vinha na sua retaguarda.

O COMEÇO DA LUTA
Pouco depois dava-se o começo à obra execrável, e os soldados achavam-se empenhados em queimar, roubar e matar em todas as direções, embora o conflito propriamen­te não começasse, senão depois da chegada do exército de­fronte de Beziers. A guarnição estava aqui sob o comando de Raimundo Roger, sobrinho de Raimundo de Tolosa, e esta era uma das cidades mais fortes. O bispo da localida­de, segundo as ordens que tinha recebido de Almarico, exortou o povo a render-se, mas os católicos e os hereges re­cusaram-se a isso, igualmente. Almarico fez uma terrível ameaça a toda a cidade. E o ataque começou. A desigual­dade era esmagadora, e bem depressa as portas tiveram de ceder à força dos assaltantes. Levantou-se porém uma di­ficuldade. Havia católicos dentro das muralhas e como ha­viam de eles ser reconhecidos? Isto para Almarico não era dificuldade alguma. "Matem toda a gente", gritou ele: Matem homens, mulheres e crianças, pois o Senhor co­nhece aqueles que são seus".
- Sim, Almarico, o Senhor ainda te há de mostrar quais são os seus, quando sobre o trono Ele se sentar para te pe­dir contas do sangue inocente que derramaste!
Todos os habitantes da cidade foram massacrados na­quela ocasião; foram mortas de vinte a cem mil pessoas segundo as diferentes opiniões. A mesma destruição foi fei­ta em outras cidades. Mas a retirada, num período poste­rior, de alguns dos principais nobres com os seus partidá­rios, tornou necessário um novo apelo para reunir mais sol­dados, e Dominico e os monges viram-se obrigados em pouco tempo a pregar uma nova cruzada. Quarenta dias de campanha dizem eles, fará expiar o maior crime, e purifi­cará o coração da mais negra mancha. Ser soldado no exér­cito "santo" fazia com que fossem perdoados imensos pe­cados. O apelo ainda desta vez teve bom êxito, e no princí­pio do ano seguinte, De Montfort estava à testa de um novo exército.

PERSEGUIÇÃO A RAIMUNDO DE TOLOSA
Não vamos aqui contar tudo o que o papa fez a Rai­mundo de Tolosa. Parece que aos olhos daquele não havia modo de este expiar o pecado de ser chefe de tantos súditos hereges. Não foi suficiente manifestar o seu desgosto e jus­tificar-se pelo assassinato do monge de Cister. Raimundo teve além disso de dar uma prova da sua sinceridade entre­gando sete dos seus castelos mais fortes; teve de fazer peni­tência em público das suas ofensas, com uma corda em roda do pescoço enquanto lhe aplicavam chicotadas às cos­tas, e em seguida reunir-se às filas dos cruzados e comba­ter contra os próprios súditos, até mesmo contra a sua pró­pria família; e depois disso, sua santidade o papa mostrou sua "benignidade" dando-lhe o beijo da paz.
Quando porém o pobre conde se estava regozijando por terem passado todos os perigos e humilhações, chegou uma carta do papa para sua eminência, o legado, ordenando-lhe que deixasse por algum tempo o conde de Tolosa, e empre­gasse para com ele uma certa dissimulação, de modo que os outros hereges pudessem mais facilmente ser vencidos, e para que o pudessem esmagar quando se achasse sozinho. Vemos pois que Raimundo não tinha sido perdoado de modo algum, seguindo-se a isto a excomunhão que mais uma vez foi pronunciada contra ele.
A guerra mudou então de aspecto, e Raimundo com o auxílio do conde de Foix e outros fidalgos começou a tomar medidas desesperadas para sua proteção. O seu povo, que era muito dedicado, correu às armas à primeira chamada, e De Montfort viu que tinha agora de se haver com um ini­migo desesperado pela perseguição e enlouquecido pelo sentimento de repetidos danos. A sua natureza cruel esti­mulou-se com esta oposição inesperada, e as mais inaudi­tas barbaridades foram cometidas por sua ordem. Homens e crianças foram mutilados, as mulheres desonradas, as searas e vinhas destruídas, as vilas queimadas, e as cida­des entregues à pilhagem e passados à espada os seus habi­tantes. No momento da captura de La Minerbe foram queimadas vivas umas 140 pessoas, entre as quais a mu­lher, a irmã e o filho do governador da localidade. Dizem que todos caminhavam para a morte de muito boa vonta­de, cantando já nas chamas hinos a Deus, e não cessaram de lhe entoar louvores senão quando o fumo os sufocou. Quando o castelo de Brau se rendeu, De Montfort tirou os olhos e cortou o nariz a cem dos seus bravos defensores, deixando um olho a um deles para que pudesse guiar o res­to para Cabrieres, a fim de aterrar a guarnição que ali se achava. Estas e outras crueldades, indignas até da Roma paga, foram praticadas pela "santa" igreja católica, e exe­cutadas pelos "santos" peregrinos, como eram chamados pelo papa.
Na tomada de Foix, quando a cidade estava abandona­da aos horrores de um saque, e os habitantes de todas as idades e sexos estavam sendo igualmente massacrados, ou­viam-se as vozes dos bispos e legados, por cima dos gritos das mulheres e das maldições dos seus assassinos, entoan­do um solene cântico. Uma senhora chamada Giralda de quem se dizia que nenhum pobre tinha ido a sua porta sem ser socorrido, também estava entre os prisioneiros, e sendo lançada a um poço foi morta a pedradas. Raimundo era ca­tólico, mas diz-se que, ao ver o tratamento que estavam dando aos seus fiéis súditos, exclamou: "Bem sei que vou perder as minhas propriedades por causa dessa boa gente, mas estou pronto não só a ser expulso dos meus domínios como a dar a minha vida por todos eles".

TRIUNFO DE DE MONTFORT
Depois de muitas vicissitudes a cidade de Tolosa, que era a fortaleza mais importante do conde, caiu nas mãos dos cruzados, e os seus habitantes foram tratados com a crueldade habitual pelos "peregrinos". O bispo papista, Fouquet, em cuja consciência já pesava o sangue de dez mil pessoas do seu rebanho, tomou posse do palácio de Raimundo, e obrigou o pobre conde a uma ignóbil obscuridade. Simão De Montfort foi, no entanto, investido pelo rei da França com os condados de Beziers, Carcassone e Tolosa, e viam-no cavalgar diariamente pelas ruas en­quanto o povo aplaudia-o, e o clero gritava exultante, "Bendito é o que vem em nome do Senhor".
Mas Roma, sempre invejosa até dos seus melhores aju­dantes, começou a ver com maus olhos o ambicioso e pode­roso De Montfort. Talvez houvesse razão, para isso, pois Montfort, logo que se viu de posse dos seus novos territó­rios, começou a questionar com o legado do papa. Este, na qualidade de arcebispo de Narbone, pretendia a soberania temporal daquela província, mas De Montfort que tinha tomado o título de duque de Narbone, recusou-se a reco­nhecer tal direito, e, continuando o legado na sua preten­são, estigmatizou De Montfort de herege, e logo se apode­rou da cidade à força. O papa então fez publicar um edito proibindo que se continuasse a pregar cruzadas, e conce­deu licença a Raimundo e seus herdeiros para recuperarem as suas terras e domínios de todos que estivessem de posse deles injustamente.

DERROTA DE DE MONTFORT
O filho do conde arruinado tomou coragem com este novo edito, e conseguiu organizar um exército para recupe­rar os domínios do seu pai. Marchou sobre Tolosa, e foi ali recebido com entusiasmo pelos cidadãos oprimidos e esmagados, enquanto o pérfido Fouquet foi expulso ignominiosamente dali. Depois de muitas tentativas sem resulta­do para retomar a cidade, De Montfort reuniu de novo um exército de 100.000 homens, e, cheio de confiança no bom êxito, caiu sobre a cidade na primavera do ano de 1218. O assalto foi levado por diante com muita energia, mas foi re­pelido, e esta nova derrota pô-lo num estado de tristeza de que o legado do papa dificilmente o pôde tirar.
"Nada receieis, meu Senhor", disse o hipócrita profeta, "fazei outro ataque vigoroso. Recuperemos a cidade seja como for, e destruamos os seus habitantes; e asseguro-vos que todos aqueles homens que foram mortos em batalha, irão imediatamente para o Paraíso".
Porém a observação de um oficial que o ouviu estava mais perto da verdade: "Senhor cardeal", disse ele, "falais com muita certeza, mas se o conde vos acreditar há de pa­gar caro a sua confiança, como já lhe aconteceu".
Enquanto o conde estava ouvindo a missa, vieram de repente dizer-lhe que o inimigo tinha feito uma sortida; e logo que a missa acabou ele saltou para o seu cavalo e foi apressadamente para o sítio da peleja. Mas apenas ali ti­nha chegado, quando o seu cavalo, um animal fogoso, rece­beu uma ferida dolorosa, e partindo a todo galope, levou o cavaleiro mesmo para debaixo dos baluartes da cidade. Os arqueiros colocados por cima não perderam a oportunida­de, e, atiraram-lhe flechas, uma das quais entrou pelas juntas do seu arnês, ferindo-o na coxa. Pouco depois, um grande fragmento de rocha, lançado pela mão de uma mu­lher apanhou-o pela cabeça e De Montfort caiu sem vida no chão.

HONÓRIO III E O REI LUÍS
No espaço de cinco anos depois deste acontecimento quase todos os principais promotores destas terríveis per­seguições tinham morrido. Inocêncio morreu, e sucedendo-lhe Honório III, homem de menos inteligência, mas igual­mente cruel, que continuou as perseguições. O filho de De Montfort sucedera a seu pai, e cruzou a espada com o jo­vem Raimundo, cujo pai também já tinha morrido. Pela morte do rei da França, Filipe Augusto, sucedera-lhe seu filho Luís, o qual entrou de boa vontade na luta, mas a fa­vor de Roma. Em 1228, Tolosa caiu outra vez nas mãos dos cruzados. Raimundo foi tratado pouco mais ou menos como tinha sido seu pai, com a diferença de que, em vez de entregar sete dos seus castelos ao papa, teve de entregar sete das suas províncias ao rei da França. Deste modo Roma estava realmente prejudicando os seus próprios fins, aumentando o poder de um monarca que podia, de um mo­mento para outro, tornar-se um inimigo terrível e incômo­do.
Um escritor moderno diz o seguinte a respeito das cala­midades de Languedoc: "Para todo homem de fé, para to­dos os que pensam, especialmente para aqueles que estu­dam a história debaixo do ponto de vista das Escrituras, as guerras de Languedoc são as mais sugestivas possíveis. São as primeiras desta espécie que aparecem nos anais da his­tória. Estava reservado a Inocêncio III inaugurar a guerra sobre novo caráter. Tinha havido até ali muitos exempla­res de vários indivíduos serem sacrificados aos preceitos do clero, tal como Arnaldo de Brescia etc, mas esta foi a pri­meira grande experiência que a igreja fez para conservar a sua supremacia pela força de armas".
É preciso notar, porém, que não foi o exército da igreja avançando com um zelo santo contra os pagãos, os maometanos, os que negavam a Cristo, mas sim a própria igre­ja professa em armas contra os verdadeiros adeptos de Cristo; contra aqueles que reconheciam a sua divindade e a autoridade da Palavra de Deus. E perguntamos nós:
Qual era o crime dos albigenses? A sua principal ofensa era negarem a supremacia do papa, a autoridade do clero, e os sete sacramentos como eram ensinados pela igreja de Ro­ma; e, aos olhos da igreja, não podia haver maiores crimi­nosos em toda a face da terra; portanto uma exterminação absoluta era o decreto invariável. Falta-nos agora relatar que, segundo nos parece, durante os primeiros cinqüenta anos daquele século, nada menos de um milhão de albigen­ses perderam a vida.

ESTABELECIMENTO DA INQUISIÇÃO
Quando começaram as guerras que acabamos de nar­rar, abriu-se por influência de Domingos, em um castelo próximo de Narbone, o mais medonho dos tribunais terres­tres, a Inquisição. Foi esta a sua primeira aparição, mais muitos meses antes já tinham sido abertos em todas as principais cidades e distritos de Languedoc outros tribu­nais provisórios da mesma espécie. A princípio funciona­vam secretamente, mas em 1229 foi reconhecida publica­mente a sua utilidade para o fim de descobrir hereges, sendo-lhes dados plenos poderes para entrarem e darem bus­cas em todas as casas e edifícios, e sujeitar os suspeitos a todo e qualquer exame que julgassem necessário.
É difícil conceber todas as medonhas conseqüências que resultaram do exercício de tal poder.



























17
Influência papal sobre a Reforma
(1300-1400)


A Despeito da grande autoridade que Roma adquiriu por meio da inquisição e de outras instituições muito mais antigas, não faltaram durante este século (1300-1400) indí­cios de uma firme oposição às suas pretensões, que nem fogo e nem espada podiam subjugar.

GREGÓRIO IX E FREDERICO DE ALEMANHA
Quando Gregório LX, um velho de oitenta anos de ida­de, subiu ao trono pontificai, imaginou que ia empunhar o cetro de outro Hildebrando, mas em breve viu que se tinha enganado miseravelmente. O primeiro esforço importante do pontífice foi promover novas cruzadas contra os maometanos, mas as suas cartas para as cortes da Europa fica­ram sem resposta. O velho canonista apelou então para Frederico de Alemanha, e o imperador, embora ocupado com complicações políticas, anuiu em reunir as forças ne­cessárias e partir com elas para a Palestina.
O exército organizou-se e Frederico partiu, mas sendo surpreendido pela peste, tiveram suas tropas de se disper­sarem e foi abandonada a idéia da expedição. Foi grande o desgosto do papa quando soube deste revés e demora. Ti­nha tido durante bastante tempo os olhos fitos com cobiça nos domínios do imperador, e tinha a esperança de que, le­vantando discórdia entre os súditos de Frederico, poderia durante a ausência invadir os seus territórios e assim fazer algumas importantes aquisições para aumentar os estados papais, mas o regresso do imperador transtornou os seus cálculos e o fez desvanecer-se por completo dos seus so­nhos.

IRA DO PAPA CONTRA FREDERICO
Gregório não quis acreditar na doença de Frederico, e, tomando-o como um pretexto vão, excomungou-o.
Mas tais medidas severas não deram o resultado que ele esperava. Em vez de se atemorizar com a injustificável rudeza do papa, Frederico respondeu indignado e com fir­meza, escrevendo várias cartas e tratando de sua defesa.
Ao próprio papa escreveu: "Os vossos antecessores nunca deixaram de usurpar os direitos de reis e príncipes; têm disposto das suas propriedades e territórios, e os têm distribuído pelos protegidos e favoritos da sua corte; têm ousado absolver alguns súditos dos seus votos de obediên­cia; têm até introduzido a confusão da administração da justiça, prendendo e soltando, e insistindo nas suas idéias sem atenção pelas leis do país. A religião tem servido de pretexto a todas estas transgressões contra o governo civil, mas o verdadeiro motivo sempre foi condenar tanto gover­nantes como súditos a uma intolerável tirania, e extorquir dinheiro, e, uma vez que pudessem obter recompensa mo­netária, não se importaram absolutamente nada com os tristes efeitos dos seus atos entre a sociedade". Mas apesar desta linguagem ousada e enérgica, Frederico era um ver­dadeiro filho da igreja, e em obediência aos desejos do pontífice, fez os seus preparativos para uma expedição à Palestina, apesar de não ter obtido a revogação da exco­munhão que pesava sobre ele.
Na primavera do ano seguinte partiu, sendo nesta oca­sião novamente excomungado, e assim pela terceira vez sentiu os efeitos da cólera de Gregório.

ASTÚCIA E FALSIDADE DO PAPA
Os que observaram com algum cuidado os movimentos do papa, começaram a perceber a sua astúcia, e a des­cobrir a falsidade do seu zelo em libertar a Terra Santa. As suas dignidades pessoais estavam acima da honra que era devida ao nome e ao lugar do nascimento de Cristo, e por isso, logo que recebeu notícias da chegada de Frederico, enviou alguns dos seus frades com instruções para o pa­triarca de Jerusalém e as ordens militares, para que não prestassem auxílio algum ao imperador, esperando deste modo que ele fosse vencido pelo inimigo, quer morrendo no campo de batalha, quer ficando preso em alguma das masmorras dos sarracenos. Foi mesmo conivente de uma cons­piração para surpreender Frederico quando ele fosse tomar banho no rio Jordão; mas os templários a quem tinha con­fiado esta conspiração não foram bem sucedidos, e por isso ainda desta vez o malévolo velho ficou logrado.
Mas ainda não tinha terminado aqui os seus projetos. Sendo incapaz de ferir o imperador pessoalmente reuniu um grande exército, e, depois de pronunciar uma quarta excomunhão contra ele e de desligar os seus súditos da obediência, invadiu os seus territórios. Frederico concluiu imediatamente um tratado com os sarracenos, muito hon­roso, apesar de ser feito com precipitação, e voltou à Euro­pa o mais depressa que pôde. A notícia do seu progresso es­palhou o desânimo no exército invasor, e em pouco tempo o papa sofreu também o desgosto de um novo desaponta­mento. Aliviou, contudo, o seu espírito atribulado, lançan­do uma nova excomunhão sobre o imperador, servindo-lhe de pretexto para isso o fato de ele ter abandonado as cruza­das. Foi esta a quinta vez que o papa excomungou o impe­rador no espaço de poucos anos, e Frederico devia ter fica­do deveras perplexo se tivesse prestado atenção a estas ex­comunhões! Foi excomungado por não ter partido para a Terra Santa; foi excomungado por ter partido para a Terra Santa; foi excomungado na Terra Santa, e, finalmente, foi excomungado por ter voltado dali, apesar de ter feito um tratado de paz muito vantajoso com os maometanos.
Mas Frederico teve bastante juízo para não fazer caso de tais excomunhões, e riu-se da cólera do pontífice. Mais tarde foi feita uma trégua entre ambos, mas não durou muito, porque Gregório não podia deixar o seu rival em paz. Ainda arrastou uma existência miserável durante mais alguns anos, até que por fim, com noventa e nove anos de idade, morreu de prostração provocada por um ex­cesso de cólera.

CONTINUA A LUTA ENTRE O PAPISMO E O PODER TEMPORAL
A luta entre o poder temporal e o papismo - pois deve­mos considerá-la como sendo mais do que uma simples luta entre dois homens - foi levada por diante, ora com mais, ora com menos zelo, pelos papas que sucederam a Gregório, e nem a morte de Frederico, no ano de 1250, pôs fim à contenda. Foi só no pontificado de Bonifácio VIII que os espíritos pensadores começaram a descobrir nestes contínuos esforços de Roma, em querer desenvolver as suas pretensões temporais, sintomas de uma decadência, lenta mas indiscutível, da sua supremacia.
Por toda a Europa os príncipes se estavam levantando em defesa dos seus direitos temporais e recusando conside­rar os seus reinos como feudos da Sé papal. Até mesmo na Inglaterra, apesar do covarde exemplo de João, houve um monarca bastante ousado e poderoso para resistir às or­dens do papa, de modo que, quando Bonifácio impruden­temente reclamou os seus direitos ao reino da Escócia, foi logo repudiado por Eduardo I. Com igual ardor opuseram-se os nobres da Hungria e uma relação idêntica à coroa da­quele país, escolhendo eles um soberano a seu gosto, ape­sar de o papa reclamar solenemente que o primeiro rei cris­tão da Hungria oferecera e dera aquele reino à igreja roma­na. A prova de que Bonifácio não tinha de modo algum de­sistido das loucas pretensões dos outros papas seus ante­cessores está numa carta que dirigiu ao seu legado na Hungria, na ocasião acima mencionada, e que estava cheio dos mais soberbos pensamentos; porém mal pensava ele quão cedo se havia de manifestar a falsidade de tais idéias e quão cedo lhe havia de ser tirada a glória de que se gabava.

BONIFÁCIO VIII E FILIPE DE FRANÇA
Na época a que nos referimos, era o trono da França ocupado por Filipe, o Formoso, um dos homens mais imo­rais, e tão teimoso quanto imoral. Já se tinha tornado bas­tante odioso aos seus súditos pelo modo como roubava aos nobres, oprimia a plebe, e maltratava os judeus, e conti­nuava a lançar contribuições ao clero, despertando ime­diatamente a cólera do Vaticano. Contudo Filipe não se atemorizou com a excomunhão com que o ameaçavam e vingou-se proibindo a transmissão de dinheiro, jóias e ou­tros artigos para a corte de Roma, ficando por isso o papa privado dos rendimentos que lhe vinham da França. Assim começaram as hostilidades. O fato de o rei dos franceses ter em seguida mandado prender o bispo de Pamiers, acu­sando-o de sedição, agravou ainda mais a contenda, e no ano 1302 o papa mandou publicar uma bula insultante na qual afirmava, com orgulho, que Deus o colocara sobre as nações e os reinos, para arrancar e deitar abaixo, destruir, edificar e plantar em seu nome e zelar pela sua doutrina.

FIRMEZA DE FILIPE E TEIMOSIA DO PAPA
Filipe ainda assim não se humilhou. Ficou mais admi­rado da audácia do papa do que incomodado com as suas ameaças; e uma das primeiras coisas que fez, depois de re­ceber a bula, foi mandar queimá-la publicamente em Pa­ris, ao som das trombetas. De mais a mais este procedi­mento teve completa aprovação no parlamento francês; e o clero, cheio de apreensões pelo estado assustador das coi­sas, rogou insistentemente ao papa que procedesse de um modo mais brando. Mas Bonifácio era teimoso e inflexível, e a soberba não o deixava ver a grave importância da ques­tão. A sua dignidade não lhe permitia pensar numa recon­ciliação com seu adversário; reuniu, portanto, um concilio de cardeais e tratou de publicar outra bula. Nesta teve al­gum trabalho para definir a sua autoridade, mas como no seu espírito era esta ilimitada, não nos vamos ocupar a examinar minuciosamente as diferentes cláusulas da bula. Depois de ter afirmado as suas pretensões à supremacia universal, concluía nestes termos; "Portanto, declaramos, definimos e afirmamos que é absolutamente essencial para a salvação de todo o ser humano, estar sujeito ao pontífice romano".
Ao mesmo tempo aparecia outra bula excomungando todo aquele que impedisse os que quisessem apresentar-se perante a Sé de Roma. Esta bula claramente dizia respeito ao rei francês, que tinha publicado ordens proibindo que o clero fosse a Roma, tendo este passo altamente desagrada­do ao pontífice. Filipe recebeu estas comunicações com ad­mirável sossego. Na verdade, a moderação da sua resposta deu azo a uma grande admiração. Manifestou-se os seus bons desejos de reprimir os abusos de que tinha sido acusa­do, e de fato prometeu fazer tudo que estivesse ao seu al­cance para promover uma reconciliação com a igreja roma­na. Bonifácio, porém, não aproveitou esta ótima ocasião. Sem pensar na crise por que estava passando o papismo, declarou que não estava satisfeito com a resposta de Fili­pe, e assim acabou com todas as possibilidades de um acordo entre ambos.

CONSPIRAÇÃO CONTRA O PAPA
Restava agora a Filipe tomar um partido decisivo a res­peito do papa, e encontrou um bom auxiliar em Guilherme de Nogaret, chanceler francês, o qual por 10.000 florins su­bornou um fidalgo romano chamado Colonna, que tinha acesso ao papa, e acompanhado de 300 cavaleiros armados dirigiu-se para Anagni, onde o pobre velho então morava.
Estava rodeado pelos cardeais e a sua comitiva quando se ouviu o som das patas dos cavalos, seguido do grito tu­multuoso de "Morra o papa! Viva o rei de França!" Ime­diatamente desapareceram cardeais e comitiva, deixando o papa sozinho. Mais triste pelo abandono dos seus amigos do que pelos perigos que o esperavam, o pobre velho não podia reprimir os primeiros sentimentos da sua natureza, e debulhou-se em lágrimas. Mas aquela fraqueza foi logo vencida, e sustentar a dignidade do seu cargo foi o pensa­mento que absorveu todos os outros: "Visto que sou atrai-çoado, como Jesus Cristo o foi também", exclamou ele, "hei de ao menos morrer como papa". E pondo as suas ves­timentas, colocou a tiara sobre a cabeça, pegou nas chaves e na cruz, e subiu para a cadeira pontificial. Colonna e Nogaret foram os primeiros a entrar, mas a atitude digna do velho desarmou a sua coragem, e não avançaram. No en­tanto os outros tinham-se espalhado pelos outros quartos procurando alguma coisa para roubar, e enquanto estavam assim ocupados, o povo de Anagni voltou a si do susto, e correu para salvar o papa. Conseguiram-no, e os do partido do rei que não morreram na peleja, fugiram do palácio com tudo que puderam levar.

MORTE DE BONIFÁCIO VIII
Mas o papa, apesar de escapar naquela ocasião, tinha os seus dias contados. Tinha oitenta e seis anos de idade, e o choque que sofreu transtornou-lhe um pouco o intelecto. Fechou-se no quarto e recusou a toda a comida, e assim continuou durante três dias inteiros. Depois não pôde su­portar a solidão, e partiu às pressas para Roma, num esta­do febril excitado, e sedento de vingança. Apresentou-se no lugar do mercado com roupa em desordem, o cabelo de­salinhado e caído pela cara abaixo, e ali falou à multidão. Em seguida tornou a meter-se no seu quarto, e sentindo que seu fim estava próximo, despediu os seus criados. Não queria que ninguém o visse morrer Deus foi a única teste­munha. Quando os criados o tornaram a ver saía-lhe espu­ma pela boca, e tinha o cabelo branco salpicado de sangue, e o bordão em que tinha acabado de pegar estava mordido pelos dentes - Bonifácio estava morto.
Seria uma empresa triste entrar na história dos papas Que o sucederam, ou mesmo enumerar os seus atos de malvadez e presunção, e por isso não tentaremos. Podíamos encher páginas com a descrição das suas contendas com os cardeais, das suas crueldades, das suas extorsões, da insolência com que tratavam os príncipes, da sua hipocrisia; podíamos mostrar que uns eram miseráveis, outros perjuros, outros assassinos, outros adúlteros, e assim cansar o lei­tor com a narrativa dos seus crimes, mas já temos escrito bastante sobre este assunto. Parece-nos que está bem claro para todos que se tornava necessária uma reforma de qual­quer espécie, visto que a sociedade não podia agüentar por muito tempo como estava. Isto era um fato; e brevemente veremos que a realidade teve lugar uma reforma, posto que uma obra tão importante não pudesse realizar-se num mo­mento. A noite da Idade Média, poderia na verdade, ceder lugar ao dia claro, mas essa claridade devia vir gradual­mente, e era preciso que o dia fosse precedido pela aurora, durante a qual mal se poderia ver a luz, e os raios do sol ti­nham de abrir dificilmente um caminho por entre o espes­so nevoeiro; e ainda havia de aparecer também a estrela da alva para anunciar a aproximação do grande astro do dia, e alegrar com os raios o vigia ansioso.
Assim sucedeu. E quando a confusão se tornou maior, e as trevas mais profundas, começou a raiar o dia; e João Wycliff foi como a estrela da alva da reforma, que desper­tou no horizonte espiritual.






18
O princípio da Reforma
(1324-1459)

Supõe-se que João Wycliff nasceu nas proximidades de Richmond, no condado de York, na Inglaterra, pouco mais ou menos em 1324. A pobreza de seus pais, que parece te­rem sido camponeses, não o impediu de entrar, na idade própria, na universidade de Oxford, onde aproveitou todas as ocasiões para se instruir, ganhando bem depressa as boas graças do seu tutor, o piedoso e sábio Thomas Bradwardine, que fazia dele muito bom juízo. Durante os seus estudos adquiriu um bom conhecimento não só das leis ci­vil, canônica e municipal, mas também da ruína da natu­reza humana, como as Escrituras a ensinam, da inutilida­de do merecimento humano para a salvação, e da grandeza da graça divina, pela qual o homem pode ser justificado sem as obras da Lei. Diz-se também que, por conselho do seu tutor, estudara as obras de Grostete, e dali lhe viera a idéia de que o papa era o Anticristo.
Os seus ataques às ordens mendicantes, que atraíam os estudantes da universidade para os seus mosteiros, tornaram-no notável em Oxford. Ele escreveu alguns folhetos sobre o assunto. Era Wycliff nesse tempo professor da uni­versidade, mas isso não o impediu de continuar no seu tra­balho pelo Senhor, e, aos domingos, despia a toga de pro­fessor e pregava ao povo o Evangelho simples na lingua­gem popular.
A fama das suas pregações bem depressa chegou a Ro­ma, e os frades mendicantes, cuja influência estava muito abalada pelo seu ensino, apressaram-se a dar a saber ao papa os seus receios. Para isso usaram de um meio muito eficaz extraindo dos escritos de Wycliff dezenove artigos, e mandando-os ao papa, juntamente com as suas cartas; e, como a maior parte destes artigos, combatiam de uma ma­neira muito clara as pretensões temporais do papa, pode-se facilmente imaginar qual foi o resultado. Nove dos ex­tratos foram logo condenados como heresias e outros decla­rados errados, e foram mandadas imediatamente ordens à Inglaterra para que o ousado herege fosse levado aos tribu­nais pelas suas opiniões. Isto foi o princípio do conflito, mas Roma ainda desta vez se enganou.

ATAQUE AO REFORMADOR
Ao atacar o reformador, tinham atacado um homem com amigos, porque Wycliff, tinha-os em todas.as classes. A classe popular estimava-o porque ele se interessava pela sua causa e lhes explicava as Sagradas Escrituras em lin­guagem que podiam compreender; os fidalgos eram seus amigos porque ele os ajudava a resistir ao clero; e em Ox­ford não era menos estimado pela sua piedade do que res­peitado pelo seu saber.
No mês de fevereiro do ano 1377 foram abertas as ses­sões da Convocação de S. Paulo, e para ali se dirigiu Wy­cliff, acompanhado de seus amigos João de Gaunt, duque de Lencastre, e Lord Percy, marechal da Inglaterra. Re­ceavam estes que se ele fosse sozinho não seria ouvido com imparcialidade, e podia talvez ser vítima de um jugo odio­so; e quando começou o julgamento, a conduta de Guilher­me Courtenay bispo de Londres mostrou bem que tinham razão de ter receios.
A multidão de gente dentro da catedral era enorme, e o marechal teve de empregar a sua autoridade para poder chegar ao pé dos juizes. Isto excitou o bispo imensamente, e seguiu-se uma cena tumultuosa. "Se eu soubesse, se­nhor," disse ele, "que queríeis ser senhor nesta igreja, teria tomado as minhas medidas para vos impedir de aqui en­trar". O duque de Lencastre, que era nesse tempo regente do reino pela menoridade do rei Ricardo II, aprovou o ato do marechal, e observou que era "necessário manter a or­dem apesar dos bispos". Courtenay a custo conteve a sua ira, mas quando, em seguida, o marechal pediu uma cadei­ra para Wycliff, exclamou, encolerizado, "Ele não deve sentar-se; os criminosos conservam-se de pé perante seus juizes". De ambos os lados se levantou novamente uma grande discussão, e só Wycliff se conservou silencioso; no entanto, o povo, seguindo o exemplo dos seus chefes, come­çou a exprimir sua própria opinião com atos de violência. Era impossível prolongar a sessão em tais circunstâncias; portanto, encerraram o tribunal, e o reformador saiu da ca­tedral acompanhado pelo duque de Lencastre.

DOIS PAPAS AO MESMO TEMPO
Por algum tempo deixaram-no em paz, e Roma teve de se ocupar duma questão mais séria, que exigia toda a sua atenção. Tratava-se nem mais nem menos do que a eleição de um papa rival em Findi, Nápoles. O pontífice romano, Urbano VI, desgostara de tal maneira os seus cardeais pela sua aspereza e severidade, que estes tinham julgado conve­niente prestar a sua fidelidade a outro, e tinham investido dessa dignidade Roberto, conde de Genebra. Este, depois de ser devidamente eleito, estabeleceu a sua residência em Avignon, França, sob o título de Clemente VII, e ali foi re­conhecido como papa pela Escócia, Espanha, França, Sicília e Chipre. O resto da Europa ainda considerava Urbano como o legítimo "sucessor" de S. Pedro.
Como era de esperar, este notável cisma ainda mais ex­citou o zelo de Wycliff contra o papismo, e deu-lhe novos motivos para o atacar. "Confiemos na ajuda de Cristo", exclamou ele, "porque Ele já começou a ajudar-nos pela sua graça, fendendo a cabeça do Anticristo em duas, e fa­zendo com que as duas partes comecem a guerrear uma contra a outra". Ele já tinha declarado que o papa, o so­berbo padre mundano de Roma, era o Anticristo, e o mais maldito dos exploradores da bolsa alheia, e agora Wycliff não teve escrúpulos em afirmar que tinha chegado o mo­mento oportuno para extinguir o mal inteiramente .

WYCLIFF CITADO DE NOVO
Afirmando isto, porém, antecipava o futuro, e sendo ci­tado segunda vez para comparecer perante os seus acusa­dos, viu que muitos dos seus amigos o tinham abandonado por causa das suas idéias extremistas, e entre eles o duque de Lencastre. Mas Deus não o tinha abandonado, e o abandono dos amigos terrestres deu-lhe pouco cuidado. No seu primeiro julgamento tinha ele talvez estado, sem o sa­ber, a fazer da carne a sua arma, mas agora não era assim, e apresentou-se no tribunal sozinho. Contudo, bastantes pessoas que esperavam ser ele provavelmente devorado naquela caverna de ladrões, encaminharam-se para a ca­pela, na intenção de lhe acudir aos primeiros sintomas de traição que se manifestassem.
Os prelados tinham ido para o concilio confiados e alti­vos, certos de uma vitória fácil, mas ao observarem estas manifestações populares, ficaram inquietos e, quando, ao começar os interrogatórios, receberam uma ordem da mãe do jovem rei proibindo-os de pronunciar qualquer sentença definitiva sobre a doutrina e conduta de Wycliff, a sua der­rota foi completa.

WYCLIFF TRADUZ A BÍBLIA
Assim pois, pela graça de Deus, Wycliff escapou ainda mais uma vez das garras dos seus perseguidores, e pôde, pouco depois, ocupar-se com a grande obra da tradução da Bíblia na linguagem do país. Havia muito tempo que ele manifestara o desejo de que os seus patrícios pudessem ler o Evangelho da vida de Cristo em inglês, e havia agora to­das as possibilidades de ver o seu desejo satisfeito. Poucos meses mais tarde essas probabilidades tornaram-se em certeza, e, à proporção que o trabalho ia chegando ao fim, o ousado reformador começou a sentir que a sua missão na terra estava quase terminada. No ano de 1383 viu a sua obra completa, e, apesar de os bispos fazerem toda a dili­gência para que a versão fosse suprimida por lei do Parla­mento, os seus esforços não tiveram resultado, e em breve a Bíblia começou a circular por todo o reino.

MORTE DE WYCLIFF
Wycliff porém não viveu o suficiente para ver a oposi­ção dos bispos, pois que a 31 de dezembro de 1384, depois de uma vida agitada de sessenta anos, entrou no descanso •eterno; e, posto que os seus amigos receassem que ele mor­resse de morte violenta, Deus tinha determinado outra coi­sa e assim morreu pacificamente em Luterworth. Os agen­tes de Roma foram pois logrados na esperança de alcançar a desejada presa, mas ainda assim o seu corpo foi mais tar­de desterrado e queimado, e as cinzas lançadas num regato próximo, "O regato", diz Fuller, "levou as cinzas ao rio Avon; o Avon levou-as ao Saverna; o Saverna ao canal, e este ao grande oceano. E assim as cinzas de Wycliff são os emblemas da sua doutrina, que se acha agora espalhada pelo mundo inteiro".

OS LOLLARDOS
Quando Wycliff morreu os seus adeptos eram muitos, e havia-os entre todas as classes da comunidade. Parece que era em Oxford que havia maior número, e quando o Dr. Rigge, chanceler da universidade, recebeu ordem para im­por silêncio àqueles que favoreciam o reformador, respon­deu que não ousava fazê-lo por ter medo de ser morto. To­dos os que adotaram publicamente a doutrina de Wycliff eram chamados de lollardos, mas é certo que mesmo antes de Wycliff aparecer já existiam muitos cristãos com essa denominação. As suas doutrinas e opiniões eram em tudo iguais às do reformador, e parece que foram tão infatigáveis como ele em as espalhar. Assim como Wycliff, eles também ensinavam que "o Evangelho de Jesus Cristo é a única origem da verdadeira religião; que não há nada no Evangelho que mostre que Cristo estabeleceu a missa; que o pão e vinho, ainda depois de consagrados, ficam sendo pão e vinho; que os que entram para os mosteiros ainda se tornam mais incapazes de observar as ordens de Deus; e, finalmente, que a penitência, a confissão, a extrema unção, não são precisas, nem se fundam nas Escrituras Sa­gradas".
Pensar que Roma deixaria viver tais incorrigíveis hereges, sem se incomodar, seria supor que ela fosse capaz de tolerância e misericórdia - qualidades estas que nunca pa­tenteou. Não era este o seu modo de proceder; e se os lollardos não foram logo perseguidos pela sua cólera, foi unicamente porque lhes faltavam os meios de tornar bas­tante eficaz a perseguição. Contudo, a subida ao trono de Henrique IV forneceu-lhe a oportunidade que esperava. Os padres e os frades tinham estado no entanto bastante ocu­pados em espalhar falsos boatos sobre o procedimento re­volucionário dos lollardos, e tinham inspirado tais receios à nação que, quando no ano de 1400 o novo rei fez publicar um edito real determinando que os hereges fossem quei­mados, o Parlamento prontamente o sancionou.

TEMPO DE MARTÍRIOS
Se fôssemos descrever todos os martírios que fizeram os "hereges" sofrer durante esta perseguição, teríamos de es­crever um martirológio, e isso iria muito além dos nossos limites. Guilherme Sautree teve a honra de ser a primeira vítima desta nova lei. A ele seguiu-se João Badby, um ar­tista de Worcester, cujo martírio foi presenciado pelo jo­vem príncipe de Gales - depois Henrique V. Conta-se des­te mártir que, quando acenderam o fogo, ele pedira miseri­córdia, e Henrique ordenara que fosse tirado das chamas. Trazido à sua presença, o príncipe perguntou-lhe: "Queres abandonar a heresia e conformar-te com a fé da santa ma­dre igreja? Se queres, terás sustento por um ano tirado do tesouro do rei". Mas João Badby tinha estado a pedir mi­sericórdia de Deus e não dos homens, e a sua firmeza não se abalou com mais esta prova. Foi, em conseqüência, le­vado segunda vez para as chamas.
Como os lollardos aumentassem cada vez mais, o arce­bispo Arundel fez convocar um concilio no ano de 1413, a fim de procurar melhores meios de os suprimir, e desde esse tempo, durante perto de um século, as chamas da per­seguição foram ardendo por toda a Inglaterra, e conservou-se o mesmo rigor na busca dos hereges; mas Deus tinha de­cretado que a obra dos seus servos prosseguisse; e quem poderia deter a sua mão? As miseráveis criaturas de Roma podiam fazer diminuir o pequeno bando de cristãos, por meio de fogo e outras torturas, e prisões (as tribulações eram o quinhão que os fiéis discípulos esperavam), mas não podiam destruir a obra que Deus tinha começado. A sua Palavra - aquela semente incorruptível que vive e per­manece eternamente - estava nas mãos do povo, e enquan­to o poder dela estivesse entre eles, as armas de Roma eram impotentes, e a obra de Deus nas almas havia de se efetuar para a sua glória.











































19
Os reformadores antes da Reforma
(1400-1500)


O EVANGELHO NA BOÊMIA
Enquanto os lollardos eram perseguidos na Inglaterra, dava-se um despertamento religioso noutro ponto da Euro­pa, para o qual chamamos a atenção do leitor. Este desper­tamento teve como chefe o mártir reformador João Huss.
Não resta dúvida de que foram os escritos de Wycliff que acenderam as primeiras centelhas desta revivificação, e as circunstâncias que conduziram a isto, às quais nos po­demos apenas referir em breves palavras, assim descritas: A esposa de Ricardo II de Inglaterra era uma princesa boê­mia, irmã de Wenceslau, rei de Boêmia. Era mulher piedo­sa, e tinha estudado as Escrituras Sagradas, sendo isto mesmo afirmado pelo perseguidor arcebispo Arundel, que disse que "Embora ela fosse estrangeira, estudava cons­tantemente os quatro Evangelhos em inglês, com as expli­cações dos doutores; mostrando-se neste estudo e na leitu­ra dos livros piedosos mais diligente do que os próprios prelados". Pela morte do seu marido, ela voltou para a Boê­mia levando consigo as obras do reformador.
Depois um sábio boêmio de Praga, chamado Jerônimo, visitou a Inglaterra, travando conhecimento com vários lollardos, em cujos ensinos se embebeu. Em seguida voltou para a sua cidade onde ensinou as novas doutrinas com zelo e bom êxito.
Num período ainda posterior (1404), dois ingleses de Cantuária também tinham ido a Praga, e ali manifesta­ram sentimentos anti-papais. Estabeleceram a sua residên­cia nos subúrbios da capital, em casa de um tal Lucas Welensky, e, com seu consentimento, pintaram nas paredes do seu quarto dois quadros, um representando a história da paixão de Cristo, o outro a pompa da corte papal. A sig­nificação da antítese daqueles dois quadros era bastante clara; o povo foi ver aquelas pinturas toscas, e Huss, que era então pregador na capela de Belém, e igualmente deão da faculdade de filosofia, referiu-se a elas nos seus ser­mões.

JOÃO HUSS
Havia algum tempo que Huss mostrara a sua simpatia pelas idéias de Wycliff. Era homem de saber profundo, de um entendimento claro, e um hábil dialético; alto, magro, pálido, e de olhos cinzentos e pensativos, parecendo mais um estudante do que um padre. As suas maneiras eram graves e dignas; a sua moral austera e irrepreensível. As­sim como Wycliff, pregava sempre ao povo na sua própria língua e, como ele, era severo e enfático quando fazia a ex­posição dos abusos que então prevaleciam; mas como era um favorito da corte não foi incomodado no princípio. Ele amava e respeitava a memória do reformador inglês, e ou­viam-no orar muitas vezes na capela de Belém para que a sua alma pudesse ir juntar-se à de Wycliff depois da sua morte.
O grande cisma da cristandade papal era ainda assunto de discussão quando Huss era pregador na capela de Be­lém e reitor popular da Universidade, e não era provável que ele deixasse isso passar sem algumas palavras de censura. Mas o seu zelo neste ponto pouco mal lhe fez, visto que os que deviam olhar pelos decretos de proibição que fo­ram publicados contra ele, deles não fizeram caso. Foram outras circunstâncias que fizeram dele um herege aos olhos de Roma e uma era daquelas que mal podiam esperar ser perdoadas.

HUSS EM CONFLITO COM O PAPA
No ano de 1411 o papa de Roma, João XXIII [depois deposto. homem de vida dissoluta e hábitos guerreiros, proclamou uma cruzada contra Ladislau, rei de Nápoles, e ofereceu as costumadas indulgências a todos aqueles que se reunissem ao exército papal. Huss ficou justamente in­dignado por ver a cruz de Cristo degradada para fins tão anticristãos, e pregou contra a cruzada. O povo, encantado pela sua eloqüência, recusou atender aos missionários do papa, e muitos interrompiam as suas arengas com excla­mações encolerizadas. Esses representantes papais não es­tavam porém habituados a tal tratamento, e não era natu­ral que se submetessem em silêncio. Contudo, ferir o chefe do movimento era uma medida bastante perigosa e intem­pestiva, e também não era prudente, no estado de agitação em que se achava o povo; não deram qualquer passo para a sua própria defesa. Mas prenderam em segredo três dos chefes, que foram lançados na prisão por ordem do senado, e logo executados secretamente. Mas o sangue dos assassi­nados foi visto correr pelas grades da prisão, e assim a mor­te deles tornou-se pública para um levantamento geral, e o povo precipitou-se em massa contra a Câmara Municipal, tomando-a de assalto. Entrando na prisão, apoderaram-se dos corpos decapitados das vítimas e levaram-nos a um lu­gar de sepultura, dando-lhes honras de mártires. No en­tanto, Huss, prevendo as conseqüências que lhe podiam acontecer por este ato ousado e ilegal do povo, retirou-se da cidade e continuou as suas pregações em sítios onde es­tivesse mais seguro. Foi citado pelo papa para comparecer perante o tribunal do Vaticano, mas não fez caso, sendo, Por esse motivo, excomungado. Apesar disso continuou Pregando do mesmo modo, aumentando diariamente o nú­mero dos seus convertidos e adeptos.

HUSS CITADO PARA COMPARECER EM CONSTÂN­CIA
No entanto, foi convocado um concilio de prelados e outros em Constância, cidade imperial nos Alpes, do lado da Alemanha, com o fim de desfazer o grande cisma que existia, e suprimir as heresias de Wycliff, e Huss foi citado a comparecer perante ele. Podíamos encher páginas contra os horrorosos segredos e as blasfêmias públicas dos membros deste concilio, mas esses pormenores seriam re­voltantes; apenas nos referiremos a eles por dizerem res­peito a João Huss, e o pérfido tratamento que deram a este homem verdadeiramente nobre.
Quando o reformador boêmio recebeu a citação para se apresentar em Constância, não hesitou em obedecer. Não tinha aparecido em Roma, por conhecer a deslealdade do papa, mas com a assembléia de Constância o caso era dife­rente. Os prelados, segundo ele pensava, eram os augustos representantes daquela igreja verdadeira a que ele perten­cia, e ele sabia que um dos fins para que o concilio fora convocado era idêntico àquele que muitas vezes estava mais no seu coração quando pregava. Ainda assim, apesar da confiança que tinha nos prelados, entendeu que um sal­vo-conduto do imperador alemão, Sigismundo, podia pro­tegê-lo, e por isso procurou alcançá-lo. Neste salvo-conduto o imperador ordenava que o deixassem viajar li­vremente, e, munido desse documento, o reformador par­tiu na sua jornada.

PRISÃO DE HUSS
Agora notemos a perfídia de Roma: Assim que o refor­mador pôs os pés em Constância foi logo agarrado e lança­do na prisão, sendo acusado de heresia. O concilio sabia perfeitamente que ele tinha um salvo-conduto, mas esta dificuldade foi logo resolvida, publicaram um decreto di­zendo que não se devia guardar palavra com hereges. O povo ficou espantado quando soube da prisão de Huss, e os seus clamores indignados chegaram da Boêmia aos ouvi­dos do imperador. Ele ainda chegara a Constância, e ao princípio parecia disposto a favor do povo em condenar a traição do concilio, chegou até a falar em abrir à força a prisão em que o reformador estava encerrado, mas quando chegou à cidade, os argumentos dos padres venceram seu bom critério, e deixou-os fazer ao prisioneiro o que que­riam.
A masmorra em que Huss tinha sido encerrado era úmida e imunda, e o alimento pouco, e não era saudável. Esperavam por este tratamento diminuir-lhe a força, e po­derem fazer dele o que quisessem. Tais esforços tiveram tão bom resultado que o reformador ficou gravemente doente.

COMEÇO DO JULGAMENTO DE HUSS
No começo de junho (1415) e antes de estar completa­mente restabelecido, começou o seu julgamento público, mas apesar de estar tão fraco, foi-lhe proibido ter um advo­gado, porque, diziam seus inimigos, um herege não podia ter defensor. Houve duas acusações contra ele; a primeira de crer nas doutrinas de Wycliff, a segunda, de estar "in­fectado com a lepra dos valdenses". Quando foi chamado para responder pela primeira acusação apelou para a auto­ridade das Sagradas Escrituras, mas a sua voz foi imedia­tamente abafada por um tumulto de escárnio e zombaria. Era pois impossível tentar qualquer defesa em tais cir­cunstâncias, e quando lhe apresentaram o segundo ponto, ficou silencioso. Isto mesmo condenou-o, visto que seu si­lêncio foi tomado como uma tácita confissão da sua culpa. Por fim a excitação tornou-se tão grande que foi impossível continuar o julgamento, e a assembléia retirou-se.
No segundo dia apareceu o imperador em pessoa para manter a ordem, e desta vez parece que tudo correu com muito mais sossego, apesar de os prelados não o poderem conservar até o fim. Quando, no decurso do julgamento, Huss concordou que tinha dito que Wycliff era um verda­deiro crente, e que a sua alma estava agora no Céu, e que não podia desejar maior salvação para a sua própria alma do que a que estava gozando a alma de Wycliff, os "san­tos" padres não puderam conter uma gargalhada. No terceiro dia concluiu-se o julgamento, e Huss foi de novo mandado para a prisão enquanto se lavrava a sentença. Durante todo o julgamento parece que houve um amigo que se pôs ao seu lado de uma maneira própria duma gran­de afeição; este amigo foi um cavaleiro boêmio chamado Chulm. Em todos os dias do julgamento esteve sempre com ele, e acompanhou-o durante todo o seu penoso e aborrecido cativeiro; e tudo isto com grande risco para si próprio. "Meu querido mestre", disse ele depois de passar o terceiro dia de julgamento: "eu sou um ignorante, e por­tanto incompetente para dar conselhos a um homem de tanto saber como o senhor. Contudo, se está intimamente convencido de alguns desses erros que lhe atribuíram publicamente, peço-lhe muito encarecidamente que não se envergonhe de se retratar; mas se, pelo contrário, está con­vencido da sua inocência, não quero de modo algum acon­selhá-lo a dizer seja o que for contra a sua consciência, an­tes quero exortá-lo a suportar qualquer espécie de tortura a renunciar a qualquer coisa que considere como verdade'". Huss ficou profundamente comovido pelo sincero e bondo­so conselho do seu amigo, e disse-lhe com as lágrimas nos olhos que Deus bem sabia como ele de boa vontade se re­trataria, debaixo do juramento, de qualquer exposição que tivesse feito contrária às Escrituras Sagradas. Decorreu um mês, e parece que durante esse tempo o cavaleiro este­ve sempre com ele, provando, assim, que era um fiel discí­pulo e um verdadeiro amigo.

FIM DO JULGAMENTO DE HUSS
No dia 6 de julho de 1415 ele compareceu pela última vez perante o concilio, e ouviu então a sua sentença. A ses­são teve lugar na catedral, e Huss esteve no pórtico en­quanto se celebrava a missa, por isso que a um herege não podia ser permitida a entrada na igreja durante a cerimô­nia. O bispo de Lodi pregou o sermão e escolheu para seu tema este texto: "Para que o corpo do pecado seja desfei­to" (Rm 6.6). As suas observações foram uma furiosa expo­sição contra as heresias de Huss. Os artigos de acusação fo­ram então lidos, e a sentença pronunciada. Durante a leitura dos artigos Huss fez várias tentativas para falar, mas sempre em vão; e quando depois disso ele ofereceu uma oração a Deus a favor dos seus inimigos, pedindo-lhe que lhes perdoasse as suas injustiças, as suas palavras foram recebidas com escárnio. O mártir, forte na sua integridade, ergueu as mãos, e exclamou: "Eis aqui, bendito Salvador, como o concilio condena como erro o que Tu tens prescrito e feito, quando, dominado pelos inimigos, entregaste a tua causa a Deus teu Pai, mostrando-nos por este meio que quando estamos oprimidos podemos recorrer à justiça de Deus". O fervor da sua eloqüência tinha chamado a aten­ção dos seus inimigos, e durante as poucas observações que ainda fez, guardaram um silêncio próprio de quem não se sente à vontade. Apenas Sigismundo parecia estar tran­qüilo, mas a sua tranqüilidade durou pouco. Huss, des­viando a vista dos prelados e fixando os olhos com firmeza no imperador, disse com voz clara e vibrante: "Vim a este conflito confiando na boa fé do imperador". Um vivo rubor coloriu então as faces desse homem, e Huss não disse mais uma palavra.
Foram-lhe em seguida arrancadas as vestes sacerdo-tais, e puseram-lhe na cabeça uma mitra de papel onde se viam pintados três demônios. O cálix sacerdotal, que lhe tinha sido colocado nas mãos, foi-lhe tirado com estas pa­lavras: "Maldito Judas, que, tendo abandonado o conselho da paz, entraste no dos judeus, arrancamos-te das mãos este santo cálix onde está o sangue de Cristo". "Pelo con­trário", disse Huss numa voz forte, "confio que pela graça de Deus ainda hoje hei de beber dele no seu reino". Os bis­pos retorquiram então: "Nós entregamos a tua alma aos demônios do Inferno", ao que Huss respondeu: "E eu en­trego o meu espírito nas tuas mãos, ó Senhor Jesus Cristo; a ti entrego a alma que tu salvaste!"

MORTE DE JOÃO HUSS
Tendo sido assim privado de um modo tão aviltante do seu cargo sacerdotal, foi entregue ao imperador, o repre­sentante do poder secular: "Pertence-vos o alto cargo", disse-lhe o bispo de Lodi, "de destruir as heresias e cismas, e com especialidade os obstinados hereges". O imperador desempenhou "esse alto cargo" sem demora. O lugar de suplício não era longe, e Huss foi para ali conduzido ime­diatamente sob a guarda do eleitor palatino e oitocentos soldados a cavalo. Quando para ali se encaminhava, o seu rosto brilhava de alegria, e o povo que se apinhava no ca­minho estava admirado das suas piedosas orações. Chega­do ao lugar de execução não lhe foi permitido a palavra ao povo, mas a oração que fez enquanto o estavam amarrando ao poste chegou aos ouvidos de todos: "Senhor Jesus, eu sofro humildemente esta morte cruel por amor de ti, e rogo-te, Senhor, que perdoes aos meus inimigos". No últi­mo momento ainda fizeram uma tentativa para o induzir a assinar uma retratação, mas não o conseguiram: "Tudo o que escrevi e assinei foi com o fim de livrar as almas do po­der do Demônio, e livrá-las da tirania do pecado; e sinto alegria em selar com o meu sangue o que escrevi e assinei". O eleitor, que tinha feito esta última tentativa, afastou-se então do lugar, e largaram fogo à lenha. Mas os sofrimen­tos do mártir acabaram depressa, e enquanto ainda orava a Deus decaiu-lhe a cabeça sobre o peito e sufocou-lhe uma nuvem de fumaça. Assim pois João Huss, que tinha dado uma boa confissão, obteve a coroa do martírio e partiu para estar com Cristo.

JERÔNIMO DE PRAGA
0 amigo de Huss e seu companheiro de trabalho, Jerônimo de Praga, seguiu-o em pouco tempo. Era homem de maior erudição, mas talvez de menos paciência, e as tortu­ras a que o submeteram durante um bárbaro cativeiro de quase um ano enfraqueceram de tal maneira o seu espírito que conseguiram dele que assinasse uma retratação. Mas a vitória dos seus inimigos pouco tempo durou: na sua mise­ricórdia o Senhor fortaleceu a sua alma, e ele em breve se retratou do que se tinha retratado. Merece a pena notar-se que, apesar de todos os sofrimentos por que passou duran­te esse tempo, a sua memória ficou clara e a sua inteligên­cia tão vigorosa como antes, e a sua eloqüência era tal que provocava a admiração até dos seus próprios inimigos.
Foi no mês de maio de 1416, que Jerônimo se apresen­tou à sua última audiência. Não deixou de censurar os seus adversários por o terem conservado preso mais de onze me­ses, carregado de ferros, envenenado com poeira e mau cheiro, e privado das coisas mais necessárias. "E durante este tempo", disse ele, "destes aos meus adversários todas as audiências que eles quiseram, e vos recusastes ouvir-me uma só hora que fosse". Então referiu-se envergonhado, à sua retração, e aquela triste confissão foi por si um teste­munho. "Confesso" disse ele, "e tremo quando penso nis­so. Por medo do castigo do fogo, consenti vilmente e contra a minha consciência em condenar a doutrina de Wycliff e Huss. Retrato-me agora completamente deste ato pecami­noso, e estou resolvido a manter os dogmas destes homens até a morte, crendo que eles são a verdadeira e pura doutri­na do Evangelho, assim como creio que as vidas desses santos foram irrepreensíveis".
A assembléia não tratou melhor esta nova vítima do que tinha tratado Huss, mas Jerônimo nunca perdeu a sua presença de espírito, nem se deu por vencido com os cla­mores que faziam os seus adversários, nem quando o sub­meteram a ridículo. Lembrou-lhes que o seu caso não era único, e que outros mais dignos do que ele tinham sido acusados por testemunhas falsas, e condenados injusta­mente. José e Isaías, Daniel e João Batista, e até o seu pró­prio e divino Mestre, tinham sido levados perante autori­dades e sofreram injustamente às mãos de homens malva­dos. "Vós tendes resolvido condenar-me injustamente", exclamou ele, "mas depois da minha morte ficar-vos-á um remorso na consciência que nunca há de acabar. Apelo para o soberano juiz de toda a terra, em cuja presença ha-veis de comparecer para responderdes por este crime".
Uma tal linguagem era mais que suficiente para pro­mover a sua pronta condenação, mas ele tinha agora perdi­do todo o medo da morte. Quando aquele momento penoso chegou, a sua fisionomia radiante mostrou a sua boa von­tade de sofrer; e dirigiu-se para o lugar do martírio cantan­do hinos de alegria. Nisto pareceu-se com o amigo que o ti­nha precedido, e esta semelhança não passou despercebida a um historiador católico-romano que depois foi papa com o nome de Pio II: "Eles caminhavam para o suplício,' dis­se esse escritor, "como se fossem para um banquete. Não proferiram uma única palavra que desse a perceber o mais pequeno temor. Cantavam hinos nas chamas, sem cessar, até o último suspiro".
É digno de menção o fato de ter sido o papa João XXIII mais tarde deposto pela sua malvadez, pelo mesmo conci­lio que ele convocara para a condenação destes nobres mártires. Foi este o único ato digno que o concilio praticou, não lhe cabendo, ainda assim, elogios por isso, visto que este passo foi dado por motivo de interesse.

GUERRA CIVIL NA BOÊMIA
O martírio de Huss e Jerônimo, com que eles espera­vam livrar a Europa das heresias de Wycliff, não só deixou nas suas consciências o peso de um duplo assassinato, como também, sob o ponto de vista de Roma, foi um enga­no fatal. Em lugar de esmagarem, por este meio, o que eles chamavam uma heresia corruptora e escandalosa, infla­maram o espírito do povo boêmio, e causaram uma guerra civil. Ainda mesmo antes da morte de Jerônimo, vários fi­dalgos e outras pessoas eminentes da Boêmia tinham, in­dignados, mandado um protesto ao Concilio de Constância no qual o acusaram de injustiça e crueldade, e diziam mais, que estavam decididos a sacrificar as suas vidas na defesa do Evangelho de Cristo e dos seus fiéis pregadores. Contudo este protesto foi queimado com desprezo pelos prelados reunidos e a indiferença insultante destes padres foi mais tarde manifestada pelo bárbaro assassinato da se­gunda vítima. Os editos de perseguição que se seguiram não podiam, de certo, servir para abrandar o espírito do povo, e quando no ano de 1419 um pregador hussita foi pre­so e queimado, sofrendo além disso as maiores crueldades,
O povo, exasperado, correu às armas, e tendo à sua frente o camarista do rei, um fidalgo chamado Zisca, levou tudo adiante de si.
O imperador Sigismundo levantou contra eles um po­deroso e bem organizado exército, que foi desbaratado como se fosse palha, diante dos malhos dos camponeses boêmios, que, na verdade, poucas outras armas tinham para ferir as suas batalhas. O cardeal Juliano, legado do papa, presenciou algumas destas batalhas, e ficou admira­do quando viu a flor do exército do imperador - príncipes conhecidos pela sua bravura, e veteranos de fama européia - retirando-se em desordem diante das armas grosseiras de um punhado de camponeses - ainda mais - algumas vezes, fugindo até quando ninguém os perseguia, possuídos de um pânico inexplicável. Numa destas ocasiões o cardeal, derramando abundantes lágrimas, exclamou: "Ah! .não é o inimigo, são os nossos pecados que nos fazem fugir!" Vá­rios escritores papistas confessaram que não podiam expli­car o maravilhoso êxito destes guerreiros cristãos, e um de­les afirmou que os boêmios mostraram ser um povo valen­te, porque, apesar de o imperador Sigismundo conduzir quase a metade da Europa contra eles, não foi capaz de vencê-los. O reformador Melanchton do século seguinte, atribuiu estas vitórias a poderes milagrosos, e acreditou que os anjos de Deus acompanhavam os vitoriosos nas suas expedições, e derrotava os seus inimigos.

DIVERGÊNCIAS ENTRE OS HUSSITAS
Por morte de Zisca no ano de 1424, empregaram-se es­forços para pôr termo à guerra, sendo os boêmios convida­dos a apresentar o seu "utimatum" perante uma convoca­ção em Basiléia. Mas os hussitas não eram todos favorá­veis a estes tratados, e como já tinha havido algumas gran­des divergências de opinião entre eles, dividiram-se em dois partidos. Um deles, que só pedia que na comunhão se desse tanto o cálix como o pão a todos por igual, foi facil­mente atraído de novo para o seio da igreja, tendo o papa prometido consentir no ponto em que os dissidentes insis­tiam apesar de, logo que o pôde fazer com segurança, vio­lar a sua promessa. Foi dado a este partido o nome de Ca-Hxtinos. O outro partido, que seguiu a doutrina de Huss, tal qual era, recusou assinar o pacto e ficou assim exposto as perseguições dos seus antigos amigos além das de Roma. Eram conhecidos pelo nome de "taboretes", porque se reu­niam para o culto numa certa colina, a que chamavam
Monte Tabor. No entanto, o conhecimento cada vez maior que os taboretes tinham da Palavra de Deus, tinha-lhes ensinado que o apelo para as armas carnais era contrário à expressa idéia e vontade de Deus; e quando a perseguição principiou de novo, em lugar de se servirem dos seus ma­lhos e enxadas, apelaram somente para "a espada do Espí­rito, que é a Palavra de Deus" (Ef 6.17).

OS IRMÃOS REUNIDOS
Por fim, a intensidade dos seus sofrimentos comoveu o arcebispo de Praga, que anteriormente se tinha tornado saliente entre os calixtinos, e pela sua influência foram le­vados para os territórios de Lititz, nos confins de Morávia e Silésia, onde, por algum tempo, foram livres de persegui­ções, podendo até fundar uma colônia. Alguns dos seus ir­mãos que estavam entre os calixtinos reuniram-se a eles, juntamente com vários cidadãos de Praga, e não poucos fi­dalgos; para comemorar esta junção tomaram o nome de "Unitas Fratrum", ou Irmãos Reunidos. Isto teve lugar no ano de 1451.
Contudo, tinham estado instalados nos seus novos bairros apenas uns doze meses quando foram de novo inco­modados pelos malévolos agentes de Roma. O pretexto para esta nova perseguição foi uma acusação, sem base, de sedição, e os irmãos morávios tiveram de pôr em prática toda a sua paciência e toda a sua fé. A crueldade dos inqui­sidores era digna de seu ofício, e centenas de morávios ino­centes, que nem resistência faziam, foram por ordem deles agarrados e lançados na cadeia. Uns deixaram que morres­sem de fome; outros foram torturados; outros mutilados, e outros queimados; e alguns que podiam fugir foram obri­gados a refugiar-se nas cavernas e nos bosques, onde se ali­mentavam da caça que matavam e dos frutos silvestres que os arbustos davam; e quando deixavam os seus escon­derijos, iam uns atrás dos outros em fila, pisando as pega­das uns dos outros, levando o último um ramo com que apagava os sinais dos pés, e foi assim que evitavam ser apa­nhados. Quando chegava a noite acendiam o lume, não ou­sando fazê-lo de dia, com medo que o fumo, elevando-se, os atraiçoasse, e ao trêmulo clarão daquelas fogueiras ti­nham lugar as suas piedosas reuniões, onde juntos liam as suas Bíblias. No ano 1470 terminaram a tradução da Bíblia para a língua boêmia, e não tardou muito tempo que fossem impressas várias edições. Assim, pois, uma coi­sa ia ajudando a outra, e, a despeito dos esforços que Roma fazia para perturbar e fazer oposição, ia-se preparando o terreno para a reforma que se aproximava.
Há ainda três nomes que sobressaíram nesse tempo e a que não devemos deixar de nos referir, ainda que em pou­cas palavras.

JERÕNIMO SAVONAROLA
O primeiro destes foi Jerônimo Savonarola, um monge dominicano, filho de um médico em Ferrara. Ainda muito novo, julgou ter recebido visões celestiais; isso levou-o a entrar no convento de Bolônia, onde seus jejuns e penitên­cias atraíram a atenção dos seus superiores. Foi mais tarde removido para o convento de S. Marcos em Florença, e ali chegou à dignidade de prior, fazendo, então, toda a dili­gência para restituir, tanto quanto possível, a primitiva simplicidade da vida monacal. Mas o que chamou a aten­ção de Roma a ele foi a sua fama como pregador reforma­dor e, fora do seu convento, as suas inexoráveis denúncias contra o papa; os seus ataques aos vícios do clero; as suas tristes lamentações pelo torpor das coisas espirituais na­quele tempo. O papa diligenciou fazer calar o grande pre­gador, oferecendo-lhe um barrete de cardeal, mas isso não tinha atrativo para Savonarola. Recebeu o oferecimento com indignação, e declarou que o único barrete encarnado que ele ambicionava era aquele que fosse tinto com o san­gue do martírio.
Por fim foi apanhado e metido na prisão. Ali aproveitou o seu tempo a meditar e orar, e escreveu uma meditação espiritual sobre o salmo 31, na qual descrevia as lutas ínti­mas do homem convertido. Depois de ser cruelmente tor­turado, por ordem da Inquisição, foi assinada a ordem da sua condenação por esse mesmo papa que queria fazê-lo cardeal, e foi finalmente queimado no ano 1499.

JOÃO DE WESSALIA
O segundo foi João de Wessália, um notável doutor de teologia de Erfurt. Este homem piedoso foi, na sua velhice, muito apoquentado pelos inquisidores papistas que mete­ram seu frágil corpo entre ferros, sujeitando-o a muitas in­dignidades. Ele ensinou que a salvação se obtinha pela graça, e que as peregrinações, os jejuns, a extrema unção etc, de nada aproveitavam à alma, e que a Palavra de Deus é a única autoridade em materiais de fé. Consegui­ram afinal que ele se retratasse de alguma das suas opi­niões, mas isso não teve por efeito diminuir o ressentimen­to dos seus inimigos, visto que ainda o conservaram na pri­são mais alguns meses, vindo a morte libertá-lo misericor­diosamente no ano de 1479.

JOÃO WESSELUS
O terceiro foi João Wesselus, ou Wessel, amigo de João de Wessália, com quem o confundiram algumas vezes. Nasceu em Groningen, na Holanda, pouco mais ou menos no ano 1419, e foi célebre na Europa. Apesar de ser incontestavelmente o maior teólogo da sua época, nunca tomou ordens, não estando por isso associado com qualquer corpo eclesiástico. Era muito vulgar naqueles tempos adotar a profissão clerical para evitar perseguições, e isto explica a observação que ele fez uma vez, afirmando que não tinha medo do cadafalso, e portanto não precisava de tonsura. Quando o seu amigo Rovere, geral dos franciscanos, foi ele­vado ao trono papal, perguntou-lhe se tinha algum pedido a fazer-lhe, ao que respondeu: "Sim, peço-lhe que me dê da livraria do Vaticano uma Bíblia em grego e outra em hebraico" - "Ser-lhe-ão dadas", respondeu o papa, - "Mas por que não pede antes um bispado ou coisa semelhante?" - "Por uma razão muito simples", retorquiu Wessel, "por­que não quero nenhuma dessas coisas".
Tal era o espírito do homem que tinha de levar avante o testemunho de Deus, testemunho que temos traçado desde a era dos apóstolos. Parece que não sofreu muita persegui­ção durante a sua vida, apesar de todo o teor do seu ensino ser contrário ao procedimento e às máximas de Roma. Lutero, no século seguinte, manifestou a sua surpresa de que os escritos de Wessel fossem tão pouco conhecidos, e falou dele como sendo um homem de admirável inteligência e espírito invulgar. evidentemente ensinado por Deus. "Se eu tivesse lido as suas obras há mais tempo", disse Lutero, "os nossos inimigos poderiam supor que eu tinha aprendi­do tudo com Wesselus, tal é a perfeita coincidência nas nossas opiniões... Agora não posso duvidar de que tenho razão nos pontos que tenho indicado, vendo um tão grande acordo nos sentimentos, e até quase as mesmas palavras empregadas por aquele grande homem, que viveu numa outra época, num país distante, e em circunstâncias muito diferentes das minhas".
Wesselus morreu cheio de honra aos setenta anos de idade, confessando no seu último suspiro a imensa satisfa­ção da sua alma, porque "tudo que ele conhecia era Jesus Cristo crucificado".
Isto teve lugar no ano de 1489. Lutero era então uma criança de seis anos. Assim pois o testemunho foi ligado ao período da grande Reforma, e a cadeia de testemunhas ti­nha sido até ali conservada sem interrupção.




















20
Lutero e a reforma alemã
(1403-1522)


Desde há muito, a doutrina da justificação pela fé ti­nha sido perdida de vista na igreja, e foi este um dos fatos pelos quais a Reforma se tornou uma necessidade. Logo que o poder desta verdade enfraqueceu nas almas dos fiéis, foi introduzida a doutrina de salvação pelas obras, e subs­tituíram por penitências e mortificações exteriores aquele arrependimento para com Deus e a santificação íntima. Estes erros começaram logo no tempo de Tertuliano e au­mentaram à proporção que iam passando os anos, até que, por fim, a superstição do povo não se podia levar mais adiante, e as trevas da Idade Média foram a origem dos flagelantes.

AS INDULGÊNCIAS
Os flagelantes, uma seita de fanáticos, foi instituída no século treze, e espalhou-se por uma grande parte da Euro­pa. Andavam pelas ruas meio-nus, flagelando-se duas vezes por dia com chicotes. A severidade destes castigos, que imaginavam servir de expiação, não só dos seus pecados, como também dos pecados dos outros, excitou a princípio a perseguição, mas por fim despertou a simpatia do povo, que começou a virar as costas aos padres desregrados e a confessar os seus pecados e tristezas aos flagelantes. 0 pensamento dominante dos padres foi então ver como po­deriam conservar a influência do domínio usurpado, "e, portanto", disse d'Aubigné, "inventaram um negócio novo a que chamaram indulgências". Em troca de uma quantia mais ou menos avultada, conforme a classe a que o com­prador pertencia, ficava este livre de uma peregrinação, de um jejum, ou de outra qualquer penitência; e assim come­çou esse detestável negócio.
O papa percebeu logo as vantagens que podiam resul­tar de um sistema tão lucrativo e, em tempo oportuno, Clemente VII instituiu o extraordinário dogma de que a crença nas indulgências era um artigo de fé.
Estas indulgências de Roma não diziam respeito só aos vivos; iam além da tumba, e as almas que gemiam no Pur­gatório também se dizia que eram salvas por meio delas.
A venda de indulgências era necessariamente um gran­de incentivo ao pecado, e, na verdade, os ignorantes nada podiam ver nesta doutrina senão uma licença absoluta para praticarem o mal, enquanto que os padres, que apro­veitaram cada vez mais tais idéias erradas, não tinham pressa em esclarecer o povo.
Tal era a condição da igreja no começo do século dezesseis: tão corrupta nas suas ações, que era impossível continuassem as coisas assim por muito tempo como estavam.
Não obstante isso, Roma vangloriava-se e estava con­fiante, porque tinha poucos inimigos declarados que a in­comodassem. Os hussitas tinham sido, uns espalhados pela perseguição, outros atraídos de novo para o grêmio da igre­ja; e o testemunho dos cristãos valdenses tinha sido quase suprimido. Mais ainda: havia um sentimento de insatisfa­ção nos corações dos homens de todas as classes que nem o fumo do fogo dos mártires sacrificados por Roma podia apagar, nem as promessas enganosas dos padres aliviar.
Reis e fidalgos, cidadãos e camponeses, teólogos e homens de letras, políticos e soldados tinham todos as suas razões de queixa, e estavam moralmente preparados para a obra de Reforma. A Europa tinha despertado do longo pesadelo da Idade Média, e estava agora olhando, ainda que com olhos de sono, através do nevoeiro de uma longa supersti­ção, à procura da luz. Era inevitável uma mudança impor­tante, uma reação; mais ainda, uma revolução; e apenas era necessário achar um chefe. 0 espírito dos homens esta­va pronto para a revolução; e só necessitava de um que agüentasse o peso da luta para os guiar, aconselhar e diri­gir.
Deus viu o que era preciso e enviou Martinho Lutero à Igreja na Europa.
Não faltaram líderes para seções e grupos particulares, mas Lutero havia de ser o chefe. Os príncipes e fidalgos, de há muito desgostosos com a usurpação sucessiva dos seus domínios pelos papas, encontraram no eleitor Frederico de Hanover um representante dedicado, embora tímido; os políticos e homens de letras, oprimidos pelas leis canônicas acharam um intérprete dos seus pesares em Ulrico von Hutten, mas todos, desde o rei até o mais humilde, encon­traram o defensor das suas liberdades no grande monge agostinho, Martinho Lutero.

MARTINHO LUTERO
O reformador era filho de pais humildes, nasceu em Eisleben na província de Mansfeld, no dia 10 de Novembro de 1483. "Eu sou filho de camponeses", dizia ele mais tar­de, "meu pai, meu avô, e todos os meus antepassados eram camponeses". Foi de seus pais que ele herdou aquela rude simplicidade e temperamento franco e alegre, peculiar do camponês da Turíngia. A educação que recebeu em casa era reta e rigorosa, e o tratamento que recebeu na escola era áspero em extremo, mas tudo isso foi necessário para preparar o futuro reformador para a sua grande e perigosa obra.
Aos quatorze anos de idade foi mandado para a escola franciscana em Magdeburgo onde aumentaram muito os seus sofrimentos. Conta ele que quase o matavam de fome, e muitas vezes era obrigado a cantar nas cidades e vilas próximas para angariar pão. Algum tempo depois manda­ram-no para Eisenach, onde tinha parentes, mas estes de­ram-lhe pouco ou nenhum alívio. Teve de continuar a va­guear, esfomeado e miserável, pelas ruas cantando hinos e pedindo "panem propter Deum" às portas dos desconheci­dos, agradecendo muito até as migalhas que lhe eram às vezes lançadas. Mas por fim chegou o alívio. Aquilo que os parentes lhe tinham negado, deram-lhe os estranhos; e uma tarde depois de ter pedido a diversas portas sem re­sultado, chegou a uma onde não foi repelido. Os cristãos hão de sempre recordar com afeto e gratidão o nome de Ur-sula Cotta, porque foi ela que abriu as suas portas ao pobre rapaz esfomeado e lhe deu não só o sustento, mas um lar e o amor de uma mãe. Lutero teve ocasião, mais tarde, de re­tribuir a sua bondade, recebendo também o filho de Ursula na sua própria casa em Wittenberg.

LUTERO NA UNIVERSIDADE
Quando tinha dezoito anos, foi, por ordem de seu pai, para a Universidade de Erfurt estudar direito, e foi ali que seu espírito tomou uma séria orientação pela morte repen­tina do seu condiscípulo e amigo íntimo Aleixo. Isto teve lugar por ocasião dumas férias pequenas, quando ambos passeavam juntos. Ao passarem por Thuringenevald fo­ram surpreendidos por uma grande tempestade, e o levia­no Aleixo foi atingido por uma faísca elétrica. Caindo de joelhos, com o impulso do momento, Lutero fez um voto de se consagrar ao serviço de Deus, se Ele o poupasse na oca­sião.
Desde então mudou completamente. Levou bastante tempo antes que lhe voltasse o amor pelo estudo, e passava dias e dias vagueando pensativo pela biblioteca da Univer­sidade, como alguém que não pudesse achar descanso. Por fim veio-lhe às mãos uma Bíblia em latim, e tendo um per­feito conhecimento daquela língua, começou a ler o livro. Era esta a primeira vez que tinha olhado para aquele livro sagrado, e a sua surpresa foi grande. Nele encontrou uma sabedoria mais profunda do que imaginara, pérolas preciosas de verdade que nenhum missal ou breviário podia ensinar, e inclinou-se sobre seu novo tesouro num arrebatamento da alma. Á proporção que lia ficava mais persuadido da autoridade divina do livro sagrado, e ia-se possuindo de uma convicção profunda da sua própria maldade. Até ali as palavras inspiradas tinham para ele um sentido mis­terioso e estava como alguém que procurasse o seu cami­nho às apalpadelas em plena luz do sol. Perplexo e trêmu­lo, fechou o livro, e, após, fez uma lista dos seus pecados, que o encheu de um vago receio. Nunca tinha, até então, pensado seriamente neles; nunca os tinha considerado sob um ponto de vista tão negro. Uma tão medonha série ti­nha-lhe, por suposto, fechado as portas do Céu para sem­pre; não podia haver esperança para um homem tão vil como ele. Então Lutero lembrou-se de repente de seu voto, e ergueu-se com um novo propósito no coração: Sim; ainda restava uma esperança - deixaria a Universidade e far-se-ia monge.

LUTERO NUM MOSTEIRO
Vamos agora encontrá-lo no mosteiro dos frades agostinhos, em Erfurt, e como tudo está mudado! Quando o dei­xamos era ele um inteligente estudante de Direito, um ba­charel de artes, e o ídolo da Universidade; agora é um monge, e o mais íntimo entre eles. Aquele que outrora ti­nha pronunciado discursos e tomado parte em discussões sábias era agora o criado da sua ordem, e tinha de limpar as celas, dar corda ao relógio, e varrer a capela do mostei­ro! Contudo Lutero sujeitava-se a estes trabalhos penosos, inerentes à sua nova posição, sem se queixar; a luta moral porque estava passando quase lhe fazia esquecer a degra­dação. Muitas vezes, quando sentia a sua alma apoquentada, deixava seu trabalho para ir à capela do mosteiro, onde estava guardada a Bíblia, e ali procurava o alimento espi­ritual de que carecia. E era só nestas ocasiões que ele podia estudar a Palavra de Deus.
Mais tarde, porém, foi nomeado para a cadeira de teologia e filosofia de Wittenberg, que se achava vaga. A nomeação foi feita por Staupitz, vigário geral da ordem agostinha de Saxônia, por conselho de Frederico, o Sábio, Elei­tor de Hanover. Lutero era agora até um certo ponto se­nhor do seu tempo, e podia dedicar-se mais ao estudo da Bíblia. A solidão de sua cela era muito conveniente para esse fim, e ele estudava com um zelo pouco vulgar. Fazia esforços extraordinários para reformar o seu modo de vi­ver, e para expiar o passado por meio de orações e penitên­cias, e foram muitos os votos que ele fez para se abster de pecado, mas estes esforços nunca o satisfizeram, e quebra­va sempre os seus votos. "É em vão", dizia Lutero triste­mente a Staupitz, "que eu faço tantas promessas a Deus: o pecado é sempre o mais forte". Staupitz discutia branda­mente com ele, e falava-lhe do amor de Deus e que Deus não estava zangado com ele, como Lutero supunha; mas o monge continuava desconsolado. "Como posso eu ousar crer na graça de Deus", dizia ele, "se é certo que ainda não se operou em mim uma conversão? Preciso necessariamen­te mudar de vida para ser aceito por Ele".
A sua ansiedade tornou-se mais profunda do que nun­ca, e os seus esforços para apaziguar a justiça divina conti­nuavam com um zelo incansável. "Eu era na realidade um monge piedoso", escreveu anos depois, "seguia os preceitos da minha ordem com mais rigor do que posso exprimir. Se fosse possível a um monge obter o Céu por suas obras monacais eu era, certamente, um dos que tinha direito a isso. Todos os frades que me conheceram podem ser testemu­nhas. Se tivesse continuado por muito mais tempo as mi­nhas penitências ter-me-iam levado à morte, a força de vigílias, orações, leituras e outros trabalhos".
O monge tinha ainda, de aprender a significação destas palavras: "Porque pela graça sois salvos, por meio da fé; e isto não vem de vós; é dom de Deus. Não vem das obras, para que ninguém se glorie" (Ef 2.8,9).
As repetidas conversações com Staupitz davam-lhe uma certa esperança, e de vez em quando sentia um estre­mecimento de alegria, e o seu coração ganhava confiança. Mas a lembrança dos seus pecados tornava a voltar e a sua alma perturbada tremia de horror ao pensar no julgamento a que tinha de comparecer. "Oh! os meus pecados! Os meus pecados!" exclamou ele um dia diante do vigário geral; e quando Staupitz lhe falou em Cristo como o Salvador do pecado e da impureza, as suas palavras pareciam ser um mistério impenetrável para o pobre monge.
Por fim a sua saúde ressentiu-se de tal maneira por tão repetidas vigílias e mortificações que chegou a estar às por­tas da morte. E então aos seus outros receios juntava-se mais o terror do seu próximo fim, e o medo do julgamento futuro mergulhava-o num abismo ainda mais profundo.
Que lhe aconteceria se morresse sem estar salvo? Que aconteceria se morresse nos seus pecados? Ainda não tinha uma certeza completa de misericórdia divina; aqueles pe­cados ainda não tinham sido postos de parte, e ele receava levar para a sepultura o peso deles.
Nesta triste condição foi um dia visitado na sua cela por um monge piedoso, que lhe disse algumas palavras de consolação. Lutero, vencido pela bondade dessas palavras, abriu o seu coração ao velho monge, mal imaginando o que havia de resultar daí. O monge não podia segui-lo em todas as suas dúvidas, mas repetiu-lhe ao ouvido uma frase do Credo dos Apóstolos que muitas vezes o tinha consolado:
"Creio na remissão dos pecados". Foi esta uma mensagem de Deus para a alma de Lutero, e agarrou-se àquelas pala­vras com uma energia quase desesperada. "Eu creio", repetia ele para consigo, "eu creio na remissão dos pecados".
Ouvindo-o repetir essas palavras, o monge lembrou-lhe que a fé deve ser pessoal e não uma fé geral, que não era bastante crer meramente no perdão dos pecados de Davi, ou dos pecados de Pedro, mas sim no perdão dos seus próprios pecados. Todas estas palavras soavam como música celestial aos ouvidos do trêmulo ouvinte, e quando o digno ancião acrescentou, "Atendei ao que diz S. Bernardo, e ao testemunho que o Espírito Santo produz no vosso coração, B que é este: "Os teus pecados te são perdoados". A luz brotou naquele coração atribulado, e Lutero deu graças a Deus por essas palavras serem verdadeiras com respeito a H ele mesmo.

LUTERO VAI A ROMA
Mas embora verdadeiramente convertido, Lutero ain­da se conservava escravo de Roma; e foi só depois de ter feito uma visita à cidade papal que ele começou a des­cobrir a corrupção que ali existia, e a sentir-se abalado na sua obediência à igreja romana. Tornou-se necessária esta visita de caráter oficial em conseqüência de uma questão que se levantou entre o vigário geral e sete dos conventos, e no tempo o competente Lutero pôs-se a caminho. Quando avistou Roma prostrou-se, e exclamou: "Santa Roma eu vos presto a minha homenagem", considerando-a como o campo de ação de S. Pedro e S. Paulo.
Mas quando entrou na cidade abriram-se-lhe os olhos. Começou a compreender que poço de corrupção era real­mente a metrópole do catolicismo e durante algum tempo ficou atordoado. Por onde quer que se dirigisse encontrava sempre o mesmo mal, e entre os habitantes da cidade, os que em mais alta voz proferiam blasfêmia ou mais se distinguiam pela sua infidelidade eram os próprios padres. Enquanto um dizia a missa num altar, diziam-se sete no altar próximo. Também ouviu da boca dos próprios mon­ges uma história que o horrorizou e o perturbou. Contaram eles, no meio de gargalhadas, que quando diziam missa, em lugar de pronunciar as palavras sacramentais sobre o pão e o vinho com que suponha transformá-los no corpo e sangue de Cristo, freqüentemente repetiam estas palavras: "Panis es, et panis manebis; vinum es, et vinum manebis" - Pão és, e pão ficarás; vinho és, e vinho ficarás.
O que fica dito apenas mostra a grande impiedade que Lutero encontrou em Roma durante a sua curta perma­nência ali; podíamos, se fosse necessário, mencionar muito mais. Foi pois com a alma entristecida pelo que ali tinha visto que Lutero saiu da cidade de Roma e voltou para a sua terra natal.

LUTERO VOLTA PARA WITTENBERG
Quando ali chegou, formou-se em teologia, e os seus sermões começaram a atrair a atenção na igreja da ordem agostinha em Wittenberg, onde se reuniam grandes multi­dões para o ouvirem. A sua magnífica exposição, e sua elo­qüência, a sua admirável memória, e sobretudo a evidente força das suas convicções, cativavam todos os que o ou­viam, e o dr. Martinho Lutero tornou-se o assunto das con­versações entre as pessoas ilustradas. Mas o que o tornou mais geralmente notável foi a sua contenda com João Tet­zel, o monge dominicano de Leipzig. Tetzel tinha vindo vender indulgências no próprio lugar onde Lutero estava cumprindo com os seus deveres de confessor do povo de Wittenberg. Tornava-se, pois, inevitável uma questão en­tre eles.

DISCURSO DE TETZEL
Subindo ao púlpito, perto do qual estava colocada uma grande cruz vermelha encimada pelas armas papais, Tet­zel começou o seu discurso. Falava alto e animadamente, e fazia do Purgatório uma descrição medonha que fascinava o auditório, despertando em todos a maior solicitude pelas almas dos seus amigos já falecidos. Falou das grandes van­tagens da comodidade que ele proporcionava aos seus ou­vintes, pois não havia pecado algum que tivessem cometi­do que se não pudesse lavar com uma indulgência. Ainda mais, estas indulgências eram eficazes não somente com respeito aos pecados presentes, mas também sobre os pe­cados passados e futuros. E ainda os pecados que os seus ouvintes tivessem o desejo de cometer podiam ser perdoa­dos com antecedência pelas suas cartas de absolvição: "Eu não trocaria o meu privilégio", disse o monge loquaz, "pelo de S. Pedro no Céu, porque eu tenho salvo mais almas com as minhas indulgências do que o apóstolo com os seus dis­cursos".
Estas observações eram escutadas com uma atenção extraordinária, mas os seus apelos a favor dos mortos pro­duziram ainda mais resultado. "Padres, nobres, mercado­res, esposas, moços, moças", exclamou ele, "ouçam a vos­sos pais e amigos já mortos, gritando-vos do abismo pro­fundo: 'Nós estamos sofrendo um martírio horrível! Uma Pequena esmola nos poderia salvar; vós podeis dá-la, e contudo não quereis fazer!' Ouçam estes gritos, e saibam que logo que soar uma moeda no fundo da caixa a alma sol­ta-se do Purgatório e dirige-se em liberdade para o Céu... Como sois surdos e desleixados! Com uma insignificante quantia podeis livrar o vosso pai do Purgatório, e apesar disso sois tão ingratos que não comprais a sua liberdade! No dia do juízo eu serei justificado, mas vós sereis castigados tanto mais severamente por terdes desprezado tão grande salvação".
Concluído o discurso, os fiéis chegaram-se às pressas para onde se achava o vendedor de indulgências, e ali fize­ram as suas compras. A maior parte deles ficaram prova­velmente, muito satisfeitos com o seu negócio, e, quando no dia seguinte se foram confessar, foi sem idéia nenhuma de se emendarem dos seus pecados. Não tinham eles, por­ventura, consigo um documento assinado pelo irmão João Tetzel, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, que lhes restituía a inocência e pureza que tinham na hora do seu batismo, assim como também os declarava isentos das conseqüências de futuros pecados até ao dia da sua morte?

OPOSIÇÃO DE LUTERO A TETZEL
Porém, o padre confessor Martinho Lutero não ligava importância nenhuma ao irmão Tetzel, nem aos seus do­cumentos. O seu dever era dizer ao povo que Deus odiava o pecado; que o Inferno e não o Céu é o destino dos maus, e que, a não ser que tivessem um verdadeiro arrependimento para com Deus, ficariam perdidos para sempre. "Se não abandonardes vossos pecados", dizia ele, "perecereis todos igualmente".
Era em vão que Tetzel se encolerizava e o povo se opu­nha a estas sábias declarações. Lutero mantinha-se firme: "Acautelem-se", avisava ele, "e não dêem crédito aos cla­mores desses vendedores de indulgências! Há melhores coisas em que pensar do que na compra das tais licenças, que eles vendem pelos preços mais vis". No púlpito não era menos enfático. Em linguagem muito clara aconselhava o povo a que não continuasse com aquele tráfico infame.
O seu sermão deixou o auditório muito admirado e tornou-se o assunto da geral discussão em Wittenberg; e antes de ter passado a sensação que ele causou apareceram as suas famosas Teses - certas proposições sobre as verdades fundamentais do cristianismo, que Lutero escreveu e colo­cou na porta da sua igreja. Nenhum dos amigos de Lutero, nem mesmo os mais íntimos, sabia que ele as havia escrito; e o povo de Wittenberg ficou uma manhã espantado ven­do-as colocadas na porta da igreja. O erro de tão horrível tráfico era ali claramente exposto; e logo todos começaram a sentir que havia falado uma voz como ainda se não tinha ouvido outra na Europa. Uma cópia das Teses caiu nas mãos de Tetzel, e o frade dominicano ficou furioso. Chegou a valer-se de imprecações. Escrever também algumas teses e em seguida queimar as de seu adversário foi simplesmen­te acrescentar mais fel ao seu próprio cálix, porque os estu­dantes de Wittenberg tomaram o partido do seu professor e responderam a isto queimando oitocentas cópias das te­ses do dominicano.
No entanto as Teses de Lutero passavam de mão em mão, e espalhou-se rapidamente a notícia do ato arrojado do reformador. O papa soube logo desse fato, e citou o in­domável monge a comparecer em Roma, mas por conselho do príncipe de Saxônia - um amigo verdadeiro de Lutero -a citação foi ignorada. O Príncipe lembrava-se da sorte de João Huss, e suspeitava naturalmente das intenções de Leão X.

O PAPA DENUNCIA LUTERO
Lutero foi pois declarado herege, e o papa, em conse­qüência disso, mandou publicar uma bula de excomunhão contra ele. Durante toda esta agitação o doutor tinha avançado com firmeza no conhecimento da verdade, e quando recebeu a excomunhão já se tinha de tal maneira desembaraçado das cadeias de Roma que estava pronto Para dar mais um passo, como reformador, e declarou Publicamente que o papa era o Anticristo! Sem dúvida, essa declaração era arrojada, mas foi seguida de um ato Malmente arrojado. Rodeado pelos professores e estudantes da Universidade e vários membros da municipalidade, Lutero, na praça pública, queimou a bula do papa!
Roma logo teve conhecimento disso e tendo um senti­mento confuso do perigo que corria, declarou que o monge havia de morrer. Carlos V, um jovem príncipe que dava muitas esperanças, estava então no trono da Alemanha. Era católico romano, mas de modo algum se sujeitou incondicionalmente à autoridade da igreja. Não obstante is­so, o núncio Aleander, então legado papal na Alemanha, induziu-o a tomar alguma medidas com respeito a Lutero. Roma tinha as forças exaustas, e se não tivesse do seu lado o poder temporal tudo estava perdido. Estava para se reu­nir um congresso em Worms, para felicitar o jovem impe­rador pelo seu acesso ao trono e para fazer os preparativos para o contrato da eleição, e era essa a ocasião para dar uma palavra decisiva e esmagar o incômodo herege. Era este o pensamento geral e o papa juntou-se a ele, e expri­miu o desejo de que Aleander estivesse presente ao con­gresso, com o fim de ordenar o cumprimento da sua bula.
Era aquela uma ocasião própria para operar. O perigo ia-se espalhando e o soberano pontífice da cristandade ti­nha começado a compreender a força e a coragem do seu adversário. O espírito da Europa tinha despertado e não havia meio de o adormecer de novo se não fizessem calar o audacioso monge. Retirar-se da luta era simplesmente inú­til, porque a voz de Wittenberg já tinha soado por toda a Europa, e todos estavam esperando ansiosamente ouvi-la de novo. O serviço exclusivo de três imprensas não tinha podido suprir ao povo os seus escritos com bastante brevi­dade; e a sala de leitura da Universidade e a igreja dos agostinhos não eram suficientemente grandes para conter as multidões que ali se reuniam para ouvirem Lutero pre­gar. Príncipes, camponeses, poetas e homens de estado; professores, sábios e estudantes de teologia, todos igual­mente tinham despertado; e todas as classes e todas as na­ções dirigiam para Lutero e sua suprema atenção. Um monge solitário em Wittenberg fizera soar a trombeta de desafio, e a Europa inteira estava esperando com grande interesse o resultado da próxima luta.

IDA DE LUTERO A WORMS
Foi para Lutero um tempo de perigo aquele, mas a sua confiança em Deus era grande. Determinou ir a Worms responder às acusações que lhe eram feitas, fossem quais fossem os perigos; e quando o seu propósito foi conhecido encontrou mais uma vez um verdadeiro amigo no Príncipe da Saxônia. Este príncipe cristão obteve para ele um sal­vo-conduto do imperador e de todos os príncipes alemães por cujos estados ele tinha de passar; e com esta proteção Lutero estava pronto a partir. Os seus amigos estavam re­ceosos e apreensivos, e procuraram ainda dissuadi-lo de empreender a jornada. Mas Lutero, confiando em Deus, não se importou com o pedido deles. "Se Jesus Cristo me ajudar", disse ele, "estou resolvido a nunca fugir do cam­po, nem abandonar a Palavra de Deus".
Chegando a Francfort, escreveu ao seu amigo Spalatim, que estava em Worms, para arranjar-lhe um quarto; e na sua carta lê-se o seguinte período característico: "Ouvi dizer que Carlos publicou um edito com o fim de me ater­rorizar. Mas Cristo vive; e havemos de entrar em Worms ainda que as portas do Inferno, ou todos os poderes das tre­vas se oponham".
A sua entrada naquela cidade no dia 16 de Abril de 1521 celebrou-se com uma ovação pública; e chegaram-lhe aos ouvidos muitas palavras piedosas e animadoras, e mui­to povo o abençoava quando ele atravessava as ruas para o seu alojamento. No dia seguinte apareceu o marechal do império para o conduzir ao Congresso; e quando o monge se dirigia por entre a multidão para a sala do concilio foi saudado com palavras amigas por vários cavaleiros e fidal­gos que se achavam ali presentes.

LUTERO NO CONCILIO
Ao entrar na sala do concilio o reformador ficou um tanto assombrado pelo espetáculo pouco vulgar que se lhe apresentava. Logo defronte dele sentava-se, vestido de Púrpura e arminho, Carlos V rei de Espanha e imperador da Alemanha, e ao lado do trono estava seu irmão, o arquiduque Fernando. Á conveniente distância deles estavam colocados príncipes do império, duques, margraves, arce­bispos, bispos, prelados, embaixadores, deputados, con­des, barões e outros. Um tal espetáculo era bastante para perturbar o espírito do monge solitário que tinha passado a maior parte da sua vida na solidão na sua casa de provín­cia, e na cela do mosteiro; mas havia alguém que estava do lado dele, que era mais que suficiente para protegê-lo. Al­guém que tinha dito a Ezequiel nos tempos passados:

"Não os temas, nem temas as suas palavras; ainda que se­jam sarças e espinhos para contigo, e tu habites com escor­piões, não temas as suas palavras, nem te assustes com os seus rostos!" (Ez 2.6). Era nele que Lutero confiava.

Os trabalhos daquele dia foram começados pelo chan­celer de Treves, um amigo de Aleander. No meio de um so­lene silêncio levantou-se do seu lugar e dirigiu a Lutero as seguintes perguntas: "Em primeiro lugar, queremos saber se estes livros" - e apontou para as obras de Lutero que es­tavam sobre a mesa - "foram escritos por vós. Em segundo lugar, se estais pronto a retratar-vos do que escrevestes nestes livros, ou se persistis nas opiniões que neles expusestes". Depois de ter trocado algumas palavras com o seu advogado, Lutero deu uma resposta afirmativa à primeira pergunta, mas pediu algum tempo para considerar a se­gunda. O seu pedido foi satisfeito e assim combinaram dar-lhe até ao dia seguinte para pensar no assunto.
Aquele espaço de tempo, exceto uns poucos momentos dedicados aos seus amigos, foi empregado por Lutero em fervente oração a Deus, e assim animado apresentou-se pela segunda vez perante o tribunal dos homens, mas esta vez forte e ousado; e quando o chanceler lhe fez de novo a pergunta ele respondeu-lhe com tanta facilidade que ar­rancou exclamações de admiração dos seus amigos, e con­fundiu os seus inimigos. As suas censuras a todo o sistema do papismo foram fortes e incontestáveis.
Lutero terminou o seu discurso com palavras enérgicas de aviso ao imperador Carlos, e pediu-lhe a proteção que a malícia dos seus inimigos tornava necessária. Sendo insta­do para que desse uma resposta mais explícita à pergunta do chanceler, respondeu prontamente: "Visto que vossa majestade e vós poderosos senhores me exigem uma res­posta clara, simples e precisa, dar-vo-la-ei, e essa resposta é a seguinte - não posso submeter a minha fé nem ao papa nem aos concílios, porque é claro como o dia que eles mui­tas vezes têm caído em erro, até nas mais palpáveis contra­dições, com eles próprios. Se, portanto, não me convencerdes pelo testemunho das Escrituras, se não me persuadirdes pelos próprios textos que tenho citado, libertando as­sim a minha consciência por meio da Palavra de Deus, eu não posso nem quero retratar-me, porque não é seguro para um cristão falar contra a sua consciência". Em segui­da, olhando em volta daquela assembléia, no meio da qual se conservava de pé, e que tinha bastante poder para o condenar, disse - "Tendo dito... aqui estou. Não posso pro­ceder de outro modo... Deus me ajude! Amém".
Estavam agora justificados os receios dos amigos de Lutero, de que Roma havia de proceder traiçoeiramente na questão do seu salvo-conduto; e se o imperador tivesse sido como Sigismundo tudo naquele dia teria acabado para o reformador.
Mas os esforços traiçoeiros dos papistas em promover a violação do seu salvo-conduto não acharam apoio em Car­los, e a cada nova instância dos traidores ele respondeu re­solutamente: "Ainda que a boa fé tivesse desaparecido da superfície da terra devia sempre encontrar um refúgio na corte dos reis". Contudo o imperador consentiu em que se publicasse um edito de desterro; mas isso satisfez tão pou­co às exigências de Roma que eles voltaram ao seu extremo e desesperado recurso - o assassinato. Fizeram-se combi­nações para assassinar o reformador quando ele voltasse para a Saxônia, mas o seu bom amigo, o príncipe, foi avi­sado da conspiração a tempo, e pôde frustrá-la. Quando Lutero voltava para casa, foi repentinamente rodeado num bosque por um bando de cavaleiros mascarados que, de­pois de mandarem embora as pessoas que o acompanha­vam, conduziram-no alta noite ao antigo castelo de Wartburgo, perto de Eisenach, e ali o deixaram.
Isto foi um estratagema do príncipe para pôr Lutero num lugar de segurança, e durante este tempo de descanso que lhe proporcionava a sua reclusão de Wartburgo, e com­pletamente tranqüilo a respeito de decretos imperiais e bu­las papais, o reformador escreveu algumas das suas mais soberbas obras de controvérsia, e começou a sua obra fa­vorita, e talvez a maior de todas - a tradução da Bíblia para a língua alemã.












































21
Zwínglio e a reforma suíça
(1404-1522)


Deixando Lutero em Wartburgo, notemos o que Deus tinha estado a fazer pelo seu povo em outro ponto da Euro­pa por meio de outros instrumentos.
É especialmente digno de menção que ao mesmo tempo em que se ia iniciando a Reforma na Alemanha, ia-se aba­lando cada vez mais o trono papal, em conseqüência de um despertamento religioso na Suíça, e o instrumento que Deus tinha escolhido para o cumprimento desta obra ali foi um padre de Roma chamado Ülrico Zwínglio. Se Lutero era filho de um mineiro, o reformador suíço não se podia gabar de ser de origem mais nobre, visto que seu pai era pastor, e guardava seu rebanho em Wildaus, no vale de Tockemburgo.

ZWÍNGLIO NOS ESTUDOS
Se não fosse o fato de o pai de Zwínglio destiná-lo a igreja, podia este ter morrido sem que seu nome jamais chegasse a nós. Mas tudo foi sabiamente ordenado por Deus, que tinha uma obra especial e importante para dar a fazer ao filho do pastor; e a sua mocidade foi regulada em conformidade com isso. Ainda não tinha dez anos de idade quando o mandaram para os estudos, sob a vigilância do seu tio, o deão de Wesen, e ali deu tais provas da sua inteli­gência, que seu parente tomou a responsabilidade da sua educação e mandou-o estudar sucessivamente em Basi­léia, Berne, Viene, e de novo em Basiléia. Quando voltou para esta cidade teve a felicidade de ficar entregue aos cui­dados do célebre Tomás Wittembach, homem que via cla­ramente os erros de Roma, e ao mesmo tempo não era es­tranho à importante doutrina de justificação pela fé. O professor não escondia ao seu discípulo, nem os seus co­nhecimentos, nem as suas opiniões; e foi ali que Zwínglio ouviu pela primeira vez, com um sentimento de admira­ção, que "a morte de Cristo era o único resgate para a sua alma".
Deixando Basiléia após concluir o seu curso de teologia e depois de ter tomado o grau de bacharel em letras, foi es­colhido para pastor da comunidade de Claris, onde ficou dez anos. Durante a sua permanência ali, dedicou-se a um estudo profundo das Escrituras e a examinar com atenção as doutrinas e práticas da igreja primitiva, como estavam descritas nos escritos dos antigos doutores, e isso mais o convenceu do estado de corrupção em que se achava a igre­ja professa; e começou a exprimir as suas opiniões sobre matérias eclesiásticas com uma clareza admirável.
No ano de 1516 estava ele em Einsiedeln, no cantão de Schwyz, tendo recebido um convite do governador do mos­teiro dos Beneditinos para paroquiar a igreja de "Nossa Senhora de Ermitagem", que era então um foco da idola­tria e superstição de Roma. O que Lutero vira em Roma, viu Zwínglio em Einsiedeln; e o seu zelo na obra da Refor­ma foi estimulado pelas deploráveis descobertas que ali fez. Os seus trabalhos na Ermitagem foram abençoados, e o administrador Geroldseok e vários monges foram conver­tidos.
Depois de um ministério fiel de três anos em Einsie­deln, o reitor e os cônegos da igreja catedral de Zurique convidaram-no para ser seu pastor e pregador, sendo este convite aceito. Alguns, suspeitando das doutrinas reforma­das, opunham-se à sua nomeação, mas a sua reputação era tão grande, e os seus modos tão atraentes, que estava a maioria a seu favor, e foi devidamente eleito. Zurique tor­nou-se então a esfera central dos seus trabalhos, e foi ali que travou conhecimento com Oswaldo Myconius, que mais tarde escreveu a sua vida.

ZWÍNGLIO PREGANDO EM ZURIQUE
Quando ele pregava na catedral, reuniam-se milhares de pessoas para o ouvir; a sua mensagem era nova para os seus ouvintes, e expunha-a numa linguagem que todos po­diam compreender. Diz-se que a energia e novidade do seu estilo produziu impressões indescritíveis, e muitos foram os que obtiveram bênçãos eternas por meio do Evangelho puro e claro, enquanto que todos admiraram-se do que ou­viam. Era grande a sua fé no poder da Palavra de Deus para converter as almas sem explicações humanas. Não quis restringir-se aos textos destinados às diferentes festi­vidades do ano, que limitavam, sem necessidade, o conhe­cimento do povo com respeito ao livro sagrado e declarou que era sua intenção começar no evangelho de S. Mateus e segui-lo capítulo por capítulo, sem os comentários dos ho­mens. "No púlpito", diz Myconius, "não poupava nin­guém. Nem papa, nem prelados, nem reis, nem duques, nem príncipes, nem senhores, nem pessoa alguma. Nunca tinham ouvido um homem falar com tanta autoridade. Toda a força e todo o deleite de seu coração estavam em Deus e em conformidade com isso exortava a cidade de Zu­rique a confiar somente nele". "Esta maneira de pregar é uma inovação!" - exclamavam alguns - "e uma inovação leva a outra; onde irá isto parar?" "Não é maneira nova", respondia Zwínglio, com modos cortezes e brandos, "pelo contrário é antiga. Recordem-se dos sermões de Crisósto­mo sobre S. Mateus, e de Agostinho sobre S. João". Com estas respostas pacíficas, desarmava muitas vezes os seus adversários, chegando até com freqüência a atraí-los a si.
Neste ponto ele apresenta um notável contraste com o rude e enérgico Lutero.
Estava Zwínglio em Zurique havia pouco mais ou me­nos um ano quando a peste visitou a Suíça, e o reformador foi atacado por ela. Ele orou a Deus sinceramente pelo seu restabelecimento e obteve resposta para a sua oração, e a misericórdia divina em o poupar foi mais um incentivo para uma devoção ainda mais profunda. O poder da sua pregação aumentava sempre, e seguiu-se um tempo de muita bênção, convertendo-se centenas de pessoas; e por este motivo os padres ficavam encolerizados e indignados. Zwínglio convidou-os mais do que uma vez para uma dis­puta pública, mas eles receavam o convite, e por fim, para fazerem calar o reformador, apelaram para o Estado. Este apelo foi a ruína deles, porque o Estado decretou: "Visto que Ülrico Zwínglio tinha por diferentes vezes convidado publicamente os contrários à sua doutrina a contradizê-la com argumentos das Escrituras, e visto que apesar disto nenhum o tinha querido fazer, ele podia continuar a anun­ciar e pregar a Palavra de Deus exatamente como até en­tão. E também que todos os ministros de religião, quer re­sidentes na cidade quer no campo, se absteriam de ensinar qualquer doutrina que não pudessem provar pelas Escritu­ras; e que deveriam igualmente evitar fazer acusações de heresia e outras alegações escandalosas, sob pena de castigo severo". Assim se viu Roma presa na própria rede que ar­mara, e mais uma vez vencida, enquanto que o decreto se tornou um poderoso impulso para a Reforma.

OFERTA DO PAPA A ZWÍNGLIO
Entretanto o papa (Adriano VI), que tinha estado a ameaçar a Saxônia com os seus anátemas, recebeu as alar­mantes notícias do movimento na Suíça, e, temendo os efeitos de uma segunda reforma, experimentou um novo estratagema com Zwínglio. Sabia que o reformador suíço era um homem mais delicado do que Lutero, e por isso en­viou-lhe uma carta mui lisonjeira, certificando-o da sua amizade especial, e chamando-lhe seu "amado filho" e fez acompanhar esta epístola assucarada de provas evidentes da sua consideração. Quando Myconius perguntou ao por­tador do breve papel o que era que o papa lhe tinha encar­regado de oferecer a Zwínglio, recebeu esta resposta: "Tu­do menos a cadeira de S. Pedro". Mas Zwínglio conhecia bem a astúcia de Roma, e preferiu a liberdade com que Je­sus Cristo o tinha libertado, ao jugo de superstição, e a um barrete de cardeal.

PROGRESSO DA REFORMA
Depois deste acontecimento a Reforma ganhou terreno com muita rapidez, e o reformador recebia constantes in­centivos para a obra e as mais agradáveis provas de que Deus estava com ele. Em janeiro de 1524 foi publicado um decreto que determinava que as imagens fossem destruí­das; em abril de 1525 foi abolida a missa, e determinado que desde então, pela vontade de Deus, fosse a Ceia do Se­nhor celebrada conforme fora instituída por Cristo, e o cos­tume apostólico. Mais tarde ainda, chegou a notícia da conversão das freiras do poderoso convento de Konigsfeldt, onde os escritos de Zwínglio tinham entrado; e o coração do reformador exultou quando recebeu uma carta que lhe tinha sido dirigida por uma dessas convertidas. Isto foi um golpe terrível para Roma. O efeito que um Evangelho claro e simples produziu nas freiras foi mostrar-lhes a inutilida­de de uma vida de celibato e solidão, e pediram ao governo licença para sair do convento. O concilio, mal compreen­dendo as razões que elas tinham para isso, e assustado com aquele pedido, prometeu-lhes que a disciplina do convento seria menos severa e que lhes aumentaria a pensão. "Não é a liberdade da carne que nós pedimos", respoderam elas, "mas sim a liberdade do Espírito". 0 pedido das freiras foi satisfeito porque o próprio Concilio ficou também esclare­cido; e não foram só as freiras de konigsfeldt que foram li­bertas; as portas de todos os conventos foram abertas de par em par, e a oferta de liberdade estendeu-se a todas as internas.

EFEITOS DA REFORMA EM BERNA
Em Berna o poder da verdade manifestou-se de outro modo, não menos interessante. Os magistrados em sinal de regozijo pela grande obra, soltaram vários prisioneiros, e concederam completo perdão a dois desgraçados que esta­vam esperando o dia da sua execução. "Um grande grito", escreve Bullinger. discípulo de Zwínglio, "ressoou por toda a parte. Num dia Roma decaiu em todo o país, sem trai­ções, sem violências, sem seduções; unicamente pela força da verdade". Os felizes cidadãos, despertados pelo poder da verdade, exprimiram os sentimentos dos seus corações da maneira mais generosa. "Se um rei, ou imperador, nos­so aliado", diziam eles, "estivesse para entrar na nossa ci­dade, não perdoaríamos nós as ofensas, e não auxiliaría­mos os pobres? E agora que o Rei dos reis, o príncipe de paz, o Filho de Deus, o Salvador do gênero humano está conosco, e trouxe consigo o perdão dos pecados, a nós que merecíamos ser expulsos da sua presença, que melhor po­demos nós fazer para celebrar a sua chegada à nossa cida­de do que perdoar aqueles que nos ofenderam?"

A OBRA EM BASILÉIA
Em Basiléia, uma das comarcas mais poderosas da Suíça, as doutrinas da Reforma espalharam-se com incrí­vel rapidez, e produziram os melhores resultados. Os zelo­sos burgueses limparam o país das suas imagens, e quando o humilde e piedoso Oecolâmpade (o Melanchton da refor­ma Suíça), acabou de completar um ministério fiel de seis anos na comarca, adotaram em todas as igrejas o culto re­formado, que foi firmemente estabelecido por um decreto do Senado.
O coração exulta ao descrever esta gloriosa obra de Deus, e sentimos não poder continuar uma tarefa tão agra­dável, mas falta-nos espaço.














22
Zelo de Lutero na Reforma
(1521-1529)


OS DESORDEIROS DE ZWICKAU
Voltemos agora a Lutero, a quem deixamos no solitário castelo de Wartburgo, entregue à tradução da Bíblia. Du­rante a sua permanência ali não havia ninguém que pudes­se cabalmente levar por diante a obra que ele tinha em­preendido na Alemanha; e este pensamento - porque ele estava a par de tudo quanto se passava fora do castelo - fa­zia-o estar ansioso e agitado, e por fim levou-o a voltar a Wittenberg. Melanchton era tão instruído como ele, e, sem dúvida, não era menos firme na sua devoção pela causa que ambos defendiam, mas era muito brando e pacífico para o rude trabalho que Lutero tinha começado, e não pa­recia estar em condições de poder dirigir o movimento re­formador naqueles tempos tumultuosos. Havia ali também André Carlostadt, um doutor em Wittenberg, bastante versado nas Escrituras Sagradas, mas com algumas idéias erradas na sua teologia, e além disso arrojado demais para se poder confiar nele como chefe. Os seus atos eram tão imprudentes que quando em Zwickau se levan­tou um grupo de homens com o fim manifesto de abolir su­mariamente tudo que não estivesse expressamente prescri­to na Bíblia, ele aplaudiu esse procedimento, e colocou-se à frente deles. Imagens, crucifixos, missas, vestes sacerdotais, confissões, hóstias, jejuns, cerimônias, decorações de igrejas - tudo estava para ser imediatamente varrido pela destruição; e todo o cristianismo se devia revolucionar, pe­las influências combinadas do Evangelho e da espada.
Lutero logo que teve conhecimento disto, escreveu de Wartburgo aos amotinadores, dizendo-lhes que não apro­vava o seu procedimento, nem se poria ao lado deles neste caso. "Tinha sido", dizia ele, "empreendido sem termos, com muito atrevimento e violência... Acreditem-me, eu conheço bastante o Demônio; só ele podia fazer as coisas deste modo, para trazer vergonha sobre a Palavra". As suas advertências foram porém inúteis; as medidas que ele propunha eram muito brandas e moderadas para os inconoclastas de Wittenberg, e foram por diante com as suas inovações.

VOLTA DE LUTERO PARA WITTENBERG
Tendo aumentado o tumulto, Lutero fechou os olhos ao próprio perigo, e, saindo do seu esconderijo, partiu para Wittenberg. Foi em vão que o príncipe lhe fez ver o perigo a que ele se expunha, e lhe mostrou a qualidade do inimigo que tinha no duque Jorge, por cujos territórios havia de passar. "Uma coisa posso dizer", escreveu ele, "se as coi­sas estivessem em Leipzig como estão em Wittenberg, para ali mesmo me dirigiria, ainda que chovesse duques Jorges durante nove dias, e que cada um deles fosse nove vezes mais feroz do que este. Portanto direi a Vossa Alteza (apesar de Vossa Alteza saber muito bem), que vou a Wit­tenberg sob uma proteção muito mais forte do que a de Vossa Alteza".
Ao chegar a Wittenberg em março de 1522, Lutero co­meçou uma série de sermões, oito ao todo, sobre os fanáti­cos de Zwickau, nos quais tratou dos diferentes assuntos com um tato pouco vulgar. Estes sermões constituem um tesouro, e foram admiravelmente adaptados à ocasião a que se destinaram. No seu estilo vigoroso e picante fez-lhes ver o deplorável fim a que um tal excesso de zelo levaria sem dúvida o povo; disse-lhes que lhes faltava caridade, sem a qual a sua fé de pouco valia; que sabiam melhor fa­lar das doutrinas que lhes eram pregadas, do que pô-las em prática; e que não tinham paciência e estavam prontos de mais a sustentar os seus próprios direitos. "Neste mundo", disse ele, "não se deve fazer tudo aquilo a que se tem direi­to, mas antes renunciar o próprio direito, e considerar, pelo contrário, o que é útil e vantajoso para os nossos irmãos. Não imagineis que aquilo que "deve ser" "há de ser" forço­samente, como estais fazendo, para que não tenhais de res­ponder por aqueles que tendes desencaminhado pela vossa liberdade pouco caridosa". Estes sermões tiveram o efeito desejado. A agitação apaziguou-se, seguindo-se-lhe o sos­sego e a tranqüilidade. Os estudantes voltaram pacifica­mente aos seus estudos e o povo, às suas casas; e o príncipe não pôde deixar de reconhecer que Lutero tinha feito bem em sair de Wartburgo.

TRADUÇÃO DA BÍBLIA
Em seguida a isto continuou com a tradução da Bíblia, sendo muito auxiliado na árdua tarefa pelas revisões críti­cas de Melanchton. Poucos meses depois o Novo Testa­mento estava pronto, e em setembro de 1522 publicado. Foi recebido pelos seus compatriotas com muito entusias­mo, e teve de publicar uma segunda edição no espaço de dois meses, e em dez anos nada menos de cinqüenta e três edições se tinham publicado só na Alemanha! Então foi adicionado também o Velho Testamento. O povo alemão tinha agora uma Bíblia completa na sua própria língua, e isto contribuiu mais para a consolidação e propagação das doutrinas reformadas do que todos os escritos de Lutero juntos.
A Reforma estava agora assentada na sua verdadeira base - a Palavra de Deus. Até aqui falara Lutero. Agora é o próprio Deus que fala ao coração e à consciência dos homens. A sua Palavra era agora acessível a todos, e a Roma papal tinha recebido um choque do qual nunca se poderia restabelecer completamente. Pouco depois foi dirigido ao papa, por um concilio de bispos católico-romanos, um me­morial sobre o assunto: "O melhor conselho", disseram eles, "que podemos dar à sua santidade é que devemos em­pregar todos os esforços para se evitar a leitura do Evange­lho em língua vulgar... O Novo Testamento é um livro que tem dado mais ocasião a maiores distúrbios, e estes distúr­bios têm quase arruinado a nossa igreja. Na verdade, se prestarmos séria atenção às Escrituras e as compararmos com o que geralmente se encontra nas nossas igrejas, ver-se-á uma grande diferença entre umas e outras; e que a doutrina do reformador é inteiramente diferente da nossa e em muitos respeitos diametralmente oposta a ela". Era as­sim que Roma se julgava a si própria; e que o poder da Pa­lavra era reconhecido por aqueles que praticamente nega­vam a sua autoridade.

PROGRESSO DA REFORMA
No entanto, a Reforma continuava a ganhar terreno, e o interesse que o primeiro ato de Lutero tinha despertado não diminuía com o decorrer do tempo. O povo em toda a parte escutava a Palavra com prazer, chorando muitas ve­zes de alegria ao ouvir as boas-novas. Em Zwickau e Ana-berg, as multidões ávidas rodeavam os púlpitos dos refor­madores, e escutavam-nos dias inteiros; e quando Lutero pregou o seu primeiro sermão em Leipzig aquela grande multidão de gente caiu de joelhos e bendisse a Deus pela Palavra que seu servo tinha o privilégio de falar. Os folhe­tos e os sermões do reformador eram levados de cidade em cidade; os vendedores ambulantes levavam-nos às aldeias mais distantes, e os navios transportavam-nos de porto em porto, introduzindo-os em todos os países onde houvesse homens bastante instruídos para os receber. Três anos de­pois do começo da Reforma, houve um viajante que com­prou algumas das obras de Lutero em Jerusalém.


OPOSIÇÃO DE ROMA
Roma, como se pode supor, não descansava no caso, e fulminava os reformadores com as suas maldições numa cólera vã. "Heresia! Heresia!" ouvia-se por toda a parte, enquanto as excomunhões se multiplicavam e os editos reais se publicavam em número cada vez maior. Alguns pregadores do Evangelho foram presos, torturados, quei­mados, mas isso de nada servia: a Bíblia estava nas mãos do povo, e a resistência era inútil. As mulheres mais sim­ples estavam sentadas ao pé das suas rocas, com as suas Bíblias no regaço, e confundiam os monges que vinham discutir com elas. Tinha-se levantado uma nova ordem de coisas, mas o poder que tinha produzido estes efeitos não provinha do homem. Era um poder que até ali tinha forças - para esmagar, e era poderoso para destruir as fortalezas do inimigo.
A Reforma estava ainda em começo quando rebentou a guerra dos camponeses, que lhe fez sofrer um grande atra­so. Era o seu chefe um fanático chamado Tomás Münzer, homem que tinha tomado parte notável nos motins de Wittenberg, durante a reclusão de Lutero ao castelo de Wartburgo. Depois disso estabeleceu-se em Mulhausen, e empreendeu a sua grande obra (como ele lhe chamava) de derrubar o "reino pagão" e de exterminar os ímpios.

REVOLTA DOS CAMPONESES DA ALTA ALEMANHA
Os camponeses oprimidos ouviram-no com alegria, e correram às armas. Lutero, a princípio, foi ao encontro de­les com a Palavra de Deus e com razões moderadas; mas quando se insurrecionaram abertamente, então escreveu contra eles, e chamou-lhes de ladrões e assassinos. As províncias da Alta Alemanha estavam agora mergulhadas em anarquia e confusão. A plebe, estimulada por um êxito temporário, e furiosa com a lembrança da injustiça e opressão que tinha sofrido, precipitava-se para aqui e aco-K lá, queimando e destruindo palácios, igrejas, conventos, até que por fim foram vencidos em Frankenhaussem pelo príncipe de Hesse, e totalmente derrotados. O seu ato te­merário de rebelião não lhes serviu de nada, e quando vol­taram para as suas casas, viram que com ele tinham au­mentado seus males. Condenar sem distinção todos aque­les que tivessem tomado a mais insignificante parte no movimento, era agora a política do partido papal; e daí to­dos os males provenientes da guerra dos camponeses foram injustamente atribuídos à influência da obra de Lutero. A Reforma não sofreu pouco por causa dessa falsa acusação.

MOVIMENTO DIVERGENTE
Por essa época apareceram os anabatistas, assim cha­mados por sustentarem a doutrina de que o batismo devia ter lugar por imersão, e que os que tivessem sido batizados na infância deviam ser novamente batizados.
Os chefes deste movimento asseveravam que eram eles os verdadeiros reformadores, e anunciavam que o reino de Cristo estava prestes a manifestar-se. Tinham, porém al­guns excessos: achavam que deveriam ter todas as coisas em comum, e que não deviam ser obrigados a pagar dízi­mos nem tributos... Eles aumentavam em número, e apre­sentavam uma vida muito rigorosa, assim como uma gran­de coragem na morte de mártires, quer seja por meio de fogo ou de água. O movimento continuou a aumentar, ape­sar da perseguição, até o martírio dos seus principais che­fes.

O CONSELHO DE SPIRES
Pouco mais ou menos por este tempo os três mais pode­rosos príncipes da Europa, Henrique VIII da Inglaterra, Carlos V da Alemanha e Francisco I da França, uniram-se com o papa para a supressão dos perturbadores da religião católica e para se vingarem dos ultrages que tinham sido feitos à "Santa" Sé. Para esse fim foi convocado em Spires um Conselho de nobres, no ano de 1526, a que presidiu o príncipe Fernando, irmão do imperador. Foi lida aos príncipes reunidos uma mensagem imperial ordenando que fosse prontamente cumprido o edito de Worms contra Lutero. Mas isso não deu o resultado com que os amigos do papismo tinham tão ardentemente contado; e, em vez de entregarem o reformador à mercê de Roma, o Conselho submeteu ao imperador os seguintes itens: que eles fariam todos os esforços para aumentar a glória de Deus e manter uma doutrina em conformidade com a sua Palavra, e da­vam graças a Deus por ter feito reviver no tempo próprio a verdadeira doutrina de justificação; que não permitiriam a extinção da verdade que Deus lhes tinha revelado ultima­mente.
Confiante, apesar da derrota, o imperador três anos mais tarde reuniu um segundo Conselho na mesma cidade. Os seus modos eram coléricos e despóticos, mas os nobres que defendiam a Reforma estavam tranqüilos e resolutos. Naqueles tempos estas qualidades eram muito necessá­rias. Ninguém esperava a inflexibilidade dos nobres, e a presença de um tal espírito entre eles era um novo elemen­to no Conselho alemão. Até ali o imperador tinha tido fama de exercer um poder absoluto, mas ia ter lugar uma crise na história da Reforma, e aquilo por que lutavam os nobres não tinha sido reconhecido pela política humana. Foi isto que o imperador não compreendeu.

ORIGEM DA PALAVRA "PROTESTANTE"
Fernando presidiu novamente a este Conselho e, sen­tindo que estava iminente uma crise, recorreu a medidas desesperadas. Usando da autoridade que ele ali represen­tava, ordenou imperiosamente a submissão dos príncipes alemães ao edito de Worms. A sua conduta foi mais carac­terizada pelo atrevimento do que pela sabedoria, e só ser­viu para agravar o sentimento que já existia. Para dar uma saída ao negócio, publicou-se um decreto resumindo as or­dens do imperador, que os fidalgos católicos assinaram.
Foi aquele um momento de ansiedade para Lutero e a Reforma, mas o grupo reformador teve forças para susten­tar a luta no Conselho. Sem receio da altivez de Fernando, e impassíveis às ameaças dos bispos, uniram-se em um grupo e no dia seguinte levaram seu protesto contra a deci­são da assembléia. E foi o começo do protestantismo, e do Período de Sardo na História da Igreja.
























23
O formalismo depois da Reforma
(1529-1530)


A POLÍTICA E A REFORMA
Vamos agora tratar deste importante período, que foi previsto na carta à igreja de Sardo, no Apocalipse, e deve­mos ter muito cuidado em distinguir entre a obra da Refor­ma e o formalismo morto que se desenvolveu a par dela, pois que logo que experimentaram bem o poder emancipa-dor das doutrinas reformadas, aqueles que as tinham abra­çado, esquecendo a suficiência do seu Cabeça que estava no Céu, e receando novos assaltos da parte de Roma, colo­caram-se sob a proteção dos magistrados civis. Satisfeitos com esta segurança, entregaram-se imediatamente ao gozo dos seus novos privilégios, e em pouco tempo tinham caído num estado deplorável de inércia e torpeza espirituais. As palavras do Espírito à igreja que está em Sardo são estas: "Eu sei as tuas obras, que tens nome de que vives, e estás morto. Sê vigilante, e confirma o resto que estava para morrer; porque não achei as tuas obras perfeitas diante de Deus. Lembra-te pois do que tens recebido, e guarda-o, e arrepende-te" (Ap 3.1-3).
Todos os historiadores concordam em que o segundo Conselho da Spires marca o começo do protestantismo, mas talvez nem todos haviam de concordar com a seguinte opinião que. não obstante, merece a nossa consideração: "Na Reforma", diz Kelly, "ao fugirem do papismo, os cris­tãos caíram no erro de pôr a igreja nas mãos dos magistra­dos civis, ou fizeram a própria igreja depositária desse po­der; enquanto que Cristo, pelo seu Espírito, deve ainda exercer o ofício de Senhor da Igreja".
O protestantismo errou, desde o princípio, no ponto eclesiástico, porque considerava o chefe civil como aquele em cujas mãos estava investida a autoridade eclesiástica, de modo que, se a Igreja tivesse sido, sob o papismo, o che­fe do mundo, o mundo ter-se-ia tornado, sob o protestan­tismo, o chefe da Igreja. O leitor pode estranhar, à primei­ra vista, o que fica dito; mas estamos persuadidos de que, meditando e orando, há de chegar a igual conclusão.

PROTEÇÃO DOS PRÍNCIPES AO MOVIMENTO
A reforma alemã não começou pelas classes mais bai­xas, como aconteceu na Suíça. Na Alemanha os príncipes puseram-se à frente, ajudando a causa, e adotando as opi­niões dos reformadores, mas quando os luteranos começa­ram a sentir seriamente a necessidade de uma constituição eclesiástica para as igrejas, em vez de seguirem as instru­ções da Palavra de Deus, adotaram para seu uso um siste­ma de leis e princípios que o príncipe de Hesse coordenou. E assim as igrejas reformadas tiveram logo uma constitui­ção puramente humana e política.
O bondoso príncipe de Saxônia Frederico, o Sábio, morreu no ano 1525, e o seu sucessor João, um Luterano valente, deu um grande impulso à obra da Reforma. Como um meio de reprimir a autoridade do papa, assumiu uma completa jurisdição em matéria religiosa, demitindo ho­mens incompetentes e preenchendo os lugares destes com luteranos piedosos e aprovados. Outros príncipes seguiram seu exemplo, introduzindo na igreja sistemas de governo que eram meramente organizações humanas, e assim se es­tabeleceram as primeiras igrejas luteranas.
Sempre que se tomem medidas precipitadas em maté­rias de importância há de se encontrar oposição. Até aqui a moderação de Frederico tinha conservado os partidos cató­licos e luteranos até certo ponto, porém as medidas enérgi­cas e extremas do seu sucessor alarmaram os príncipes ca­tólicos, que formaram uma aliança entre si para reprimir o progresso das doutrinas reformadas nos seus respectivos territórios. A separação tornou-se irremediável. Uma gran­de parte da Saxônia, o antigo distrito de frisões, e as colô­nias orientais de Alemanha eram agora protestantes; en­quanto que a Áustria, Baviera, e os bispados alemães do Sul conservaram a velha religião. A guerra civil parecia inevitável, mas os pormenores desta contenda pertencem mais à história política do que à eclesiástica, e por isso não nos ocuparemos com eles.

0 IMPERADOR RESOLVE CONVOCAR OUTRO CONSELHO
Quanto ao imperador, havia muito que ele tinha na sua idéia reunir um Conselho com o fim de se certificar, ele próprio, pela boca dos principais protestantes, quais eram as razões por que eles se separavam da antiga igreja.
O papa, que ainda se lembrava do procedimento dos Conselhos de Worms e Spires, opôs-se a isso, e aconselhou medidas enérgicas. "As grandes congregações", dizia ele, "só servem para introduzir opiniões populares. Não é com decretos de concílios, mas com a ponta da espada que de­vemos decidir as controvérsias". Carlos prometeu refletir sobre este conselho, mas, depois de vacilar por algum tem­po entre as duas opiniões, optou pela sua, e convocou um conselho em Augsburgo.
Logo que se conheceram as razões do imperador para convocar o conselho, os protestantes prepararam uma fór­mula de confissão para ser submetida. Foi escrita por Melanchton, e nela se enumeravam claramente as principais doutrinas dos reformadores, sendo a matéria fornecida principalmente por Lutero que leu o documento e deu-lhe a sua aprovação, dizendo: "Eu nasci para ser um rude po­lemista; limpo a terra, arranco o joio, encho os fossos e en­direito as estradas. Mas quanto ao edificar, plantar, se­mear, regar, embelezar o campo, isso pertence, pela graça de Deus, a Felipe Melanchton". O documento foi chamado "Confissão de Augsburgo".

ENCONTRO DO IMPERADOR COM OS PRÍNCIPES
No dia 15 de junho de 1530, o imperador entrou em Augsburgo com uma comitiva importante. Os príncipes protestantes, apeando-se dos seus cavalos, foram ao seu encontro, e Carlos, com uma amabilidade igual à lealdade deles, também se apeou e estendeu cordialmente a mão a cada um deles, por sua vez. No entanto, o legado papal, o cardeal Campeggio, ficou imóvel na sua mula (parecendo haver entre eles na verdade, alguma afinidade), mas vendo que tinha cometido um erro, procurou remediá-lo lançan­do a bênção aos príncipes reunidos. Quando levantava as mãos para esse fim o imperador e a sua comitiva ficaram de joelhos, mas os príncipes protestantes conservavam-se de pé. Esta circunstância não tinha sido prevista, e os do partido do papa ficaram um tanto perplexos com o inci­dente.
Mais tarde havia de se dizer uma missa na capela de Augsburgo, para solenizar a abertura do Conselho, e os protestantes ganharam mais uma vitória recusando-se a assistir a ela. Mas o astuto prelado ainda se não deu por vencido. O príncipe de Saxônia, como marechal do Impé­rio, era obrigado em tais ocasiões a ir à frente do impera­dor, de espada na mão, e o cardeal apresentou a idéia de que Carlos lhe ordenasse que cumprisse com o seu dever na missa do Espírito Santo, que devia preceder à abertura das seções. O príncipe concordou em assistir, mas deu a enten­der ao imperador que era unicamente no desempenho de um cargo civil. Ao legado estava reservado sofrer mais um desengano. A elevação da hóstia toda a congregação caiu de joelhos em adoração, mas o príncipe conservou-se de pé.

ABERTURA DO CONSELHO
A abertura do conselho teve lugar no dia 20 de junho, e o imperador presidiu a ela. Imaginava-se que se trataria do assunto de religião antes de qualquer outro, mas pouco se fez nesse dia; e a leitura da "Apologia" - outro nome dado à "Confissão" - foi marcada para o dia 24.
A grande esperança dos católicos era que os protestan­tes não tivessem oportunidade de expor a sua causa publi­camente, e no dia 24 fizeram tudo quanto estava ao seu al­cance - prolongando os outros assuntos do dia - para de­morar a leitura da Confissão até ser tarde demais para is­so.
Foi extraordinário o tempo que o cardeal levou a apre­sentar as suas credenciais, e a entregar a mensagem do pa­pa. Por seu lado o imperador também foi muito minucioso a pedir pormenores das devastações dos turcos na Áustria, e da captura de Rhodes. Assim se gastaram momentos pre­ciosos até quase a hora de encerrar a sessão. Então fez-se notar que já era tarde demais para a leitura da Apologia. "Entregai a vossa confissão aos oficiais competentes," dis­se Carlos, "e ficai certos de que responderemos a ela depois de ser devidamente ponderada".
Mas aqui levantou-se uma certa oposição. Nunca ocor­reu a Carlos que a sua jurisdição não se estendia às cons­ciências dos seus súditos, nem que ele estava excedendo a sua prerrogativa pelas suas evasivas e artifícios, e não esta­va preparado para a resposta que recebeu. "A nossa honra está em perigo", disseram os príncipes, "e as nossas almas também; somos acusados publicamente e é publicamente que devemos responder". Que se havia de fazer? Os prínci­pes mostraram-se respeitosos, mas também firmes e in­transigentes. "Amanhã", replicou o imperador, "ouvirei o vosso sumário - não nesta sala, mas na capela do palácio Paladino".
No dia seguinte - dia memorável na história do Cristia­nismo -, os chefes protestantes apresentaram-se perante o imperador. Havia duas cópias da Confissão, uma em la­tim, outra em alemão. Carlos desejava que se lesse a cópia latina, porém o príncipe lembrou-lhe que estavam na Alemanha, e não em Roma, e que, portanto, devia ser permiti­do talar em alemão. A sua proposta admitiu-se, e o chance­ler Bayer levantou-se do seu lugar e leu a Confissão de um modo vagaroso e claro, sendo ouvido a uma distância con­siderável.
Esta leitura levou pouco mais ou menos duas horas, e Pontano, um reformador notável, entregou as duas cópias da Confissão ao secretário do imperador, dizendo: "Como a graça de Deus, que há de defender a sua Causa, esta Con­fissão há de triunfar contra as portas do Inferno".

RESULTADO DA LEITURA DA APOLOGIA
O efeito que a leitura da Confissão produziu no público foi o mais animador possível. A extrema moderação dos protestantes era a admiração de muitos; e, diz Sekendorf: "Muitas pessoas sumamente ilustradas fizeram um juízo muito favorável do que tinham ouvido, e declararam que não teriam deixado de ouvi-lo nem por uma grande soma". "Tudo quanto os luteranos disseram é a verdade", disse o bispo de Augsburgo, "não o podemos negar". E testemu­nhos destes havia muitos. O duque de Baviera disse ao Dr. Eck, o maior campeão de Roma na Alemanha: "O doutor tinha-me dado uma idéia muito diferente desta doutrina e deste negócio, mas, no fim de contas, pode porventura con­tradizer com razões boas a Confissão feita pelo príncipe e seus amigos?" - "Não pelas Escrituras", replicou Eck, "mas pelos escritos dos padres da Igreja e dos cânones dos concílios podemos". "Então já entendo", respondeu o du­que, censurando, "os luteranos tiram a sua doutrina das Escrituras e nós achamos a nossa fora das Escrituras".
















24
Período semelhante o Sardo
(1529-1556)


INTRANSIGÊNCIA DE LUTERO
Era considerado pelo povo como sendo pouco menos que um papa, e realmente em algumas ocasiões os seus atos autorizam esta denominação. Sustentava a sua posi­ção por meio de uma insistência brusca, e parece ter tido um certo receio de descer na estima dos seus semelhantes confessando qualquer erro. Quando lhe faltavam argumen­tos, ele servia-se de sofismas para manter a sua posição; e pelo menos em uma ocasião chegou a sacrificar os interes­ses do Evangelho às exigências do partido e à manutenção da sua autoridade.
Isto parece forte demais, mas é provado por bastantes fatos, e a história deve ser verdadeira. O seu procedimento na conferência de Marburgo é prova suficiente. Esta confe­rência foi promovida por Filipe, príncipe de Hesse, e tinha por fim decidir a grande controvérsia sobre a Eucaristia, Porque havia tanto tempo se batiam os reformadores ale­mães e suíços.

A DOUTRINA DE TRANSUBSTANCIAÇÃO
Lutero nunca tinha podido livrar-se de tudo das redes do papismo; e a doutrina da presença verdadeira de Cristo na Eucaristia era um dogma a que ele se agarrou até o fim. É verdade que mudou a palavra transubstanciação por consubstanciação, e procurou modificar esta nociva e blas­fema doutrina, mas a sua modificação foi um fraco expe­diente que não alterou o erro. Roma afirmava - custa es­crevê-lo - que "as mãos dos sacerdotes são elevadas a uma altura que não é concedida a nenhum dos anjos, e podem criar Deus, o Criador de todas as coisas, e oferecê-lo para a salvação do mundo inteiro". Por outras palavras, que o pão e vinho eram convertidos no corpo e sangue de Cristo na Eucaristia, fazendo desta doutrina a pedra da esquina da sua fábrica de erros, e condenando como infiéis todos aqueles que a rejeitavam. Lutero mantinha a mais absur­da e igualmente errônea noção de que os elementos depois da consagração ficavam sendo exatamente o que eram an­tes dela - verdadeiro pão e vinho, "mas que o pão e vinho tinham também em si a substância material do corpo hu­mano de Cristo" - "Logo que sejam pronunciadas as pala­vras de consagração sobre o pão, o corpo está ali, por mais perverso que possa ser o sacerdote que as pronuncia!" -São estas as próprias palavras do reformador!
Ora Zwínglio e o grupo dos reformadores suíços tinham horror a ambas estas doutrinas. Tinham restabelecido o ensino das Escrituras quanto a estas preciosas memórias; e tinham largamente espalhado as suas convicções, embora particularmente, entre os sábios da Europa. O amigo de Lutero, o Dr. Carlstadt, foi um dos primeiros a rejeitar a idéia luterana e abraçar a antiga doutrina restaurada, mas Lutero, desgostoso pelas medidas brandas, publicou no ano 1525 um panfleto vigoroso contra o seu antigo chefe; e daqui nasceu a controvérsia.

LUTERO CONTRA ZWÍNGLIO
A réplica de Lutero, que apareceu no mesmo ano, era caracterizada por uma grande arrogância e aspereza, e ele não hesitou em atribuir a Satanás os piedosos esforços de Zwínglio. Isto era na verdade um desafio, e Zwínglio não pôde deixar de entrar na luta contra ele. Mas, ainda assim, durante a controvérsia, que durou para cima de quatro anos, a linguagem do reformador suíço foi extremamente moderada. Estando absolutamente convencido da justiça da sua causa, suportou a cólera dos seus adversários sem ressentimento, e furou-lhes as malhas da armadura da sua teima com as setas da verdade. O resultado foi o que se po­dia esperar. Muitos dos luteranos mais esclarecidos, vendo com tristeza que seu chefe não queria investigar a questão pacificamente, começaram a perder confiança nele, e pas­saram para o lado dos suíços.
No entanto, os papistas viram com manifesta alegria o progresso da controvérsia; e esta observação de Erasmo: "Os luteranos estão-se voltando com ardor para o grêmio da igreja", tornou-se um provérbio na boca de todos.

CONFERÊNCIA DOS REFORMADORES
A conferência, que foi muito concorrida, na qual ape­nas tomaram parte Lutero, Zwínglio, Melanchton e Oeco-lâmpade, não deu muito bons resultados. Lutero foi para lá com uma idéia fixa, e protestou desde o princípio que havia sempre de divergir da opinião dos seus adversários no que dizia respeito à doutrina da Ceia do Senhor. Pegan­do num bocado de giz, escreveu em letras grandes no pano de veludo da mesa: "Hoc est corpus meum" ("Este é o meu corpo"). "São estas as palavras de Cristo", disse ele, "e nenhum adversário será capaz de me fazer arredar da­qui". Repetindo as mesmas palavras, acrescentou, mo­mentos depois: "Que alguém me prove que um corpo não é um corpo. Eu rejeito a razão, ao senso comum e aos argu­mentos carnais: as provas são matemáticas. Deus está aci­ma da matemática. Temos a palavra de Deus - devemos respeitá-la e fazer o que ela manda".
No prosseguimento da discussão, o acertado raciocínio de Zwínglio produziu um grande efeito, mas Lutero con­servou-se teimoso e inflexível. Os argumentos apresenta­dos pelo suíço, tirados das Escrituras, evidentemente perturbaram-lhe o espírito, mas ele tinha ido muito longe e já era tarde para retroceder. Por fim Zwínglio apresentou um argumento, que Oecolâmpade já tinha apresentado de ma­nhã quanto à significação da frase "a carne para nada aproveita". Lutero então observou: "Quando Cristo diz que a carne para nada aproveita, não fala da sua carne, mas, sim da nossa". Zwínglio respondeu: "A alma alimenta-se do Espírito e não da carne". Lutero disse: "È com a boca que comemos o corpo; a alma não o come; comemo-lo espi­ritualmente com a alma". Zwínglio: "Assim faz do corpo um alimento corporal e não espiritual". Lutero: "O senhor é sofísmador". Zwínglio: "Não, mas o senhor é que está a dizer coisas contraditórias". Lutero: "Se Deus me apresen­tasse maçãs silvestres, eu as havia de comer espiritual­mente. Na Ceia do Senhor a boca recebe o corpo de Cristo, e a alma crê nas suas palavras".
Lutero estava agora dizendo coisas sem nexo e Zwínglio procedeu com critério, apresentando novos argumentos e afirmando as suas idéias em lugar de combater as do seu adversário. Mas Lutero não se queria confessar vencido. "Este é o meu corpo", gritava ele de vez em quando, e era nesta frase que procurava um refúgio seguro em todas as suas dificuldades. "O demônio não me poderá afastar dis­to!" dizia ele, "procurar compreendê-lo é afastar-se da fé".
Daí um pouco Oecolâmpade, citando 2 Co 5.17 disse: "Nós não conhecemos Jesus Cristo segundo a carne". Lu­tero: "Segundo a carne significa, nessa passagem, segundo as nossas afeições carnais". Zwínglio: "Então responda-me a isto, Dr. Lutero, Cristo subiu ao Céu; e se Ele está no Céu, no que diz respeito ao seu corpo, como pode Ele estar no pão? A Palavra de Deus ensina-nos que Ele foi, em to­das as coisas, feito igual aos seus irmãos. Portanto não pode estar ao mesmo tempo em cada um dos milhares de altares onde a Eucaristia se está celebrando". Lutero: "Se eu tivesse desejo de discutir assim, havia de procurar pro­var que Jesus Cristo teve uma esposa com olhos pretos, e que viveu no nosso belo país da Alemanha, pouco me im­porto com a matemática". Zwínglio: "Não se trata aqui de matemática; trata-se de S. Paulo que escreveu aos Filipenses que Cristo tomara a forma de servo, fazendo-se seme­lhante aos homens".
Vendo-se assim batido, Lutero ainda procurou refúgio na sua frase: "Meus caros senhores, visto que o meu Se­nhor Jesus diz: 'Hoc estcorpus meum', eu creio que o seu corpo está realmente ali".
Por um momento parecia que até a paciência de Zwínglio se ia esgotar. Aproximando-se nervoso de Lutero, e batendo na mesa, disse: "Então o doutor sustenta que o corpo de Cristo está literalmente na Eucaristia, visto di­zer: 'O corpo de Cristo está ali'. Ali é um advérbio de lugar. Assim admite que o corpo de Cristo é de tal natureza que possa existir num lugar. Se está em algum lugar, está no Céu, donde se segue que não está no pão".
Contudo, mesmo este argumento foi baldado.
"Repito", disse Lutero com calor, "que não tenho nada que ver com provas matemáticas. Logo que sejam pronun­ciadas sobre o pão as palavras de consagração, o corpo está ali, por mais perverso que seja o sacerdote que as pronun­cia".

A FÓRMULA DE CONCÓRDIA
Em vista de uma tal obstinação (não podemos usar uma palavra mais branda), é de admirar que os reforma­dores chegassem a termos amigáveis; especialmente por­que no fim da discussão Lutero recusou apertar a mão a seus irmãos suíços. Não recordaremos esta cena. Folgamos mesmo não ter espaço para a incluir nesta história. Basta dizer que os esforços do príncipe de Hesse para efetuar a reconciliação tiveram bom êxito até certo ponto. Lutero apresentou uma "Forma de Concórdia", escrita em qua­torze artigos, que foi assinada por ambos os partidos no dia 4 de Outubro de 1529. Os reformadores suíços cediam nobremente a Lutero em todos os pontos em que podiam fazer sem violar as suas próprias consciências; mas esta mesma condescendência tornou a sua vitória mais comple­ta.
Comentando o procedimento do grande reformador na conferência de Marburgo, diz o deão Waddington: "Afinal de contas ele perdeu a sua influência e reputação por causa daquela controvérsia. Pelo seu modo imperioso e estudo sofismado, enfraqueceu as afeições e o respeito de um grande partido de admiradores inteligentes. Muitos agora começaram a ter uma opinião menos elevada do seu talen­to e da sua franqueza. Em lugar da abnegação e magnani­midade que tanto brilho tinham dado aos seus primeiros esforços, parece que uma vã arrogância tomara posse de seu espírito; e foi por ele se entregar a essa ignóbil paixão que a Alemanha e a Suíça se separaram quando podiam ter vivido unidas. Ele deixou de ser o gênio da Reforma. Descendo desta magnífica posição, donde tinha dado luz a toda a comunidade evangélica, tornou-se agora o mais po­deroso dos partidos dos reformadores, mas destinado no futuro a sofrer revezes e abandonos, que fizeram com que o nome de luterano fosse concedido a um número insignifi­cante de protestantes".

MORTE DE ZWINGLIO
Quando Lutero se recusou a estender a mão ao seu ir­mão suíço, no castelo de Marburgo, mal pensava ele que, dentro de um ano, toda a oportunidade de a fazer passaria. No entanto assim foi. Zwínglio morreu num campo de ba­talha, quando acompanhava o exército protestante, como capelão. Não tentaremos justificar a conduta dos protes­tantes suíços em pegar em armas contra os seus inimigos. As Escrituras ensinam-nos que "ao servo do Senhor não convém contender" e podemos estar certos de que nunca deu bom resultado o emprego das armas carnais nos confli­tos espirituais da igreja. Na batalha de Cappel, onde Zwínglio perdeu a vida, vinte e cinco ministros cristãos fi­caram mortos nos campos de batalha! O grande reforma­dor foi ferido logo no começo da luta, quando se abaixara para dirigir algumas palavras de consolação a um mori­bundo. A morte não foi instantânea; e quando jazia exaus­to no chão, ainda o ouviram dizer: "Ah! que calamidade esta! Na verdade mataram o corpo, mas não podem alcan­çar a alma".
Oecolâmpade teve um grande pesar com a morte do seu amigo, e não lhe sobreviveu muito tempo. No ano seguinte foi vítima da peste, e assim no espaço de poucos meses de­sapareceram os dois principais agentes da Reforma Suíça: O ressentimento de Lutero não os pôde seguir à campa, e escrevendo a Henrique Bullinger, dizia-lhe: "A morte de­les encheu-me de tão intensa tristeza, que eu próprio estive quase a morrer também".


ÚLTIMOS ANOS DE LUTERO
Porém a hora de Lutero ainda não tinha chegado. O Se­nhor tinha outra obra para o seu querido servo: e durante mais de quinze anos o doutor de Wittenberg prosseguiu nos seus trabalhos, desenvolvendo, com as suas orações fervorosas, os seus sábios conselhos, a sua generosa simpa­tia, a sua ardente eloqüência, e a sua hábil pena a obra que tinha tido o privilégio de começar. Os seus últimos dias fo­ram tranqüilos e cheios de paz; e a sua vida doméstica não era a menor das suas últimas alegrias. Foi abençoado com uma fiel esposa, sua companheira e a sua consolação em muitos desgostos e dificuldades, e os seus filhos eram o or­gulho de seu coração. Temos notícias de uma anedota que lança nota brilhante sobre Lutero no meio da sua família. Ao entrar inesperadamente um dia no seu quarto, um dos amigos encontrou-o com um dos seus filhinhos escarranchado nas suas pernas, e rindo desmedidamente por o pai o estar fazendo "galopear". Lutero pediu desculpa ao amigo, por não se levantar para o saudar, dizendo: "O meu peque­no vai para Roma levar um recado do seu pai ao papa, e eu não podia interromper a sua jornada". Como tudo isto é belo, quando pensamos que procediam do homem que ti­nha abalado tronos e dado de pensar ao mundo inteiro!

MORTE DE LUTERO
Uma disputa se tinha levantado entre os condes de Mansfield, e pediram-lhe o seu arbítrio. Isso fê-lo compa­recer à sua terra natal. "Nasci e fui batizado em Eisleben", disse Lutero a um amigo que o acompanhava, "seria curioso se eu ficasse e morresse aqui". E assim aconteceu. Pela tarde queixou-se de uma opressão e dor no peito, e, embora se sentisse aliviado com umas fomentações quen­tes, a opressão voltou mais tarde. Às nove horas encostou-se e dormiu até as dez. Ao acordar foi para o seu quarto, e, depois de dar as boas-noites aos que o rodeavam, acrescen­tou: "Orem pela causa de Deus". As dores continuavam a aumentar e, entre uma e duas horas da madrugada, levan­tou-se e foi para o seu escritório sem ajuda de ninguém. Ele sabia que o seu fim estava próximo, e repetiu amiúde estas palavras: "Oh! meu Deus! Nas tuas mãos ponho o meu espírito!" Entretanto muitos tinham tido conhecimento do seu estado, e em breve se viu rodeado de seus três filhos, vários amigos, o conde e a condessa Albert, e dois médicos. Então começou a transpirar, o que lhes deu algumas espe­ranças, mas ele disse: "É um suor frio, o precursor da mor­te; em breve darei o último suspiro". Então pôs-se a orar, e concluindo repetiu três vezes: "Nas tuas mãos entrego o meu espírito: Tu me remiste, ó Senhor Deus da verdade!" Em seguida Jonas perguntou-lhe: "Querido pai, confessas que Jesus Cristo é o Filho de Deus, e nosso Salvador e Re­dentor?" Lutero respondeu audível e claramente: "Confes­so". Foi esta a sua última palavra, e assim, de madrugada, rendeu o espírito a Deus.
O seu corpo foi removido para Wittenberg no dia 22 de Fevereiro, e Pomerano falou à imensa multidão que, no dia seguinte, se reuniu para presenciar o seu funeral. Melanchton em seguida fez uma oração fúnebre. Mas, para honra dos dois oradores, notou-se que os seus sentimentos eram mais notáveis do que a sua oratória, e as suas piedo­sas tentativas para consolar a tristeza dos outros não eram mais do que uma demonstração do seu próprio pesar.

O IMPERADOR QUER OUTRO CONCILIO
O imperador Carlos havia muito tempo que esperava a morte de Lutero, e muitas vezes se lamentara de o ter dei­xado partir de Worms depois da sua confissão perante o Conselho ali realizado. O desejo do imperador, desde o Conselho de Augsburgo, tinha sido sempre que o papa con­vocasse um grande concilio, com o fim de inquirir sobre os abusos da antiga igreja, e assim proporcionar aos dissidentes a volta à obediência ao papa. Por este meio esperava destruir a obra de Lutero, e restaurar a paz e a unidade no império. Porém sempre aparecia uma coisa ou outra para contrariar os seus desejos, e os sucessivos papas para quem apelara pareciam todos hesitar sobre o caso. As ameaças que tinha feito aos protestantes no fim do Conselho ainda os pôs mais de alerta, e uniram-se imediatamente para sua mútua defesa. Desde então tinham sempre diligenciado fortalecer esta união, e assim, apesar dos conselhos de Lu­tero, os protestantes tinham-se tornado um partido intei­ramente político. Isto, em poucas palavras, descreve o es­tado das coisas na Alemanha até o período a que temos chegado.
A morte de Lutero trouxe novas esperanças ao partido católico; o imperador entendeu que era chegada a ocasião oportuna de satisfazer o seu desejo, e que podia impune­mente ser convocado o concilio de que havia tanto tempo falara. Nos atos deste concilio, que se reuniu em Trent, ci­dade do Tirol, não podemos entrar. Os protestantes recu­saram-se a reconhecê-lo, e o imperador tomou esta recusa como pretexto de declarar guerra contra eles. A história desta guerra e de outros acontecimentos mais que segui­ram não são coisas que se possam tratar numa breve des­crição, como esta, mas pertence à História, a uma história mais ampliada e de mais pretensão. Também devemos deixar a outros historiadores a descrição do progresso ulterior da Reforma na Alemanha e Suíça, e dos esforços para impedir esse progresso. As nossas referências devem ficar por aqui. Vimos a Reforma firmemente estabelecida na­queles países; e ao mesmo tempo que notamos a sua pode­rosa influência para o bem, também não omitimos os erros que a acompanharam. Deus permitiu estes para reprimir as vanglorias e para tirar o orgulho dos homens.
Vamos concluir as nossas observações sobre este perío­do importante e cheio de interesse, lançando uma rápida vista de olhos pelo progresso da Reforma em outros países.







25
Reforma na França e Suíça francesa
(1520-1592)


A instituição da Reforma na França e na Suíça france­sa deve ser considerada como uma obra um tanto moder­na, relativamente à Reforma na Alemanha e na Suíça ale­mã. A sua história é uma história de sangue, começando pelo martírio do eloqüente mas imprudente João Leclerc, e acabando na mortandade dos huguenotes, em que perto de 70.000 pessoas que professavam a fé reformada foram massacradas em poucos dias.

GUILHERME FAREL
Guilherme Farei, natural de Delfinado, pode ser consi­derado como o apóstolo da Reforma na Suíça francesa. Aprendeu as doutrinas reformadas com um piedoso e sábio doutor de Etaples, chamado Tiago Lefèvre, e ensinou-as primeiro em Paris, onde gozou a amizade e a proteção do bispo de Meaux, Guilherme Briçonnet, o qual ensinava pessoalmente as novas doutrinas. Contudo a perseguição tornou-se, por fim, tão violenta, que foi obrigado a refu­giar-se na Suíça, onde travou conhecimento com Oecolâmpade, Bucer, e outros reformadores. Em Basiléia, Montbeliard, Agle, Vallengin, St. Blaise e Neuchatel, todos luga­res na Suíça francesa, trabalhou com êxito variado, e tal foi o poder da sua pregação nessa última localidade, que o povo declarou que queria viver na fé protestante, e não fi­cou satisfeito enquanto a Reforma não foi legalmente esta­belecida no cantão. Em Genebra onde tinha ido duas ve­zes, seu trabalho foi cheio de dificuldades e perigos, e tanto monges como padres fizeram várias tentativas para assas­siná-lo. Por muitas vezes foi apedrejado e espancado; este­ve quase para ser afogado no Reno em duas ocasiões, e uma vez foi milagrosamente salvo de morte mais penosa causa­da por veneno. Mas a bênção do Senhor estava sobre os seus trabalhos, e em breve a missa foi oficialmente suspen­sa por um decreto do Concilio dos Duzentos, e apareceu um edito ordenando que os serviços de Deus haviam de ser dali por diante feitos conforme os estudos do Evangelho; e que todos os atos de idolatria papal haviam de cessar com­pletamente.
Foram cunhadas medalhas para celebrar este aconteci­mento, e os cidadãos escolheram para si esta nova divisa: "Depois das trevas, luz". Resultados igualmente felizes co­roaram os trabalhos do intrépido reformador em Lausane, embora a sua primeira visita ali não desse bom resultado. A importante questão foi decidida numa discussão pública que durou oito dias; e acabou por um assinalado triunfo para os protestantes.


JOÃO CALVINO
Enquanto esteve em Genebra no ano de 1536, Farei tra­vou conhecimento com Calvino, que era então um jovem de vinte e oito anos. Já se tinha tornado notável pela publi­cação dos seus "Institutos Cristãos", e Farei pensou que se pudesse persuadir o seu jovem amigo a ficar em Genebra para olhar pelo trabalho, ele poderia ajudar muito os inte­resses da Reforma. Propôs, pois, isto, mas Calvino estre­meceu à idéia de tomar sobre si o peso de uma tal empresa, e recusou. Desculpou-se dizendo que não tinha conheci­mento bastante para empreender aquela tarefa; que a sua educação ainda não estava completa, e pelo menos, por en­quanto, só podia prestar seu auxílio por meio da pena. Mas Farei, sentindo que ele estava fugindo à vontade de Deus, respondeu à sua recusa com palavras fortes, dizendo: "Que Deus amaldiçoe o seu descanso e os seus estudos se por amor deles fugir da obra que Ele tem para lhe dar a fazer!"
Estas palavras produziram o efeito desejado no ânimo do jovem teólogo e ele abandonou os seus projetos de ir para Strasburgo continuar os estudos, e fixou-se em Ge­nebra. Foi nomeado professor de teologia e começou um árduo ministério de vinte e oito anos, como pastor de uma das mais importantes igrejas da cidade; e aqui estendeu logo a sua influência a todos os países da Europa. "A sua ligação com a antiga igreja", dizia Luiz Hausser, "era mui­to extraordinária. Ele fazia-lhe uma oposição mais forte do que ninguém. Bastantes coisas iradas e picantes se ti­nham, na verdade, já dito de Roma, mas nada tão esmaga­dor tinha sido avançado contra a igreja romana em todas as polêmicas que tinham tido lugar, como aquela afirmati­va de Calvino feita sem cólera e a sangue frio, de que ela "era inteiramente oposta à idéia primitiva da constituição da igreja, e, portanto, foi ele considerado como o inimigo mais perigoso e implacável de Roma do que Lutero".
Mas o povo de Genebra não podia desde logo habituar-se às medidas de reforma que Calvino introduziu. Toda a cidade tinha caído no vício e no papismo, e os seus nove­centos padres governaram a consciência do povo, que não gostava das restrições que Calvino punha aos seus cantos, às suas danças, e a outros divertimentos mundanos nem tampouco tolerava as suas censuras severas aos pecados menos públicos a que muitos não eram estranhos: e quan­do por fim os proibiu de virem ao altar, e os mandou embo­ra com palavras de censura, o povo levantou-se em massa e expulsou-o da cidade.
Mas em breve quiseram que ele voltasse outra vez. A cidade estava em desordem, devido aos encolerizados ban­dos de papistas, e libertinos, e a sua presença era ali muito necessária. Os próprios que o tinham expulsado começa­ram a clamar em altos brados pela sua volta. "Chamemos de novo o homem que queria reformar a nossa fé, a nossa moral e as nossas liberdades", diziam eles. E assim no ano 1540, foi resolvido pelo Concilio dos Duzentos que, com o fim de promover a honra e glória de Deus, se procurassem todos os meios possíveis para que Mestre Calvino voltasse como pregador.
Calvino, de início, não tinha muita vontade de voltar, e declarou que não havia lugar na terra que ele mais temesse do que Genebra, acrescentando, porém, que não se negaria a coisa alguma que fosse o bem da igreja. Por causa dos seus amigos, resolveu voltar, sentindo que nesse passo era guiado pela vontade de Deus. A amável recepção que lhe fizeram atenuou de alguma maneira os maus tratos que lhe tinham dado, e daí por diante encontrou poucos obstá­culos nos seus trabalhos para o bem do povo.
A história não levanta a cortina que esconde aos nossos olhos a vida privada e doméstica de Calvino, e por isso a sua vida não oferece tanto interesse como a de Lutero. Morreu em 17 de maio de 1564, completamente gasto por um excesso de fadiga mental.
Morreu repetindo as palavras do apóstolo: "As aflições d'este tempo presente não são para comparar com a glória que em nós há de..." aqui parou, porque nesse momento a glória despertou para ele.

NA CIDADE DE MEAUX
Passemos agora de Calvino e da reformação da Suíça francesa, e voltemos a nossa atenção para a França; obser­vemos o progresso e as dificuldades da obra ali. Já aludi­mos ao trabalho de Farei e Lefèvre em Paris, e da proteção que receberam de Briçonnet, bispo de Meaux, mas foi na diocese de Briçonnet que as doutrinas reformadas foram primeiro proclamadas publicamente.
Meaux era nesse tempo uma pequena cidade ativa, cheia de operários, e esta gente simples escutava com pro­fundo interesse as novas doutrinas do seu bispo, convertendo-se muitos deles. A obra aumentou, e os monges e frades pedintes que infestavam os arrebaldes alarmaram-se.
"Que nova heresia é esta?" exclamavam eles, "a nossa autoridade está sendo contestada, estão-nos tirando os nossos meios de subsistência; precisamos, pois, tomar me­didas imediatas para reprimir estas doutrinas estranhas". Conseqüentemente, partiram para Paris, e apresentaram a sua queixa perante a Sorbona e o Parlamento, afirmando que "a cidade de Meaux, e toda a vizinhança estava infes­tada de heresia, e que essa heresia vinha do palácio episco­pal".
Era então o reino administrado, na ausência do seu ver­dadeiro monarca Francisco I, pela mãe deste, uma católica fanática; e o partido reformador sabia que não podia espe­rar clemência da parte dela. A conduta do bispo quando foi citado perante o Parlamento, também não podia de modo algum animá-lo e protegê-lo, porquanto mostrou a maior timidez durante o seu interrogatório, chegando a ceder às propostas da Sarbona. A adoração à virgem e aos santos começou de novo; proibiram a venda e a posse das obras de Lutero e Lefèvre, Farei e quaisquer reformadores foram proibidos de pregar nos púlpitos de Meaux, e até de residi­rem na vizinhança.
Este começo não dava muitas esperanças. O principal reformador em Meaux abandonou a obra por medo, e os outros foram dali expulsos. Que se havia de fazer? Devia abandonar-se a obra, e devia a causa de Deus sofrer sem remédio por causa da cólera dos homens? Não. Por algum tempo continuou-se a obra em segredo, e embora nada se pudesse fazer publicamente, não se desprezou o estudo particular da Palavra, nem a oração. Então um dos membros principais do partido, o tecelão João Leclerc, fez uma proclamação na qual falava do papa em termos brus­cos, e afirmava que o reino do Anticristo estava para ser destruído pelo sopro do Senhor. Colocou esta proclamação numa das portas da catedral, onde todos a pudessem ler, e esperou o resultado.
Como se pode calcular, os monges e os padres ficaram desesperados e cheios de confusão; e Leclerc foi preso por suspeita. Quando foi julgado não fez tentativa alguma para esconder o seu ato, e depois de um julgamento que durou uns poucos dias, foi condenado a ser açoitado pela cidade afora, e a ser marcado na testa com um ferro em brasa.

LECLERC EM METZ
O tecelão ainda não estava bem curado dos seus feri­mentos quando voltou para a obra; mas o seu campo de ação era outro. Tendo sido expulso de Meaux vamos en­contrá-lo em Metz e no caráter de destruidor de imagens. Sentado um dia diante das imagens da Capela da Virgem, um edifício de grande celebridade, próximo àquela cidade, vieram-lhe estas palavras ao pensamento: "Não te inclina­rá* diante dos seus deuses, nem os servirás nem farás con­forme às suas obras; antes os destruirás totalmente, e quebrarás de todo as suas estátuas" (Ex 23.24), e tomando isto como uma ordem divina, levantou-se imediatamente, e demoliu as imagens que abundavam na capela. Feito isto entrou tranqüilamente na cidade.
A agitação que este ato produziu entre os católicos não se pode descrever, e o herege marcado foi logo preso. Como no seu primeiro julgamento, também agora confessou prontamente o seu "crime" e exortou o povo a renunciar à idolatria, e voltar para a adoração do verdadeiro Deus. Tendo-lhe sido dada a sentença de morte, apressaram-se a levá-lo para o lugar do seu martírio. Ali uma medonha morte o aguardava, mas ele agüentou tudo milagrosamen­te até o fim. Primeiro foi-lhe decepada a mão direita, aquela que tinha praticado o ato; em seguida rasgaram-lhe a carne com tenazes em brasa; e depois queimaram-lhe o peito horrivelmente. Mas enquanto durou esta tortura ele ia repetindo em voz clara e firme as palavras do Salmista: "Têm boca, mas não falam; olhos têm mas não vêem; têm ouvidos mas não ouvem; narizes têm mas não cheiram; têm mãos, mas não apalpam, pés têm, mas não andam; nem som algum sai-lhes da garganta. A eles se tornem se­melhantes os que os fazem, assim como todos que neles confiam" (SI 115.4-8).
O seu corpo foi então consumido num fogo lento; e as­sim entrou no Céu o primeiro mártir da Reforma francesa.

MAIS MARTÍRIOS
Daí a algum tempo chegou o martírio de um padre con­vertido, cujo paciente testemunho no lugar do suplício le­vou muitos a acreditar na verdade da causa por que mor­reu, e encheu-os de desejo de conhecer melhor aquele Evangelho em que ele tinha encontrado tão grande conso­lação. Depois chegou a vez do sábio Luis Berguin, par de França de quem Beza disse que teria sido um segundo Lutero, se tivesse encontrado em Francisco um outro Frederi­co de Hanover. Três vezes foi preso por pregar as doutrinas reformadas ao povo, e três vezes foi posto em liberdade por pedido da irmã do rei, a piedosa Margarida, depois rainha de Navarra. Entretanto os seus amigos, receosos e desani­mados com os perigos de que estavam rodeados, instaram com ele para desistir de pregar, e para que não tentasse mais a malícia dos seus inimigos, mas enquanto os seus amigos tímidos pediam a Berguin que parasse, a voz de Deus na sua própria alma, e por meio das páginas da sua Palavra, mandava-o prosseguir e Berguin prosseguiu, e a França precisa dar graças a Deus por isso.
Por fim foi preso pela quarta vez, e conduzido perante a Sorbona. Depois de um julgamento fictício, foi condenado à prisão perpétua e a ter a sua língua furada com um ferro em brasa, mas Berguin apelou contra a decisão do tribu­nal, e os juízes recearam insistir na sentença em vista da sua apelação. Então decidiram que fosse estrangulado e queimado, e esta sentença foi levada por diante. No dia 22 de abril de 1529, foi levado num carro para a praça da Gre­ve, entre uma escolta de seiscentos soldados, e ali suportou a morte com grande firmeza.
Os martírios tornaram-se então freqüentes, sendo con­tudo como outros tantos convites ao povo para se levantar por toda parte em defesa da verdade; e por cada mártir que morria, levantavam-se vinte campeões a preencher o seu lugar. Contudo a oposição era muito grande, e o número de reformadores, comparado com os inimigos da Reforma, era muito limitado.

AFIXAÇÁO DE CARTAZES
Por fim tomaram um expediente com que esperavam apressar a obra; prepararam um protesto no qual se expu­nham os abusos de Roma nas mais vivas cores. Por toda a França circularam cópias deste protesto, e foi particular­mente combinado que fosse publicado simultaneamente em todas as cidades em uma certa noite - 18 de outubro de 1534 (outros dizem 24), foi a data fixada para o plano; e aquela obra notável de uma só noite, deu a todo o ano o nome de "Ano dos Cartazes".
Por fim chegou essa noite - uma noite de ansiedade para os luteranos, e a ousada empresa de afixar os cartazes concluiu-se tranqüilamente e sem distúrbios. Em Paris, afixaram cópias na parede da universidade, e de todos os edifícios públicos, e as portas da catedral ficaram cober­tas. Até a casa do Parlamento, e a porta do quarto de dor­mir do rei, não foram excetuadas; sendo porém provável que algum inimigo fosse o responsável pela colocação do cartaz ali. Chegou a manhã, e os efeitos produzidos pela descoberta não se podem descrever. A excitação era incrí­vel; por toda a parte se levantou o grito de cólera: "Morte aos hereges!" e logo começou uma tempestade de persegui­ções terríveis. O rei ficou pálido de cólera quando viu o car­taz, e exclamou encolerizado: "Prendam-nos a todos, e que o luteranismo seja totalmente exterminado".
Imediatamente se fizeram inúmeras prisões, e as exe­cuções seguiam-se uma após outra com terrível rapidez. No dia 21 de janeiro de 1535, saiu uma procissão para ex­piar, como diziam, as indignidades que tinham sido prati­cadas contra a igreja, e passou pelas ruas mais concorridas de Paris numa sombria majestade, sendo as solenidades desse dia coroadas com o martírio de seis luteranos. 0 rei que estava presente fez um violento discurso contra as doutrinas dos reformadores. Porém quanto teria dado mais tarde para poder arrancar da sua consciência os crimes de tanto sangue, e para aliviar a sua alma das conseqüências que ele sabia estarem pesando sobre si?!

REINADO DE HENRIQUE
No ano de 1547 morreu Francisco, sucedendo-lhe Hen­rique, o seu filho segundo. Durante os doze anos do seu rei­nado a perseguição continuou com maior violência ainda, e os padres não perdiam ocasião alguma de influir no ânimo do rei contra a Reforma. Descreviam-na como sediciosa e revolucionária, e declaravam que os huguenotes - pois este era o novo nome pelo qual eram conhecidos os luteranos franceses - estavam conspirando contra ele, e que as suas doutrinas arruinavam todo o poder eclesiástico e real. O rei assustou-se com estas representações, mas foi só no fim do seu reinado, quando a Reforma tinha de tal maneira toma­do posse do povo, que uma sexta parte da população era de huguenotes, que ele recorreu à medida extrema de convo­car um parlamento com a idéia de suprimir a "heresia".
O único incidente importante que ocorreu durante as deliberações do Parlamento, parece ter sido a prisão de um dos senadores, João Du Bourg, cujo discurso ousado a fa­vor dos huguenotes excitou a cólera do rei, e levou-o a ex­clamar que havia de ver o martírio de Du Bourg, com os seus próprios olhos. Isto era, na verdade, a sua séria inten­ção, mas o Senhor permitiu outra coisa, e quatorze dias de­pois da prisão o senador, Henrique foi morto num torneio com o conde de Montgomery, o capitão dos guardas, e, coi­sa notável, foi este o próprio que tinha efetuado a prisão de Du Bourg.

O REI FRANCISCO II
A subida de Francisco II ao trono em nada melhorou a situação dos huguenotes; e o valente campeão deles, Du Bourg, depois de ter estado encarcerado seis meses, na me­donha masmorra da Bastilha, durante os quais lhe nega­ram as coisas mais necessárias à vida, e o fizeram sofrer horríveis torturas numa gaiola de ferro, foi por fim queima­do vivo.
O novo rei era quase uma criança quando subiu ao tro­no, e a fraqueza do seu corpo e ainda mais do seu espírito tornaram-no inteiramente incapaz de governar. Foi duran­te o seu reinado que a obra da Reforma em França assumiu uma feição política, e que as guerras religiosas começaram.
O protestantismo em França tinha agora entre os seus adeptos muitos dos principais nobres do país, tais como Coligny e Sully, e os huguenotes tinham-se tornado um partido forte que já não podia ser desprezado. Havia então no país dois partidos em violenta oposição: um que tinha à sua frente Catarina de Mediei, representando a antiga nobreza de França, e o outro, comandado pelos irmãos Francisco e Carlos Guise, que representava uma facção completamente nova. Francisco Guise, que era duque, do­minava o exército; Carlos, que era cardial, influía nas fi­nanças e nos negócios estrangeiros.

O PODER NA MÁO DE CATARINA
A morte de Francisco II, no ano de 1560, causou porém a derrota do partido dos Guises, e tendo Catarina de Médice, por interesse próprio, tomado debaixo da sua guarda o novo rei, Carlos XI, que então tinha dez anos, vieram as­sim as rédeas do governo para as suas mãos. Embora não tivesse fortes convicções religiosas de espécie alguma, era católica de nome, e odiava o protestantismo por causa das suas supostas tendências democráticas; mas, para consoli­dar o seu poder, pôs em liberdade os huguenotes que ti­nham sido feitos prisioneiros durante o reinado de Francis­co II. Ao mesmo tempo evitava ofender os Guises, e permi­tia-lhes a todos os seus adeptos que ficassem nos seus car­gos e postos de honra.

A CONSPIRAÇÃO
Mas logo que viu a sua posição estabelecida com firme­za, procedeu de modo a poder realizar os seus planos para o extermínio da heresia e ruína dos huguenotes. Ajudada pelo papa Pio V, e Filipe da Espanha, viu a sua conspira­ção pronta para se executar no outono do ano de 1572.
Aquela conspiração tinha por fim o completo massacre dos protestantes franceses.
A frente dos huguenotes achava-se o ilustre almirante Coligny, um ancião tão venerado pela sua piedade como conhecido pela sua bravura. Tinha sido necessário ganhar a sua confiança, ou pelo menos, fazer com que ele não sus­peitasse do que se passava, para que um projeto tão vasto como o que Catarina e os seus cúmplices tinham formado pudesse ser levado por diante; e isto fez-se da maneira se­guinte: Carlos XI que então tinha 22 anos, foi instigado por sua mãe a manifestar o sincero desejo de que se estabele­cesse uma paz duradoura entre os dois partidos religiosos, e para isso foi tratado o casamento entre sua irmã, Marga­rida de Valois, uma católica romana, e o rei de Navarra, (depois Henrique IV) protestante. Ao princípio foi feita al­guma oposição a este projeto pela mãe de Henrique, a espi­ritual Joana d'Albret, mas esta foi secretamente envene­nada, e o casamento foi devidamente combinado e fixado para o dia 18 de Agosto de 1572, sendo convidados para a cerimônia os nobres de toda a parte do reino, tanto protes­tantes como católicos. Quase todos aceitaram o convite, e no dia 18 estava em Paris uma multidão de chefes dos dois partidos religiosos. O casamento solenizou-se devidamen­te, e durante alguns dias a metrópole francesa entregou-se a festas e alegrias, misturando-se os protestantes com os católicos sem nada suspeitarem. Mas todas estas coisas fa­ziam parte do grande projeto, e os huguenotes deixaram-se embalar por elas. A véspera de São Bartolomeu estava pró­xima e as festas continuavam, assim como continuavam a existir as mesmas relações amigáveis entre todas as clas­ses.

O MASSACRE DA NOITE DE S. BARTOLOMEU
Carlos estava agitadíssimo ao aproximar-se a hora fa­tal. Tinha uma palidez mortal, e o seu corpo tremia; um medonho sentido de remorso lhe oprimindo o coração, e te­ria dado contra-ordem se não fossem as instâncias de sua mãe. Esta porém receando alguma indecisão, ordenara que a tragédia começasse uma hora mais cedo da que esta­va determinada.
Por fim o sino deu sinal e todos os campanários de Paris responderam imediatamente, e a carnificina começou. Uma das primeiras vítimas foi o almirante Coligny, que foi brutalmente assassinado. Em todas as ruas se ouvia agora o fogo dos mosqueteiros, misturado com as pragas dos pa-pistas e os gemidos dos moribundos. Os huguenotes, ataca­dos de surpresa, não podiam oferecer resistência, e quando rompeu a manhã podiam-se ver cadáveres aos montes por toda a parte. O sangue enchia as ruas, e o Sena corria aver­melhado. A manhã não fez cessar aquela medonha obra, e já então as indecisões de Carlos se haviam desvanecido, chegando ele a uma varanda com sua mãe para deleitar a sua vista com aquela cena de carnificina. Isto durou quatro dias. e ao fim deles os assassinos pararam por puro cansa­ço, tendo sido assassinados uns quinhentos protestantes nobres de classe elevada, e uns cinco a dez mil huguenotes da mais humilde condição.
Mas a mortandade ainda não foi só aqui: estendeu-se pelas províncias, sendo dadas ordens a vários governadores e magistrados para que exterminassem os hereges sem pie­dade. Alguns obedeceram imediatamente, mas não todos. Seja dito para sua eterna honra, que um prelado católico, João Hennuyer, bispo de Lisieux, recusou-se a incorrer no crime de um ato tão odioso, e quando o mensageiro do rei apresentou a ordem ele disse: "Não! não, Senhor! oponho-me e sempre me oporei à execução de uma tal ordem: Eu sou o pastor de Lisieux, e esta gente a que me mandam as­sassinar pertence ao meu rebanho. Apesar de se terem ago­ra desviado e abandonado a pastagem do soberano Pastor, Ele confiou-as aos meus cuidados, e ainda podem voltar. Eu não vejo no Evangelho que o pastor possa permitir que o sangue das suas ovelhas seja derramado; pelo contrário, vejo ali que ele é obrigado a dar o seu sangue e a sua vida por elas". Nobre testemunho! E com alegria que o recorda­mos aqui, embora as nossas idéias sejam tão completa­mente diferentes das do ousado João Hennuyer no que diz respeito às doutrinas que ele ensinava. O governador de Bayona foi outro que se recusou a obedecer à ordem assas­sina: "O rei tem muitos soldados valentes no seu exército", disse ele, "mas nem um só carrasco".
A carnificina nas províncias continuou durante seis se­manas, e o número de vítimas é diversamente calculado em cinqüenta, setenta e cem mil. Este último número, se levarmos em conta os que depois morreram de fome e pe­sar, é talvez o mais exato.
Roma manifestou uma alegria ruidosa às primeiras notícias que teve da carnificina. O mensageiro que as levou foi recompensado pelo cardeal de Lorraine, com mil co­roas; houve salvas de artilharia, e, à noite, brilhantes ilu­minações. Foi celebrado uma solene "Te Deum" na igreja de São Marcos em ação de graças a Deus, por tão assinala­da notícia de bênção enviada à Sé de Roma, enquanto em Paris foi cunhada uma moeda com a seguinte inscrição: "Pietas armavit justitan" (Piedade armou a justiça). Se alguma vez se viu uma astúcia diabólica na maldade do homem, foi esta. A premeditação, os solenes juramentos do rei - que trouxeram os calvinistas a Paris - no casamen­to real, e o punhal posto nas mãos da multidão pelos chefes do Estado nesse tempo de paz universal, tudo isto repre­senta uma conspiração e uma crueldade que não há iguais na História. E depois, começando pelo papa, todas as co­munidades católico-romanas, levantando as mãos ao Céu, deram um graças a Deus pelo "glorioso" triunfo.
Mas uma solene recompensa aguardava os autores des­te crime inominável da "Santa" igreja romana: Todos, ex­ceto um, tiveram um fim violento. Carlos morreu, uns dois anos depois, em horríveis agonias de corpo e alma; e ou­viam-no exclamar, pouco antes da morte: "Que carnificina! quanto sangue inocente! Como foram perversos os conselhos que eu segui! Oh! meu Deus, perdoa-me e compadece-te de mim! Eu não sei onde estou, tão medonha é a minha agonia e perplexidade. Qual será o fim disto? Que será B feito de mim? Estou perdido para sempre!" O Duque de B Guise foi assassinado, o seu irmão, o cardeal de Lorraine, B morreu doido furioso; e a miserável Catarina de Médice, B embora chegasse a uma desonrada idade avançada, foi encarcerada pelo seu filho favorito, sendo o seu nome, em todo o mundo, sinônimo de perfídia e crueldade.
E a chamada heresia dos huguenotes não foi extermina­da, embora morressem cem mil deles. Aquele que tinha lançado a semente incorruptível do Evangelho nos seus co­rações podia também lançá-la rapidamente nos corações de outros cem mil, e assim aconteceu. Uma longa série de pequenas guerras entre huguenotes e católicos teve lugar no reinado de Henrique, sucessor de Carlos, e quando, em 1589, ele foi assassinado, foi um príncipe protestante, Hen­rique de Navarra, que lhe sucedeu no trono da França!
















26
Reforma na Itália e outros países europeus
(1527-1580)


Há um interesse especial ligado à história da Reforma na Itália, visto ser ali o centro do catolicismo romano. Os italianos, em geral havia muito que tinham tido para o papismo sentimentos parecidos com o desprezo, porque eram testemunhas constantes da maldade pública na sua me­trópole, e não podiam deixar de ver que essa maldade ti­nha o seu centro no Vaticano. Há muito que andavam desgostosos com o desregramento, a avidez, a ambição e a fraude que eram notórias na sua cidade principal, e mais de um coração sincero suspirava por uma mudança muito antes de ter começado a obra da Reforma. Por isso, logo que chegou à Itália a notícia da colisão de Lutero com Tetzel, houve muitos ali que pediram ansiosamente os escritos daquele. Alguns meses mais tarde o seu impressor em Ba­siléia escrevia nos seguintes termos: "Blásio Salmónio, li­vreiro de Leipzig, presenteou-me na feira de Francfort com alguns tratados compostos por si, os quais, como eram aprovados por homens sábios, mandei imprimir imediatamente, enviando seiscentas cópias para a França e a Espa­nha. Os meus amigos asseguraram-me que esses escritos são vendidos em Paris, e lidos e aprovados até pelos sorbo-nistas. Calvo, livreiro de Pávia, que é um sábio, e dedica-se às musas, levou uma grande parte da impressão para a Itália..." Apesar do terror reinante pelas bulas pontificais, e das atividades dos que velavam pela sua execução, os es­critos de Lutero, Melanchton, Zwínglio e Bucer continua­ram a circular e a ser lidos com prazer e avidez em várias partes da Itália. Alguns foram traduzidos na língua italia­na e, para escapar à vigilância dos inquisidores, foram publicados debaixo de nomes fictícios. Este desejo de se­rem lidos os seus escritos dava ânimo aos reformadores e não provinha de uma curiosidade vã.
Durante mais de vinte anos pôde esta obra prosseguir sem grande oposição; no ano de 1542, porém, viram clara­mente em Roma que ela ia fazendo enfraquecer o papismo; e então a Inquisição recebeu ordens para usar de força con­tra os protestantes, e em breve viram-se as prisões atulha­das de vítimas.

AONEO PALEARIO
Aôneo Paleário, autor de um livro intitulado "O Be­nefício da morte de Cristo", era um dos mais notáveis campeões da Reforma italiana, mas bem depressa veio o martírio cortar a sua útil carreira. "Na minha opinião", di­zia ele, "nenhum cristão deve pensar em morrer na sua ca­ma, nos tempos que vão correndo. Ser acusado, feito pri­sioneiro, esbofeteado, enforcado, cozido num saco e lança­do às feras, não é bastante. Que eles me assem no fogo. se por uma tal morte a verdade puder ser melhor trazida à luz". Quando os seus acusadores lhe perguntaram qual fora o primeiro meio de salvação que tinha sido dado ao homem, ele respondeu - "Cristo", "e o segundo?" - "Cris­to" - "e o terceiro?" - "Cristo".
Paleário esteve preso na masmorra da Inquisição du­rante três anos, e por fim queimaram-no em vida.
Os inquisidores agiam em toda a parte da Itália, e o país estava cheio de espiões. Eram estes na sua maior parte pagos pelo Vaticano, e a sua missão era ganhar a con­fiança dos particulares suspeitos de heresia, e assim facili­tar a sua captura. Havia-os entre todas as classes do povo, desde a mais elevada à mais humilde, e, devido à sua infa­me perfídia, as prisões depressa se encheram de vítimas. Algumas destas foram condenadas a penitências, outras mandadas para as galés, outras torturadas e mutiladas; outras carregadas de ferros pesados e deixadas á morrer de fome em masmorras insalubres, e outras foram queimadas em vida. Muitos procuraram refúgio noutros países, onde em geral foram bem recebidas, e não poucos desses refu­giados encontraram lugar na Inglaterra. Pode-se fazer uma idéia do desenvolvimento da obra na Itália pelo fato de se­rem descobertos, na busca que se deu aos livros que eles chamaram heréticos, mais de quarenta mil exemplares do livro de Paleário: "O Benefício da Morte de Cristo".

NA ESPANHA
Da Reforma na Espanha não podemos, infelizmente, fazer uma descrição tão vantajosa, porque as perseguições que se seguiram à introdução naquele país das doutrinas reformadas levaram milhares de pessoas para o exílio, e os que ficaram foram para a tortura ou para as galés. Mas a Inglaterra protestante ainda achou lugar para receber muitos dos seus irmãos exilados. Os principais agentes da Reforma espanhola eram dois irmãos João e Afonso de Valdés.

NOS PAÍSES BAIXOS
De Espanha passamos naturalmente para os Países Baixos, visto formarem parte dos domínios do rei espa­nhol. Aí, apesar da perseguição, as doutrinas revivificadas espalharam-se com rapidez, e o martírio de três monges da Ordem Agostinha, que foram condenados por lerem as obras de Lutero, despertou um tal espírito de investigação entre o povo, que nem as ameaças nem as torturas pude­ram-no reprimir.
No ano 1566 foi uma deputação apresentar ao rei uma Petição pedindo tolerância, e assinada por cem mil protestantes, mas este, em vez de satisfazer o seu pedido aconse­lhou sua irmã Margarida de Parma, a governadora dos Países Baixos, a levantar um exército de 3.000 homens de cavalaria e 10.000 de infantaria para dar cumprimento aos seus decretos. Mas exércitos e ordens reais pouco valiam, pois Deus tinha decidido que a obra fosse por diante. O nú­mero dos protestantes aumentava diariamente, apesar dos esforços da força armada para o diminuir e espalhar. O in­sensível e fanático Filipe entendeu que tinha de recorrer a medidas mais desesperadas do que as adotadas até então, se quisesse exterminar mesmo aquela religião odiada.

AUMENTO DA PERSEGUIÇÃO
Pouco satisfeito com a clemência de Margarida, deu plenos poderes ao duque de Alba, o qual, pouco depois, chegou ao país com um exército de 15.000 espanhóis e ita­lianos. Começou então uma série de atrocidades que quase não tem igual nos anais da perseguição.
A Inquisição começou logo a funcionar; e dentro em pouco podiam contar-se as suas vítimas aos milhares. A maior parte das igrejas protestantes e casas de oração fo­ram destruídas, levantando-se forcas para enforcar os lute­ranos. As cidades despovoavam-se porque o povo fugia como quem foge da peste - e o comércio do país ficou para­lisado. Mercadores, operários, artistas, gente de todas as classes, saíam às pressas do país e consideravam-se felizes por serem capazes de salvar as suas vidas. Para os que fica­vam a morte era certa.

ROBERTO OGIER
Em 1562, Roberto Ogier, de Ryssel, em Flandes, sofreu o martírio, em companhia do seu filho mais velho. Este, que ainda era muito jovem, exclamou quando já estava nas chamas, "O Deus, Pai eterno, aceita o sacrifício das nossas vidas em nome do teu amado Filho". Um monge que se achava perto retorquiu encolerizado: "Tu mentes, maroto, Deus não é teu pai; vós sois filhos do Demônio"-Um momento depois o mancebo exclamou: "Olha, meu Pai, o Céu está se abrindo, e eu vejo um milhão de anjos que se regozijam em nós! Estejamos contentes porque es­tamos morrendo pela verdade". "Mentes! mentes!" gritou o padre, "o Inferno é que se está abrindo, e vem mais de um milhão de demônios que vão os lançar no fogo eterno". A mulher de Roberto Ogier e outro filho que lhe ficou, so­freram igual sorte alguns dias depois, e assim se reuniu toda a família no Céu.

MISÉRIAS E MARTÍRIOS
Tinha chegado o pior tempo para os Países Baixos. As execuções pela água, pelo fogo e pela espada, e a confiscação de bens, sucediam-se sem cessar. As vítimas eram aos milhares. O número de emigrantes aumentava na mesma proporção, e o produto da confiscação chegou pouco a pou­co à soma de trinta milhões de dólares. Os antigos privilé­gios desses países estavam aniquilados; a população tinha diminuído assustadoramente; a prosperidade de agricultu­ra estava ameaçada de ruína; o comércio, parado; as por­tas vazias, as lojas e armazéns devastados; muitos braços sem trabalho; os grande negócios parados, as cidades co­merciais, que tanto prosperavam estavam empobrecidas. Em suma, tudo que tinha contribuído para a prosperidade comercial e industrial daquela região começou a decair.
Mas o duque de Alba não se importou com isso. Sendo escravo ativo dum senhor cruel, nunca o pensamento da economia política perturbou o seu espírito; esse medonho retrocesso nada era para ele. Ainda mais, ele ainda não ti­nha pensado em acabar com o sacrifício das vidas huma­nas - a sua sede de sangue não estava saciada! O assassi­nato de alguns milhares de protestantes não era bastante para satisfazer a crueldade de um tal homem; a foice pre­cisava ceifar mais vidas; numa palavra: Toda a nação de hereges devia cair debaixo das mãos do assassino! No ano 1568, quando o "concilio de Sangue" se reuniu pela segun­da vez, foi decretado que todos os habitantes dos Países Baixos fossem condenados d morte como hereges; e desta horrorosa sorte ninguém era excetuado senão raras pessoas Que foram especialmente indicadas.
Os efeitos deste edito cruel foram terríveis. Muitos en­louqueceram, e outros, que conseguiram fugir para os bosquês de Flandres tornaram-se selvagens em conseqüência da solidão e do desespero. Nas cidades e vilas ouvia-se o dobrar dos sinos a todos os momentos; e é certo que o esta­do de coisas não podia ter sido mais terrível se o país tives­se sido visitado por uma peste! Em todas as casas havia lu­to, e os corpos carbonizados e mutilados das vítimas da­quele medonho decreto estavam expostos às centenas poi toda a parte.

GUERRA CIVIL
Por fim entenderam que não podiam mais suportar aquela opressão e, levantando-se com a energia do deses­pero, saíram dos seus lares desolados e dos seus esconderi­jos nos bosques, e reuniram-se em volta da bandeira de Guilherme de Nassau, Príncipe de Orange. Não podemos agora entrar nos detalhes da guerra civil que se seguiu. O exército protestante a princípio não foi bem sucedido, mas foi auxiliado por Isabel, da Inglaterra; pelo rei da França, e pelos protestantes alemães; e no ano 1580 puderam final­mente ver-se livres do jugo espanhol e firmar a sua inde­pendência, constituindo-se em um novo estado protestan­te na Europa.

NA SUÉCIA
Na Suécia, depois de alguma oposição, foi a Reforma estabelecida pelo conhecido rei Gustavo Vasa, que foi au­xiliado pelos irmãos Olaus e Laurentins Petri. Apesar de todos os obstáculos, a Reforma prevaleceu ali, e o rei teve, em pouco tempo um partido tão poderoso para o ajudar, que conseguiu a restauração dos vários estados e castelos que os prelados tinham obtido dos seus súditos por meios ilícitos. Também reprimiu o poder dos bispos e tirou-lhes das mãos os rendimentos da igreja, proibindo-os de tomar dali por diante qualquer parte nos negócios do Estado.
Gustavo Vasa, foi, sem dúvida, o homem adequado para tais empreendimentos, e apraz-nos poder acrescentar que a obra por ele começada foi concluída com a maior ra­pidez, e sem tumultos ou derramamento de sangue.

NA DINAMARCA
Na Dinamarca, também um rei - Cristiano II - estava à frente da Reforma, e apesar da oposição do partido ecle­siástico, que se tornou um sério embaraço para os seus mo­vimentos, e de os bispos terem chegado a promover a sua deposição, continuou sempre a sua boa obra enquanto es­teve no exílio, empregando o seu secretário para traduzir o Novo Testamento para a língua dinamarquesa.
Os dinamarqueses deviam muito ao ministério do in­trépido monge de Antvorscov, João Tausen, que tendo sido feito prisioneiro por pregar a justificação pela fé, conti­nuou a expor a doutrina pela janela da sua prisão. O novo rei Frederico ouvindo falar nele, deu ordem para o porem em liberdade, e pouco depois nomeou-o um dos seus cape­lães.
Na conferência de Odense, que teve lugar em 1527, o rei declarou-se publicamente a favor da Reforma; e, embora os bispos fizessem muita oposição, decretou ele que dali por diante os protestantes gozariam as mesmas regalias que os católicos. Quando Frederico morreu, os bispos fize­ram outro esforço desesperado para restabelecer o papis-mo, e conseguiram o exílio de Tausen, mas o triunfo deles não foi duradouro. O novo rei era tão favorável à Reforma como o seu antecessor; e no ano 1536 foi reunido um Conci­lio em Copenhague, que estabeleceu a religião protestante no país. Os bispos, acusados de intrigas e de outros atos de traição, foram destituídos dos seus cargos e emolumentos; e os últimos sinais do papismo que ainda existiam acaba­ram por completo na Dinamarca.



























27
Reforma inglesa, no reinado de Henrique VIII
(1510-1531)


A obra da Reforma na Inglaterra, no que diz respeito à compreensão do Estado, na verdade não começou senão na última metade do século XVI. O que Henrique VIII tentou não era de forma alguma uma verdadeira reforma religio­sa. Ele acabou com a obediência ao papa no ano de 1534; supriu as ordens pedintes no ano seguinte, e após este ato saqueou os mosteiros, de cujos rendimentos se apoderou para o seu próprio uso. O motivo que levou Henrique a esta espécie de reforma foi a cólera que lhe despertou a recusa do papa em conceder-lhe o divórcio com Catarina de Aragão. Ora, uma reforma originada assim não se podia con­servar.
Ainda assim ia prosseguindo uma verdadeira obra de Deus, obra que, na verdade, nunca tinha cessado desde o tempo de Wycliff, e todos os anos vinha para o país nova luz da Europa, e é disto que vamos falar especialmente. No próprio ano em que o rei subiu ao trono, o bispo papista de Londres, Ricardo Fitzjames, começou uma pequena perseguição na sua diocese, fato este que prova que a verdade já se estava fazendo sentir em alguns bairros; e entre os anos de 1510 e 1537 houve uns quarenta cristãos pertencentes a ambos os sexos, que sofreram de vários modos pela sua fé. Nas proximidades de Lincoln, houve, nesta época, muita perseguição, e o bispo da diocese, protegido por uma carta do rei, fez proceder uma rigorosa busca de hereges a quem tratava, quando os traziam à sua presença, com uma crueldade característica. Aqueles que eram tidos por cul­pados da primeira ofensa, e abjuravam das suas idéias, eram geralmente encarcerados nos mosteiros por toda a vi­da, mas os "hereges" reincidentes eram entregues às auto­ridades seculares para serem queimados em vida.

WILLIAM TYNDALE
No entanto, outros ingleses, com fins mais nobres e pu­ros, não estavam menos ocupados em outros pontos. No ano 1520 William Tyndale deixou a Universidade de Cambridge e começou a sua notável carreira.
Estando em Gloucéster, como professor em casa de um fidalgo chamado Welsh, discutia ali freqüentemente com os abades, diáconos e outros beneficiadores que se reuniam à mesa do fidalgo. Numa dessas discussões, o seu adversá­rio, encolerizado, no calor da controvérsia, disse-lhe: "Era melhor viver sem as leis de Deus do que sem as do papa". Tyndale, no auge de indignação, exclamou: "Eu não me importo com o papa nem com as suas leis", e acrescentou: "se Deus me poupar a vida hei de fazer que em poucos anos qualquer rapaz que conduz o arado saiba mais das Escrituras do que o senhor". No fim de tudo parece que o estudante de Cambridge não era muito popular em casa do fidalgo de Gloucéster, e os seus serviços eram muito mais apreciados do que a sua companhia.
Seguindo depois para Londres, procurou Cuthbert Tonstall, que então era bispo, e diligenciou obter um lugar em casa dele, mas os seus esforços foram debaldes.
O seu destino era outro: era ser um servo do Senhor em tempos perigosos, e para isso era preciso que passasse por provas mais severas do que as que se poderia encontrar na casa de qualquer bispo. Contudo, por algum tempo esteve hospedado em casa de um tal Humphrey Monmouth, um digno cidadão de Londres que tinha um verdadeiro respei­to pelo seu hóspede, e que estava ele próprio, bastante in­teressado no novo ensino. Mas à medida que as opiniões de Tyndale se tornaram conhecidas (e ele não era homem que escondesse a sua luz) os perigos aumentavam para ele, e os seus amigos aconselharam-no a retirar-se para a Europa.
Além disso, havia uma nova obra que estava prenden­do a sua atenção - a tradução da Bíblia - e para isto neces­sitava de todo o sossego possível, o que em Londres não po­dia ter: "Estou ansioso pela Palavra de Deus", disse ele, "e hei de traduzi-la, digam o que disserem e façam o que qui­serem. Deus não me há de deixar morrer. Ele nunca fez uma boca sem fazer o seu alimento, nem um corpo sem também fazer o seu vestuário". Com tal ânsia a oprimi-lo, não é de admirar que Tyndale não fizesse caso das necessi­dades do corpo.
Mas a perseguição aumentava cada vez mais, e, se aqueles que o rodeavam estavam sendo condenados só por lerem porções da Palavra de Deus, não era de supor que aquele que estava traduzindo a Bíblia inteira pudesse es­capar. "Ah!", suspirava ele, "não haverá nem um lugar onde eu possa traduzir a Bíblia? Não é só a casa do bispo que me está fechada, mas toda a Inglaterra!" Era muito verdadeiro este queixume, e alguns dias depois de sair de debaixo do teto hospitaleiro de Humphrey Monmouth, Tyndale achava-se a caminho da Alemanha.
Tendo chegado à Alemanha, Tyndale procurou vários reformadores, passando em seguida à Saxônia, onde teve uma conferência com Lutero, e tendo-se conservado por ali algum tempo, seguiu para os Países Baixos, estabelecendo finalmente a sua residência na Antuérpia. Outros dizem que foi primeiro a Hamburgo, e dali para Colônia, sendo seguido para esta cidade pelo seu implacável inimigo Cochlaeus, do qual se diz que embriagou os impressores para obter deles o segredo da obra de Tyndale. Achando-se em perigo, seguiu para Worms, e ali completou a primeira parte da sua obra, a tradução do Novo Testamento. Na primavera de 1526, chegaram à Inglaterra cópias dessa tra­dução, que circularam por todo o país. A situação dos pa­dres de Roma que estavam na Inglaterra era má, e começa­ram a perguntar uns aos outros o que se havia de fazer. Os alicerces do papismo estavam sendo minados e parecia que todo o edifício estava em perigo de desabar. Condenar o li­vro era coisa fácil, e isto estavam fazendo, mas livrar o país da nova doutrina que ele tão claramente ensinava, e evitar a entrada de novos exemplares, era uma coisa diferente. Era inútil que Henrique se desesperasse e Tonstall pregas­se contra o livro; este tinha-se apoderado do coração e consciência do povo, assim como do seu espírito, e nem os clamores do rei nem os sermões do bispo podiam destruir a sua influência. Foram publicamente queimadas em Ox­ford, Cambridge e Londres várias cópias da tradução, e em alguns casos não só os livros, mas também os seus leitores foram lançados às chamas, mas apesar disto a obra foi para frente, porque Deus assim o queria.
Tyndale no entanto ocupava-se com o Velho Testa­mento, e no ano 1528 acabou os primeiros cinco livros, o Pentateuco. Durante a sua viagem a Hamburgo, onde ia imprimi-los, sofreu um naufrágio e o manuscrito perdeu-se. Continuou a viagem logo que lhe foi possível e chegan­do a Hamburgo recomeçou o seu árduo trabalho, sendo au­xiliado pelo reformador Miles Coverdale, cuja tradução das Escrituras foi publicada alguns anos depois.

FIM DO TRABALHO DE TYNDALE
Mas os trabalhos do ousado reformador deviam em bre­ve ter o seu fim, por lhe estar destinada a coroa de mártir. Estando em Antuérpia em casa de um inglês chamado Points foi traído e entregue nas mãos dos papistas, por al­guém que tinha gozado a sua confiança, e depois de se defi­nhar na prisão durante dezoito meses (durante os quais contribuiu para a conversão do carcereiro e outras pessoas da sua casa), foi condenado ao poste. Teve por sorte ser es­trangulado antes de ser queimado; a sentença foi cumpri­da na cidade de Vivorden no ano 1536. As suas últimas pa­lavras pronunciadas em alta voz foram uma oração para o país tão mergulhado em trevas - "Senhor! abre os olhos do rei de Inglaterra!"

DR LATIMER
Mas Tyndale não foi o único inglês de conhecimentos excepcionais e de habilidade que trabalhou para o bem público durante estes tempos. O que ele estava fazendo em silêncio como tradutor das Escrituras fazia-o também de um modo mais público o Dr. Latimer, de Cambridge, por meio dos seus sermões.
Hugo Latimer era filho de um fazendeiro, e nasceu em 1541. A sua precocidade junto com uma inteligência viva, levaram o seu pai a mandá-lo para a Universidade de Cambridge. Uns quatro anos mais tarde o seu espírito to­mou uma direção séria, e o vivo estudante tornou-se um dedicado e supersticioso discípulo da igreja romana. Por esse mesmo tempo aplicou-se ao estudo dos clássicos com grande persistência. Mais tarde começou os seus estudos de teologia, e gastou muitas horas preciosas com as obras de sábios doutores da Idade Média. Chegou a ser, segundo as suas próprias palavras, "o mais obstinado papista da Inglaterra". O seu zelo contra as novas doutrinas expri­mia-se por vivo sarcasmo e discursos mordazes que muito deleitavam o clero. Na verdade, a fama das suas pregações continuava a espalhar-se de tal modo, que os prelados e frades começaram a esfregar as mãos e animarem-se uns aos outros com a idéia de que até mesmo Lutero tinha fi­nalmente encontrado o seu igual.
Mas alegravam-se cedo demais. Na Universidade jun­tamente com mestre Latimer havia um chamado Tomás Bilney, com outro modo de pensar. Este vigiava com não menos interesse, posto que por motivo inteiramente dife­rente, os movimentos do vivo e zeloso pregador. "Ah!", suspirou Bilney, "se eu pudesse ganhar este eloqüente pa­dre para o nosso lado, que triunfo para nossa causa! Se eu o pudesse levar aos pés do Salvador, certamente que se ha­via de seguir uma vivificação da verdadeira religião!" Isto era realmente para desejar, mas como consegui-lo? Humanamente falando era impossível, mas Bilney era homem de fé, e sentiu que tinha chegado a ocasião de por a fé em prá­tica.

CONVERSÃO DE LATIMER
Um dia Mestre Latimer, no seu caráter de padre con-fessor, foi esperado no seu quarto por um penitente, cuja presença ali muito o admirou. Era o Mestre Bilney. "Que quer isto dizer?", pensou o padre, "Bilney aqui! Um herege a confessar-se a um católico é extraordinário! Mas talvez que o meu sermão contra Melanchton o convencesse do seu erro, e ele vem procurar restaurar a sua comunhão com a igreja!" Enquanto ele assim raciocinava, Bilney começou a contar ao confessor a simples história da sua própria con­versão a Deus; e as palavras, aplicadas pelo Espírito San­to, foram diretamente ao coração e à consciência do padre. Ali naquele mesmo momento se entregou a Deus; e, aban­donando desde então a enganosa teologia das escolas, tor­nou-se não só um sincero estudante da verdadeira teologia, mas também um verdadeiro ensinador das doutrinas refor­madas.
Mas os soberbos doutores da Universidade e os padres e frades, que tinham em conta a sua própria justiça, não po­diam por muito tempo suportar a sua pregação clara e a sua exposição inexorável dos erros de Roma, e a cólera de­les começou a manifestar-se por ameaças ocultas e invecti-va cólera. Porém Latimer não era homem que se intimi­dasse com ameaças ou perdesse o sangue frio com os baru­lhos, e continuou a pregar com toda a ousadia; seus traba­lhos foram muito abençoados por Deus e grande parte da oposição que lhe tinha sido feita foi vencida.
Algum tempo depois, o bispo de Ely usou de modos mais brandos com o intrépido pregador, mas sem resulta­do. Cumprimentou-o pelos seus mais admiradores dotes; declarou que estava pronto a beijar-lhe os pés, e depois aconselhou-o como meio mais seguro para derrubar a here­sia, a pregar contra Lutero. Latimer, que tinha bastante senso comum para não se deixar enganar por tão evidente lisonja, respondeu: "Se Lutero prega a Palavra de Deus, não posso fazer-lhe oposição. Mas se ele ensina o contrário, então estou pronto a atacá-lo". "Bem, bem, Mestre Latimer", disse o bispo, "já percebo as suas idéias. Um dia ou outro há de arrepender-se delas".
Tendo falhado as injúrias, as ameaças e as palavras do­ces, o bispo passou das palavras às obras, e fechou os púl­pitos da Universidade ao pregador. Mas pouco tardou que se abrisse outra porta a Latimer, e Roberto Bernes, prior dos frades agostinhos, em Cambridge, cujo coração o Se­nhor tinha tocado, convidou-o a pregar na igreja perten­cente àquela ordem.
A controvérsia que os sermões de Latimer reavivaram foi interrompida por uma carta do capelão do rei, na qual as partes contendoras foram obrigadas ao silêncio até ser conhecida a vontade do rei. Mas a vontade do rei era que Latimer continuasse a pregar. Tinha sido informado de que o eloqüente pregador do Evangelho tinha favorecido a sua causa na questão do divórcio com Catarina de Aragào, e isso era um meio seguro de alcançar o favor real. No ano seguinte encontramo-lo pregando perante a corte em Windsor, onde o rei ficou tão encantado com a sua elo­qüência sincera e destemida, que o fez seu capelão. Outros favores reais ainda o esperavam, mas os papistas não o dei­xaram descansar, e sendo citado perante o bispo de Lon­dres por mais uma acusação de heresia foi então excomun­gado e lançado na prisão.
Deixemo-lo agora ali enquanto nos ocupamos de outros assuntos.

































28
Auxílios e obstáculos à reformo ingleso
(1529-1547)


TOMAS CRANMER
No ano de 1529 começou Tomás Cranmer a gozar o fa­vor real, e por fim foi promovido à Sé de Canterbury. Cran­mer era homem de sabedoria e piedade, mas tímido e inde­ciso - sendo isto reconhecido até pelos contemporâneos mais amigos. Embora superior a Latimer em erudição, era-lhe muito inferior em lealdade a Cristo, e levou bastan­te tempo a tomar a resolução de se desembaraçar das ma­lhas do papismo.
O progresso da Reforma podia ter-se desenvolvido mui­to em conseqüência da promoção de Cranmer, mas não aconteceu assim. As facilidades que Cranmer mostrou em ajudar a obra parece que não foram nada proporcionais à sua elevada posição; e Estevão Gardiner, bispo de Win­chester, o grande perseguidor, tinha mais influência junto ao rei em todos os assuntos referentes aos interesses da igreja do que o novo primaz. Mas era evidente que Cran­mer simpatizava com muitas das doutrinas dos reformadores; e vemos que usou da sua autoridade para dar liberda­de a Latimer, a quem colocou de novo no seu presbitério. Isto pelo menos foi uma ação conveniente.

MAIS MARTÍRIOS
Contudo, a tortura aos hereges continuou como dantes; e dois meses depois da promoção de Cranmer, João Frith, um íntimo amigo de Tyndale, sofreu o martírio juntamen­te com um aprendiz de alfaiate, chamado Hewett, que ti­nha negado a presença corporal no sacramento. Não se deve porém supor que Cranmer tomasse qualquer parte nestes atos brutais; eram inteiramente devidos ao selva­gem beatismo do bispo de Winchester, por quem o arcebis­po tinha uma dedicada antipatia.
Houve ainda muitas outras vítimas do zelo de Gardiner, mas não nos podemos referir a elas individualmente: estão registradas no Céu, e Deus não se há de esquecer de nenhuma delas.
Mas, entre todas, a que merece mais especial menção é a mártir Ana Kime mais conhecida por Ana Askew. Era esposa de um tal Kime, um papista fanático. Só algum tem­po depois de casada, foi que o Senhor lhe abriu os olhos e lhe mostrou pela luz da sua Palavra os erros papistas; mas logo que recebeu a luz manifestou bem o favor que lhe ti­nha sido concedido pela firmeza e coragem com que pros­seguiu nas suas convicções.
A primeira perseguição que teve de sofrer veio do seu próprio marido, cujo ódio pelo Evangelho venceu por fim de tal maneira toda a afeição natural que a expulsou de sua casa. Ligou-se então à corte da rainha Catarina Parr, que era uma cristã sincera; e ali a sua beleza, a sua pieda­de, e a sua ilustração, atraíam a atenção de todos, desper­tando mais tarde o ódio de Gardiner e do seu partido. Vi­giavam todos os seus movimentos, mas nada encontravam em que pudessem basear uma acusação. A sua maneira de viver era irrepreensível.
No ano de 1545 foi acusada de heresia, e lançada na pri­são. O seu primeiro interrogatório perante os inquisidores teve lugar no mês de março do mesmo ano, no fim do qual foi mandada para a sua cela em Newgate, onde ficou du­rante perto de um ano. O seu segundo interrogatório foi pe­rante o conselho do rei em Greenwich, onde ela foi escarne­cida e insultada pelo bispo de Winchester e seus adeptos, sendo novamente conduzida para Newgate.
Um dia ou dois mais tarde foi removida para a Torre onde o Lord Chanceler esforçou-se por induzi-la a indicar outros da corte que eram suspeitos de partilhar com as suas opiniões; e não querendo ela fazê-lo, aquele miserável monstro ordenou que a colocassem no cavalete da tortura. "E para conservar-me sossegada", diz a pobre vítima pa­ciente, "e não gritar, o Lord Chanceler e o Mestre Rich tor­turaram-me com as suas próprias mãos até eu estar quase morta... Mas dou graças ao meu Senhor Deus pela sua eterna misericórdia. Ele deu-me forças para persistir na minha fé, e espero que hei de resistir até o fim". Depois disso foi levada para uma casa e deitada numa cama com os ossos moídos e doridos como jamais os teve o patriarca Jó; e enquanto ali jazia, o Chanceler mandou dizer-lhe que se quisesse abandonar as suas opiniões seria bem tratada, em caso contrário seria reenviada para Newgate e queima­da. Mas ela respondeu que preferia morrer do que negar a sua fé; e esta resposta foi que decidiu a sua sorte.
Nesse mesmo ano, não se sabendo a data certa, foi completada a tragédia de Ana Askew, que foi levada da prisão para ser queimada. Estando muito fraca e não po­dendo andar, foi levada para Smithfield numa cadeira, e quando a levaram para o poste nem podia ter-se de pé. Amarraram-na portanto pelo meio do corpo com uma cor­rente. Então ofereceram-lhe o perdão do rei se se retratas­se; porém ela respondeu que não tinha vindo ali para negar o seu Senhor e Mestre. Chegaram então o fogo à lenha, e em breve os seus sofrimentos acabaram, e o seu espírito su­biu ao Céu. Mais três vítimas sofreram ao mesmo tempo.
Desgraçados tempos! Bem se podia erguer o grito de "Por quanto tempo Senhor Deus, por quanto tempo?!"













29
Reformo nos reinados de Eduardo VI,
Maria e Isabel
(1547-1558)

Eduardo VI tinha agora subido ao trono. Apesar de ter apenas nove anos de idade, já tinha dado evidentes provas de uma piedade verdadeira, e era considerado como um príncipe de grande futuro por todos os que favoreciam a re­ligião protestante. Tinha ele realmente a nobre ambição de fazer do seu país a vanguarda da Reforma, e oferecer um refúgio livre na sua Ilha aos ensinadores fugitivos. De­vido à sua pouca idade, foi o seu tio, o duque de Somerset, homem de princípios protestantes, nomeado regente do reino; e a notícia da sua nomeação reanimou as esperanças dos cristãos na Inglaterra e despertou a abatida energia de­les.

EFETUAM-SE MAIS REFORMAS
Bem depressa Somerset fez valer a sua autoridade, re­primindo a perseguição e tratando de outras reformas ne­cessárias: o sacrifício da missa foi proibido; foi permitido que se lessem as Sagradas Escrituras, e todos os que ti­nham sido expulsos do reino no reinado de Henrique, por causa da sua religião, tiveram licença para voltar. Muitos dos bispos, também foram expulsos das suas dioceses para darem lugar a homens mais competentes, medida que se tornava muito necessária, em vista da indolência e soberba de muitos dos prelados de Henrique. Quanto a Bonner, o bispo perseguidor de Londres, não só foi privado do seu bispado, mas tendo sido reconhecido culpado de ofensas e mau comportamento foi lançado na prisão. Foi esta tam­bém a sorte de Gardiner e Tonstall, bispos de Winchester e Durham.
Além disso, o conselho do rei tinha nomeado certas pes­soas para visitarem todas as dioceses, com o fim de repri­mirem abusos, e de darem conta do estado de cada bispa­do. Estes eram divididos em grupos, tendo cada grupo dois pregadores que explicavam ao povo a doutrina da Reforma e pregavam o Evangelho numa linguagem que podia facil­mente ser entendida por todos.

APARECEM AS NUVENS
No meio de todas estas reformas salutares, apareceu uma nuvem no horizonte espiritual, começando a circular boatos alarmantes referentes à saúde do rei, para aumen­tar o desassossego dos protestantes; o próprio regente foi derrubado pela força política do duque de Northumberland, e enviado ao cadafalso. Contudo, os Seymours, a quem foi conferida a responsabilidade do governo, tam­bém eram a favor da Reforma, e os bispos protestantes fo­ram animados pelo Estado a prosseguir nos seus árduos trabalhos, mas os boatos desanimadores sobre a saúde do rei continuavam a circular, e a ansiedade dos protestantes aumentava diariamente. Ainda se não tinha passado um ano que o novo governo estava no poder, quando esses boa­tos se tornaram em realidade, apresentando-se uma época má na história da Reforma inglesa. Eduardo tinha faleci­do, e Maria havia subido ao trono da Inglaterra.

MARIA NO TRONO
A perspectiva estava longe de ser agradável. A rainha Maria era uma católica fanática, e isso não dava muitas esperanças aos protestantes; além disso era filha de Cata­rina de Aragão cujo divórcio de Henrique VIII tinha sido aprovado por Cranmer, e isto não era um pensamento mui­to animador para o chefe eclesiástico do protestantismo do país. Os sentimentos de Maria não eram nada benignos para com as doutrinas que Cranmer tinha estado a pro­mulgar com tanto cuidado, durante o reinado do seu ir­mão; e ainda menos benignos eram os seus sentimentos para com o próprio Cranmer, a quem, na verdade, conside­rava como seu grande inimigo. Durante o reinado do jovem rei, Maria pedira licença para ouvir missa na sua própria casa, mas Eduardo lhe havia negado; e agora deviam cair sobre a cabeça de Cranmer as conseqüências desta recusa. E verdade que ele aconselhara o rei a conceder a licença, mas, ou Maria ignorava este fato, ou fingia ignorá-lo; e só o sangue de Cranmer podia aplacar a sua indignação. Como rainha, odiava-o por causa das suas medidas reformado-ras; como católica por causa das restrições de espécie reli­giosa que ela imaginava ter ele lhe imposto no reinado an­terior; e sobretudo, como mulher, por causa da sua decisão na questão do divórcio, pela qual ela ficara considerada como filha bastarda.
Contudo, durante os primeiros meses do seu reinado, a rainha disfarçou os seus verdadeiros sentimentos; e com o fim de estabelecer a sua posição no trono, prometeu tole­rância. Os protestantes não seriam incomodados nem na profissão nem na prática da sua religião nem se usaria qualquer violência em matéria de fé. Mas o cardeal Pole estava ao lado da rainha, e Gardiner e Bonner esperavam a ocasião de lançar o veneno no seu espírito, não sendo possí­vel em tais circunstâncias que este estado de neutralidade continuasse.
O povo também não tinha compreendido os benefícios que uma completa Reforma lhe podia trazer, porque a obra parcial feita no reinado de Henrique não tinha tido a simpatia popular pelas medidas inconstantes e autocraticas do rei, e a obra no reinado de Eduardo não tinha tido tem­po de criar raízes. Por isso, enquanto o Parlamento se reu­niu, um dos primeiros e principais atos foi abolir as inova­ções religiosas que Cranmer e Somerset se tinham empe­nhado em introduzir, e restaurar o culto na sua antiga ba­se. Como conseqüência imediata, milhares de padres casa­dos foram expulsos dos seus cargos e, com suas mulheres e filhos, reduzidos a pedir esmola.


MAIS MARTÍRIOS
As perseguições não tardaram a seguir-se. O primeiro mártir foi um eclesiástico chamado João Rogers. Esteve prisioneiro durante algum tempo na sua própria casa, e de­pois em Newgate, onde teve de permanecer com crimino­sos, assassinos, ladrões, etc, até chegar o dia do seu julga­mento. A conduta dos seus juizes no primeiro interrogatório foi muito irregular e turbulenta. As suas observações fo­ram caracterizadas pela rudeza e leviandade, e mais de uma vez se entregaram a violentos ataques de riso. Depois de três interrogatórios no tribunal de chanceler, onde Ro­gers mostrou muita modéstia e paciência, foi declarado contumaz, e entregue ao poder secular para ser queimado.
Alguns dias depois Rogers foi levado ao bispo Bonner para ser exautorado. No fim do ato, Rogers suplicou que o deixassem dizer algumas palavras à sua mulher antes de ser queimado, mas negaram-lhe o pedido. "Então", disse ele, "está provada qual é a vossa caridade". O fiel mártir foi queimado em Smithfield e suportou a morte com firme­za cristã.
Os martírios tornaram-se freqüentes e bem depressa Gardiner e Bonner tiveram bastante que fazer neste senti­do. Sanders, Hooper, Taylor, Farrar, todos sofreram cada um por sua vez, juntamente com muitos outros de menos importância aos olhos dos homens, mas que não eram de­certo menos preciosos aos olhos de Deus. Um jovem cha­mado Guilherme Hunter foi um destes; Bonner ofereceu-lhe a liberdade e quarenta libras se ele abjurasse. Ainda mais: ofereceu-lhe uma colocação na sua própria casa, se ele aceitasse essas condições, mas Hunter recusou-as: "A-gradeço-lhe as suas boas ofertas!" disse o jovem, "contudo, senhor, se não puder persuadir a minha consciência por meio das Escrituras, eu nunca me apartarei de Deus por amor do mundo, porque considero as coisas mundanas como perda e estéreo, comparadas com o amor de Cristo". Hunter foi, pois, queimado em Smithfield, e não ficou atrás dos outros mártires em fé e firmeza.

MARTÍRIO DE LATIMER E RIDLEY
No ano de 1555 o venerável Latimer sofreu o martírio tendo sessenta e quatro anos. Podia-se com verdade dizer dele que tinha combatido o bom combate e guardado a fé, porque ninguém tinha sido mais fiel às suas convicções, nem mais ousado em as manifestar do que ele. O seu com­panheiro de martírio, Ridley, era mais novo, mas já se ti­nha tornado célebre como um dos maiores campeões da Reforma; e talvez que, em sabedoria, é bom pensar que fosse superior a Latimer. Estes dois servos de Cristo foram amarrados ao mesmo poste; e a proporção que o fogo ia ar­dendo em volta deles, iam-se animando mutuamente no Senhor. Ridley sofreu mais porque a lenha empregada para o seu martírio era verde, e bem precisava das consola­ções do seu irmão mártir: "Tenha coragem, Mestre Ri­dley". dizia Latimer, "e seja homem. Havemos de hoje acender uma tal luz na Inglaterra, pela graça de Deus, que espero que nunca há de se apagar". Algum tempo depois de Latimer ter cessado de falar, ouviram Ridley gritar na sua agonia: "Aproximem mais o fogo; é lento demais!" Mas por fim as chamas alcançaram a pólvora que lhe ti­nham posto à roda do pescoço, e os seus sofrimentos final­mente acabaram.

MARTÍRIO DE CRANMER
Em seguida chegou a vez de Cranmer, mas não com a mesma glória dos outros mártires. Embora cristão, e por fim mártir também, foi tímido e inconstante quase até a morte; e num momento de grande tentação, faltou-lhe a coragem, e caiu. Era já velho e pela ordem da natureza, poucos anos mais poderia viver, mas ainda parecia agarra­do à vida. Foi depois do seu interrogatório e da sentença la­vrada que começou a vacilar; e nesta situação, persuadido pelas lisonjas dos seus inimigos e os receios da tortura nas chamas, estendeu a mão para assinar uma retratação. "Esta retratação", diz Foxe, "ainda bem não estava escri­ta, e já os doutores e prelados a levavam a imprimir e a es­palhavam por toda a parte. A rainha que tinha agora tido ocasião de vingar o seu antigo pesar, recebeu esta retrata­ção com muito prazer; mas não perdeu a idéia de mandar matar o seu autor".
Pode-se calcular qual era a situação do pobre arcebispo nestas condições. A sua vergonha e completa negação da fé destruiu a sua paz de espírito, e ao mesmo tempo não di­minuiu a severidade da sua sentença, e na verdade sentia-se muito desgraçado. Mas Cranmer ainda era o objeto do amor de Cristo, e havia de ser restaurado pela graça divi­na. Era uma ovelha do Senhor, e apesar de ter andado er­rante, ainda era um membro do rebanho, e amado com um amor que nem os seus erros podiam fazer diminuir. Pouco depois começou a sentir no seu coração os benéficos sinais do Espírito, que o levaram a confessar a Deus a sua falta; e assim lhe voltou a paz de espírito, e uma força que não era a sua própria tomou posse da sua alma. O seu desejo de vi­ver cessou, e começou a esperar com resignação e alegria pura, o momento em que Deus o chamasse para si.
No dia 21 de março de 1556, foi levado da prisão para a igreja de Sta. Maria, em Oxford, para ali estar presente ao seu sermão fúnebre que devia ser pregado pelo Dr. Cole, um zeloso papista. A igreja estava apinhada de gente, visto esperar-se que o arcebispo fosse chamado para ler a sua re­tratação, e o momento era de verdadeiro interesse. Os papistas estavam ali para presenciarem o triunfo da sua reli­gião, e os protestantes para se certificarem com tristeza da verdade das notícias desastrosas a respeito do arcebispo. Enquanto o Dr. Cole prosseguiu o seu sermão notou-se que Cranmer por várias vezes derramava lágrimas, e uma ou duas vezes voltou-se e ergueu as mãos ao Céu como se estivesse orando. Muitos dos assistentes choravam também e exprimiam a maior compaixão e piedade.
O sermão terminou e a congregação dispunha-se a par­tir, quando Dr. Cole pediu a todos os presentes que esperassem um pouco. "Irmãos", disse ele, "para que ninguém duvide da sincera conversão e do arrependimento deste homem, ele irá falar perante vós; peço, portanto, ao Mestre Cranmer, que cumpra agora o que prometeu há pouco, isto é, que exprima publicamente a verdadeira e indubitável profissão da sua fé para que todos fiquem sabendo que ele é na verdade um católico".
"Assim farei, e com a maior vontade," disse o arcebis­po, descobrindo a sua cabeça para falar; e em seguida, de­pois de um momento de silêncio, levantou-se e começou a falar ao povo. A primeira parte do seu discurso, que foi in­terrompido pela mais sincera oração, foi uma solene expo­sição da vaidade da vida humana e do engano das rique­zas; a confissão ficava para o fim. A proporção que o dis­curso prosseguia, tanto os papistas como os protestantes fi­cavam cada vez mais sossegados e atentos, sem fazerem uma única interrupção. Por fim chegou-se à confissão, e nesse momento um intenso sentimento de excitação per­correu aquela multidão ali reunida. "E agora", disse Cran­mer, "chego ao importante ponto que tanto perturba a mi­nha consciência mais do que tudo quanto eu jamais disse ou fiz em toda a minha vida; vem a ser a publicação de um escrito contrário à verdade, e que eu agora aqui renego como coisas escritas pela minha mão contrárias à verdade que eu tinha e tenho no coração. Foram escritas por medo da morte e para salvar a minha vida se assim pudesse. São mentirosos todos os papéis que eu tenho escrito e assinado com a minha mão depois da minha degradação; papéis em que eu escrevi muitas coisas falsas. E visto que a minha mão ofendeu a Deus, pois escreveu coisas contrárias ao meu coração, esta minha mão será a primeira a ser castiga­da. Quanto ao papa, nego-o, como inimigo de Cristo que é, pois é o Anticristo; nego-o com todas as suas falsas doutrinas. Quanto ao sacramento, eu creio conforme ensinei no I meu livro contra o bispo de Winchester; livro esse que ensina uma doutrina tão verdadeira a respeito do sacramento que ele há de conservar-se no último dia perante o julga­mento de Deus, quando a doutrina papista tiver vergonha de se manifestar".
Não se pode descrever a cena de confusão que se seguiu a este discurso. Os protestantes choravam lágrimas de re­conhecimento e de alegria e os papistas raivosos rangiam os dentes. Quanto ao Dr. Cole, tinha já ouvido bastante de confissão e quando o arcebispo começava a desenvolver as suas observações sobre o papismo e o sacramento, ele excla­mou: "Façam calar esse herege e levem-no daqui!"
A graça triunfara e a derrota dos católicos fora comple­ta.
Ao ser levado ao lugar do seu suplício, Cranmer despo­jou-se do seu vestido externo, e deixou-se amarrar ao poste com uma cadeia de ferro. Acendeu-se em seguida a foguei­ra, e quando o fogo chegou à roda dele, estendeu a sua mão direita sobre as chamas (a mão que assinara a retratação) e viram-no dizer repetidas vezes, "Esta indigna mão direi­ta!... esta indigna mão direita!..." Em seguida repetiu di­versas vezes o grito de Estêvão: "Senhor Jesus, recebe o meu espírito!" e assim expirou.
Muitos, algumas centenas até foram sacrificados no al­tar da sua fé na Inglaterra no reinado e sob as ordens de Maria, incluindo eclesiásticos, nobres, negociantes, lavra­dores, trabalhadores, criados, mulheres e até crianças. Há a acrescentar a estes muitos outros que sofreram doutras maneiras, pela tortura e pela prisão, tudo com o consenti­mento da perversa rainha.


MORTE DE MARIA. ISABEL SOBE AO TRONO
Maria morreu em 17 de novembro de 1558 quase ao mesmo tempo que o seu primeiro e principal conselheiro, o cardeal Pole, sucedendo-lhe ao trono a sua irmã Isabel. Apesar de tudo que falam de Isabel, não se pode negar que a subida dela ao trono da Inglaterra marcou a restauração do protestantismo, e embora a sua vaidade a tornasse perigo­samente parcial a muito do ritual da igreja romana, e con­sentisse na perseguição dos Puritanos, a Reforma foi sem dúvida estabelecida na Inglaterra durante o seu reinado, e numa base mais firme e mais larga do que jamais tinha si­do.
0 reinado de Isabel viu a política do reinado de Maria invertida, e pouco depois da sua subida ao trono, o protestantismo foi proclamado como a religião nacional.



































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História da Igreja desde a Reforma

Esta História do Cristianismo descreve a história da Igreja no Ocidente da Europa até a Reforma. Propomo-nos em seguida, a escrever um resumo da história da Igreja desde a Reforma.
O Breve Esboço dividiu a história em diversas épocas, seguindo a visão profética contida nos capítulos 2 e 3 de Apocalipse. Esta profecia, aparentemente, segue a história da igreja ocidental, e seguiremos o mesmo trilho, depois de dizer umas palavras acerca de outras seções da Igreja.

A IGREJA ORTODOXA, OU GREGA
Nos séculos VI e VII, quando o bispo de Roma procura­va obter a supremacia na Igreja universal, os bispos das igrejas no Oriente não queriam reconhecer a sua autorida­de. As sedes principais eram Constantinopla (capital do império oriental), Antioquia (capital eclesiástica da Síria), e Alexandria (no Egito). No século VII, os seguidores de
Maomé conquistaram a Síria, a Palestina, e o Egito, des­truindo os templos cristãos, e muitas vezes oferecendo aos crentes a alternativa de conversão à religião falsa, ou a morte. As hostes do Islã não entraram na Europa oriental até o século XV. Durante este intervalo, a Sé de Constantinopla resistia à autoridade do papa de Roma. O bispo de Constantinopla é chamado "Patriarca", e os bispos (ou pa­triarcas) da Igreja Ortodoxa são mais ou menos indepen­dentes uns dos outros. A Igreja Ortodoxa está cheia de ritualismo. A liturgia é na língua grega antiga, e também em eslava antiga. A maior parte da península dos Bálcãs, an­tes da invasão dos turcos, era adepta dessa igreja. Hoje os ortodoxos entendem pouco da sua liturgia, devido ao diale­to ter mudado consideravelmente. Durante os séculos V e VI, diversas raças de eslavos entraram na península, e a li­turgia foi traduzida na sua língua, mas hoje este dialeto é também diferente. Ao fim do primeiro milênio, certos mis­sionários entre os eslavos foram à Rússia para evangelizar o povo, e, gradualmente, a religião ortodoxa espalhou-se por entre esse vasto território, até chegar a ser a religião es­tabelecida pelo governo da Rússia. No ano de 1453, os tur­cos (maometanos) passaram para a Europa, e a cidade de Constantinopla caiu nas suas mãos, e depois toda a penín­sula balcânica. Mais uma vez os maometanos derrubaram as igrejas cristãs mas deixaram a catedral de Santa Sofia em Constantinopla, convertendo-a numa mesquita (tem­plo maometano), mudando a cruz para uma lua crescente (símbolo maometano). A Igreja Ortodoxa sendo persegui­da, ficou reduzido o número dos seus adeptos, e muitos fu­giram, levando livros e a língua grega para a Europa Oci­dental. A Igreja Ortodoxa, porém, persistia. Mais tarde os imperadores da Rússia, sendo da Igreja Ortodoxa, e sem­pre inimigos da Turquia, protegeram as raças gregas e es­lavas na Península, contra os turcos.
A Reforma não influiu na Igreja Ortodoxa. Melanchton, o companheiro de Lutero, escreveu ao Patriarca de Constantinopla, dando-lhe um relatório das doutrinas lu­teranas, segundo a Confissão de Augsburgo, e sugerindo que a Igreja Oriental aceitasse as doutrinas da Reforma. O Patriarca e seus colegas examinaram as novas idéias, e de­clararam que eram doutrinas falsas e não podiam aceitá-las. Mais tarde, no ano de 1621, um patriarca piedoso, re­conhecendo a Reforma, fez a sugestão aos ortodoxos para que aceitassem o Credo de Calvino. Os jesuítas, porém, fi­zeram uma grande propaganda contra isso, e, por acusa­ções falsas, conseguiram a morte do bom Patriarca, e as­sim a Igreja Grega continua até hoje com a sua corrupção.
Durante o século dezenove, os diversos países balcâni­cos conquistaram sua independência. Quando da Grande Guerra, no ano 1917, a Rússia tornou-se bolchevista e ateia, proibindo qualquer religião no país ou mesmo que nele entrasse uma só Bíblia. Missionários ingleses e ameri­canos têm trabalhado nos países da Península, mas têm encontrado muitas dificuldades, devido à ignorância do povo, e ao fanatismo dos padres e às leis dos governos.

A IGREJA ARMÊNIA
A Igreja Armênia existia no país chamado Armênia, en­tre o mar Negro e o Cáspio, mas agora está quase extinta. Era um cristianismo corrupto, e no fim do século passado e na primeira metade deste século, quase toda a nação foi exterminada pelos turcos, apesar dos protestos constantes do governo inglês. Hoje, o povo que ainda resta é pobre e está espalhado por diversas nações.

A IGREJA CÓPTICA
A Igreja Cóptica existe no Egito e na Abissínia. Quando os maometanos conquistaram o Egito, os cristãos sofreram perseguições, mas muitos continuaram firmes na fé, e a Abissínia não foi conquistada pelos árabes. A sede do Pa­triarca é Alexandria e ele é quem sempre nomeia o bispo da Abissínia. Este país foi evangelizado por Frumêncio que entrou ali no ano 330. A religião é um cristianismo cor­rupto. No século XVI, a Igreja Romana enviou missioná­rios portugueses à Abissínia. Tiveram bom êxito no princí­pio, mas finalmente foram todos expulsos, e o povo da Etiópia voltou à sua antiga religião. Durante o presente século, diversos missionários ingleses têm trabalhado no país, e foram bem auxiliados pelo imperador Haile Selassie. Era um homem de fé e retidão, mas foi obrigado a fugir na guerra de 1935, quando os exércitos da Itália conquista­ram todo o país. O governo italiano expulsou todos os mis­sionários, e os italianos mataram muitos dos crentes indí­genas. No ano de 1941, os italianos foram expulsos pelos exércitos britânicos, e o Imperador voltou à sua pátria, e prometeu ajudar tanto quanto possível os missionários que voltaram.

A IGREJA NO OCIDENTE DA EUROPA
Devemos voltar ao nosso assunto principal, que é a his­tória da Igreja na Europa Ocidental. Temos notado, nas primeiras quatro igrejas da visão profética de Apocalipse capítulos 2 e 3 um desenvolvimento. O estado de Esmirna desenvolve-se no estado de Efeso; o de Pérgamo no de Es­mirna, e o de Tiatira no de Pérgamo. Mas as últimas fases, as de Tiatira, Sardo, Filadélfia, e Laodicéia, continuam juntas até terminar a história da Igreja no mundo, marca­da pela volta de Cristo, que é mencionado como o alvo dos vencedores em cada uma das últimas igrejas. Por isso jul­gamos que as últimas fases serão encontradas em diversas partes do mundo ao mesmo tempo. Temos dito que Tiatira representa a igreja de Roma plenamente desenvolvida; Sardo representa as igrejas protestantes no seu desenvolvi­mento; Filadélfia representa as diversas revivificações que têm surgido durante os dois últimos séculos, e Laodicéia é mais o aspecto que se encontra hoje nos países protestan­tes.

A BÍBLIA
Antes de descrever a história dos vários países, deve­mos dizer umas palavras acerca da base da nossa fé - a Pa­lavra de Deus. A atitude de cada nação e de cada pessoa com respeito à Bíblia determina seu estado espiritual. Onde o livro sagrado está fechado ao povo, aí há ignorân­cia, trevas, injustiças e corrupção. Onde a Palavra de Deus é lida e apreciada, aí há inteligência, justiça e progresso.
Duas coisas, especialmente, resultaram em tornar a Palavra de Deus um livro ao alcance do povo mais uma vez na história da Igreja. Devido à entrada dos turcos em Constantinopla, muitos dos literatos gregos fugiram para toda a parte da Europa, levando seus escritos na língua grega. Tornou-se praxe nas Universidades da Europa o en­sino da língua grega, que é a língua original do Novo Tes­tamento. Os professorese estudantes começaram a estudar o Novo Testamento no original, e muitos tiveram os seus olhos abertos para os erros da Igreja de Roma, e aceitaram a verdade de Deus. Estes homens naturalmente queriam pôr as verdades encontradas ao alcance de todos, e para isso era necessário a tradução da Bíblia para as línguas modernas. Mas um livro em manuscrito custava muito caro para os pobres. O descobrimento da arte tipográfica durante o mesmo século barateou grandemente o preço dos livros, e pôs o Novo Testamento ou a Bíblia toda ao alcan­ce de muitas pessoas que sabiam ler. A Igreja Romana re­conheceu somente a Vulgata, a tradução de Jerônimo, fei­ta no século V, das línguas originais para a Latina, que no tempo deste tradutor era a língua quase universal. No sé­culo XV o Latim já não era a língua de qualquer nação, mas era usado em conferências internacionais, políticas ou eclesiásticas. A Igreja Romana continuou com a sua litur­gia nesta língua morta.
Agora vamos seguir o progresso do cristianismo nos paí­ses da Europa, e as conseqüências da aceitação ou rejeição do Evangelho em cada caso.

ESPANHA
O país mais poderoso da Europa durante o tempo da Reforma (1520-1580) era a Espanha. Dominou a América do Sul e a América Central e uma boa porção da América do Norte, ilhas no Pacífico, as índias Ocidentais, os Países Baixos (Holanda e Bélgica) e certas províncias da Itália. O rei Carlos V era também Imperador da Alemanha, e seu fi­lho Filipe II veio a ser também rei de Portugal e do Brasil, em 1580. Tinha um grande e bem treinado exército, e uma poderosa frota. O rei Filipe II era homem fanático, mesqui­nho, teimoso e cruel. Animou a Inquisição a fazer seu ser­viço nefário, torturando e queimando os "hereges protes­tantes" e os judeus. Antes de morrer (1598), o rei gabou-se pelo fato de não existir nem um só "herege" no país. A Ho­landa recebeu esses "hereges" e a Espanha fez guerra con­tra esse povo, que se revoltara contra a introdução da In­quisição e contra a terrível perseguição à sua fé evangélica; e, antes de morrer, o rei da Espanha tinha perdido a Ho­landa.
Os espanhóis levaram sua religião e a Inquisição a to­das as partes do mundo que conquistaram. Antes da morte de Filipe, a decadência do país começara, e continuou no século seguinte. O rei vira destruída sua "Invencível Ar­mada", a grande frota que mandara com a bênção do papa para castigar a herética Inglaterra, com Isabel sua rainha protestante (1588). Os espanhóis eram odiados devido a crueldade dos seus soldados e padres, e o rei era homem sem misericórdia para com seus inimigos.
A Espanha foi de mal a pior nos séculos XVII e XVIII, e a imoralidade do povo em geral durante o século XVIII, como descreve um contemporâneo, parece-nos quase incrí­vel. No tempo de Napoleão, os exércitos Franceses entra­ram e tomaram posse do país com o consentimento do seu rei. Os generais franceses acabaram com a Inquisição que ainda funcionava até aquela data. A Guerra Peninsular as­solava todo o país, trazendo terrível miséria ao povo, até que terminou no ano de 1814, quando os exércitos ingleses expulsaram seus inimigos.
Vinte anos depois, rebentou uma guerra civil que durou muitos anos, com uma ferocidade incrível. A administra­ção das colônias espanholas era sempre péssima, e estas aproveitaram as dificuldades internas da Metrópole para declararem sua independência. Assim, as possessões da América revoltaram-se e tornaram-se repúblicas, desde o México, no Norte, até a Argentina, no Sul. Isto foi uma grande vantagem para o trabalho evangélico, pois missio­nários da Inglaterra e da América do Norte agora traba­lham em todas as repúblicas. A Espanha passou poucos anos durante o século XIX com paz interna. Havia uma decadência, produzindo uma degradação intelectual, mo­ral e material. Mais de 80SV. do povo era de analfabetos. O país é muito rico em minerais, com clima bom e solo fértil, mas tornou-se a nação mais atrasada da Europa. A corrup­ção da administração das Ilhas de Cuba, e das Filipinas, no Pacífico, resultou numa guerra com os Estados Unidos em 1896, e a Espanha perdeu suas últimas colônias de im­portância e terminou o século com uma dívida enorme.
A Sociedade Bíblica Britânica enviou Jorge Borrow para vender Bíblias e Novos Testamentos na Espanha no ano 1835, e imprimiu o Novo Testamento na Capital. En­quanto isto se fazia, Jorge Borrow visitava as cidades prin­cipais do país, vendendo bíblias, mas encontrou muitas di­ficuldades, e a oposição dos padres. No princípio do pre­sente século, diversos missionários ingleses começaram o trabalho evangélico na Espanha, mas a guerra civil no ano de 1936 pôs termo a este serviço, e mais uma vez produziu muita miséria e grande privação para o povo. A Espanha tem sido uma filha fiel da infiel igreja de Roma, e tem pago caro por ter rejeitado o Evangelho no tempo da Reforma.

FRANÇA
A França no tempo da Reforma era um país poderoso e rival da Espanha, então não possuía colônias. O Evange­lho pregado por Pedro Waldo de Lyon no século XII produ­zia bom resultado, mas a perseguição diminuíra o número dos crentes, e a maior parte fugiu para a Suíça. No princí­pio do século XVI o "novo ensino" despertou muito inte­resse nas universidades mormente na Sorbone de Paris. O rei Francisco I era católico, mas no princípio não era perse­guidor. A irmã do rei, Margarida de Angouleme, era uma mulher intelectual e piedosa, que estudava o Novo Testa­mento grego, e queria animar outros a lê-lo. Durante a au­sência do seu irmão na guerra contra os espanhóis e quan­do ele estava prisioneiro do Imperador Carlos V, depois da batalha de Pávia, Margarida protegia da ira dos padres os novos conversos. Infelizmente havia alguns dos protestan­tes sem prudência, que começaram a derrubar os ídolos e pregar placas nas igrejas e até no palácio do rei, fazendo críticas à Igreja Romana. Em virtude disso, houve uma grande perseguição. Muitos foram presos e queimados na praça pública. Mas os huguenotes (como se chamavam os protestantes da França) cresceram em número. Muitos dos nobres, por motivos políticos, uniram-se aos novos conver­tidos, e tornaram-se um poder político, e pegaram em ar­mas. A guerra civil rebentou e continuou por muitos anos. Com o morticínio no dia de S. Bartolomeu não terminou a luta. Henrique de Navarra ficou à frente das forças dos hu­guenotes. Este príncipe era filho da célebre Jeanne de Na­varra, que era filha de Margarida de Angouleme, pelo se­gundo marido, o rei de Navarra. Sua mãe e avó eram cris­tãs sinceras e piedosas, mas para Henrique a religião era uma política. A morte dos herdeiros ao trono da França deixou-o como o sucessor. Mas, sendo protestante, a maior parte dos franceses opuseram-se a sua pretensão. Henri­que, porém, venceu todos os seus inimigos numa guerra ci­vil, e, a fim de trazer tranqüilidade ao país, e firmar seu trono, o novo rei (Henrique IV) professou a religião católi­ca, dizendo que "Paris valia uma missa". Foi um bom rei, e uma das primeiras leis a ser promulgada foi a chamada "O edito de Nantes", que deu liberdade religiosa e política aos huguenotes. Quando o rei Henrique foi assassinado por um jesuíta, seu filho (Luiz XIII) era menino, e depois um homem fraco, e o poder caiu nas mãos dum grande estadis­ta, o cardeal Richelieu que resolveu aumentar o poder do rei e quebrar a força política dos huguenotes. Estes mais uma vez pegaram em armas, e, apesar do auxílio da Ingla­terra, a fortaleza deles foi tomada, e os protestantes perde­ram seu poder político para sempre, mas continuaram com certa liberdade religiosa até o tempo de Luiz XIV. Este rei, instigado pelos jesuítas, desencadeou uma grande perse­guição contra seus súditos protestantes. Ele resolveu que todos deviam aceitar a religião católica, e a fim de alcan­çar este objetivo, mandou soldados brutais entrar pelas ca­sas dos protestantes e "convertê-los" à força. Esta perse­guição é chamada "as dragonadas", porque os soldados eram do regimento dos "dragões". As "conversões" por meio destes "missionários" não produziam bastante resultado, e o rei mandou o célebre Fenelon, (depois Arcebispo de Cambrai) para "converter" os "heréticos". Fenelon, embora fiel servo da Igreja Romana, era homem santo e piedoso. Era venerado pela sua retidão e santidade, e con­verteu alguns à sua religião. Recusou fazer qualquer tenta­tiva até que os soldados fossem retirados, porque não cria na força para este fim. Mas o serviço não lhe era congenial, I e ele o deixou. 0 edito de Nantes fora revogado, tirando I toda a liberdade religiosa do povo. Fenelon depois foi tutor do neto do rei, e seu ensino deu bom resultado na vida do rapaz, que antes era vicioso. Mais tarde Fenelon foi in­fluenciado pelo ensino duma mulher célebre, chamada Madame Guyon, cujas obras foram traduzidas em diversas línguas e ainda hoje são lidas, principalmente por protes­tantes.
Os ensinos desta senhora são baseados nas Escrituras, porque ela estudava a Bíblia e passava diariamente muito tempo em oração. Era crente verdadeira e gastou seu tem­po, quando viúva, em boas obras, ensinando a muitas mu­lheres as verdades da Bíblia. Converteu muitas almas a Cristo. Continuava católica, embora não ligasse importân­cia às cerimônias da igreja. Foi acusada de heresia porque suas doutrinas aproximavam-se das dos protestantes, e foi lançada na infame Bastilha, onde passou muitos anos. Fe­nelon defendeu as doutrinas dela, e um bispo bem conheci­do na história, chamado Bossuet, capelão do rei, atacou es­sas doutrinas. Uma grande batalha literária foi travada entre estes dois campeões. Embora Fenelon defendesse suas doutrinas com firmeza, o poder secular estava com Bossuet, e Fenelon foi expulso da corte e proibido de sair da sua diocese. Era venerado por quase todos, e até os ini­migos da França durante as guerras manifestaram seu res­peito pelo arcebispo. Podemos considerar Fenelon e Madame Guyon como semelhantes a "os vencedores" de Tiatira.
A Igreja Romana não era digna deles, e por isso os perse­guia. Voltemos aos pobres huguenotes, entregues mais e mais à vontade dos soldados brutais. Milhares deles fugi­ram para a Holanda, Suíça, Alemanha e Inglaterra. Os filhos foram tirados aos pais e enviados aos conventos, a fim de serem educados como católicos. Tão grande foi o núme­ro dos que fugiram que o comércio e a indústria da França ficaram parcialmente paralisados; os huguenotes eram os mais inteligentes e industriosos homens no reino. Ê calcu­lado em 400.000 os que fugiram do país, e representavam uma grande proporção naquele período. O rei mandou sentinelas para vigiarem as fronteiras, e, navios para policia­rem os mares. Foi em vão, porque embora alguns fossem apanhados e presos, a saída dos huguenotes continuou. Os capitães dos navios ingleses ajudaram os fugitivos, que saí­ram escondidos nos porões e até em barris vazios entre as cargas de vinho. Os países vizinhos protestantes recebe­ram esta gente de braços abertos, e lucraram muito porque trouxeram suas indústrias para esses que os protegeram. A França jamais recuperou esta grande perda de muitos do seu povo, e das suas indústrias. Na Inglaterra os hugueno­tes fundaram diversas indústrias, como as de ferro, louça, e renda, que têm trazido muito lucro ao país. Hoje há mi­lhares de pessoas na Inglaterra, que são descendentes dos huguenotes. Alguns ainda seguem o mesmo ofício dos seus antepassados que fugiram da França, e outros têm alcan­çado posições altas no Estado.
A perseguição continuou impiedosa até o rei julgar que convertera todos os "hereges". Mas muitos que não po­diam escapar do país fugiram para o interior entre os cam­poneses das montanhas chamadas as Cevenes. Alguns to­maram armas e acharam um jovem capitão de 21 anos chamado Cavalier. O rei enviou exércitos com generais para debelar este movimento, mas Cavalier e seus campo­neses derrotaram esses contingentes. Os generais, para atemorizar os rebeldes, cometeram atrocidades, mas Cavalier respondeu com represálias terríveis. O rei então mandou o Marechal Villars, que convidou Cavalier para uma conferência e ofereceu-lhe uma grande recompensa em dinheiro e a posição de coronel no seu exército. O jovem capitão aceitou a oferta e foi para as guerras francesas com alguns dos seus fiéis seguidores, mas os outros os chama­ram de traidores. Finalmente este extraordinário homem
foi a Inglaterra onde alcançou a posição de general e gover­nador da Ilha de Jersey, na Mancha. A guerra serviu so­mente para desmoralizar os crentes. O rei pensava que vencera a luta, e que não existiam mais protestantes em seu reino, mas no ano da sua morte os huguenotes convoca­ram uma conferência de pastores para reformar a igreja, dando-lhe o título de A Igreja no Deserto. Esta igreja cres­ceu, mas funcionava longe das grandes cidades. Depois da morte do rei Luiz XVI, havia mais liberdade e menos per­seguição. Durante o tempo da Revolução Francesa e no "Reinado de Terror", que se seguiu, diversos pastores so­freram morte pela guilhotina. Napoleão Bonaparte conce­deu a liberdade e reconheceu a Igreja protestante, mas li­gada ao Estado, e paga pelos fundos nacionais. No século XIX esta igreja foi dividida, e os mais fiéis separaram-se do Estado. Hoje há liberdade religiosa na França, e a Re­pública reconhece todas as religiões como iguais. O povo geralmente continua católico, mas os intelectuais são mui­tas vezes ateus. Os ensinos do célebre ateu Voltaire esta­vam em voga durante o século XVII e ainda têm adeptos. Durante o século XIX houve tantas mudanças no governo que produziram uma fraqueza política. O país foi invadido três vezes em 70 anos pelos alemães, e muito sofreu em conseqüência disso. Os evangélicos fazem bom serviço, e têm sido ajudados por seus irmãos da Inglaterra e da Suí­ça.

ALEMANHA
Os alemães sempre foram um povo viril e inteligente, mas a fraqueza política do país era devida ao fato de até no século passado estar dividido em estados independentes: reinos, ducados, e eleitorados, possuindo o imperador um poder restrito. Ele era eleito pela "Dieta", que era uma conferência dos chefes dos vários estados. Ao tempo da Re­forma, Carlos V era imperador. Era também rei da Espa­nha e dos Países Baixos, e um homem prudente e ambicio­so. De todo o coração queria castigar Martinho Lutero pela pusadia em se opor ao papa. Felizmente os estados eram independentes e seus governadores ciosos dos seus direitos.
Lutero morava na Saxônia, e o Eleitor Frederico apoiava o reformador. A Reforma espalhou-se para outros Estados, mas muitos estados alemães conservaram-se católicos. As vezes a Reforma e a vida dos reformadores pareciam estar em perigo, mas Deus guardava o seu povo, e as invejas e contendas políticas serviam para conservar a fé e a vida dos reformadores.
Lutero era conservador, e queria, tanto quanto possível conservar da antiga religião certas cerimônias, vestimen­tas, etc, que considerava como a casca para conservar as novas doutrinas. A Igreja Luterana na Alemanha era liga­da ao Estado e controlada pelo governo secular. Em outros países a mesma igreja é governada por bispos. Uma sepa­ração entre a Igreja e o mundo nunca entrou no pensamen­to dos reformadores principais em qualquer país, muito menos na Alemanha: Lutero era mais um grande pregador do que um cuidadoso teólogo. Como outros reformadores, emergindo das trevas e superstições da Igreja de Roma, ele recebeu a luz gradualmente, e seus escritos mostraram um certo progresso no seu entendimento das Escrituras. Uma grande dificuldade surgiu quando Lutero morreu, devido ao fato de um partido na Igreja Luterana querer aderir ri­gorosamente às crenças e escritos do Reformador, embora em alguns pontos não fosse muito claro o que ele cria.
Depois da morte de Lutero, e durante o século seguinte, houve muitas contendas a fim de obter-se uniformidade no ritual da Igreja Luterana, e para fazê-la mais conforme aos credos das igrejas de outros países. O fanatismo dos padres luteranos pelo seu ritual e pormenores de doutrinas sem importância prejudicou a espiritualidade da igreja. De­pressa a Igreja Luterana entrou no estado descrito na carta a Sardo (Ap 3.1): "Tens nome de que vives, e estás morto". De vez em quando Deus levantava testemunhas no meio deste estado morto. Uma destas foi Jacó Spener, um fiel pregador, e outros foram associados com ele. Toda a sua vida foi atacada pelos teólogos e padres luteranos. A alcu­nha "Pietistas" (piedosos) foi dada a estas testemunhas, porque pregavam contra os prazeres mundanos e levianos, e praticavam o que pregavam. Outro homem de Deus foi Augusto Hermann Franck. Ele fundou um orfanato na ci­dade de Hale no ano de 1691, um posto médico para os pobres, e uma sociedade bíblica. Mais tarde o conde de Zinzendorf começou seu grande serviço. Pertencia a uma família rica, nobre e piedosa. Seu padrinho foi Jacó Spener, e cresceu com o conhecimento do Evangelho. Mas quando era jovem crente, o conde visitava as cidades da Europa (como muitos ricos costumavam fazer, a fim de completar a sua educação) e chegou a Dusseldorf, e, en­trando numa galeria de arte, ficou muito impressionado com uma pintura de Cristo crucificado feita no século an­terior, e com as seguintes palavras embaixo: "Tudo isto Eu fiz por ti! - Que fazes tu por mim?" Isto produziu uma cri­se na vida de Zinzendorf, e voltou para casa com desejo ar­dente de servir ao Senhor. O conde interessava-se pelos crentes na Morávia perseguidos pelos governadores da Áustria. Muitos eram descendentes dos seguidores de João Huss: outros elementos foram espalhados pela perseguição no tempo da Reforma. 0 conde convidou alguns para sua propriedade para fazer uma aldeia modelo, onde hou­vesse liberdade. No princípio havia brigas e conten­das. Séculos de perseguição tornaram estes crentes como fanáticos em defesa de suas doutrinas, e con­fundiram as questões sem importância com doutrinas fun­damentais. Alguns concluíram que o bom Conde era mes­mo a "Besta" do Apocalipse, e foram visitá-lo para anun­ciar-lhe este descobrimento. Zinzendorf tratou-os com muita paciência e consideração e, depois de muito ensino, tudo foi harmonizado, e em vez de contenderem, os moravianos começaram a se amarem uns aos outros e a traba­lharem juntos. O Conde, com sua família, morava com eles, dando assim bom exemplo de vida cristã em casa. Os moravianos tomaram o nome de "Irmãos Unidos". Zinzen­dorf queria que eles se associassem à Igreja Luterana e aceitassem seu ritual, mas os irmãos não queriam, e a sua congregação tomou uma forma mais calvinista. Os irmãos tornaram-se em uma sociedade missionária, e muitos deles foram evangelizar como missionários pioneiros em diver­sas partes do mundo. As despesas eram pagas pelo conde, até que veio a ficar empobrecido.
Zinzendorf também foi perseguido pelas autoridades da Igreja Luterana, mas sofreu tudo com paciência. Foi banido de Saxônia pelas autoridades durante algum tem­po, mas sua liberdade depois foi restaurada, e até pedi­ram-lhe que arranjasse mais aldeias modelos como a de Hernhut, onde morava. João Wesley encontrou os missio­nários moravianos em viagem para a América, e ficou im­pressionado com o procedimento deste povo, especialmen­te com a calma que eles mostraram durante uma tempes­tade. No seu regresso à Inglaterra, Wesley assistiu às reu­niões dos moravianos em Londres, e ali foi convertido. Wesley visitou Hernhut, a aldeia dos Irmãos Unidos na Alemanha e ficou muito impressionado; mas mais tarde encontrando alguns deles com idéias extravagantes, sepa­rou-se deste povo. A doutrina principal que os dividiu foi a da predestinação, pois Zinzendorf era calvinista e Wesley armeniano. Um grande pregador contemporâneo de Zin­zendorf foi Hochmann von Hochenau. Sua pregação pro­duziu uma revivificação e muita gente foi convertida, e foi iniciado um movimento espiritual chamado "A Sociedade de Filadélfia". Espalhou-se para outros países e "igrejas de Filadélfia" foram fundadas em muitos lugares, separadas da Igreja estabelecida. A pregação de Hochmann foi o meio da conversão de um jovem estudante chamado Hoffmann, que tornou-se um grande pregador do evangelho, e foi usado na conversão de Gerhard Tersteegen, um escritor de muitos hinos na língua alemã.
A Alemanha sofreu terrivelmente na guerra dos "Trin­ta Anos", no século XVII (1618-1648) e muito do seu terri­tório foi devastado. No século seguinte, as lutas de Frederi­co, o Grande, chamadas a "Guerra dos Sete Anos", produ­ziram muitos sofrimentos e privações. Durante o século XVIII, o ateísmo espalhava-se pela Alemanha, e o Rei da Prússia (Frederico, o Grande) era amigo de Voltaire, cujos escritos espalhavam sua impiedade.
No século seguinte, as guerras de Napoleão impediram o progresso da Alemanha, porque o imperador da França dominava o país. No século XIX, os vários estados da Ale­manha ficaram unidos, e o Rei da Prússia foi declarado imperador da Alemanha. Os alemães têm feito grande pro­gresso na indústria, no comércio e na ciência. As leis e a administração eram justas, sem a corrupção que desmorali­za muitos outros países.
Durante a Segunda Grande Guerra, o mundo todo e os melhores elementos na Alemanha protestaram contra a in­justiça e a brutalidade da perseguição dos judeus e de ale­mães que não concordavam com o sistema de opressão. O espírito militar era muito forte na Alemanha, confundindo-se com o patriotismo, e a Igreja Luterana não manifes­tou poder espiritual para combater esse espírito militaris­ta. A tentativa de Adolfo Hitler de converter a Igreja às suas idéias pagas produziu resistência da parte de muitos pastores e do povo fiel. Alguns sofreram até a morte para manter o testemunho do Evangelho. A guerra começada no ano 1939 produziu muita miséria no mundo, especial­mente na própria Alemanha.

INGLATERRA
O reinado da rainha Isabel trouxe tranqüilidade e liber­dade à Inglaterra, e firmou a religião protestante no país. Entre os protestantes havia dois partidos: o povo que que­ria manter certas formas e vestimentas da Igreja católica, e os puritanos que queriam um culto mais simples e espiri­tual. A rainha era favorável tanto quanto possível às ceri­mônias da Igreja católica, e desprezava os puritanos. Por isso a Igreja Anglicana tem conservado certas vestimentas. A sua liturgia é uma forma episcopal onde os bispos são como nobres, tendo domínio sobre a herança de Deus. Os prelados tornaram-se perseguidores dos puritanos no sécu­lo seguinte, e inimigos da pregação do Evangelho no século XVIII. A rainha não era cruel como sua irmã Maria se mostrara, mas não tinha qualquer sinal de fé cristã. A der­rota e destruição da "Invencível Armada" de Filipe da Es­panha, firmou o reino contra o catolicismo.
O século seguinte viu a Escócia e a Inglaterra unidas sob o mesmo soberano. O herdeiro, depois de Isabel, ao tro­no da Inglaterra, era o rei Tiago da Escócia. No ano 1603 Isabel morreu, e Tiago I foi declarado rei da Inglaterra, Escócia e Irlanda. O nome da nova família real era "Stuart", e houve quatro reis dessa família. Todos eles procuravam exaltar o poder real acima do Estado e da Igreja, e perse­guiram todos os que não queriam conformar-se com o ri­tual da Igreja Anglicana. Somente durante onze anos de protetorado, o povo gozou ampla liberdade, tanto na Ingla­terra como na Escócia. A Escócia sofreu especialmente da família Stuart, que odiava o sistema presbiteriano, onde o rei era considerado somente um membro e não a "cabeça", como na Igreja Anglicana. Nesta igreja o rei nomeava os bispos, e os bispos os ministros, e assim tudo era submisso à vontade do rei. Os reis pensavam que o soberano possuía direitos que vinham de Deus, e portanto não tinha de dar conta a mais ninguém.
A loucura e a teimosia do segundo rei desta dinastia, Carlos I, custou-lhe a cabeça, depois de uma guerra civil entre o rei e o povo, em favor da liberdade. O ditador, Oliver Cromwell, concedeu liberdade religiosa, mas o povo go­zou esta bênção apenas onze anos, pois o filho de Carlos I voltou e é conhecido como Carlos II. Era homem devasso e sem honra ou princípios. Uma das primeiras leis promul­gadas foi chamada "ATO DE UNIFORMIDADE", que obrigou a todos a pertencerem à Igreja Anglicana e proibiu reuniões religiosas de outra denominação. 2.000 dos me­lhores ministros da Igreja Anglicana foram enxotados das suas paróquias e proibidos de voltar para perto das antigas congregações. Durante este período, João Bunyan, por ter pregado ao ar livre, e em casas particulares, foi condenado a doze anos de cadeia. Outro pregador dissidente era Ri­cardo Baxter, que foi, repetidamente, processado, multado e preso por ter pregado, e por ter escrito livros que não agradaram os prelados. Era homem santo e liberal, e odia­va a intolerância religiosa. Um livro que escreveu chamado "O Descanso Eterno dos Santos" é lido ainda hoje, e tem sido uma bênção para muitas pessoas durante quase três séculos: Pelos meados do século XVII, apareceu um movi­mento cristão que existe até hoje, chamada os "Quákers (Tremedores) ou a "Sociedade dos Amigos". O fundador foi Jorge Fox, um crente fervoroso, mas ele por vezes fez muitas extravagâncias, entrando nas igrejas anglicanas e estorvando os ministros.
Fox passou diversos períodos na cadeia. Outros homens de mais educação ajuntaram-se ao movimento sendo um deles Guilherme Penn. o fundador da Pensilvânia, agora um dos Estados da América do Norte. Os adeptos dessa denominação deram muita atenção às operações do Espíri­to Santo, doutrinas pouco entendidas na igreja reformada. Protestaram contra as cerimônias e o ritualismo; e nas suas reuniões costumavam sentar-se por muito tempo em silêncio, esperando a direção do Espírito Santo. Os Quákers vestiam-se com muita simplicidade, recusaram jurar nos tribunais de justiça, ou tomar armas até para se defen­derem. Não usavam o batismo nem a Santa Ceia, porque diziam que hoje o cristianismo é todo espiritual. Esta gen­te, sendo considerada fanática, foi perseguida, e as cadeias encheram-se de pessoas acusadas de terem freqüentado reuniões, ou terem recusado jurar, e cerca de 12.000 quá-kers estavam presos durante um certo período. Quando soltos, voltaram às suas reuniões abertamente, e deixaram a polícia levá-los à cadeia novamente. Jorge Fox não era bem educado, mas Guilherme Penn era filho dum almi­rante distinto, e defendeu-se com coragem nos tribunais. O rei devia a seu pai muito dinheiro, e quando este morreu, para liquidar a dívida, Carlos II concedeu ao filho Guilher­me um vasto território na América do Norte, então colônia inglesa. Penn foi para ali e fundou uma colônia modelo, fa­zendo aliança com os índios, aliança essa que nunca foi de­sonrada, e assim ganhou o respeito dos indígenas. O rei deu a esta colônia o nome de Pensilvânia, e Penn fundou a capital, chamando-a Filadélfia, agora uma das cidades principais dos Estados Unidos. Os quákers foram muito perseguidos em outras colônias inglesas, pelos puritanos, homens que fugiram da perseguição dos prelados da Ingla­terra. Os quákers mais tarde, quando veio a liberdade na Inglaterra, foram conhecidos pela sua filantropia, e depois trabalharam na Inglaterra e nos Estados Unidos pela abo­lição da escravatura. Nestes últimos anos os quákers têm diminuído muito, e a maior parte deles tem deixado as verdades cristãs fundamentais. Há ainda um pequeno grupo deles que são fundamentais.
No ano de 1621 um grupo de puritanos embarcou num navio chamado o "Mayflower" para formar uma colônia na América do Norte, a fim de fugir à perseguição na In­glaterra e gozar a liberdade no outro lado do oceano. Sofre­ram muitas aflições, doenças, privações, morticínios pelos índios, mas perseveraram, e aumentaram pela emigração da Inglaterra durante sessenta anos, e as colônias america­nas foram bem povoadas, formando a base da República agora tão poderosa, chamada Os Estados Unidos.
O último rei da Casa de Stuart, Tiago II, era católico, teimoso e fanático, embora jurasse manter a religião pro­testante e a liberdade do povo, queria introduzir a religião católica. Depois de quatro anos de aflição, o povo convidou o seu genro, Guilherme de Orange, de Holanda, para subs­tituir seu sogro, e este fugiu para a França. Guilherme e sua esposa Maria eram muito bons soberanos e concede ram liberdade religiosa, que tem sido mantida desde essa data (1689).
Mas a liberdade não produziu espiritualidade. Ao con­trário, no século XVIII o estado espiritual da Inglaterra piorou gravemente. Era igual à condição da igreja em Sardo: um nome para viver, mas morta. O povo estava embrutecido, os ministros da Igreja Anglicana não cumpriam os seus deveres, e muitos gastavam seu tempo caçando e jo­gando, e alguns eram bêbados. As denominações eram es­piritualmente mortas e sem poder, e a maior parte caiu em heresia.
Mas Deus felizmente não deixou sua igreja assim. Le­vantou os irmãos Wesley, Jorge Whitefield, Rowland Hill e outros, que pregavam ao ar livre e produziram uma revivificação espiritual. Foi então fundada a Igreja Metodista, e outro resultado foi uma mudança na moral do povo. A di­ferença produzida pela revivificação, dizem alguns histo­riadores, evitou a repetição na Inglaterra do desastre que se deu na França chamado o "Reinado de Terror". Ao princípio João e Carlos Wesley e Jorge Whitefield eram perseguidos pelos bispos e padres anglicanos. A pregação ao ar livre foi considerada uma extravagância religiosa. Milhares de pessoas assistiram a essas pregações, e muitos foram convertidos. Wesley também organizou uma multi­dão de pregadores leigos, que pregaram com bom êxito. Jorge Whitefield foi ajudado pela condessa de Huntingdon, que edificou salões em diversas partes da Inglaterra, e pagou o ordenado de muitos ministros para pregarem o Evangelho. Muitos desses salões existem até hoje.
Este despertamento desenvolveu-se no século XIX quando foram estabelecidas diversas sociedades bíblicas e sociedades missionárias. Havia também grande interesse pelo texto da Bíblia, e pelos manuscritos antigos dos quais foram descobertas traduções mais exatas que foram tradu­zidos. Escavações na Mesopotâmia, na Babilônia e no Egi­to trouxeram à luz escritos confirmando histórias bíblicas. Também certas verdades foram estudadas, como as profe­cias do Velho Testamento e a vinda do Senhor. O espírito sectário, que dominava em todas as classes de crentes, des­pertava a consciência de muitos, e resultou em mais comu­nhão fraternal na Igreja. A rainha Vitória começou a reinar no ano de 1847, e reinou mais de 60 anos. Sendo cristã, e com idéias elevadas, ela fez uma limpeza na corte, e elevou o nível social e público, começando com os ministros de Estado até a administração da justiça. Se um ministro de Estado, embora de grande capacidade, tivesse uma man­cha no seu caráter moral, seu nome era riscado da lista. A justiça agora estava ao alcance dos mais pobres, e não fa­vorecia os ricos.
No ano 1859 houve uma revivificação no Norte da Ir­landa e no Norte da Escócia, e a Inglaterra sentiu seu efei­to. Durante dez anos em seguida houve uma grande onda de evangelização no país, e muitos foram convertidos. Pou­cos anos depois veio o evangelista D. L. Moody da América do Norte para suas campanhas de pregações, e com ele Sankey, o cantor evangélico. Visitaram todas as cidades principais nos três reinos, e milhares foram convertidos. Nos maiores salões das cidades não cabia a metade do povo que queria assistir às suas pregações. Moody era ho­mem humilde e de família pobre e pouco educado, com sotaque americano, mas pregava com grande poder. Durante os anos que seguiram a estas campanhas, nasceram muitas sociedades de evangelização entre crianças, marinheiros, soldados, pescadores, empregados nas estradas de ferro, e políticos, para impressão e distribuição de tratados evangelísticos. Os trabalhos missionários desenvolveram-se e novas sociedades foram instaladas. Tudo parecia seme­lhante à Igreja em Filadélfia. A porta estava aberta para o Evangelho em quase todo o mundo: "Uma porta que se abre e ninguém fecha". O grande pregador batista Spurgeon (chamado o "príncipe dos pregadores") durante mais de 30 anos pregava todos os domingos a milhares de pessoas em Londres, e seus sermões são lidos até hoje.
Mas, enquanto o Espírito de Deus fazia estas maravi­lhas, o inimigo não dormia, apanhando semente de joio e começando a sua sementeira. Seus servos eram como os fa­riseus e saduceus. Os primeiros estavam representados na Inglaterra por um forte partido de ritualistas, que queriam fazer a Igreja Anglicana igual à Igreja Católica. Os "sadu­ceus" criticavam as Escrituras, e a crítica à Palavra de Deus tem crescido gradualmente. Um célebre cientista chamado Carlos Darwin, inventou a teoria da "Evolução". Baseando suas teorias sobre certos fatos científicos. Ele ne­gou a obra do Criador do universo, dizendo que o homem é descendente de animais, sendo o macaco o nosso parente mais chegado, tendo havido entre este animal e o homem um elo que agora falta.
Durante muitos anos os cientistas tem procurado em vão algumas evidências da existência desse "elo", que deve ser meio homem e meio macaco. Muitos cientistas têm abandonado esta teoria, mas infelizmente foi adotada pelos professores dos seminários para treinar ministros para os púlpitos de várias denominações.
A teoria da evolução foi adaptada ao ensino bíblico, e o resultado disso hoje em dia é que uma boa parte desses mi­nistros são "modernistas", negando a inspiração da Pala­vra de Deus. O efeito na vida do povo é triste. Embora a pregação do Evangelho ainda atraia o povo, a Inglaterra em geral é quase como uma nação paga, e é calculado que somente 20% assiste a qualquer culto. E destes 20% a maior parte são modernistas. Embora a Inglaterra tenha alguma parte no serviço missionário do mundo, este é apoiado por uma pequena percentagem do povo. O estado espiritual é como o de Laodicéia. O Evangelho produziu, e ainda existe no país, um alto nível de responsabilidade e honestidade na administração das leis, da justiça, e foram instituídos muitos benefícios, tais como proteção aos ve­lhos, aos fracos, aos desempregados, e as leis protetoras nas indústrias. O comércio é praticado com elevada moral, mas o povo em geral é muito indiferente às coisas de Deus. O domingo agora é quase tão profano como no Continente. Riquezas, prazeres, esportes, conforto, luxo, têm tomado o lugar da piedade. Deus está agora retirando do país muitas destas vantagens, e o povo foi bastante castigado na Se­gunda Guerra Mundial.

ESCÓCIA
A Reforma efetuou mais transformação na Escócia do que em qualquer outro país. Primeiro, porque o país estava numa condição deplorável, e porque a Reforma na Escócia foi mais completa. Esse país era pobre, e com um clima in­grato e um solo pouco fértil. No Norte o povo era quase sel­vagem. É montanhoso, e os habitantes, chamados "highlanders", eram divididos em tribos chamadas clãs, e eram muito fiéis à tribo e ao seu chefe. Havia constantes brigas com outras tribos, e travavam batalhas até a morte com seus inimigos. No Sul, na fronteira com a Inglaterra, muitas famílias eram compostas de bandidos e ladrões, que roubavam as fazendas e até as aldeias e cidades do Norte da Inglaterra, fazendo sistematicamente "raids" em bandos, queimando tudo que não podiam carregar. Leva­vam o despojo, gado, cavalos e carneiros para seu país. Os exércitos ingleses entraram na Escócia e tomaram vingan­ça pelos roubos, mas os "raids" continuaram. Entre estas famílias escocesas havia também brigas ou vendetas de uma geração para outra. Entre as clãs do Norte, quando um membro de uma família encontrava-se com o membro de uma família inimiga, era dever de ambos brigarem até a morte.
Os nobres ou fidalgos escoceses eram ferozes e cruéis. A opressão e a injustiça campeavam por toda a parte. De vez em quando havia um rei que governava bem, mas muitos deles encontraram morte violenta. Sendo que os reis meno­res (os regentes) ou abusavam do seu poder, ou eram fracos demais. A igreja romana possuía a maior parte das pro­priedades e não pagava imposto algum, e os frades eram geralmente preguiçosos e cheios de vícios. O martírio de Patrício Hamilton e Jorge Wishart aumentou o ódio do povo aos padres e bispos, e muitos nobres receberam o Evangelho. João Knox foi preso depois da morte de Wishart e serviu nas galés da França como um forçado. Foi libertado por influência do rei Eduardo VI, da Inglaterra, que era protestante.
Depois Knox passou uns anos com Calvino, em Ge­nebra, e aprendeu ali suas idéias sobre o governo da igreja. Voltou, finalmente, no ano de 1559, à Escócia, e achou que a Reforma fizera muito progresso, mas havia luta entre os protestantes e a Regente, que era viúva do último rei (e mãe da rainha Maria da Escócia), morava na França, por se ter casado com o rei daquele país. A rainha-mãe era da família De Guise (francesa), e uma católica fanática. Ela determinou acabar com a Reforma por todos os meios ao seu alcance. Convidou um exército francês para extermi­nar a Reforma, porque os protestantes estavam destruindo os ídolos nas igrejas, acompanhados por fidalgos armados com seus soldados. Os fidalgos enviaram uma carta à rai­nha Isabel da Inglaterra, pedindo um exército inglês para ajudá-los. A rainha atendeu e mandou navios de guerra e um exército. Depois de uma luta feroz, os ingleses e escoce­ses obrigaram os franceses a capitular e voltar à França. A rainha-mãe (a regente) morreu por esta ocasião, e os refor­madores tomaram conta do reino. Foi convocada a primei­ra "Assembléia Geral" da Escócia. Nesta assembléia ficou resolvido formar-se a igreja nacional reformada da Escó­cia. Não reconheceram o soberano (como na Inglaterra) como "Cabeça da Igreja", mas a Igreja da Escócia tomou uma forma presbiteriana. Ficou resolvido acabar de vez com tudo que era da Inglaterra romana na nova forma da Igreja da Escócia, e as doutrinas eram aproximadas às de Calvino. Resolveram que toda paróquia devia possuir uma escola e um ministro, e a Bíblia estaria aberta a todos.
No princípio havia dificuldades, por falta de ministros instruídos, e muitas aldeias tinham de ficar contentes com um estudante. Superintendentes viajavam dum lugar para outro fiscalizando o progresso do serviço religioso. Durante a primeira geração houve queixas contra ministros ou se­minaristas porque, às vezes, frades ou padres da igreja ca­tólica prestavam esse serviço. Na Assembléia ficou resolvi­do apropriar-se a nação de todas as propriedades e rique­zas da Igreja Romana, formando um fundo eclesiástico para pagar o ordenado dos ministros superintendentes, se­minaristas, professores de escolas, e despesas das escolas, e também para sustentar frades e freiras enxotados dos con­ventos que eram velhos demais para ganhar a vida. Infeliz­mente alguns dos fidalgos roubaram as propriedades ecle­siásticas, e toda a riqueza não foi para o fundo da nova Igreja. Foi instituído na Escócia um sistema de educação gratuita, para crianças de ambos os sexos, (isto séculos an­tes de outros países protestantes adotarem essa medida) e a educação da Escócia, durante séculos, foi a mais adian­tada do mundo.
A rainha Maria da Escócia voltou no ano de 1561. Era viúva porque o rei da França, seu marido, morrera. Maria fora enviada à França menina, e educada ali na corte mais corrupta da Europa. Ela queria que os escoceses voltassem à religião católica, mas era tarde demais. Na face da terra não existia um povo que mais odiasse a Igreja Romana do que os escoceses. A rainha era hábil, sutil, e sem escrúpulo. Casou de novo e seu único filho, Tiago, tornou-se depois rei da Inglaterra e da Escócia, unindo assim os dois reinos. Fe­lizmente, a mãe não criou seu próprio filho, sendo ele en­tregue a um fidalgo chamado Mar, para ser educado como protestante.
Maria foi cúmplice no assassínio do seu segundo mari­do e logo depois casou-se com o homem que foi culpado deste crime. Os escoceses então pegaram em armas e avan­çaram contra a Rainha e seu novo marido. Ambos foram obrigados a fugir, mas em direções diferentes; o marido fu­giu para a Dinamarca, e a rainha para a Inglaterra, entre­gando-se à sua prima Isabel. Durante os 19 anos de sua es­tada na Inglaterra, ela conspirou constantemente contra a rainha; e finalmente os ministros do Estado aconselharam a sua execução, e ela foi degolada. Seu filho Tiago fora de­clarado rei da Escócia quando sua mãe fugira. Quando Isa­bel morreu, Tiago foi declarado rei da Inglaterra, Escócia e Irlanda. Quando Tiago chegou à Inglaterra, gostou muito do sistema episcopal porque ele mesmo era "cabeça", e as­sim podia apontar bispos obedientes. Queria introduzir o mesmo sistema na Escócia, mas era impossível. Seu filho Carlos I, homem muito mais teimoso e menos sábio, man­dou que a liturgia anglicana fosse lida na Igreja de S. Giles em Edimburgo, capital da Escócia. Nessa ocasião, uma mulher lançou uma cadeira à cabeça do padre, e este foi obrigado a fugir da ira dos escoceses, e nunca mais voltou. O rei então invadiu a Escócia com um exército, mas encon­trando um exército mais poderoso na fronteira, ficou numa posição muito crítica para discutir o assunto, e voltou de­sistindo do intento. Os ingleses ficaram muito satisfeitos também porque odiavam o arcebispo Laud, que aconse­lhou ao rei tal coisa. Finalmente este prelado foi executa­do.
Querendo Carlos I atentar contra a liberdade do povo inglês, rebentou a guerra civil, que terminou com a execu­ção do rei. Infelizmente, os escoceses convidaram seu filho, que professou ser presbiteriano, para governar a Escócia. Um convite de que mais tarde o povo teve muita razão para se arrepender. O Protetor da Inglaterra, Oliver Crom-well, invadiu a Escócia e venceu seus exércitos obrigando o príncipe Carlos a fugir. Oliver Cromwell mandou seus ge­nerais para governar a Escócia, e foram dez anos de gover­no justo, de paz e liberdade. Eis o testemunho dum histo­riador desse tempo (1650-1660): "Eu creio verdadeiramen­te que houve mais almas convertidas a Cristo durante este período, do que durante qualquer outro tempo desde a Reforma, mesmo sendo um período três vezes maior. Toda paróquia tinha um ministro, toda aldeia uma escola, e quase toda família possuía uma Bíblia, e na maior parte do país, todas as crianças de idade escolar sabiam ler". Este testemunho foi escrito um século depois da Reforma. Não havia no mundo país mais adiantado no século XVII nem no século XVIII.
Mas a liberdade religiosa teve pouca duração. No ano de 1660 o príncipe Carlos voltou, e foi declarado rei com o nome de Carlos II (de "duas faces" dizem os escoceses). Carlos mostrou sua ingratidão aos escoceses que tinham vertido seu sangue para mantê-lo no trono. Fez leis severas contra os presbiterianos. Quase todos os pastores foram enxotados e homens ignorantes e, às vezes, sem caráter, preencheram seus lugares. A lei exigia que todos os membros assistissem nos domingos aos serviços na igreja, e os novos padres mandavam a lista dos ausentes para as au­toridades. A pena de ausência era prisão ou multa. Os es­coceses então reuniram-se secretamente nas montanhas e bosques e ali os velhos pastores pregavam, e celebravam também a Santa Ceia. Tais reuniões, chamadas "Conventículos", eram contra a lei, e soldados foram enviados para dispersar o povo que os assistia. Esses soldados pren­diam e por vezes matavam aqueles que apanhavam. Ás ca­deias ficaram cheias, e os pregadores, quando apanhados, eram enforcados ou degolados.
Durante um destes conventículos os soldados atacaram a multidão, e uns homens armados defenderam-se. Este ,sucesso da parte dos "Covernanters" (como se chamava os escoceses presbiterianos) não deu bom resultado, porque os atacantes depois foram vencidos, e centenas foram fuzi­lados ou enforcados. O governador mais cruel desses tem­pos foi o Duque de York, irmão do rei, e depois Tiago II. Era católico, e gostava de inventar e presenciar torturas bárbaras. Quando foi feito rei, a opressão piorou, mas feliz­mente durou somente quatro anos, pois Tiago foi obrigado a fugir para a França, e o rei Guilherme de Orange (holan­dês) subiu ao trono, e sempre depois disso a Escócia tem gozado plena liberdade religiosa. Muitos dos que haviam fugido para a Holanda voltaram à pátria.
Durante o século XVTCI a vida social e religiosa não des­ceu tanto na Escócia como na Inglaterra. João Howard, o célebre filantropista e reformador das prisões, escrevendo no ano 1779, disse: "Há poucos presos na Escócia. Em par­te é devido aos costumes alcançados pelo cuidado que os pais e ministros têm em instruir a nova geração. No Sul da Escócia é raro encontrar-se uma pessoa que não saiba ler e escrever. Era considerado um escândalo se uma pessoa não possuíse a Bíblia, que era sempre lida nas escolas paro­quiais".
A pregação de Whitefield foi muito abençoada neste sé­culo. João Wesley também visitou a Escócia diversas vezes e ficou admirado com a atenção do povo à sua pregação, e o decoro observado durante as reuniões. Wesley não teve, porém, o bom êxito de Whitefield. Talvez fosse isso devido ao fato de que este pregador era mais chegado à doutrina calvinista do que aquele, porque os Wesleianos eram mais discípulos de Armínio do que de Calvino. Foi esta diferen­ça que causou a separação entre os grandes pregadores.
Durante o século XVIQ o espírito de um evangelismo agressivo quase desaparecera na Escócia. Ao fim desse sé­culo dois irmãos, Roberto e Tiago Haldane, foram conver­tidos e dedicaram suas vidas ao Evangelho, viajando e pre­gando. Os ministros presbiterianos se opuseram a este mo­vimento, e um ato foi decretado na Assembléia em 1799, proibindo o uso dos púlpitos presbiterianos a leigos ou a ministros de outras igrejas. Os irmãos Haldane eram pro­prietários com bastantes recursos e continuavam seu tra­balho fundando escolas dominicais. O célebre Dr. Tomás Chalmers era um pregador eloqüente e poderoso, e animou os evangélicos no país, e era líder da seção evangélica na igreja escocesa. Depois o Dr. Chalmers chefiou o movimen­to separatista que formou a Igreja Livre da Escócia. A revivificação de evangelismo na Escócia no princípio do século XLX foi motivo da formação de diversas sociedades missio­nárias.
Em 1843 a Igreja Presbiteriana foi dividida: muitos sepa­raram-se da Igreja estabelecida formando a "Free Kirk" (I-greja Livre) em protesto contra a intervenção do poder secular no governo e conduta da Igreja. Os chefes do movi­mento separatista eram evangélicos, mas seus colégios em pouco tempo escolheram professores com idéias críticas das Escrituras. Um grupo dos ortodoxos dividiram-se da "Free Kirk", formando um corpo separado.
Havia lugares remotos das cidades grandes, no Norte da Escócia, onde o povo continuava meio-selvagem. A re-vivificação de 1859 alcançou estes lugares. Os pescadores no Norte e no Nordeste até as ilhas de Shetland eram ho­mens embrutecidos. As aldeias à beira-mar estavam cheias de tabernas onde era vendido o "Whisky" (aguar­dente) e era onde os pescadores faziam seus negócios. As casas eram choupanas pobres e sujas, o povo gastava o seu dinheiro nas tabernas e os pescadores levavam aguardente nos barcos de pescar. A transformação feita no povo nesse ano parece até incrível. As causas e os costumes mudaram depressa. O efeito perdurou por muito tempo. Hoje os tu­ristas vão de propósito visitar as aldeias-modelos dos pes­cadores. Uma aldeia, por exemplo, que antes da revivifica-ção possuía onze tabernas no meio da pobreza, agora não possui nem tabernas, nem cinema, nem cadeia, e as casas são modelos de asseio. O vício é desconhecido ali, e não há necessidade de polícia.
A Escócia tem produzido muitos dos melhores missio­nários pioneiros, como Robert Moffat, David Livingstone, Dr. Kalley, João Paton, James Chalmers e F. S. Arnot. A indústria, o comércio e a agricultura têm trazido prosperi­dade à Escócia, mas não espiritualidade. Dois grandes ini­migos têm feito bastante estrago: o "Whisky" em casa, e o modernismo na igreja. O domingo na Escócia era guardado como o dia do Senhor. Hoje em dia todos os bons costumes então existentes estão mudando para pior, e o domingo é mais e mais profanado. O número dos que assistem aos serviços religiosos está diminuindo rapidamente, e o esta­do espiritual do povo torna-se laodiceano.

SUÍÇA
A Reforma na Suíça tem uma importância especial. Zwínglio foi um dos primeiros reformadores a pregar o
Evangelho, mas quem influiu no caráter da Reforma na Europa mais do que ele foi João Calvino. A Suíça era uma república, constituída de estados, chamados "cantões", cada um com governo independente, mais livre ainda do que os Estados do Brasil ou dos da América do Norte. Sen­do uma democracia, o governo da igreja tomou forma de­mocrática também. Na Inglaterra ou nos países que adota­ram a forma luterana, a igreja era episcopal, ou governada por bispos. Esta forma era uma adaptação do sistema romanista. Os bispos eram a aristocracia da igreja, e gover­navam os sacerdotes e o povo. Zwínglio adotou o sistema presbiteriano, que foi mais tarde desenvolvido por Calvi­no, e copiado na França, Holanda, Escócia, e no Palatinado (dois estados de Alemanha). Os ministros e um número de presbíteros escolhidos pelo povo governavam a igreja. Lutero e os reformadores ingleses queriam reter, tanto quanto possível, os costumes antigos da Igreja Romana, purificados dos erros e corrupções, continuando também com suas vestimentas e uma liturgia modificada. A Refor­ma na Suíça foi uma limpeza completa, porque ali os refor­madores não tinham respeito nenhum para com os costu­mes antigos da Igreja Romana.
Também o ensino de Calvino influía muito nas igrejas reformadas que adotaram seu sistema de governo. Este en­sino espalhou-se na Inglaterra entre os puritanos e nas co­lônias da América do Norte. A doutrina especial de Calvi­no, hoje chamada "calvinismo", era a da eleição ou pre­destinação, na qual o reformador pôs muita ênfase. Calvi­no em sua luta com os romanistas, em vista da tendência da igreja romana de atribuir a salvação da alma aos esfor­ços humanos, frisou a soberania de Deus. Alguns dos seus seguidores levaram estas doutrinas ao extremo, quase ne­gando a responsabilidade humana. A justa inferência de tais ensinos seria que Deus é o autor do pecado, e a oferta de salvação aos pecadores não é de boa fé, porque a maio­ria não pode aceitá-la por Deus ter predestinado essa maioria à condenação, e somente os eleitos, à salvação. No princípio foram os teólogos católicos que se opuseram às doutrinas de Calvino, mas, no fim do século XVI, um teó­logo protestante chamado Tiago Armínio (1590-1609) começou a ensinar doutrina oposta ao calvinismo; sua dou­trina é chamada "arminiana".
Embora seus seguidores mais tarde também levassem sua doutrina ao extremo, ela tinha moderação, e servia de antídoto às doutrinas extremas do calvinismo. Hoje em dia tais doutrinas ainda são discutidas, mais a maior parte dos crentes reconhece que a graça soberana de Deus e a vonta­de livre dos homens são como os dois trilhos de uma estra­da de ferro, paralelos, não precisando de reconciliação. Mas na Holanda alguns dos seguidores de Armínio sofre­ram terríveis perseguições, e a contenda tem revivido di­versas vezes, notavelmente no tempo de João Wesley. Foi esta questão que dividiu Wesley de Whitefield e do Conde Zinzendorf, e no mesmo século houve muita polêmica en­tre estes e outros teólogos.
Devemos mencionar outra contenda no século XVI. Enquanto Zwínglio pregava em Zurique, diversos pastores eruditos e piedosos queriam voltar às práticas primitivas, separando a Igreja do Estado, e recusando batizar as crian­ças, dizendo que somente pessoas convertidas deviam ser batizadas. Zwínglio se opôs a este povo, e as autoridades de Zurique perseguiram todos os que adotaram tais idéias. Devido ao seu ensino e prática, estes foram chamados "a-nabatistas" e mais tarde "batistas". Naquele tempo era considerado crime horrível recusar-se a batizar crianças e rebatizar adultos que já haviam recebido o rito na infân­cia. E o imperador da Alemanha, um religioso fanático, mandou queimar ou afogar muitos que praticavam.tais "crimes". E na própria Zurique protestante, os chefes ba­tistas, homens eruditos e piedosos recebiam muitas vezes como castigo da sua pregação o afogamento. Há quem acu­se Zwínglio de haver, por omissão, consentido nessa perse­guição desumana.
A verdade é que ele não empregou sua grande influên­cia para impedir castigos tão injustos como os usados pela Igreja Romana. Muitos anabatistas foram expulsos da Suí­ça. Infelizmente, depois da morte dos seus chefes, alguns anabatistas adotaram práticas extravagantes. Na Alema­nha, ajuntando-se aos camponeses, por motivos políticos, fizeram a revolta chamada a "Guerra dos camponeses". Este movimento foi condenado por Lutero, e o exército de­les foi derrotado e castigado com brutalidade.
Outros anabatistas numa cidade chamada Munster, enxotaram todos os cidadãos que não aceitaram suas idéias; proclamaram João Leiden seu prefeito e pratica­ram crueldades e até poligamia. Nesse tempo, a cidade de­les foi tomada pelo exército do bispo. Estas extravagâncias deixaram um estigma em todo o movimento.
De tudo isso, se vê que as atrocidades cometidas pela Inquisição da Igreja Romana durante séculos influíram em alguns que saíram do catolicismo para ingressarem na Re­forma, pois muitas vezes se tratava de convencidos, que apenas mudavam de religião, e não de verdadeiramente convertidos ao Evangelho, ou nascidos de novo.
Um homem chamado Meno Simonis, no ano de 1537, ajuntou-se a esse grupo fanatizado, e a sua piedade e mo­deração impediram que eles praticassem excessos. Meno morava na Holanda, mas devido a uma forte perseguição foi obrigado a fugir para Fresemburgo, em Holstein, onde o Conde Alefeld o protegeu, com muitos dos seus seguidores, que eram chamados menonitas.
Alguns se recusaram a tomar armas e participar nas guerras, ou jurar nos tribunais de justiça. Muitos deles vi­viam no Norte da Alemanha, e no século XVIII uma colô­nia de menonitas mudou-se para a Rússia, convidada pela imperatriz Catarina, que prometeu-lhes isenção do serviço militar. Ainda hoje seus descendentes vivem ali.
No tempo da Reforma, os anabatistas não queriam to­mar parte na política nem no governo do país, dizendo que a Igreja é um corpo separado do mundo, do Estado e da política. Mas Lutero, Zwínglio, Calvino, Knox e outros re­formadores, ligaram a Igreja ao Estado. No sistema episco­pal, o Estado dominava a igreja, e no sistema presbiteria­no, as autoridades da igreja é que dominavam o Estado. Deve-se admitir que a influência pessoal destes mencio­nados reformadores fosse boa, porque aconselharam refor­mas nas leis e melhor constituição do país, mas a aliança da Igreja e o Estado tem introduzido muitos males na Igreja. João Calvino cria na necessidade do novo nascimento, mas tratou a todos os cidadãos de Genebra como membros da Igreja e sujeitos à sua disciplina. Pessoas sem piedade nem santidade foram obrigadas a conformar-se com as re­gras estreitas da Igreja Calvinista. A liberdade de cons­ciência não era entendida por esses reformadores, e Calvi­no tem sido muito censurado pela morte de Miguel Serveto, que foi queimado vivo em praça pública, por ter negado a doutrina da Trindade, pois Calvino não empregou sua influência para salvar-lhe a vida, deixando-se levar pelo fanatismo da época, embora procurasse, debalde, mudar a forma de execução do fogo para a espada. É verdade que esses fatos lamentáveis da época da Refprma foram atos isolados, em nada comparáveis às dezenas de milhares de pessoas que foram queimadas, trucidadas pela Igreja de Roma durante séculos.
Calvino morreu no ano de 1564, e seu amigo Teodoro Beza tomou seu lugar, e continuou pregando em Genebra até a sua morte no ano de 1605. Havia diferenças entre os pareceres de Calvino e Zwínglio, mas eles chegaram a um acordo chamado "Confissão Helvética", em 1566. Depois da morte de Calvino, a igreja de Roma fez um grande es­forço para restaurar na Suíça a fé antiga, à força e por pro­paganda. O Duque de Sabóia era governador de cantão perto da cidade de Genebra e fez uma tentativa para to­mar a cidade à força, mas foi rechaçado. A igreja de Roma nomeou como bispo de Genebra o celebre Francisco de Sa­les, que embora não pudesse pregar na cidade, pregou no cantão vizinho de Chabelais, e "converteu" milhares de adeptos forçados do calvinismo. Todavia, o bispo era notá­vel pela sua piedade e oratória e depois da sua morte foi ca­nonizado pelo Papa. O bispo ergueu uma grande cruz qua­se à porta da cidade, mas não ganhou autoridade dentro de Genebra.
Durante os séculos XVII e XVIII houve muitas conten­das entre católicos e protestantes. Os estados protestantes lucraram muito durante a perseguição dos huguenotes, que fugiram da França e acharam abrigo na Suíça.
O século XVIII foi marcado na Suíça, como em diversos países, por uma decadência espiritual. Um escritor contemporâneo disse: "O domingo é encerrado com diverti­mentos, e os pastores tomam parte deles com o seu reba­nho. Embora haja ainda conservado decência e sobriedade de costumes, o poder do Evangelho é pouco demonstrado entre os ministros e o povo. O ateu Rousseau, com suas opiniões destrutivas, e Voltaire, seu sutil rival, propaga­vam na vizinhança e especialmente em Genebra, o veneno do seu ceticismo. Há dúvida se ainda resta um professor ou pastor em Genebra que siga a Calvino em princípio e em prática. As convulsões, sob o nome de liberdade, têm au­mentado a apostasia geral. Em toda a Suíça o mesmo espí­rito prevalece, embora não sem muitíssimas exceções feli­zes da infelicidade geral".
Nos princípios do século XIX houve um avivamento es­piritual. Roberto Haldane, um escocês, pregou em Ge­nebra, e diversos estudantes de teologia receberam uma grande bênção espiritual; como Malan, Teodoro Monod, e Merle d'Aubigné, que vieram a ser pregadores notáveis, havendo o último escrito a "História da Reforma" obra traduzida em diversas línguas. Mais tarde J. N. Darby vi­sitou a Suíça várias vezes, pregando no Cantão de Vaud e em Genebra com muita aceitação.
Hoje Genebra tem uma Sociedade Bíblica, seminários para treinar evangelistas e missionários. Como em todos os países, o modernismo está ali ganhando terreno, mas ain­da existe uma grande corrente que aceita as antigas verda­des bíblicas.

HOLANDA E BÉLGICA
A Holanda e a Bélgica são países que têm sido unidos sob o mesmo governo, e separados por diversas vezes. São chamados Países Baixos devido à pouco altitude de seus terrenos.
Já vimos como na luta contra a tirania de Felipe II, os Países Baixos obtiveram sua independência. Guilherme de Orange (chamado também Guilherme, o Taciturno) era ho­landês, e o povo protestante. A maioria do povo belga era católica e de outra raça, e não queria Guilherme como seu príncipe, preferindo o velho regime; algumas províncias aceitaram o rei da Espanha, e duas convidaram um prínci­pe francês, o Duque d'Anjou. Finalmente este príncipe re­tirou-se, e as duas províncias foram restauradas ao rei da Espanha, e assim sacrificaram seu progresso e prosperida­de. Milhares de seus habitantes, os mais progressistas e in­teligentes, fugiram da Inquisição para habitarem na Ho­landa. Todo o comércio ficou paralisado nas cidades prin­cipais, e o capim crescia nas ruas. A Bélgica não prosperou até o século XIX, foi um campo de batalha em diversas guerras entre as potências vizinhas.
Depois da queda de Napoleão, que havia conquistado os Países Baixos, a Bélgica e a Holanda foram unidas, e co­meçou um tempo de prosperidade para eles. Surgiram tan­tas questões entre os dois países, devido às diferenças de idéias, língua e religião, que a Bélgica acabou por revoltar-se e escolher como rei um príncipe alemão que foi coroado com o nome de Leopoldo I. Este rei era protestante, e sob a sua direção, o país prosperava rapidamente, e continuou seu progresso durante o século XIX.
A história da Holanda é muito diferente. A prosperida­de começou logo depois de obtida a sua independência. Os holandeses são excelentes marinheiros, e fundaram diver­sas colônias no além-mar, e suas indústrias e comércio in­terno prosperaram. Na cidade de Leiden, uma universida­de foi fundada no ano 1575. Os primeiros professores eram homens piedosos e moderados e ensinavam o valor da tole­rância, mas geralmente os ministros calvinistas se opuse­ram a tais inovações, sustentando que o país devia ter so­mente uma religião. Um dos estudantes desta universida­de era Tiago Armínio. Depois passou ele algum tempo em Genebra com Teodoro Beza (sucessor de Calvino). Armí­nio era homem liberal, tolerante e piedoso, e muito contra os princípios rígidos de uma uniformidade forçada. Não era contencioso, mas possuía mente clara e lógica. Um dos seus princípios era que a providência ou governo de Deus, embora soberana, é exercida em harmonia com a natureza das criaturas governadas, isto é: a soberania de Deus é exercitada numa maneira compatível com a liberdade do homem.
Quando Armínio morreu, a Holanda foi dividida em dois sistemas religiosos, os calvinistas e os seguidores de Armínio, que foram chamados "os remonstrantes". O pri­meiro ministro do estado, chamado Oldenbarnevedt, deu seu apoio aos "remonstrantes". O príncipe Maurício de Orange, querendo debelar o movimento, mandou prender e processar os aderentes. Dois chefes foram condenados à prisão perpétua, um foi o célebre Hugo Grotio. Outro, o grande estadista Oldenbarnevedt, foi degolado em 1619. Este ministro de estado fez mais do que qualquer outro para a libertação da pátria, estabelecendo também justi­ça, paz e prosperidade durante 30 anos. Grotio era doutor em direito pela Universidade de Leiden, e um dos homens mais eruditos na Europa. Depois de muitos anos na prisão, pelo auxílio da sua esposa, Grotio escapou da fortaleza onde estava preso. A julgar por estes fatos, podemos enten­der que a liberdade de consciência e a tolerância não eram ali apreciadas nos séculos XVI e XVII.
Embora a Holanda tenha sofrido com guerras, a igreja ali tem gozado liberdade e tranqüilidade, mas, como as de­mais igrejas protestantes nacionais, seu estado durante os séculos XVIII e XIX era semelhante ao da igreja de Sardo, descrita no Apocalipse. Atualmente (1941) o país está so­frendo sob a tirania dura de Hitler. A boa rainha junto com o governo, fugiu para a Inglaterra, onde aguarda o dia de voltar à sua pátria, isto é, quando o país for liberto dos seus opressores.

ITÁLIA
Dos séculos XV a XIX, a Itália esteve dividida em di­versos estados, ducados, repúblicas, e reinos. No centro havia os estados da igreja, governados pelo papa, sendo a cidade de Roma a capital. A corrupção nos estados do papa era medonha. A maioria dos papas procurava consti­tuir seus parentes como príncipes nos estados vizinhos. Nos últimos quarenta anos deste século (XV) o crime político aumentou consideravelmente. De vez em quando papas honestos e sinceros eram eleitos, e procuravam re­formar o estado de corrupção que existia, mas estes eram desprezados por todos, e quando morriam as condições imorais voltavam ainda piores. Os príncipes secretamente assassinavam seus rivais. Os papas eram ímpios, levavam vida escandalosa, e alguns deles eram verdadeiros mons­tros de iniqüidade. O pior deles foi Alexandre VI, da famí­lia Borgia, cujos filhos eram o terror de Roma. A República de Florença foi governada por um monge chamado Girolamo Savonarola, que pela vida santa e pregação que apre­sentava produziu uma reforma na república, mas sua vida e pregação (embora um católico verdadeiro) era uma re­preensão à vida e à iniqüidade do papa, e Alexandre tratou logo de processá-lo, e Savonarola foi condenado e queima­do em praça pública em 1498.
Daí por diante a Itália tornou-se um campo de batalha dos exércitos espanhóis, franceses e alemães. No ano de 1527, Roma foi tomada, o papa preso no castelo, e a cidade saqueada por 30.000 soldados. Durante os 340 anos que se seguiram após o saque de Roma, a Itália foi repartida por países estrangeiros e sua história é uma série de guerras en­tre as famílias reais dos Habsburgos e dos Bourbons.
No Estado de Piemont, no Norte, existiam colônias de crentes primitivos chamados Valdenses (ou Vaudois). Es­tes eram os descendentes dos seguidores de Pedro Waldo, um negociante rico de Lyon, na França, que sendo conver­tido, deixou seu negócio para pregar o Evangelho (1170). Seus seguidores, sendo perseguidos, fugiram das cidades e esconderam-se nos vales entre os Alpes, e séculos depois foram achados na província do Oriente, da França. Estes crentes espalharam-se na Itália, procurando evangelizar os italianos, mormente o povo mais humilde, mas quando veio a perseguição voltaram para as montanhas.
Os pastores deste povo chamavam-se "barbas", e ou­vindo acerca das novas doutrinas da Reforma enviaram dois deles: Jorge Morei e Pedro Masson a Basiléia para vi­sitar o reformador Oecolâmpade, a fim de conferir suas doutrinas. Achavam que havia muito em comum entre os Waldenses e os reformadores, embora existissem também certas diferenças. Depois, o pregador Guilherme Farei foi convidado a assistir a uma conferência com os represen­tantes dos Waldenses. A esta conferência assistiram anciões das igrejas da Itália, não somente do Norte, mas tam­bém do Sul, e crentes da França, Alemanha e Boêmia. En­tre eles havia alguns nobres da Itália, que tomaram parte na discussão. Farei era o pregador principal; ele era um ho­mem eloqüente e espiritual. Nessa reunião, ficou resolvido fazer uma melhor tradução da Bíblia na língua francesa. Esta obra foi feita por um crente francês chamado Olivetan.
A igreja de Roma fez muitas tentativas de apagar a voz do Evangelho, perseguindo os crentes e mandando exérci­tos para exterminá-los, mas essa luz nunca foi completa­mente apagada.
O povo protestante da Inglaterra tem mostrado seu in­teresse e simpatia para com os Waldenses desde o tempo do Protetor Oliver Cromwell. Havendo no ano 1650 uma grande perseguição, o Protetor interessou-se em favor do povo perseguido, de tal modo que seus inimigos foram obrigados a desistir da perseguição. O poeta Milton des­creveu num poema os sofrimentos dos Waldenses durante esse tempo, e uma grande coleta foi levantada no país para ajudá-los, e o dinheiro enviado aos que tanto sofriam. No reinado da rainha Ana da Inglaterra, um subsídio foi man­dado pelo governo britânico para ajudar os pastores Wal­denses, e continuou até o tempo de Napoleão. No ano de 1823 um ministro anglicano visitou os vales de Piemont e escreveu um livro contando sua experiência entre os Wal­denses. O livro foi lido por um coronel do exército inglês chamado Beckwith. Este, não tendo mais serviço no exér­cito, resolveu dedicar o resto da sua vida em promover o bem-estar da igreja Waldense. Durante 35 anos, Beckwith trabalhou entre esse povo, estabelecendo 120 escolas; ele edificou uma igreja em Turim, capital de Piemont, no ano de 1849. Uma missão inglesa ainda funciona nessa zona.
O domínio francês, no tempo de Napoleão, trouxe mais liberdade à Itália, mas não trouxe mais luz evangélica. Du­rante cinqüenta anos depois da queda de Napoleão, a his­tória da Itália era uma luta entre a tirania dos governado­res austríacos no Norte; do papa no Centro, e dos reis de Nápoles (da família dos Burbons) no Sul. Tirania, corrupção e opressão reinavam em toda a parte. Os homens que faziam qualquer propaganda em favor da liberdade eram metidos em prisões, sem processo, ou foram mortos.
É provável que os estados papais fossem o pior e o mais corrupto lugar que o mundo jamais viu. Um homem que, mais do que outro qualquer, ajudou a libertação do país, foi Giussepe Garibaldi. Serviu, na sua mocidade, na Guer­ra dos Farrapos, no Rio Grande do sul (Brasil) e casou-se com uma brasileira - Anita Garibaldi - que o animou na sua tarefa na Itália. Os exércitos do rei de Nápoles fugiram diante de Garibaldi e seus "camisas vermelhas", e Vitor Emannuel, rei de Sardenha, ajudado pelo exército francês, venceu os austríacos. Finalmente tomaram Roma, e os es­tados da igreja, e toda a Itália foi unida num reino, e o papa retirou-se para o Vaticano, perdendo assim o seu po­der temporal, onde ele e seus predecessores governaram tão mal. Durante estas lutas, existiam grupos de crentes italianos, mas a maior parte deles era gente humilde.
No princípio do século XIX, o grande duque de Tosca-na, um dos estados do Norte da Itália, convidou o Conde Guicciardini para organizar um sistema superior de educa­ção. O Conde, em busca de bons livros para esse fim, achou uma Vulgata (Bíblia em Latim) na sua biblioteca, e começou a estudá-la, mas ficou espantado quando obser­vou que seu ensino não confirmava o da igreja romana. Nesta altura, o conde, certo dia, viu um seu criado lendo um livro, que se apressou em esconder quando recebeu seu patrão. O conde perguntou-lhe que era o que lia. 0 criado pediu-lhe então que não o traísse, e mostrou-lhe a Bíblia em italiano. O conde pediu ao servo que subisse a um quarto de seu palácio a fim de eles juntos estudarem o li­vro. Guicciardini foi convertido desta maneira, e achando grupos de crentes, que eram pessoas humildes, reuniu-se a eles. No ano 1851, foi promulgada uma lei, instigada pelos jesuítas, proibindo tais reuniões e o Conde foi obrigado a sair da sua pátria, e ir para a Inglaterra, onde gozava da comunhão dos crentes. Ele foi o meio da conversão de um seu patrício de nome Rosseti. Quando veio a liberdade, no ano de 1871, Guicciardini voltou à Itália, pregou e ensinou até a sua morte. Desde o dia em que o papa perdeu seu poder temporal, e retirou-se como "prisioneiro do Vaticano", o país tem-se desenvolvido. Nesse tempo o papa achou consolo na declaração do Sínodo do Vaticano acerca de sua infalibilidade que foi anunciada no ano de 1870, e aceita pela Igreja Romana como uma das suas doutrinas. Essa igreja ainda procura impedir a evangelização no país, mas uma lei sobre religião, embora com certas restrições, ga­rante essa liberdade.
A primeira Grande Guerra, que terminou em 1918, dei­xou a Itália muito abatida, embora com mais território. O país tem-se desenvolvido, mas, infelizmente, numa dire­ção militar em desacordo com o caráter do povo italiano, e agora (1941) o país está envolvido em outra guerra, que é capaz de enfraquecer a Itália consideravelmente.

BOÊMIA, ÁUSTRIA, MORÁVIA E HUNGRIA
Desde o tempo da Reforma até 1918 estes países eram unidos debaixo do governo do arquiduque da Áustria e, de­pois, do imperador desse país. Esses arquiduques e impe­radores eram da família dos Habsburgos; a maior parte de­les foram tiranos e perseguidores. Antes da Reforma, a Boêmia era um reino independente e a Morávia uma de­pendência. Depois da morte de João Huss, em 1415, os seus seguidores lutaram contra todo o império alemão, que mandou diversos exércitos para suprimir os "hereges", mas foram todos desbaratados pelos boêmios. Os hussitas, infelizmente, eram divididos em dois partidos, um chama­do "utraquistas" e o outro "taboritas". Vendo o papa que os hussitas não podiam ser vencidos, concordou em reco­nhecer os utraquistas como a igreja nacional de Boêmia, concedendo a eles o cálix (proibido a outros católicos), na missa, que era a única coisa que eles exigiram. Os tabori­tas queriam uma igreja separada de Roma, e continuaram a luta. Em 1434 o exército dos taboritas foi completamente derrotado e espalhado.
Havia porém, muitas pessoas entre este partido que de­sejavam conservar o ensino espiritual de João Huss, as quais formaram sociedades secretas que procuraram voltar para as virtudes da igreja primitiva. Uma destas comunidades foi fundada numa aldeia da Boêmia chamada Kun-wald, e muitos uniram-se com eles, incluindo membros da igreja waldense. A igreja nacional perseguiu este povo, que ficou espalhado mais uma vez. Um dos pastores chamado Gregório foi torturado e outro foi queimado. Os crentes, porém reuniram-se em outros lugares, e tomaram o nome de "Unitas Fratum", (Irmãos Unidos) e resolveram sepa­rar-se da Igreja Romana, mas declararam: "Não condena­mos nem excluímos os que ficam obedientes à Igreja Ro­mana: como não excluímos os membros da igreja grega ou da índia; assim também não condenamos os membros da Igreja Romana".
Um desses foi consagrado bispo por um bispo da igreja dos waldenses. Tomaram a Bíblia como seu único guia e autoridade, e rejeitaram os ensinos da igreja Romana. Pu­seram muita ênfase quanto à conduta cristã. O papa Ale­xandre VI persuadiu o rei da Boêmia de que esta gente era um perigo para o seu trono. Em 1507 o edito de S. Tiago mandou que todos os que não se reunissem com a Igreja Ultraquista, ou com a Romana, que saíssem do país. Sur­giu mais uma perseguição, mas felizmente o rei da Boêmia morreu pouco tempo depois, e os católicos e ultraquistas ocuparam-se com brigas, de modo que a perseguição abrandou.
Os Irmãos Unidos ouviram com alegria a notícia da Re­forma na Suíça e na Alemanha. Mandaram representantes a Wittenburgo, onde morava Lutero. Eles concordaram com as novas doutrinas, mas não gostaram tanto do com­portamento de muitos dos seguidores do reformador.
Em 1526 a família real da Boêmia terminou com a mor­te do último soberano, e Fernandes, irmão do Imperador da Alemanha (Carlos V), da família de Habsburgos, e Ar-quiduque da Áustria, foi proclamado rei da Boêmia, Fer­nandes era católico fanático. Em 1546 rebentou uma guer­ra entre a Liga dos Príncipes Protestantes e as potestades católicas, chefiadas pelo imperador. Muitos dos nobres da Boêmia tomaram o lado dos protestantes, mas foram ven­cidos na batalha de Muhlburgo (1547). Fernandes voltou a Praga (capital da Boêmia) triunfante, executando alguns dos nobres, e resolveu exterminar os Irmãos Unidos, man­dando que todos os que não assistissem à Igreja Nacional, ou à Romana, saíssem do país. Milhares deixaram sua pá­tria, achando refúgio na Alemanha e alguns na Polônia. Em 1556 Fernandes foi eleito Imperador da Alemanha, e deixou o trono da Boêmia com seu filho Maximiano, o qual deu licença para os Irmãos Unidos voltarem.
Durante os anos que se seguiram, a Bíblia, chamada "Bíblia Kralitz", foi traduzida na língua tcheca (a língua falada na Boêmia). Quando o Imperador precisava de di­nheiro para sua campanha contra os turcos, a Dieta da Boêmia exigiu, antes de fornecer o necessário dinheiro, que o edito de S. Tiago fosse anulado, e que a liberdade religio­sa fosse garantida. A necessidade sendo urgente, um decre­to chamado a "Carta Boêmia" foi assinado concedendo essa liberdade. Em 1616 Fernandes II foi eleito rei da Boê­mia. Estava inteiramente debaixo da influência dos jesuí­tas. Embora jurasse observar a Carta, começou logo a vio­lá-la. Os nobres boêmios se revoltaram, recusando reco­nhecer Fernandes como rei, e convidaram, Frederico, Elei­tor do Palatinado (um Estado alemão) para ser rei da Boê­mia. Este príncipe era protestante calvinista, e sua mãe era filha de Guilherme, o silencioso, de Orange. O jovem eleitor casou-se com Isabel, filha mais velha de Tiago I, rei da Inglaterra. Embora muito novo, Frederico foi escolhido chefe da União Protestante, formada para proteger os esta­dos protestantes. Era homem de bons princípios e de cará­ter, mas não possuía habilidade suficiente para chefiar a União, e todos seus esforços terminaram em desastre.
Os príncipes católicos formaram a "Liga católica" para combater a União, e o chefe da Liga era o Duque de Bavá­ria. Infelizmente, Frederico aceitou o trono da Boêmia e foi coroado no ano de 1619. Foi uma escolha que trouxe resul­tados desastrosos, não somente a Frederico e à Boêmia mas também à Europa. Não tinha o apoio dos outros príncipes protestantes, como o eleitor da Saxônia, e o rei da Inglaterra. O arqueduque d'Áustria foi eleito em 1619 Imperador da Alemanha, e rei da Hungria, e declarou guerra contra Frederico e os boêmios, que considerava como rebeldes. "Fernandes chamou Maximiliano, Duque da Bavária, e a Liga Católica para ajudá-lo. O Duque mandou um exército entrar e devastar o Palatinado, en­quanto o general de Fernandes combatia contra a Boêmia. Esta guerra é conhecida como a "Guerra dos trinta anos" devido ao tempo que durou. Em 1620 Frederico e os boê­mios foram completamente desbaratados na Batalha de Monte Branco, perto de Praga. Frederico, com sua esposa e família, foi obrigado a fugir. Tendo já perdido também sua herança no palatinado, foi obrigado a fugir para a Ho­landa, onde morou até sua morte, como um hóspede dos governadores do país.
A guerra dos Trinta Anos é dividida em três partes, a primeira e a segunda foi por motivo religioso entre protes­tantes e católicos. Foi travada com grande ferocidade, e o sofrimento do povo era terrível. Dizem que a Alemanha sentiu seus efeitos durante um século. Os exércitos man-tiam-se pelo roubo, tanto de amigos como de inimigos, de­vastando o terreno onde lutavam. Fernandes e seus gene­rais, Tilly e Vallenstein, foram quase sempre vitoriosos na primeira fase. A segunda fase foi marcada com a entrada de Gustavao Adolfo, rei da Suécia, campeão da fé protes­tante, com um exército bem treinado e equipado. Foi o único exército que não roubou o povo, sendo bem disciplina­do e comportado. O aspecto da guerra mudou depressa. Gustavo venceu os generais Tilly e Vallenstein, mas caiu morto na batalha de Lutzen (1632). No ano de 1653 a Fran­ça entrou na guerra, ao lado da Suécia, e a guerra perdeu todo o aspecto religioso. Depois de trinta anos de luta, Fer­nandes II fez as pazes, perdendo a França o estado de Alsácia, e o filho de Frederico e Isabel voltaram para governar o seu eleitorado. Esta guerra prolongada foi um desastre também para os Irmãos Unidos. Fugiam para os países vi­zinhos onde podiam-se abrigar. Um bispo deles chamado João Amos Comênio, continuou apascentando seu rebanho secretamente na Morávia. Ele deu-lhes o nome "Semente Escondida", mas são chamados também irmãos moravia-nos. Esta igreja foi composta de taboritas, waldenses, e crentes da Alemanha, e foi desta igreja que o bom Zinzendorf escolheu o grupo com que formou a sua sociedade em Hernhut que depois mandou tantos missionários pioneiros para terras estrangeiras.
A família dos Habsburgos foi notável por sua tirania, perseguição religiosa, e infelicidade com guerras e revoltas. Fez uma guerra contra os turcos, a Guerra dos Sete Anos, no século XVIII, e depois uma guerra prolongada contra Napoleão no princípio do século XIX, e mais tarde contra a França e a Itália, e depois contra a Alemanha.
Depois da Grande Guerra de 1914-1918, a Hungria, a Boêmia, e a Morávia e outras províncias, foram separadas da Áustria. A Boêmia alcançou sua independência e com a Morávia formou a República da Tchecoslováquia. Sendo um país industrial, e um povo inteligente e ativo progrediu rapidamente em 20 anos. Infelizmente, no ano de 1938 caiu em poder da Alemanha hitlerista, que tirou a sua liberda­de, e procurou destruir as suas instituições antigas. A Hungria também foi constituída uma república depois da primeira Grande Guerra, mas não teve o mesmo progresso que a Boêmia.
No século XVI a Hungria fez grandes esforços para ga­nhar mais liberdade política, pois estava debaixo do calca­nhar do Império da Áustria, e obteve uma certa medida da independência. Desde a Reforma tem havido crentes evan­gélicos na Áustria e na Hungria, mas a perseguição cons­tante reduziu o número. Na Hungria, Bulgária e Romênia há muitas congregações de evangélicos chamados "Naza­renos". O fundador deste movimento foi um ministro suí­ço, chamado Frohlich. Entrou como jovem no ministério na Suíça, e, sendo convertido, começou a pregar o Evange­lho, muito contra o gosto dos seus superiores, que procura­ram corrigir sua teologia. Quando Frohlich recusou modifi­car sua pregação, foi expulso do ministério no ano de 1818, mas continuou sua pregação como itinerante, visitando outras partes da Suíça e Alemanha. Dois operários ambu­lantes da Hungria, visitando a Suíça, ouviram Frohlich e foram convertidos. Voltando a Budapeste, capital da Hun­gria, estes homens anunciaram as Boas-Novas, e muitos foram atraídos. Uma congregação foi formada na cidade e cresceu rapidamente, reunindo-se com regularidade. Um grupo desta congregação saiu de Budapeste como missio­nários aos países vizinhos e levaram o Evangelho até as fronteiras da Turquia. Tomaram o nome "Nazarenos" por serem desprezados.

POLÔNIA
A Polônia era, no tempo da Reforma, um grande país, estendendo-se do mar Báltico ao mar Negro, e incluindo a Ucrânia. Os poloneses são da raça eslava, e receberam a re­ligião católica no século X. Nos séculos seguintes, a Polô­nia lutou constantemente contra seus inimigos, como as hostes tartáricas do Oeste, que devastavam suas cidades e aldeias. Pelejou também contra os prussianos, raça vizi­nha, então paga; e, ao norte, contra os lituanos, povo feroz e selvagem. Os Cavaleiros Teutônicos vieram morar perto a fim de converter estas raças pagas, e fazê-las cristãs por meio da espada, mas sem bom êxito. A Ordem Teutônica foi formada durante as cruzadas contra os maometanos na Palestina.
Terminadas essas guerras, os cavaleiros ficaram sem emprego. Não tendo tido bom êxito com o evangelho da es­pada contra os pagãos, começaram a brigar com os polone­ses, que foram para eles um espinho durante séculos. Os poloneses eram um povo guerreiro e, felizmente, durante três ou quatro séculos foram governados por bons reis. O rei da Lituânia aceitou a religião católica e persuadiu o seu povo a reconhecer o papa. Os Cavaleiros Teutônicos então ficaram outra vez sem emprego e tornaram-se negociantes e, finalmente desapareceram. A Lituânia e a Polônia fize­ram uma aliança para a sua própria defesa, e por vezes fo­ram governadas pelo mesmo rei. Infelizmente, a Polônia era muito difícil de governar, e os reis possuíam um poder limitado. Depois da Reforma, o rei era eleito por uma "Dieta" formada por pessoas das classes superiores: pro­prietários e nobres. Os trabalhadores não possuíam direi­tos e eram quase escravos dos proprietários. A Dieta quase sempre se recusava a dar o dinheiro necessário ao rei para as suas guerras, e se o rei era eleito pela Dieta, ela impu­nha tantas restrições ao rei, que era quase impossível go­vernar.
Enquanto os povos de outros países pelejavam para ob­ter ou conservar sua liberdade contra reis tiranos, na Polô­nia os melhores reis tinham a oposição do povo e eram im­pedidos pela constituição. A Polônia era muito ligada à Hungria e à Boêmia, seus vizinhos, e tinham muita coisa em comum. Depois da Reforma, a Polônia foi ameaçada pelos russos, no Norte, e pelos turcos no Oriente. Os russos e tártaros devastaram a Lituânia; e na Polônia reinava anarquia. O rei viu-se obrigado a transferir sua autoridade à aristocracia incapaz, cuja única idéia era oprimir as clas­ses inferiores sem se interessar pelos negócios da pátria. A Dieta recusou pagar os impostos necessários, e o rei esfor­çou-se de toda maneira possível, mas em vão. Ele não po­dia ajudar os húngaros contra a invasão dos turcos, nem impedir os russos de tomar as províncias uma após outra do seu aliado lituano, nem as hostes dos tártaros de pene­trar no seu próprio território, roubando e devastando tudo, até o interior da Polônia. A Hungria caiu em poder dos tur­cos e a Polônia estava ameaçada disso, mas o rei não tinha dinheiro para pagar um exército mercenário. Contudo, usou de toda diplomacia para evitar uma guerra contra os turcos.
No século XV alguns dos seguidores de João Huss en­traram na Polônia, mas um edito contra os "heréticos" im­pediu muitos protestantes de entrarem no país. No tempo da Reforma, entrou, por um lado, o luteranismo, e o calvinismo por outro, chegando-se a calcular que existia meio milhão de protestantes, e outro meio milhão da Igreja Or­todoxa, principalmente na Lituânia. Também os Irmãos Moravianos entraram, mas foram depois banidos e passa­ram para a Prússia. Os protestantes deviam seu bom êxito ao fato de muitos nobres favorecerem a sua causa. Em par­te, a razão era política, devido à inveja e ao ódio desses à igreja católica, que possuía tanta propriedade e riqueza, e estava isenta de impostos, o que constituía um escândalo.
Os bispos eram levianos e muitos tinham uma vida vi­ciosa. O ensino era negligenciado e, como resultado, os filhos dos nobres eram mandados às universidades de outros países, como a Alemanha, onde eram discutidas as novas idéias da Reforma. O governo foi obrigado a tolerar a nova religião, salvo as seitas que negavam a doutrina da Trinda­de. Na Dieta de 1558, os protestantes obtiveram maioria. Desde esta data sua causa começou a declinar. Isto foi de­vido às brigas entre os seguidores de Lutero e os de Calvino, e a propaganda dos jesuítas, que trouxe certa reação. A história subseqüente da Polônia é triste. A Dieta conti­nuou na sua tarefa inglória de impedir toda a reforma polí­tica ou fornecer o dinheiro necessário à manutenção da pá­tria. Uma decisão de Dieta tornando impossível todo pro­gresso era muito absurdo, mas foi mantida por ela com uma teimosia extraordinária. Era que todas as leis precisa­vam ser aprovadas por unanimidade.
Nestas circunstâncias, um homem ignorante ou perver­so podia estorvar todo o progresso, e a Dieta era composta de homens ultraconservadores, e muitos deles estavam prontos para trair a sua própria pátria, e a maioria era paga por outros países inimigos, como a Rússia, a Áustria e a Prússia. Estes três países queriam arruinar e repartir a Polônia, e assim davam dinheiro aos membros da Dieta para votar contra toda medida de melhoramento do país. O resultado foi que a Polônia foi de mal a pior, e os três países citados repartiram-na entre si. A primeira divisão foi feita no ano de 1772, a segunda no ano de 1793, e final­mente o resto da Polônia foi dividido em 1796. Assim per­deu a Polônia a sua independência. A maior parte caiu nas mãos da Rússia. Os nobres que tinham impedido todo o progresso durante muitos anos, saíram do país, emprega­dos no exército da Europa. Os trabalhadores que tinham sido oprimidos durante séculos, ficaram tão aliviados que aceitaram o jugo dos estrangeiros sem dificuldade. Mas havia uma classe, os moradores das cidades, e os negocian­tes, que sentiram a opressão. A Grande Guerra trouxe um alívio, e mais uma vez a Polônia foi restaurada pelos alia­dos, tornando-se uma República, que fez algum progresso. Seu antigo inimigo, a Alemanha, mais uma vez devastou esse país, ainda agora (1941) está fazendo esforço para im­possibilitar os poloneses de restaurar o país no futuro.
Na Polônia como em toda a Europa central, há congre­gações de crentes que se reúnem à maneira primitiva, para comunhão e evangelização.

PORTUGAL
No tempo da Reforma, Portugal rejeitou o Evangelho, preferindo a Inquisição romana, e pagou caro por ter segui­do o exemplo da Espanha. Alianças entre as famílias reais influíram nesta decisão. O último rei morreu sem família, e Filipe II da Espanha, sendo herdeiro do trono, entrou em Portugal como rei. A religião católica e a Inquisição fica­ram ainda mais arraigadas no país (1580). Devido ao fato de Filipe estar em guerra perpétua com a Holanda, e co­meçar outra guerra com a Inglaterra, Portugal viu-se obri­gado a fechar seus portos ao comércio com estas nações, as mais comerciais. Filipe deixou como herança para seu su­cessor a guerra com a Holanda, e este país aproveitou a oportunidade para invadir o Brasil, tomando Pernambuco e estabelecendo ali uma colônia holandesa.
No ano de 1640 os portugueses revoltaram-se contra o jugo espanhol, e proclamaram rei o Duque de Bragança (João IV). Este novo soberano mostrou energia e prudên­cia, e os holandeses foram obrigados a sair do Brasil. Em­bora eles fossem calvinistas, não parece terem evangeliza-do os brasileiros.
No ano de 1693 minas de ouro foram descobertas em Minas Gerais, e o metal foi exportado para Portugal, tendo o rei João V o desperdiçado em edifícios religiosos e de lu­xo. A coroa de Portugal nunca havia sido tão rica como du­rante os primeiros 50 anos do século XVIII, mas o reino não prosperou. Muito dinheiro foi emprestado ao papa e des­perdiçado entre os padres e as ordens religiosas. Felizmen­te o governo do Marquês de Pombal (1750-1777) produziu um avivamento na indústria, no comércio, na educação, e em todos os aspectos da vida. Depois do terremoto que des­truiu Lisboa, a capital, em 1755, foi edificada uma cidade melhor. A Inquisição foi suprimida, e os jesuítas foram ex­pulsos do país. E pena que este grande estadista não fosse amigo do Evangelho e não substituísse pelas Escrituras as abominações religiosas.
Quando o rei (José I) morreu e passou a reinar a sua fi­lha Maria I, então os jesuítas voltaram, e a rainha, que era uma religiosa fanática, enlouqueceu, e a decadência de Portugal continuou. Eis o que escreveu um historiador contemporâneo: "A igreja em Portugal é como um deserto árido. Não tenho ouvido ou lido de qualquer esforço feito durante séculos para introduzir um raio de verdade evan­gélica entre eles [os portugueses]. As Escrituras são um li­vro selado, escondido e interdito. A superstição, a imorali­dade e a crueldade pairam sobre eles. Nenhum espírito re­formador ousa murmurar uma dúvida acerca dos dogmas absurdos, ou fazer sugestão para reformar os piores abusos sacerdotais. Provavelmente Portugal e suas colônias serão os derradeiros entre as nações a serem salvos da ignorân­cia, e libertados do jugo do papado... Havendo contribuído tanto quanto qualquer outra parte para expulsar os jesuí­tas e extinguir esta ordem, Portugal não tem subido acima dos seus velhos preconceitos e submissão à imposição sacerdotal. Estou seguro disso, e é espantoso ver com que profundo ódio e aborrecimento eles nos olham a nós como hereges".
Veio a liberdade mais tarde quando Portugal obteve uma constituição mais liberal, e recebeu depois diversos missionários para pregar no país. Então a luz começou a dissipar as trevas, não só em Portugal, mas também na sua antiga e principal colônia, agora independente, o Brasil. No princípio, a luz veio de outras trevas, mas agora estes países estão sendo evangelizados pelos seus próprios filhos. Há um fato impressionante em relação à evangelização dos países que falam a língua portuguesa: é que Deus preparou o instrumento principal, a chave de ouro para abrir a porta de ferro que conduz à liberdade espiritual, com dois sécu­los de antecedência, quando pôs no coração de João Ferrei­ra de Almeida traduzir a Bíblia em língua portuguesa. Esta obra gloriosa foi terminada no ano de 1670 em Batávia, capital onde o servo de Deus residia. O tradutor era português nato, mas seu nome não está escrito em qualquer rol de honra na sua pátria, e parece ser um nome des­conhecido pela maioria de seus patrícios, e dos brasileiros, mas é um nome querido (e deve sê-lo) de todos os amantes da Palavra de Deus, que falam a língua portuguesa. Du­rante a sua vida ele recebeu mais maldição do que louvor por ter preparado a boa semente que futuramente iria pro­duzir bom fruto. Depois de quase três séculos, as terras onde se fala a língua portuguesa ainda estão brancas para a ceifa. [Escrito em 1943].

NORUEGA, SUÉCIA E DINAMARCA
Estes três países são povoados pela raça germânica, e agora formam três governos separados, cada um com seu rei e com sua constituição. Os escandinavos são um povo robusto, inteligente e industrioso. No tempo da Reforma, a igreja luterana-episcopal foi ali estabelecida, e continuam protestantes até hoje. Devido à sua posição geográfica, a Escandinávia tem gozado mais paz do que muitos países da Europa. O rei Gustavo Adolfo resolveu ajudar a causa protestante que sofria muito na "Guerra dos Trinta Anos", e passou à Alemanha com um exército forte e bem equipa­do, fazendo pender bem depressa o fiel da balança em fa­vor da "União Protestante". A sua morte, na batalha de Lutzen, em 1632, foi um desastre, mas os seus exércitos continuaram a luta.
Tem havido liberdade religiosa, e o povo é muito pacífi­co, notando-se ali ausência de crimes. Na guerra atual, a Noruega e a Dinamarca foram vítimas da agressão alemã, e estão sofrendo as conseqüências da invasão germânica como outros países, e, como eles, anseiam ardentemente (1941) mais uma vez, obter a sua liberdade.

IRLANDA
Na Irlanda a história religiosa é muito ligada com a política. Embora nos séculos V, VI, e VII a Irlanda tivesse sido evangelizada e fosse chamada a "Ilha dos santos", as trevas espirituais pairaram sobre essa mesma ilha durante mil anos. A Reforma teve pouca influência no país. Os irlandeses eram ignorantes e a maioria analfabeta e os pro­prietários mostraram pouco interesse no bem-estar do povo em geral. Os irlandeses falam a língua céltica, que servia de dificuldade para qualquer esforço missionário da Inglaterra. Também durante certo período do século XVI, houve uma rebelião no país contra a autoridade inglesa. Os reis protestantes da Inglaterra queriam impor a religião anglicana na Irlanda, mas foi impossível a não ser em cer­tas cidades como Dublin, a capital. Guerras e revoltas con­tinuaram, e no reino de Tiago I, o governo resolveu fazer experiência com uma província no Norte, chamada Ulster, plantando ali uma grande colônia de ingleses e escoceses. Muitos presbiterianos foram da Escócia, tomando posse de terreno da província. O rei Tiago mandou que todos os sa­cerdotes católicos saíssem do país, mas foi impossível pôr em execução esta lei injusta.
No ano 1641, os católicos levantaram-se contra os colo­nizadores protestantes, e mataram milhares deles com muita barbaridade. Na Inglaterra havia guerra civil, e as autoridades não podiam ajudar os protestantes, mas os es­coceses mandaram um exército para ajudar seus patrícios. A guerra civil na Inglaterra terminou com a morte do rei, e o general Oliver Cromwell levou também um exército à Ir­landa no ano 1650, e em pouco tempo o aspecto mudou. Cromwell agiu com muita severidade em represália à mor­te dos protestantes pelos católicos irlandeses, e seu nome ficou odiado na Irlanda. A campanha, porém, trouxe paz ao país, embora não fizesse com que o povo da Irlanda amasse os protestantes.
Quando Tiago II fugiu da Inglaterra para a França, o rei Luiz XVI prometeu ajudar seu hóspede real, e mandou um exército francês com Tiago à Irlanda. Guilherme de Orange, o novo rei da Inglaterra, foi à Irlanda e venceu os exércitos franceses e irlandeses. Era uma guerra entre pro­testantes e católicos, e os franceses foram obrigados a dei­xar a Irlanda, e os irlandeses foram subjugados.
Durante o século XVIII, João Wesley visitou a Irlanda muitas vezes, viajando a cavalo em toda parte e pregando o Evangelho. Diversas sociedades metodistas foram forma­das em várias partes.
No fim desse século, rebentou outra revolta na Irlanda, mas os rebeldes foram vencidos, e nessa ocasião muita cle­mência foi mostrada ao povo que tomou parte na rebelião. Durante o século XIX o governo na Inglaterra fez muitos esforços para satisfazer os irlandeses, mas todo aquele sé­culo foi assinalado por crimes políticos, assassínios, e des­contentamentos.
No ano de 1828 a Viscondessa Powerscour mantinha conferências em seu palácio, perto da capital (Dublin) sobre assuntos bíblicos, mormente sobre as profecias e a Segunda Vinda do Senhor. Um dos primeiros expositores foi João Nelson Darby, um ministro na igreja Irlandesa, cargo que deixou para ministrar a Palavra de Deus em di­versos países. Outro pregador independente, no princípio do século XIX, foi Gideão Ousely, que viajava a cavalo e pregava mesmo a cavalo nas aldeias e cidades. Pertencia a uma antiga família irlandesa de boa posição, mas associa­va-se com os humildes camponeses, conversando sobre o Evangelho de maneira muito simples. Um ministro evan­gélico independente chamado Thomas Kelly, formou di­versas congregações na Irlanda no princípio do mesmo sé­culo, e escreveu muitos hinos que estão em uso geral na língua inglesa, e alguns estão traduzidos em português.
No Norte, no Ulster protestante, no ano de 1859, houve uma revivificação, e nessa ocasião centenas de pessoas fo­ram convertidas entre todas as classes. Houve manifesta­ções físicas durante as reuniões, isto é, pessoas caíram ao chão e perdiam os sentidos.
O Ulster é próspero, progressista, com indústrias e co­mércio sendo a sua capital, Belfast, uma cidade de impor­tância. 0 povo é muito leal ao governo britânico, e a maior parte deles são protestantes fanáticos. O Sul do país, com quatro províncias, é principalmente católico, sob o domí­nio dos padres, sofre muito de pobreza, ignorância, pregui­ça, e um ódio fanático contra o governo britânico. Ê justo dizer que estas condições têm modificado e melhorado des­de o afastamento do governo britânico do Eire. Durante a grande guerra, os irlandeses fizeram uma insurreição con­tra o governo. Depois da guerra, houve uma divisão, ficando o Ulster separada das outras quatro províncias, que agora tem seu próprio governo e presidente, mas os irlan­deses não estão satisfeitos, porque o Ulster não está sob o seu domínio: o Estado Livre é chamado Eire, e desde a se­paração tem feito algum progresso.

GALES
Os galeses são descendentes de raças originais da Britânia, que fugiram de povos de raças germânicas, invasoras do país nos séculos VI e VII, cujos descendentes são os in­gleses. O rei Eduardo I da Inglaterra conquistou Gales (1282) e ao seu filho mais velho foi dado o título de "Prínci­pe de Gales" título ainda dado ao filho mais velho dos reis britânicos que o sucederam. A língua usada pelo povo é muito diferente da inglesa, e até hoje muitos dos campone­ses falam a língua indígena.
Durante a Reforma havia diversos estudantes galeses nas universidades da Inglaterra (Oxford e Cambridge) que pertenciam ao partido dos Reformadores e no reinado de Isabel a Bíblia foi traduzida para a língua galesa. Em 1567 a tradução do Novo Testamento ficou concluída, e 800 exemplares foram distribuídos nas diversas paróquias de Gales. O livro de Oração também foi traduzido, e a igreja estabelecida era idêntica à da Inglaterra. Bispos que fala­vam a língua galesa foram nomeados durante o primeiro século da história da igreja anglicana, e depois somente in­gleses, que não sabiam a língua galesa é que foram escolhi­dos. A educação do povo foi negligenciada até meados do século XVIII, e a maior parte era analfabeta.
Nesse século XVIII, Griffiths Jones, ministro anglica­no, instituiu um sistema de educação, e de escolas, obten­do como resultado, antes da sua morte, que uma terça par­te do povo aprendeu a ler as Escrituras em sua própria língua. Os bispos ingleses da Igreja Anglicana não mani­festaram interesse algum pela educação do povo, nem pelo serviço de Griffiths Jones. Felizmente diversas pessoas ri­cas ajudaram bastante, fornecendo o dinheiro necessário para esse fim. Durante este tempo houve uma revivificação espiritual no país, devido à pregação de diversos ministros da igreja galesa. Os principais pregadores foram Ho-well Harris, Daniel Rowlands, Pedro Williams, e Williams Williams, sendo o último o autor de muitos livros na língua inglesa. Eram pregadores eloqüentes e homens de oração, e pregavam com poder extraordinário, havendo, às vezes, manifestações físicas entre os ouvintes. Milhares de gale­ses se converteram.
Outros pregadores continuaram o trabalho na geração seguinte, como Christmas Evans, Henrique Rees e João Jones. Todos esses pertenciam à igreja estabelecida, mas tiveram de formar uma sociedade metodista calvinista. Queriam ficar ligados à igreja anglicana, mas, devido à oposição dos bispos, alguns foram expulsos e outros deixa­ram essa igreja, e continuaram pregando como dissidentes. Daniel Rowlands foi convertido pela pregação de Griffiths Jones, e tornou-se amigo de Jorge Whitefield, o célebre pregador inglês. Pregou com a mesma eloqüência, entu­siasmo e poder de Whitefield, mas na língua galesa. Foi enxotado da sua igreja pelo seu bispo e edificou uma casa de oração onde assistia a toda a congregação que outrora pertencera à igreja local, que ficou sem membros. Milhares de pessoas vinham ouvir Rowlands pregar aos domingos, viajando até 20 léguas para assistirem às suas pregações. Um jovem que foi ouvir a sua pregação foi Thomas Char­les, um dos fundadores da Sociedade Bíblica Britânica e Estrangeira. A pregação de Rowlands deixou uma impres­são extraordinária na alma de Charles, de que nunca se es­queceu.
Muitos dos metodistas galeses continuaram na igreja estabelecida. Mas, finalmente, no ano 1811, separaram-se, formando uma denominação independente. Os batistas também trabalharam em Gales, e fizeram muito progres­so. Chistmas Evans foi um dos seus pregadores mais co­nhecidos.
Um ministro evangélico célebre foi Thomas Charles (1755-1814), que foi convertido ainda jovem pela pregação de Daniel Rowlands; mais tarde foi ministro em Bala e tor­nou-se conhecido como Charles de Bala. Foi o fundador das escolas dominicais em Gales. Uma escola dominical naquela época era uma novidade. Ele é no entanto, mais lembrado como um dos fundadores da Sociedade Bíblica Britânica e Estrangeira.
A história desta Sociedade é bem conhecida: Uma me­nina filha de um pobre lavrador de Gales, chamada Maria Jones, desejava ardentemente possuir uma Bíblia, e du­rante alguns anos trabalhou para ajuntar o dinheiro neces­sário para adquiri-la. Quando julgou possuir o suficiente, fez uma viagem de 15 léguas a pé, e sozinha, a Bala, onde residia o sr. Charles que vendia as bíblias. Chegando à casa deste bom homem, descobriu que ele já vendera a úl­tima Bíblia que havia na língua galesa. Maria chorou tan­to e com tal desapontamento que o sr. Charles ficou como­vido, dando-lhe uma Bíblia quando ouviu do esforço que ela fizera para possuir esse tesouro. Depois, o sr. Charles foi a Londres e, convocando alguns amigos evangélicos, contou-lhes o caso de Maria Jones, sugerindo a urgente ne­cessidade de formar uma Sociedade Bíblica para suprir o povo de Gales de bíblias a preços baratos. Um dos amigos respondeu: "Certamente, sr. Charles, uma Sociedade deve ser formada para este fim, mas se for para Gales, por que não para o mundo todo?" Assim foi iniciada a grande So­ciedade Bíblica Britânica e Estrangeira, que tem ajudado a imprimir a Palavra de Deus em mais de 700 línguas, e agora manda ao mundo anualmente mais de onze milhões de porções das Escrituras.

RÚSSIA, FINLÂNDIA, ESTÔNIA, LETÔNIA, LITU­NIA.
Até o tempo da primeira Grande Guerra, a Finlândia, a Estônia, a Letônia, e a Lituânia eram incluídas no império da Rússia, sob a soberania do Tsar (Imperador).
A Rússia recebeu o cristianismo de Constantinopla no décimo século, e adotou a forma grega ortodoxa para a sua igreja. O Tsar levou o título de supremo cabeça da Igreja na Rússia. Até o século XIX a Rússia tinha pouca luz evangélica, mas todos pertenciam nominalmente à Igreja Ortodoxa. Os papas (como se chamam ali os sacerdotes) eram quase tão ignorantes quanto o povo, e a superstição reinava em toda a parte.
No princípio do século XIX, o Tsar era Alexandre I. Durante a invasão de Napoleão (1812), à Rússia Alexandre mostrou sua fé em Deus, e costumava assistir às reuniões de oração. Era um bom cristão e desejava fazer bem ao seu povo, que era muito atrasado e ignorante, mas as idéias conservadoras dos russos em geral impediram muito o pro­gresso do Evangelho. Membros da Sociedade dos Amigos (Quakers) visitaram a Rússia e foram bem recebidos pelo Tsar, que sempre mostrou muita amizade a esta denomi­nação. Ele animou a leitura das Escrituras, e contou que isso lhe fora um grande consolo durante suas dificuldades, mas somente leu a Bíblia pela primeira vez quando tinha quase 40 anos de idade. O Imperador concedeu todas as fa­cilidades à Sociedade Bíblica Britânica para propagar a Palavra de Deus em seu vasto domínio. A Sociedade, en­viou um agente chamado Melville, que dedicou 60 anos de sua vida a divulgação das Escrituras na Rússia.
Quando Alexandre morreu, em 1825, sucedeu-o seu ir­mão Nicolau I, que era reacionário, mas o filho deste, Ale­xandre II quando se tornou Tsar, fez muitas reformas. Mais de 80% do povo trabalhava no campo e eram "ser­vos" ou escravos dos grandes proprietários. O Imperador terminou esta servidão e proclamou a liberdade pessoal para todos. Liberdade política, porém, não foi conhecida na Rússia, e havia pouca liberdade religiosa, embora o espírito de liberalismo fosse sempre crescente. Alexandre II foi assassinado em 1881, e seu filho Alexandre III conti­nuou suprimindo as liberdades, e perseguindo os dissiden­tes, como os batistas, stundistas e judeus. Seu velho pro­fessor, chamado Pobedonostef, foi feito Procurador do Santo Sínodo (o corpo governante da igreja russa) e era co­nhecido como um grande perseguidor de todos os que não pertenciam à Igreja Ortodoxa. Milhares deles foram envia­dos à Sibéria, onde morreram de frio ou de fome. Na via­gem para este exílio, foram levados na companhia dos pio­res criminosos, com os braços e pés amarrados com pesa­das correntes, e tratados com mais brutalidade do que o gado. As prisões da Rússia eram notáveis pelas suas péssi­mas condições. Muitos morreram de fome e pelas brutalidades infligidas.
No ano de 1866, Lord Radstock, um nobre da Inglater­ra, pregou na capital (então Petrogrado) e dirigiu estudos bíblicos nas casas e palácios de vários nobres russos, e mui­tos deles, de classe mais rica, foram convertidos. Um des­tes, o coronel Pasckov, depois da sua conversão, viajava pela Rússia, pregando o Evangelho nas prisões, hospitais e salões ou casas particulares, e empregou sua fortuna na distribuição de bíblias e tratados. Foi, enfim, proibido de pregar, mas continuou este serviço até que foi banido da Rússia pelo "Santo" Sínodo; sendo então muitas das suas propriedades confiscadas. Alexandre III queria na Rússia uma língua e uma igreja, e procurou impor esta política nas suas dependências também, como a Finlândia. Seu fi­lho Nicolau II, que foi feito Tsar em 1894, era homem fraco e estava sob a influência dos seus tios; prometeu reformas, mas não cumpriu sua palavra, pois em 1893 foi publicado um decreto mandando que os filhos dos stundistas fossem tirados dos pais e criados por pessoas pertencentes à Igreja Ortodoxa. Havia perseguições aos judeus e muito deles fo­ram mortos.
0 espírito de liberalismo crescia, e havia organizações revolucionárias formadas, mas o governo continuava a sua opressão. Os estrangeiros porém tinham mais liberdade e até os menonitas (batistas alemães) continuaram livre­mente. O Dr. Baedeker, da Inglaterra, obteve licença para viajar para todas as partes da Rússia e da Sibéria, visitan­do as cadeias, pregando o Evangelho e distribuindo a Pala­vra de Deus. Os batistas receberam mais consideração do que os stundistas. A Igreja Batista era mais organizada e o governo pensava que podia melhor fiscalizar ou vigiar as suas atividades. Os stundistas não eram um corpo organi­zado. As reuniões dos alemães na Rússia foram chamadas "Stunden" e o nome "stundistas" foi dado por desprezo aos russos que se reuniam para a leitura da Bíblia e oração. Estes grupos de crentes espalhavam-se por toda a parte da Rússia, e cresciam apesar das perseguições. Os "menoni­tas" eram descendentes dos alemães batistas que recusa­vam levar armas, e foram convidados pela Imperatriz Ca­tarina para animar o trabalho da lavoura na Rússia no século XVIII. Foram proibidos de evangelizar os russos, mas a Palavra de Deus desta fonte espalhava-se.
Em 1905 houve uma guerra entre a Rússia e o Japão, e a Rússia foi derrotada, trazendo muita confusão ao gover­no. O povo clamou por reformas e o Tsar viu-se obrigado a conceder liberdade de consciência e culto, e o cruel Procu­rador foi demitido. Havia uma onda de entusiasmo, e as reuniões de evangelização ficavam cheias de ouvintes. Esta liberdade não durou muito tempo, porque o governo, recuperando mais uma vez o seu poder, e sentindo-se mais seguro, cessou as concessões, e a perseguição começou de novo.
No ano de 1914 rebentou a Grande Guerra. A Rússia entrou nela com muita confiança, mas estava mal prepara­da, e devido à corrupção interna que se apoderara de toda a sociedade, da política e dos oficiais do governo. O Tsar no começo da guerra baniu sem processo, milhares de crentes, pastores batistas e muitos políticos para a Sibéria, onde fi­caram até a revolução, que rebentou em 1917. Então os exilados voltaram. O imperador, com seu governo, e a Igre­ja Ortodoxa na Rússia, caíram todos juntos. O novo gover­no era comunista e ateísta. Os nobres e proprietários, fo­ram mortos ou tiveram de fugir, e milhares deles, criados na riqueza e no luxo, foram obrigados a trabalhar em ter­ras estrangeiras por uma pitança. O imperador Nicolau, a imperatriz, suas filhas e o único filho, foram fuzilados to­dos juntos. O governo comunista tem procurado extinguir todo o sinal de cristianismo, perseguindo a religião grega, a católica e a evangélica. Tem proibido a entrada da Bíblia no país. Entretanto, os crentes continuaram secretamente com suas reuniões, e o governo não tem podido extinguir a fé deles. A esperança agora (1941) é que a guerra atual tra­ga mais liberdade de culto aos crentes, e que as Escrituras mais uma vez possam entrar na Rússia, para salvação e fe­licidade do seu povo.

FINLÂNDIA
O povo da Finlândia fora "convertido" ao cristianismo em 1157 pelo rei da Suécia, que veio com um exército e um bispo (católico) conquistando e depois batizando os finlandeses. O país ficou sujeito ao Governo da Suécia, e seu rei Gustavo Adolfo fez muitas reformas e benefícios na Fin­lândia, fundando escolas e edificando igrejas. Mais tarde, nas guerras entre a Suécia e a Rússia, a Finlândia passou a pertencer à Rússia (1809). Graças ao bom Imperador Ale­xandre I, os finlandeses mantiveram suas leis e constitui­ção, com certa independência, tendo muito mais liberdade religiosa e política do que a mesma Rússia, mas os finlan­deses eram mais civilizados e mais bem educados do que os russos. Em 1899, o governo do Tsar abrogava a consti­tuição, e governava a Finlândia, ditatorialmente, enchen­do o país de espiões e da polícia russa. Esta condição durou até a guerra entre a Rússia e o Japão em 1905, quando o Tsar se sentiu obrigado a restaurar a liberdade, a esse país, devido a greve por parte dos operários no país. Mas o Tsar não era sincero e gradualmente, procurava sempre oprimir a Finlândia.
Depois da grande Guerra, a Finlândia foi separada e tornou-se independente. Desde aquele tempo, o país pro­grediu rapidamente e o Evangelho tem feito bom progres­so. A igreja principal é ainda a Luterana, mas outras deno­minações evangélicas trabalham ali também.





















CONTRACAPA

História do Cristianismo sintetiza os dramas e as glórias vividas pela Igreja de Cristo até o século XX.
Tácito assim descreve as perseguições aos cristãos na época de Nero:

"Alguns foram vestidos com peles de animais ferozes, e perseguidos por cães até serem mortos; outros foram crucificados; outros envolvidos em panos alcatroados, e depois incendiados ao pôr-do-sol, para que pudessem servir de luzes para iluminar a cidade durante a noite".

Em linguagem simples e comovedora, este livro revela muitas das atrocidades e injustiças cometidas contra os baluartes da fé cristã, os quais permaneceram fiéis até a morte, não se esquecendo das palavras do Mestre:

"No mundo tereis aflições, mas tende bom ânimo; eu venci o mundo" (Jo 16.33).

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