A REFORMA E SEU IMPACTO SOCIAL
Franklin Ferreira
Cada geração de cristãos deve ter o firme compromisso de basear sua fé somente na Palavra de Deus: "a igreja reformada deve estar sempre se reformando". Este é um dos importantes princípios formulados pelos reformadores do século XVI, e nos ensina que a igreja não deve ficar inventando novidades, mas pregar e ensinar tão somente o puro e claro evange-lho de Cristo. No dia 31 de outubro celebramos a data em que, em 1517, Martinho Lutero afixou na porta da Igreja do Castelo, em Wittemberg, suas famosas "95 Teses", começando a Reforma Protestante. Só que ela não se restringiu apenas à Alemanha. E seu impacto também não se restringiu às grandes questões teológicas que estavam sendo debatidas, mas buscou de igual forma responder aos grandes problemas sociais daquela época.
Alguns Eventos Importantes Desta ÉpocaPara esboçar a Reforma, podemos sugerir os seguintes como alguns dos eventos importantes:
1517: Lutero pregou as 95 teses na porta da Igreja Castelo.1520: Lutero publica três livros importantes: A Liberdade do Homem Cristão; O Cativeiro Babilônico da Igreja; e Uma Carta Aberta à Nobreza Cristã.1521: Excomunhão de Lutero; ele recusa negar suas crenças diante a Dieta de Worms; ele queima a bula do Papa.1522: Lutero, no exílio, faz uma tradução do Novo Testamento em Alemão, e, depois, volta para orientar a reforma em Wittemberg.1523: Sob a pregação de Zwinglio, a cidade de Zurique abraça a Reforma.1529: A Dieta de Spira declara a Reforma fora da lei; os príncipes evangélicos protestam (a origem do nome "protestantes" ).Lutero e Zwinglio encontram-se em Marburg, mas não concordam sobre a ceia do Senhor.1531: Zwinglio morreu na Guerra de Cappel.1534: Henrique VIII declara a si mesmo cabeça da Igreja da Inglaterra.1536: A primeira edição das Institutas da Religião Cristã de Calvino.1537: Menno Simmons é ordenado bispo anabatista.1541: Calvino começa a Reforma em Genebra.1545: O início do Concílio de Trento.1546: Morte de Lutero.1559: O Ato de Uniformidade na Inglaterra estabelece a Igreja Anglicana como uma via média entre o Catolicismo e o Calvinismo.Volta de John Knox para a Escócia.1564: Morte de Calvino.
1. MARTINHO LUTERO
Poucos se esforçaram mais que Martinho Lutero para diminuir o abismo entre a fé salvado-ra e a ação social. O desejo de agir em prol dos necessitados apareceu resumidamente nas "95 teses", onde Lutero argumentou que é melhor dar aos pobres e emprestar às necessita-das que comprar indulgências. Esta medida serviu para providenciar uma verba para o sus-tento dos pobres e ao mesmo tempo estimular o envolvimento da população na assistência social em Wittemberg.
A ênfase do entendimento social de Lutero era para que os necessitados fossem amparados. Para ele, o cristão justificado se torna livre para poder, através da fé, viver uma vida de serviço decorrente do amor a Deus. O crente justificado deve pensar como Lutero: "Me [entregarei] ao meu próximo como Cristo se ofereceu por mim; farei nada por meu próximo nesta vida senão o que reconheço como sendo necessário, edificador e saudável, porque pela fé gozo uma abundância de todas as coisas em Cristo". A ação social é decorrente de uma mudança baseada na liberdade da justificação pela graça por meio da fé. O resultado será um novo compromisso moral com a sociedade.
O exemplo que Lutero deixou é simples: o cristão deve viver uma vida onde seu amor por Deus seja espontâneo, não visando qualquer recompensa material ou espiritual, mas sim-plesmente com o objetivo de fazer a vontade de Deus, pois a vida cristã consiste "em tudo querer o que Deus quer, buscar a glória de Deus e nada desejar para si, pois é no cuidado pelos mais fracos e desamparados que Deus é glorificado" .
Prédica para que se mandem os filhos à escola (1530): "[O pregador atua] em favor das almas, livrando-as do pecado, da morte e do diabo. No entanto, ele também realiza tão-somente grandes e imponentes obras em favor do mundo: ensina e instrui todas as categorias sociais como se devem conduzir exteriormente em seus cargos e posições, para agirem com justiça perante Deus. Pode consolar os tristes, aconselhar, intermediar em casos de conflito, reconciliar consciências confusas, ajudar a manter a paz, a reconciliar, a viver em harmonia e inúmeras obras mais diariamente. Pois um pregador confirma, fortalece e ajuda a preservar a autoridade, toda a paz secular, resiste aos sediciosos, ensina obediência, bons costumes, disciplina e honra; instrui pai, mãe, filhos, empregados, em suma, a cada qual em sua função e estado secular. (...) Para dizer a verdade, a paz temporal (...) é, no fundo, um fruto do ministério da pregação". Debata com a classe o importante papel dos pregadores numa reforma teológica e social.
2. FILIPE MELANCHTHON
Um dos mais importantes amigos e colaboradores de Lutero foi Filipe Melanchthon. Este erudito lançou os fundamentos da escola elementar popular. O que guiava sua perspectiva do ensino era que "alguns não ensinam absolutamente nada das Sagradas Escrituras; alguns não ensinam às crianças nada além das Sagradas Escrituras; ambos os quais não se deve tolerar".
Em 1528, seus "Artigos de Visitação" para as escolas foram promulgados como lei na Sa-xônia, e sua obra como educador público passou a ser uma dimensão adicional em sua vida. Ele propôs a divisão dos estudantes em três classes, divididas em faixas etárias. Na primeira divisão, as crianças estudavam o alfabeto, a oração do Pai Nosso e o Credo dos Apóstolos. Na segunda divisão, eram estudados pelos adolescentes o Decálogo, o Credo e o Pai Nosso. Os Salmos mais fáceis (112, 34, 128, 125, 133) deveriam ser decorados, assim como deve-riam ser estudados o Evangelho de Mateus, as epístolas de Paulo a Timóteo, a primeira epístola de João e os Provérbios de Salomão. Tudo isto lado a lado com o estudo de física, lógica, gramática, moral e história. No último nível (o equivalente à faculdade), os estudan-tes deveriam se dedicar ao latim, gramática, dialética, retórica, filosofia, matemática, física e ética. Aqueles que estavam sendo preparados para ensinar na igreja, além destas matérias deveriam aprender grego e hebraico, pois em seu entendimento, este conhecimento deveria servir ao estudo e pregação de um Evangelho puro.
Melanchthon entendia que Cristo tinha colocado toda a cultura debaixo de Seu controle, acreditando que este entendimento impediria os cristãos de viverem vidas grosseiras, en-quanto, ao mesmo tempo, os impediam de atribuir mais importância à cultura humana do que à fé cristã. O estudo das letras estava sempre subordinado ao estudo das Escrituras Sa-gradas, mas ele disse: "Aplico-me a uma coisa, a defesa das letras. Convém que com o nos-so exemplo se inflame a mocidade de admiração pelas letras, e que as ame por amor delas, e não pelo proveito que delas possa tirar. A ruína das letras traz consigo a desolação de tudo o que é bom: a religião, os costumes, coisas divinas e coisas humanas. Quanto melhor é um homem, tanto maior é o ardor que tem por salvar as letras; porquanto sabe que das pestes a mais perniciosa é a ignorância. Uma escuridão terrível cairá em nossa sociedade, se o estu-do das ciências for negligenciado" . Este ensino abrangente tinha por objetivo tornar os cris-tãos ativos no mundo, dissipando as trevas de uma fé corrompida e supersticiosa e da igno-rância.
Melanchthon tem sido considerado o fundador do ensino controlado e sustentado pelo Es-tado, tendo tirado as escolas do controle privado. Pelo menos cinqüenta e seis cidades pro-curaram sua ajuda na reforma de suas escolas. Ele ajudou a reformar oito universidades e a fundar outras quatro. Escreveu numerosos livros didáticos para uso nas escolas e, mais tar-de, foi chamado o "Instrutor da Alemanha".
Na Alemanha, 1997 foi declarado o "ano de Melanchthon" por causa das celebrações do aniversário do nascimento deste grande reformador. As celebrações ocorreram sob o patro-cínio do governo federal alemão, e as festividades começaram com uma cerimônia realiza-da em 31 de outubro de 1996, na Igreja do Castelo, em Wittenberg.
3. JOÃO CALVINO
João Calvino foi um dos mais notáveis reformadores, e a ação social estava entre as suas principais preocupações. Ele tinha como princípio básico nesta área que em Cristo não há mais nem escravos nem livres, pois nosso Senhor aboliu todas as divisões de classes. Isso significa que o cristão vive a fé autêntica quando encontra seus irmãos numa fraternidade que exclui toda discriminação. Calvino jamais estabeleceu uma conexão entre riqueza ou pobreza e o favor ou desfavor de Deus em relação a indivíduos. Antes, ele entendeu a ri-queza e a pobreza como expressões do favor ou do julgamento de Deus sobre toda a comu-nidade, que então deveria redistribuir os seus recursos com vistas ao bem comum: "Por que é então que Deus permite a existência da pobreza aqui embaixo, a não ser porque ele deseja dar-nos ocasião para praticarmos o bem?"
André Biéler resume o pensamento do reformador: "Somos todos ricos em relação a al-guém. O rico tem uma missão econômica de providenciar ao mais pobre parte de sua rique-za, de tal maneira que o pobre deixa de ser pobre e ele mesmo deixe de ser rico". Esta i-gualdade pregada pelo reformador tem como objetivo levar os membros do corpo de Cristo à restauração social do mundo, uma vez que pela fé o crente em Cristo sendo restaurado à imagem de Deus, reconstitui suas relações com seu próximo. Calvino devolveu ao cristia-nismo a comunhão espiritual que Cristo estabelece entre os membros de seu corpo, fazendo com que estes supram as necessidades uns dos outros. Esta igualdade é da vontade de Deus. Conforme o reformador: "A vontade de Deus é que haja tal analogia e igualdade entre nós. Cada um socorra os indigentes na medida de suas possibilidades, a fim de que alguns não sofram necessidades enquanto outros têm em supérflua abundância".
A preocupação de Calvino de que a igreja tivesse esta prática fez com que ele recriasse o serviço diaconal. Mas ele sempre advertiu que todos os cristãos são responsáveis uns pelos outros. Genebra foi o primeiro lugar na Europa a ter leis especiais que proibiam: jogar fe-zes, urina e lixo nas ruas; fazer fogo ou usar fogão num cômodo sem chaminé; ter uma casa com sacadas ou escadas sem que as mesmas tenham grades de proteção; permitir que as parteiras deitem-se em suas camas com os bebês recém-nascidos (a lei visava proteger o nenê da contaminação); alugar uma casa sem o conhecimento da polícia; sendo comercian-te, cobrar além do preço permitido ou roubar no peso e também (e isso se estendia aos pro-dutores) , estocar mercadorias para fazê-la faltar no mercado e assim encarecê-la.
Calvino considerava os negócios como uma forma legítima de servir a Deus e de trabalhar para a sua glória. Ele via a circulação de dinheiro e os bens e serviços como uma forma concreta da comunhão dos santos, e defendia que aqueles que se envolviam nos negócios deveriam ter como objetivo ajudar os pobres e os ricos. Ele pensava que seria bom restaurar o ano do jubileu - uma redistribuição periódica da riqueza de modo que essa brecha nunca se tornasse permanente. Em um sermão, ele disse: "Deus mistura os ricos e os pobres para que eles possam encontrar-se e ter comunhão uns com os outros, de modo que os pobres recebam e os ricos repartam". Assim sendo, defendeu alguma intervenção por parte do go-verno para a proteção do bem comum, a fim que "os homens respirem, comam, bebam e mantenham-se aquecidos" (Institutas IV.20.3).
Os pastores em Genebra também intercediam diante do Conselho em favor dos pobres e dos operários. O próprio Calvino intercedeu várias vezes por aumentos de salários para os trabalhadores. Os pastores pregavam contra a especulação financeira, e fiscalizavam parci-almente os preços contra a alta provocada pelos monopólios. Debaixo da influência dos pastores, o Conselho limitou a jornada de trabalho dos operários. A vadiagem foi proibida por leis: os vagabundos estrangeiros que não tivessem meios de trabalhar deveriam deixar Genebra dentro de três dias após a sua chegada. E os vagabundos da cidade deveriam a-prender um ofício e trabalhar, sob pena de prisão. O Conselho instituiu cursos profissiona- lizantes para os vadios e os jovens, para que eles pudessem entrar no mercado de trabalho.
O pensamento social de Calvino pode ser resumido assim:
1) É necessário começar por saber qual a atitude que o Senhor deseja que tenhamos diante dos bens materiais: quais os meios lícitos de ganhá-los e qual o seu uso adequado e legítimo;2) Não devemos buscar os bens terrenos por cobiça. Se vivermos na pobreza, devemos suportá-la pacientemente; se tivermos riquezas, não devemos nos prender a elas nem confiar nelas, devendo estar dispostos a renunciá-las se isso convier a Deus. Tanto o possuir como o não possuir devem ser indiferentes e sem maior valor, considerando a bênção de Deus como maior do que todas as coisas, buscando o reino espiritual de Jesus Cristo sem nos envolvermos em ambições iníquas;3) Trabalhemos honestamente para ganhar a vida. Recebamos nossos lucros como vindos das mãos de Deus. Não usemos de má fé para nos apossarmos dos bens dos outros, mas sirvamos ao próximo com consciência limpa. Que o fruto de nosso trabalho seja o salário justo. Ao vender e ao comprar não usemos de fraude, astúcia ou mentira. Apliquemos ao nosso trabalho a mesma honestidade e lealdade que esperamos dos outros;4) Finalmente, quem nada possui não deixe de render graças a Deus e de comer seu pão com alegria. Quem muito possui não use de glutonaria, de luxo, de orgulho e de vaidade, gastando dinheiro com coisas supér-fluas; antes, seja em tudo moderado, e empregue seus bens em ajudar e socorrer o próximo, reconhecendo- se como quem recebeu seus bens de Deus e que deles há de um dia prestar contas. Devemos nos lembrar que o que tem em abundância use apenas o necessário para que o que nada tem não fique privado;5) Em resumo, assim como Jesus Cristo deu-se por nós, também comuniquemos ao próximo, com amor, as graças que recebemos, ajudando-o na sua pobreza e socorrendo-o na sua miséria. Isto é o que nos cabe fazer.
CONCLUSÃO
À luz do contexto econômico neoliberal e sua política de exclusão social precisamos nos perguntar em que sentido a teologia social dos reformadores poderia nos ajudar hoje, aqui e agora, no Brasil. Como decorrência de tal herança, a igreja evangélica (especialmente os reformados) deveria se envolver em todos estes aspectos da sociedade, usando os meios apropriados, lícitos e legais para protestar, advertir e resistir à injustiça social, usando a pregação da Palavra para chamar ao arrependimento os governantes corruptos, os ricos o-pressores e os pobres preguiçosos, e exercitando obras de misericórdia e assistência social através de uma diaconia treinada e motivada. Todo este envolvimento social deve acontecer sem perder de vista que a missão primordial da Igreja é promover a reforma (parcial e pro-visória) da sociedade através da proclamação do Evangelho de Jesus Cristo, aguardando os novos céus e a nova terra onde habita a plena justiça de Deus.
Que Deus nos dê coragem de viver pela mesma fé e de morrer pela fé evangélica. "Eterno Deus e Pai do Nosso Senhor Jesus Cristo, dá-nos o Teu Espírito Santo que escreve a Pala-vra pregada em nossos corações. Que nós possamos receber e crer no Teu Espírito para sermos regozijados e confortados por Ele na eternidade. Glorifica a Tua palavra em nossos corações e faz com que ela seja tão brilhante e quente que nós possamos achar prazer nela, através do Teu Espírito Santo, pensar o que é certo, e pelo Teu poder cumprir a Tua Palavra por amor de Jesus Cristo, Teu Filho, Nosso Senhor. Amém!" (Martinho Lutero).
* O autor é doutorando em teologia, professor de Teologia Sistemática e História da Igreja no Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil e na Escola de Pastores, ambos no Rio de Janeiro.
Fonte: http://textosdareforma.net/historia_e_biografias/Reforma_Protestante/cap4.shtml
Cada geração de cristãos deve ter o firme compromisso de basear sua fé somente na Palavra de Deus: "a igreja reformada deve estar sempre se reformando". Este é um dos importantes princípios formulados pelos reformadores do século XVI, e nos ensina que a igreja não deve ficar inventando novidades, mas pregar e ensinar tão somente o puro e claro evange-lho de Cristo. No dia 31 de outubro celebramos a data em que, em 1517, Martinho Lutero afixou na porta da Igreja do Castelo, em Wittemberg, suas famosas "95 Teses", começando a Reforma Protestante. Só que ela não se restringiu apenas à Alemanha. E seu impacto também não se restringiu às grandes questões teológicas que estavam sendo debatidas, mas buscou de igual forma responder aos grandes problemas sociais daquela época.
Alguns Eventos Importantes Desta ÉpocaPara esboçar a Reforma, podemos sugerir os seguintes como alguns dos eventos importantes:
1517: Lutero pregou as 95 teses na porta da Igreja Castelo.1520: Lutero publica três livros importantes: A Liberdade do Homem Cristão; O Cativeiro Babilônico da Igreja; e Uma Carta Aberta à Nobreza Cristã.1521: Excomunhão de Lutero; ele recusa negar suas crenças diante a Dieta de Worms; ele queima a bula do Papa.1522: Lutero, no exílio, faz uma tradução do Novo Testamento em Alemão, e, depois, volta para orientar a reforma em Wittemberg.1523: Sob a pregação de Zwinglio, a cidade de Zurique abraça a Reforma.1529: A Dieta de Spira declara a Reforma fora da lei; os príncipes evangélicos protestam (a origem do nome "protestantes" ).Lutero e Zwinglio encontram-se em Marburg, mas não concordam sobre a ceia do Senhor.1531: Zwinglio morreu na Guerra de Cappel.1534: Henrique VIII declara a si mesmo cabeça da Igreja da Inglaterra.1536: A primeira edição das Institutas da Religião Cristã de Calvino.1537: Menno Simmons é ordenado bispo anabatista.1541: Calvino começa a Reforma em Genebra.1545: O início do Concílio de Trento.1546: Morte de Lutero.1559: O Ato de Uniformidade na Inglaterra estabelece a Igreja Anglicana como uma via média entre o Catolicismo e o Calvinismo.Volta de John Knox para a Escócia.1564: Morte de Calvino.
1. MARTINHO LUTERO
Poucos se esforçaram mais que Martinho Lutero para diminuir o abismo entre a fé salvado-ra e a ação social. O desejo de agir em prol dos necessitados apareceu resumidamente nas "95 teses", onde Lutero argumentou que é melhor dar aos pobres e emprestar às necessita-das que comprar indulgências. Esta medida serviu para providenciar uma verba para o sus-tento dos pobres e ao mesmo tempo estimular o envolvimento da população na assistência social em Wittemberg.
A ênfase do entendimento social de Lutero era para que os necessitados fossem amparados. Para ele, o cristão justificado se torna livre para poder, através da fé, viver uma vida de serviço decorrente do amor a Deus. O crente justificado deve pensar como Lutero: "Me [entregarei] ao meu próximo como Cristo se ofereceu por mim; farei nada por meu próximo nesta vida senão o que reconheço como sendo necessário, edificador e saudável, porque pela fé gozo uma abundância de todas as coisas em Cristo". A ação social é decorrente de uma mudança baseada na liberdade da justificação pela graça por meio da fé. O resultado será um novo compromisso moral com a sociedade.
O exemplo que Lutero deixou é simples: o cristão deve viver uma vida onde seu amor por Deus seja espontâneo, não visando qualquer recompensa material ou espiritual, mas sim-plesmente com o objetivo de fazer a vontade de Deus, pois a vida cristã consiste "em tudo querer o que Deus quer, buscar a glória de Deus e nada desejar para si, pois é no cuidado pelos mais fracos e desamparados que Deus é glorificado" .
Prédica para que se mandem os filhos à escola (1530): "[O pregador atua] em favor das almas, livrando-as do pecado, da morte e do diabo. No entanto, ele também realiza tão-somente grandes e imponentes obras em favor do mundo: ensina e instrui todas as categorias sociais como se devem conduzir exteriormente em seus cargos e posições, para agirem com justiça perante Deus. Pode consolar os tristes, aconselhar, intermediar em casos de conflito, reconciliar consciências confusas, ajudar a manter a paz, a reconciliar, a viver em harmonia e inúmeras obras mais diariamente. Pois um pregador confirma, fortalece e ajuda a preservar a autoridade, toda a paz secular, resiste aos sediciosos, ensina obediência, bons costumes, disciplina e honra; instrui pai, mãe, filhos, empregados, em suma, a cada qual em sua função e estado secular. (...) Para dizer a verdade, a paz temporal (...) é, no fundo, um fruto do ministério da pregação". Debata com a classe o importante papel dos pregadores numa reforma teológica e social.
2. FILIPE MELANCHTHON
Um dos mais importantes amigos e colaboradores de Lutero foi Filipe Melanchthon. Este erudito lançou os fundamentos da escola elementar popular. O que guiava sua perspectiva do ensino era que "alguns não ensinam absolutamente nada das Sagradas Escrituras; alguns não ensinam às crianças nada além das Sagradas Escrituras; ambos os quais não se deve tolerar".
Em 1528, seus "Artigos de Visitação" para as escolas foram promulgados como lei na Sa-xônia, e sua obra como educador público passou a ser uma dimensão adicional em sua vida. Ele propôs a divisão dos estudantes em três classes, divididas em faixas etárias. Na primeira divisão, as crianças estudavam o alfabeto, a oração do Pai Nosso e o Credo dos Apóstolos. Na segunda divisão, eram estudados pelos adolescentes o Decálogo, o Credo e o Pai Nosso. Os Salmos mais fáceis (112, 34, 128, 125, 133) deveriam ser decorados, assim como deve-riam ser estudados o Evangelho de Mateus, as epístolas de Paulo a Timóteo, a primeira epístola de João e os Provérbios de Salomão. Tudo isto lado a lado com o estudo de física, lógica, gramática, moral e história. No último nível (o equivalente à faculdade), os estudan-tes deveriam se dedicar ao latim, gramática, dialética, retórica, filosofia, matemática, física e ética. Aqueles que estavam sendo preparados para ensinar na igreja, além destas matérias deveriam aprender grego e hebraico, pois em seu entendimento, este conhecimento deveria servir ao estudo e pregação de um Evangelho puro.
Melanchthon entendia que Cristo tinha colocado toda a cultura debaixo de Seu controle, acreditando que este entendimento impediria os cristãos de viverem vidas grosseiras, en-quanto, ao mesmo tempo, os impediam de atribuir mais importância à cultura humana do que à fé cristã. O estudo das letras estava sempre subordinado ao estudo das Escrituras Sa-gradas, mas ele disse: "Aplico-me a uma coisa, a defesa das letras. Convém que com o nos-so exemplo se inflame a mocidade de admiração pelas letras, e que as ame por amor delas, e não pelo proveito que delas possa tirar. A ruína das letras traz consigo a desolação de tudo o que é bom: a religião, os costumes, coisas divinas e coisas humanas. Quanto melhor é um homem, tanto maior é o ardor que tem por salvar as letras; porquanto sabe que das pestes a mais perniciosa é a ignorância. Uma escuridão terrível cairá em nossa sociedade, se o estu-do das ciências for negligenciado" . Este ensino abrangente tinha por objetivo tornar os cris-tãos ativos no mundo, dissipando as trevas de uma fé corrompida e supersticiosa e da igno-rância.
Melanchthon tem sido considerado o fundador do ensino controlado e sustentado pelo Es-tado, tendo tirado as escolas do controle privado. Pelo menos cinqüenta e seis cidades pro-curaram sua ajuda na reforma de suas escolas. Ele ajudou a reformar oito universidades e a fundar outras quatro. Escreveu numerosos livros didáticos para uso nas escolas e, mais tar-de, foi chamado o "Instrutor da Alemanha".
Na Alemanha, 1997 foi declarado o "ano de Melanchthon" por causa das celebrações do aniversário do nascimento deste grande reformador. As celebrações ocorreram sob o patro-cínio do governo federal alemão, e as festividades começaram com uma cerimônia realiza-da em 31 de outubro de 1996, na Igreja do Castelo, em Wittenberg.
3. JOÃO CALVINO
João Calvino foi um dos mais notáveis reformadores, e a ação social estava entre as suas principais preocupações. Ele tinha como princípio básico nesta área que em Cristo não há mais nem escravos nem livres, pois nosso Senhor aboliu todas as divisões de classes. Isso significa que o cristão vive a fé autêntica quando encontra seus irmãos numa fraternidade que exclui toda discriminação. Calvino jamais estabeleceu uma conexão entre riqueza ou pobreza e o favor ou desfavor de Deus em relação a indivíduos. Antes, ele entendeu a ri-queza e a pobreza como expressões do favor ou do julgamento de Deus sobre toda a comu-nidade, que então deveria redistribuir os seus recursos com vistas ao bem comum: "Por que é então que Deus permite a existência da pobreza aqui embaixo, a não ser porque ele deseja dar-nos ocasião para praticarmos o bem?"
André Biéler resume o pensamento do reformador: "Somos todos ricos em relação a al-guém. O rico tem uma missão econômica de providenciar ao mais pobre parte de sua rique-za, de tal maneira que o pobre deixa de ser pobre e ele mesmo deixe de ser rico". Esta i-gualdade pregada pelo reformador tem como objetivo levar os membros do corpo de Cristo à restauração social do mundo, uma vez que pela fé o crente em Cristo sendo restaurado à imagem de Deus, reconstitui suas relações com seu próximo. Calvino devolveu ao cristia-nismo a comunhão espiritual que Cristo estabelece entre os membros de seu corpo, fazendo com que estes supram as necessidades uns dos outros. Esta igualdade é da vontade de Deus. Conforme o reformador: "A vontade de Deus é que haja tal analogia e igualdade entre nós. Cada um socorra os indigentes na medida de suas possibilidades, a fim de que alguns não sofram necessidades enquanto outros têm em supérflua abundância".
A preocupação de Calvino de que a igreja tivesse esta prática fez com que ele recriasse o serviço diaconal. Mas ele sempre advertiu que todos os cristãos são responsáveis uns pelos outros. Genebra foi o primeiro lugar na Europa a ter leis especiais que proibiam: jogar fe-zes, urina e lixo nas ruas; fazer fogo ou usar fogão num cômodo sem chaminé; ter uma casa com sacadas ou escadas sem que as mesmas tenham grades de proteção; permitir que as parteiras deitem-se em suas camas com os bebês recém-nascidos (a lei visava proteger o nenê da contaminação); alugar uma casa sem o conhecimento da polícia; sendo comercian-te, cobrar além do preço permitido ou roubar no peso e também (e isso se estendia aos pro-dutores) , estocar mercadorias para fazê-la faltar no mercado e assim encarecê-la.
Calvino considerava os negócios como uma forma legítima de servir a Deus e de trabalhar para a sua glória. Ele via a circulação de dinheiro e os bens e serviços como uma forma concreta da comunhão dos santos, e defendia que aqueles que se envolviam nos negócios deveriam ter como objetivo ajudar os pobres e os ricos. Ele pensava que seria bom restaurar o ano do jubileu - uma redistribuição periódica da riqueza de modo que essa brecha nunca se tornasse permanente. Em um sermão, ele disse: "Deus mistura os ricos e os pobres para que eles possam encontrar-se e ter comunhão uns com os outros, de modo que os pobres recebam e os ricos repartam". Assim sendo, defendeu alguma intervenção por parte do go-verno para a proteção do bem comum, a fim que "os homens respirem, comam, bebam e mantenham-se aquecidos" (Institutas IV.20.3).
Os pastores em Genebra também intercediam diante do Conselho em favor dos pobres e dos operários. O próprio Calvino intercedeu várias vezes por aumentos de salários para os trabalhadores. Os pastores pregavam contra a especulação financeira, e fiscalizavam parci-almente os preços contra a alta provocada pelos monopólios. Debaixo da influência dos pastores, o Conselho limitou a jornada de trabalho dos operários. A vadiagem foi proibida por leis: os vagabundos estrangeiros que não tivessem meios de trabalhar deveriam deixar Genebra dentro de três dias após a sua chegada. E os vagabundos da cidade deveriam a-prender um ofício e trabalhar, sob pena de prisão. O Conselho instituiu cursos profissiona- lizantes para os vadios e os jovens, para que eles pudessem entrar no mercado de trabalho.
O pensamento social de Calvino pode ser resumido assim:
1) É necessário começar por saber qual a atitude que o Senhor deseja que tenhamos diante dos bens materiais: quais os meios lícitos de ganhá-los e qual o seu uso adequado e legítimo;2) Não devemos buscar os bens terrenos por cobiça. Se vivermos na pobreza, devemos suportá-la pacientemente; se tivermos riquezas, não devemos nos prender a elas nem confiar nelas, devendo estar dispostos a renunciá-las se isso convier a Deus. Tanto o possuir como o não possuir devem ser indiferentes e sem maior valor, considerando a bênção de Deus como maior do que todas as coisas, buscando o reino espiritual de Jesus Cristo sem nos envolvermos em ambições iníquas;3) Trabalhemos honestamente para ganhar a vida. Recebamos nossos lucros como vindos das mãos de Deus. Não usemos de má fé para nos apossarmos dos bens dos outros, mas sirvamos ao próximo com consciência limpa. Que o fruto de nosso trabalho seja o salário justo. Ao vender e ao comprar não usemos de fraude, astúcia ou mentira. Apliquemos ao nosso trabalho a mesma honestidade e lealdade que esperamos dos outros;4) Finalmente, quem nada possui não deixe de render graças a Deus e de comer seu pão com alegria. Quem muito possui não use de glutonaria, de luxo, de orgulho e de vaidade, gastando dinheiro com coisas supér-fluas; antes, seja em tudo moderado, e empregue seus bens em ajudar e socorrer o próximo, reconhecendo- se como quem recebeu seus bens de Deus e que deles há de um dia prestar contas. Devemos nos lembrar que o que tem em abundância use apenas o necessário para que o que nada tem não fique privado;5) Em resumo, assim como Jesus Cristo deu-se por nós, também comuniquemos ao próximo, com amor, as graças que recebemos, ajudando-o na sua pobreza e socorrendo-o na sua miséria. Isto é o que nos cabe fazer.
CONCLUSÃO
À luz do contexto econômico neoliberal e sua política de exclusão social precisamos nos perguntar em que sentido a teologia social dos reformadores poderia nos ajudar hoje, aqui e agora, no Brasil. Como decorrência de tal herança, a igreja evangélica (especialmente os reformados) deveria se envolver em todos estes aspectos da sociedade, usando os meios apropriados, lícitos e legais para protestar, advertir e resistir à injustiça social, usando a pregação da Palavra para chamar ao arrependimento os governantes corruptos, os ricos o-pressores e os pobres preguiçosos, e exercitando obras de misericórdia e assistência social através de uma diaconia treinada e motivada. Todo este envolvimento social deve acontecer sem perder de vista que a missão primordial da Igreja é promover a reforma (parcial e pro-visória) da sociedade através da proclamação do Evangelho de Jesus Cristo, aguardando os novos céus e a nova terra onde habita a plena justiça de Deus.
Que Deus nos dê coragem de viver pela mesma fé e de morrer pela fé evangélica. "Eterno Deus e Pai do Nosso Senhor Jesus Cristo, dá-nos o Teu Espírito Santo que escreve a Pala-vra pregada em nossos corações. Que nós possamos receber e crer no Teu Espírito para sermos regozijados e confortados por Ele na eternidade. Glorifica a Tua palavra em nossos corações e faz com que ela seja tão brilhante e quente que nós possamos achar prazer nela, através do Teu Espírito Santo, pensar o que é certo, e pelo Teu poder cumprir a Tua Palavra por amor de Jesus Cristo, Teu Filho, Nosso Senhor. Amém!" (Martinho Lutero).
* O autor é doutorando em teologia, professor de Teologia Sistemática e História da Igreja no Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil e na Escola de Pastores, ambos no Rio de Janeiro.
-- Márcio Melânia"Quanto ao mais, irmãos, regozijai-vos, sede perfeitos, sede consolados,sede de um mesmo parecer, vivei em paz; e o Deus de amor e de paz será convosco."(2 Coríntios 13 : 11)
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